AVANCA | CINEMA

O Abismo e o Cinema moderno: Não seria só o apocalipse quem poderia nos libertar?

Régis Frota Araújo

Universidade Federal de Ceará, Brasil

Abstract

The purpose of this work is to emphasize the identity nature of onirophile cinema - lover of dreams -, and the erotic imagery that rescues contemporary depression from the joy of living and dreaming. There are films and filmmakers - such as Glauber, Lars Von Trier, Hitchcock, Kubrick, etc. - that identify the existence of factual life situations in which man and society are on the verge of an abyss, a collapse, or related themes with death tensions in the most Freudian sense of the term, or by explicit styles of images constructed from vertigo and threats of nuclear destruction.

Keywords: Abyss, Cinema, Depression, Erotism, Dreams

1. Introdução

Em recente filme exibido em Fortaleza (Ceará-Brasil), uma co-produção belga-paquistanesa, “A Garota Ocidental - Entre o Coração e a Tradição”, chama especial atenção do espectador a escadaria do prédio de apartamentos, filmada desde o topo, onde a visão dos diversos andares abaixo, dão a perfeita noção abissal da metáfora visual da película, o abismo catastrófico no qual se enreda a protagonista ao resistir aos costumes e tradições paquistaneses de casarem-se as filhas somente com nacionais paquistaneses, interditando-se aventuras amorosas com ocidentais.

Outro exemplo da presença do abismo no cinema encontra-se no filme de Glauber Rocha, “Terra em Transe”, quando Sara, a companheira do protagonista, Paulo Martins, reclama que o jornalista e poeta se está entregando ao torpor e à depressão, durante passeata e lhe acusa:

- Veja Paulo, Vieira está perdido ante o abismo, você jogou Vieira no ABISMO, ao que Paulo responde – Eu? o abismo está aí, aberto, e todos nós marchamos para ele...

É deste abismo, aberto ao ser humano, à humanidade, deste sentimento da catástrofe apocalíptica, entre o real e o imaginário, na expressão da filósofa Annie Le Brun, que pretendo falar. Pretendo discorrer sobre o potencial da arte cinematográfica em captar o abismo, em expressar o destino humano, a própria vida tão transitória aqui na terra, com o sentimento permanente, entre os seres vivos, da ameaça da presença da morte, já que o leque de nossas desgraças recentes – sejam elas de origem química, alimentar, industrial ou nuclear (tal leque se abre entre os desastres em Chernobyl, ameaças atômicas, terremotos e vulcões, tsunamis, e a catástrofe em Fukushima) não nos deixa esquecer a constante ameaça da iminente e inevitável chegada escatológica do destino final.

O abismo, no cinema, tem especial relevo audiovisual, também, em dois outros filmes “Ordet” de Carl Theodore Dreiher, o mesmo célebre diretor de “Aurora” (1936) e “Paixão de Joana D´Arc” (1948) e, “Vertigo” ou “Um corpo que cai”, de Alfred Hitchcock, os quais merecerão nossa apreciação, neste bate-papo descontraído, tendo em vista que, tanto o espetáculo hitchcockiano que ressuscita Kim Nowak pela dramaturgia hollywoodiana do suspense e da vertigem reconstrutora do mesmo penteado prateado e louro, mesma indumentária e mesmos trejeitos da suicida, quanto o filme dinamarquês antecedente e prenunciador das perquirições bergmanianas, “A Palavra”, igualmente centrado no tema da ressurreição, desta feita, ressurreição real e concreta, pelo Cristo da película, efetuada pela fé do personagem filho do patriarca do filme.

O abismo nestes dois filmes é matéria central- no de Hitchcock, desde o início do filme, quando o James Stewart socorre e salva a linda mulher que se lançara no rio, abismo abaixo, numa tentativa suicida de retirar-se a própria vida, o espectador pode ver e perceber a Abissal condição daquela que será reconhecida como fantasma quando, sequência adiante, ingressa no hotel, mas não é encontrada seja pela gerente, seja pelo próprio investigador que, embora a tivesse visto penetrar naquele hotel, se surpreenderá sem poder apreender ou identificar sua saída, a saída de um ser concreto, de qualquer mulher alguma. Já no filme “Ordet” (a palavra), a busca do abismo transcende todo o filme, seja quando desaparece Johannes, o Cristo ortodoxo da película, levando seu pai e irmãos a gritarem e procurarem-no sem encontrar, pelos campos e capinzais, vociferando e apelando por seu nome, inutilmente, até a morte de nora, quando ele retorna, repentinamente, abruptamente, para efetivar a ressurreição da morta, para resgatar a fé do marido, o qual, Agora, ama e crê, e acredita na vida novamente.

Na filmografia Kubrickiana podemos identificar que seu mundo está sempre à beira do colapso ou de uma abissal situação, seja ele o de um indivíduo ou o de uma sociedade.

E, por outro lado, a pobreza do que chamamos de filme de catástrofe, estilo Hollywood, mostra o fim do mundo, com toda brutalidade dos produtos de grande consumo: incêndios de arranha-céus gigantescos(Inferno na Torre, Terremoto), rupturas de barragens colossais ou inundações de arquiteturas subterrâneas, etc., são apresentados como casos particulares para evidenciar de modo mais pontual, o preço que o homem deve pagar por não ter querido prestar atenção ao mundo no qual vive. Mas, como assinala Le Brun, ao mesmo tempo, Hollywood tenta esconder que a evocação dessas catástrofes, apesar de parciais, serve para nos divertir com a catástrofe nuclear que, doravante, ameaça o planeta inteiro. De fato, observa Annie Le Brun1, que “o fim do mundo deixou de ser representado, precisamente quando, pela primeira vez, dispomos dos meios de provocá-lo, qual a suicida do “Vertigo”. E, igualmente, quando nos lançamos na mais frenética especulação a respeito dos múltiplos desastres e abismos que se prefiguram com a modernidade. Continua sendo verdade que o fato de se poder prefigurá-los não suscita mais que imagens previsíveis, para não dizer realistas, dando prova de uma retração do imaginário catastrófico ou abissal. Nesse sentido, também se poderia dizer que as atuais catástrofes – epifenômenos de uma relação com o mundo cuja natureza essencialmente catastrófica desejamos ocultar -, não só deterioram a paisagem real como atentam contra nossa paisagem imaginária, fazendo o sonho de aniquilamento passar do infinito para a finitude, afirma Le Brun.2

2. Desenvolvimento

O compositor pernambucano Antonio Maria, após conviver com a socialite Danuza Leao, cunhou uma expressão que me parece curiosa e aplicável ao tema. Ao prognosticar ele que “ a mulher, após 30 dias de felicidade, tem sede e fome de desgraça”, representou o sentimento da catástrofe no plano pessoal e amoroso privado, enquanto nos interessa aqui, antes, discutir o sentimento do desastre coletivo, humano, discorrer sobre a narrativa cinematográfica que oscila entre o real e o imaginário catastrófico, inclusive como meio de escamoteamento da ameaça nuclear de destruição final da vida terrena. Afinal, desde os anos 1950, as hordas de monstros pré-históricos ou de animais gigantescos (formigas, aranhas) que surgiram como consequências inevitáveis de manipulações atômicas desastradas, não invadiram telas e livros de ficção- muitos dos quais adaptados por uma Hollywood sedenta de imaginosa temperatura dramatúrgica familiar), para se autoproclamarem os arautos sinistros de um fim do mundo que não mais se deixa representar?

A filósofa francesa adverte para o fato de que o advento destes monstros (lembram do Spielberg da série “dinossauros”?) também é um pretexto para uma primeira denegação da realidade nuclear. Esse fim do mundo, que não se pode figurar, mas que se evoca, mentirosamente, por meio ou através da aberração animal, passa a ser objeto de uma pura e simples recusa nos anos 1960, quando, apesar da gravidade da situação (basta lembrar do episódio da Baía dos Porcos, entre Kennedy e Krutchev) , se recorreu ao artifício fácil do charmoso espião, que tem em James Bond, o principal protótipo, na medida em que representava a aliança da maior parafernália técnica com a tradição política conservadora e o símbolo dessa única possibilidade de vencer o perigo atômico.

Ante uma civilização predadora como a nossa atual, não basta retirar dos malvados as armas nucleares, como faz Monsieur Bond, pois, no fim das contas, não há boa ou má utilização do átomo no interior de nossa atualidade civilizatória.

A títulos como 2019, 2024 ou 2227 atravessa como um traço o ridículo otimismo da década finda, para abrir caminho para a devastação do pós-catástrofe. Aliás, tal otimismo só vale até a chegada de criaturas híbridas entre o homem e o robô, que, como em “Blade Runner”, simbolizam a um só tempo essa progressão do vazio no interior do homem e a ameaça constituída por seres cuja humanidade nada mais é que aparência.

James Bond, para sobreviver, devia combater a aliança da técnica com o conservadorismo e a tradição, nos anos 60. Já nos anos 1980, outro herói cinematográfico, “Mad Max”, para sobreviver, deverá combater a aliança da técnica com a barbárie. Aliás, ainda demasiado humana, a barbárie rapidamente desaparece em face do imperialismo absoluto da técnica, e em contrapartida, os tipos que não buscam resistir à desumanização de uma técnica que vem satisfazer todas as necessidades, proliferam em grupos paramilitares ou parapoliciais, aterrorizando quem quer que pretenda escapar a essa concepção ortopédica da vida.

Assim, o herói do filme de Terry Gilian, “Brazil”, por mais que dê provas de sua notável disposição para a sabotagem e de contrariedade contra a burocracia, ao lado de dois ou três cúmplices desconhecidos, acaba esmagado, menos pela toda-poderosa técnica que pelo conluio da técnica com o vivente.

A propósito, Eliane Robert Moraes registra ou observa, corretamente, que o terremoto de Lisboa, catástrofe ocorrida em 1755, fato contemporâneo do Marques de Sade, “teve enorme impacto no pensamento europeu, fazendo surgir no horizonte um imaginário catastrófico que veio abalar os alicerces da racionalidade iluminista com furacões, naufrágios, tempestades, desabamentos e toda sorte de cataclismos. Um desejo de fim do mundo se precipitou então na sensibilidade coletiva, alcançando os anos oitocentos com particular vigor, em especial no romantismo, para chegar ao século XX como um legado importante que alimentou o espírito inquieto das vanguardas.”

E continua Eliane Moraes:3 “depois da bomba atômica, porém, a paisagem sensível passou a testemunhar o declínio do sentimento da catástrofe e sua normalização como dado real, cuja tenebrosa evidencia vem sendo dada pelos recentes desastres de Chernobyl e Fukushima. Por isso, diz a mencionada Le Brun que aquela tentação de fim de mundo que era induzida pelo desejo paradoxal de recriar o mundo foi embargada pela efetiva concretização da ameaça nuclear, cuja força de destruição parece ter se imposto ao nosso poder de negação.”

O imaginário que repercute no cinema, bem como os sonhos de devastação passaram do infinito para a finitude, a ponto de privar a catástrofe do devir imaginário que ela sempre teve e de suprimir “aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a portadora”. Como consequência, ficamos privados da possibilidade de representar os perigos que, de fato nos ameaçam e, impotentes para sonhar com o que nos excede, tornamo-nos resignados diante dos excessos que nos sujeitam. Na verdade, Le Brun acerta perfeitamente no alvo quando ressalta que houve uma inversão de perspectiva sem precedentes, pela primeira vez, diz ela, ao invés de levar ao mais longínquo limite, o imaginário traz para o limite mais próximo, também pela primeira vez, em vez de abrir o horizonte, ele o fecha, valendo-se essencialmente do que pode ser verossímil, de modo que as atuais encenações (hollywoodianas ou não) da catástrofe a simulam para lhe negar, antes de tudo, seu caráter improvável. Assim, reduzindo-se à extrapolação de uma situação-limite, tais encenações acabam por privar a catástrofe do alcance imaginário que ela era sempre teve, bastando para isso suprimir aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a portadora.”4

Muito a propósito merece referir as pesquisas de Sarissa Carneiro5 e Abreu Freire6, as quais atentam para a retórica do infortúnio no século XVI, para constatar que das 1578 naus portuguesas que partiram ao Oriente, entre 1580 e 1700, somente 538 conseguiram retornar.

Afirma Abreu Freire que “ Toda a dinastia de Avis (de D. João I a D. Henrique) tinha assumido e divulgado a euforia da origem divina do reino de Portugal: Jesus Cristo em pessoa, pregado numa cruz, teria aparecido ao nosso primeiro rei na véspera de uma grande batalha de desfecho imprevisível anunciando-lhe, no futuro, a concretização de um império universal, aquele mesmo anunciado no capítulo 20 do Apocalipse, após o extermínio das nações pagãs: o reino dos que regressam à vida para reinar com Cristo durante mil anos (Apo, 20,4). Durante os quase duzentos anos que durou a dinastia (1385-1580), os oito reis apoiaram a ideia de um projeto messiânico e imperial, de uma nova cruzada que se traduzia concretamente na luta contra o poder muçulmano pela conquista da Terra Santa e na criação de um império cristão mundial.”7

Que isto quer dizer ou revelar? Ora, primeiramente, que as aventuras lusitanas de singrar os mares rumo a China e ao Japão, atravessando e perdendo o medo do bojador e cruzando o cabo da boa esperança, em plena dinastia dos Avis, significaram a superação da ideia de uma finisterrae, de que após o conhecido mar se precipitava um abismo. Em segundo lugar, a ultrapassagem do teocentrismo barroco, da visão teocêntrica medieval para a modernidade civilizatória europeia. Por outro lado, voltando ao cinema e sua atração pelo abismo, pela retórica do abismo. O abismo enquanto metáfora visual cinematográfica tanto se comporta para baixo, quanto para cima, para o infinito indefinido pela impossibilidade da visão, só perceptível pelo imaginário. Veja-se o exemplo de 2001,odisseia no espaço, a icônica película de Stanley Kubrick, cuja sequência inicial mostra uma era anterior à do pitecantropos erectus, onde e quando os macacos disputam os destroços de uma presa caçada e, ao bater o osso na pedra, o mesmo se desloca de sua mão, avançando rumo ao infinito, à atmosfera, onde se confundirá com uma nave espacial, se transformará na nave que flutua no espaço sideral da estratosfera, num átimo de tempo em segundos, cuja montagem cinematográfica genial revela o trespasse temporal que vai do homem pré-histórico aos astronautas do século XX, percorre a imagem montada um abismo que se desloca ou descola pra cima, rumo ao infinito, ao som de Strauss.

Com efeito, a abissal mudança imagética obtida pela montagem do filme de Kubrick nos coloca nos trilhos de uma viagem espacial contemporânea e desafiadora. Assistimos aí uma espécie de censura progressiva do sentimento da catástrofe, que, desde o fim do século XVIII, aparecia como negação global da ordem das coisas, que, por ser fictícia, fornecia a medida infinita de nossa liberdade. Com o surgimento da situação nuclear, diz LeBrun, em sua célebre conferência referida, e a efetivação do recalque do perigo da aniquilação geral a que seríamos conduzidos, abissalmente, numa eventual guerra mundial com os armamentos hoje acumulados( conferir, a propósito, o filme de Kubrick, “Dr. Strangelove”, o qual prevê a máquina do juízo final) e, com seu potencial destrutivo, essa força está sendo exaurida como a fonte mesma de nossa capacidade critica. Por certo, poderia se contrapor aqui o argumento de um “novo desejo de catástrofe” que, a se crer em sociólogos, filósofos e jornalistas, seria característico da nossa época.

Dito de outra maneira, a censura do sentimento de catástrofe se exerce pela contrafação que consiste em confundir catástrofe e risco máximo. Nesse sentido, a constatação é tão desoladora quanto terrível é a ilusão. Catástrofe abissal como meio de adaptação: será possível que o imaginário tenha nos traído a esse ponto? Seriam os filmes de catástrofe hollywoodianos assim tão enganadores e dissimulados ou, até, tão dissimuladores?

Melhor seria não acreditar nisso.

Hollywood expressa, apenas, mais uma das tantas denegações do cataclisma que a era nuclear nos impõe, inexoravelmente.

Consoante afirmado por Le Brun, “do caos ao apocalipse, do Dilúvio ao fim dos tempos, da torre de Babel ao ano mil, da desordem que engendra a ordem nos mitos fundadores à tábula rasa que conduz à “grande noite”, inúmeras são as construções imaginárias que remetem à catástrofe como a uma constante em torno da qual a humanidade buscou se definir, estabelecendo sua relação com o mundo sob o signo do acidental.”

Ora, o abismo exerce (sempre exerceu) atração constante ao cinema, assim como a catástrofe natural ou decorrente das agressões humanas à ecologia e à natureza são objeto de um princípio construtor. Como diria, por último, Annie Le Brun, “a melhor maneira de evitar uma representação da catástrofe, que levaria inevitavelmente a determinar suas circunstâncias, consiste em uma aposta absoluta numa retomada da vida, ainda que ela deve se apoiar sobre as forças da morte. Assim, enterrando-se em verdadeiras próteses no subsolo (vejam-se filmes como abrigo, etc) desenvolvem-se universos artificiais, fechados em si mesmos, diante dos quais só resta ceder à evidencia de que doravante a vida é um produto de síntese, completamente indiferente ao meio ambiente”.8

Aliás, os ecologistas podem até se vangloriar de terem sido os primeiros a se preocupar com os equilíbrios naturais, deve-se, no entanto, lamentar que eles sempre tenham excluído a relação das ideias com os seres e as coisas, condenando-se assim a uma atividade de especialistas, tendo tão somente o direito de se gabarem da intenção de limitar os estragos quando todos os outros se contentam em administrá-los.

E voltando ao cinema – podemos aquilitar o quanto a representação dramatúrgica e estética da sétima arte tem-se voltado para os cataclismas naturais tipo tsunamis, terremotos, etc, quando exemplos recentes como o filme de Clint Eastwood sobre o tsunami na Tailândia, e outros, lembram que os estragos não são apenas materiais, parte deles permanecem na memória dos desafortunados habitantes destes locus abissais, tipo Chernobyl, ou o desaparecimento do mar de Aral ou a deterioração das florestas da Polônia ou da Tchecoslováquia, e não foram poucos os que se resignaram a um biscate técnico mais ou menos confiável para não remontar às verdadeiras causas desses desastres. “Do mesmo modo, em vez de aplicar todos os meios para encontrar uma maneira de escapar a tal situação, a maior parte de nossos pensadores parece ter como principal preocupação salvar a ficção de uma relação com o mundo cada vez mais mentirosa.”

O Vertigo hitchcockiano prenuncia o abismo a que se submeterá o protagonista, e de consequência ao espectador que com ele se assemelha ou se identifica, senão vejamos – quando o inspetor, antes de aposentar-se pela constatação da acrofobia que o impediu de perseguir sua cliente na subida da escadaria, sente desmaios, desconfortos acrofóbicos, tonturas, etc.

Não seria o abismo uma vocação cinematográfica: afinal, segundo Louis Lumière, um dos fundadores da sétima arte, previu, com equívoco, que “le cinema c´est une invention sans avenir”.

Não poderíamos finalizar sem uma referência especial ao mais apocalíptico dos cineastas contemporâneos, Lars Von Trier, cujo filme “Melancolia” (2011), recebeu o seguinte comentário do grande e jovem filósofo sul-koreano, Byung-Chul Han,9 cujos excertos são transcritos, abaixo, em virtude da absoluta compatibilidade filosófica com nossas intenções nesse ensaio:

“No inferno do igual, a chegada do outro atópico pode tomar uma forma apocalíptica. Aliás, hoje, só um apocalipse nos poderá libertar – sim, redimir, - de um inferno do igual em direção ao outro.”

É, pois, nessa perspectiva que seguimos o comentário de Chul Han ao observar que o filme Melancolia, de Lars Von Trier “começa com o anúncio de um acontecimento apocalíptico, desastroso(...) E faz quase um exercício de historiador da arte, da arte pictória que se encontra no filme, como a pontuar a personagem central, Justine, cujo erotismo proporciona a vitória sobre a sua depressão. É proposital que o cineasta dinamarquês filosofa a propósito de uma ocorrência desastrosa, apocalíptica. Conforme afirma Han “Desastre significa literalmente des-astro (latim, des-astrum). Na noite estrelada, junto com sua irmã, Justine (Kirsten Dunst) descobre uma estrela vermelha cintilante, que depois se mostra como um desastre (des-astro). Melancolia é um des-astre, com o qual se inicia a desgraça completa. Mas é também um negativo de onde surge um efeito salvífico e terapêutico, purificador. Neste sentido, melancolia é um nome paradoxal, quando o planeta aproxima justamente uma salvação ou cura da depressão numa forma específica de melancolia. Ele se manifesta como o outro atópico que arranca Justine do charco narcisista. Assim, ela floresce em sua forma frente ao planeta mortal”.

Ora, o filme de Lars Von Trier capta a noção de abismo, de apocalipse na medida em que o tempo diegético da película só serviu para afastar as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). Nem o casamento entre Justine e Michael (Alexander Skarsgärd) serve como desculpa para aproximá-las e, após a cerimônia, Justine começa a ficar triste e melancólica. Quando ocorre o desastre (des-astre) do anúncio sobre a colisão da Terra com outro planeta, quando essa possibilidade de colisão apocalíptica ou abissal chega ao conhecimento das irmãs Claire e Justine, protagonistas do filme, são bem distintas as reações delas. Justine se conforma, até chega a aceitar ou, eroticamente, a desejar que a colisão se concretize, enquanto o desespero do iminente final apavora à sua irmã Claire.

Chul Han afirma que eros vence a depressão. Segundo sua explicação, em nível altamente filosófico, a relação de tensão entre amor e depressão domina o discurso do filme Melancolia desde o começo. O prelúdio de Tristão e Isolda, trilha sonora do filme, conjura a força do amor. A depressão se apresenta como impossibilidade do amor. É só o planeta “Melancolia” como outro atópico, que irrompe para dentro do inferno do igual, acende a cupidez erótica em Justine. Na cena da nudez no lajedo do rio se vê o corpo de uma amante tomado pelo cupido da voluptuosidade. Tomada de expectativas, Justine se refestela na luz azul do planeta mortífero. Essa cena desperta a impressão de que Justine anelasse a colisão mortal com o corpo celeste atópico. Ela espera a proximidade da catástrofe como uma união prazerosa com o amado. É inevitável não pensar aqui na morte por amor, de Isolda. Na proximidade da morte, também Isolda se entrega com prazer ao “todo que insufla um hálito de mundo”. Não é por acaso que, justo nessa única cena erótica do filme, ressoa novamente o prelúdio de Tristão e Isolda. Ele conjura de forma mágica a vizinhança de eros e morte, de apocalipse e redenção. Paradoxalmente, Justine vivencia a aproximação da morte. Ela a abre para o outro. Liberta de sua prisão narcisista, Justine volta seus cuidados também para Claire e seu filho. A real magia do filme de Von Trier é a transformação, segundo Byung Han, que transmuta Justine, a protagonista, de uma pessoa depressiva numa pessoa amorosa e amante. A utopia do outro mostra a utopia de eros”. Intencionalmente, o cineasta introduz quadros de arte clássicos, para dar direcionamento discursivo ao filme, e embasá-lo com uma semântica específica de quem conhece história da arte e, sobretudo, a gramática cinematográfica. É desse modo que, na trama surrealista, ele vai introduzindo a imagem de Pieter Brügel, “Os caçadores na neve(Die Jäger im Schnee), que transfere o espectador numa melancolia invernal profunda. No plano de fundo do quadro, a paisagem faz limite com a água como a presença de Claire, que vem inserida na imagem de Brügel. As duas cenas apresentam uma topologia parecida, de modo que a melancolia hibernal de “Os caçadores na neve“ avança por sobre a presença de Claire. Os caçadores vestidos com roupas escuras adentram a intimidade profundamente inclinados. Os pássaros negros nas árvores deixam aparecer a paisagem de inverno de forma ainda mais lúgubre. A placa da porta da pousada Zum Schild (Aos cervos), com a imagem de um santo, pende torta, quase despencando. Esse mundo melancólico-hebernal dá a impressão de ser abandonado por Deus. A mise-en-scène de Von Trier coloca em cena então fragmentos negros caindo lentamente do céu e consumindo o quadro como um incêndio. Segue a essa paisagem hibernal melancólica uma outra cena típica, bem típica da mise-en-abyme da filmografia de Von Trier: a “cena nos dá a impressão de quadro pintado, na qual Justine é retratada exatamente como a Ofélia de John Everett Millais. Tendo uma coroa de flores na mão, ela flutua na água como a bela Ofélia.

O casamento ou as sequências cinéticas da cerimonia matrimonial do filme não deixam de lembrar, um pouco, a cerimônia do casamento que o último episódio da película argentina Relatos selvagens(relatos selvages,2014), de Damián Szifron, em que a noiva, igualmente, se angustia e alopra, não só entristecendo as festividades, como agredindo os convivas por sua narcisistica postura. Mas, aqui em Von Trier estamos ante uma causa distinta, estamos os espectadores, não ante uma traição e sim, ante uma depressão, uma ameaça de apocalipse. É radicalmente distinto.

Quando aos 19 minutos da projeção de Melancolia, Justine, a noiva se desloca ao pátio, sozinha, para verificar a proximidade do meteoro ou planeta que se aproxima da terra, em ameaça apocalíptica de colisão, a canção-tema de Tristão e Isolda retorna a complementar a imagem da depressão, da deprimida, inexplicavelmente, para o casal – irmã e marido que financiaram a festa, e buscam incessantemente a Justine, para juntar-se ao noivo, solitário e abandonado pelo narcisismo da protagonista.

Byung-Chul Han observa que “após uma discussão com Claire, Justine entra novamente em desespero e deixa o olhar resvalar desolado para a imagem abstrata de Malewitsch. Depois, como que acometida de um ataque, retira os livros abertos da prateleira e os substitui de forma ostensiva por outras imagens, todas indicando paixões humanas abissais. Justo nesse momento toca novamente o prelúdio de Tristão e Isolda. Está em questão novamente, portanto, amor, cupidez e morte” (CHUL HAN, 2017, p. 15). São paixões humanas abissais como as que são representadas, igualmente, nos Relatos selvagens, afinal, distintas tais paixões das representadas por Von Trier, somente porquanto a morte aqui pressentida e, representada nos Relatos não é por amor, e sim, por desamor, traição, vingança e egoísmo.

Primeiramente, “Justine abre o “Caçadores na neve”, de Brügel. Depois pega Millais com sua Ofélia, seguido por Davi com a cabeça de Golias, de Caravaggio, Terra de cocanha, de Brügel e, por fim, uma pintura de Carl Fredrik Hill, que representa um cervo sozinho bramindo.” Não é fácil perceber essas nuances ou referências artísticas pictóricas de conteúdo filosófico ou psicanalítico transcendental em relação aos temas de Melancolia. Mas, outra cena de Von Trier que aponta para o comportamento depressivo de Justine é a imagem da bela Ofélia flutuando sobre a água, com sua boca semiaberta e seu olhar perdido no espaço aberto, que se assemelha ao olhar de uma santa ou de uma amante, remete novamente para a proximidade de eros e morte. Em Shakespeare, Ofélia morre cantando igual as sereias, a amada de Hamlet, rodeada de uma chuva de flores. Sua morte é bela, uma morte por amor. Na Ofélia de Millais pode-se reconhecer uma flor que não é mencionada em Shakespeare, a saber, uma papoula vermelha, que aponta para eros, sonho e êxtase. Também o Davi com a cabeça de Golias, de Caravaggio, é uma imagem de cupidez e de morte. O Terra de coconha. de Brügel, ao contrário, mostra uma sociedade saturada de positividade, um inferno do igual. As pessoas estão deitadas por todo lado apáticas com seus corpos rechonchudos, esturricados de saciedade. Mesmo o cacto não tem qualquer espinho. É feito de pão. Tudo aqui é positivo na medida em que é “comível e saboreável” (BYUNG HAN, 2017, p.16)

A sociedade dos Relatos selvagens (último episódio) é igualmente, uma sociedade saturada. Diz Byung Chul10 que “essa sociedade saturada se assemelha à sociedade mórbida das núpcias de Melancolia. É interessante notar que Justine coloca o Terra de cocanha, de Brügel, bem ao lado de uma ilustração de William Blake que representa um escravo dependurado vivo. A violência invisível da positividade contrasta aqui com a violência brutal da negatividade, que explora e rouba. Justine deixa a biblioteca imediatamente depois de expor uma ilustração de um cervo bramindo, de Carl Frederick Hill, sobre a prateleira. A ilustração expressa novamente a cupidez erótica ou o anelo por um amor que Justine sente interiormente. Também aqui sua depressão se apresenta como impossibilidade do amor.” (sic) De modo assemelhado, o egoísmo e o narcisismo da noiva de Relatos selvagens se transmutam a depressão em impossibilidade do amor. Aniquilação do compromisso matrimonial como manifestação de felicidade, de alegria. É de se supor que o cineasta dinamarquês soubesse que o pintor Carl Frederick Hill sofreu a vida inteira sob forte e intensa depressão e psicose. A sequência de imagens descrita por Byung Han e possível de ser constatada por qualquer espectador mais atento, dá uma visualização de todo o discurso do filme de Lars Von Trier. Aqui, “o eros, a cupidez erótica vence a depressão. Ele conduz do inferno do igual para a atopia, para a utopia do completamente outro.” (...) O céu apocalíptico de Melancolia se assemelha àquele céu vazio que representa para Blanchot a cena originária de sua infância.”

3. Conclusão

A exemplo de Blanchot,11 o qual descreve sua experiência, na literatura, de arrebatamento pela infinitude do céu vazio, Lars Von Trier com seu Melancolia estabelece uma “dialética do desastre” no cinema, que estrutura todo o filme e, igualmente, mostra uma desgraça desastrosa convertida inesperadamente em graça ou salvação. A desgraça se transmutando em graça, o apocalipse redimindo a humanidade. Nos fazendo lembrar que a morte de Paulo Martins, o revolucionário de “Terra em Transe” redime toda a dialética do desastre que estrutura a película, salva a representação da política das oscilações do protagonista, transforma o abismo a que estávamos todos destinados, segundo Martins, em redenção ou graça.

Por certo que as reflexões sobre o abismo ou o apocalipse, tipo a máquina do juízo final, em Dr. Strangelove (doutor fantástico, de Stanley Kubrick, 1964), a sátira política da guerra fria, além de funcionar como alerta à humanidade, possibilitam-nos optar pelo erotismo à depressão, pela graça em vez da desgraça iminente da atômica destruição civilizatória? O cinema contribui para isso.

Com efeito, a humanidade parece não aprender, após os poucos anos de guerra de auto-extermínio, nós humanos até parece temos sede e fome de abismo, de apocalipse. Após Guernica, o caldeirão; após o caldeirão, a polônia; após polônia, Dresden; após Dresden, Hiroshima e Nagazaki; após Nagazaki, o que se avizinhará?

Será que através da desgraça, do desastre (des-astro), encontraremos a salvação, a graça e a redenção, como previsto por Von Trier em Melancolia? O erotismo vencerá a depressão?

Notas Finais

1 LE BRUN,Annie: “O sentimento da catástrofe- entre o real e o imaginário”, Editorial Iluminuras, São Paulo, 2016, pag. 62.

2 Idem, ibidem.

3 MORAES,Eliane Robert. Do infinito como ponto de vista, Apresentação,pag. 15 e ss.

4 LE BRUN, Anne, op. Cit. Pag. 63.

5 CARNEIRO,Sarissa – A retórica do infortúnio no século XVI, alegoria, exemplaridade e persuasão, editora Sudamericana, Madrid, 2015.

6 ABREU FREIRE,Antonio de- O comercio Portugal- Oriente, pag. 10.

7 ABREU, A. de Freire> op. Cit. Pag. 1.

8 LE BRUN, Annie – op.cit. pag. 70.

9 CHUL-HAN, Byung: “Agonia do eros”, Tradução de Enio Paulo Giachini, Editora Vozes, Petrópolis, 2017, págs. 11/19.

10 HAN, Byung Han :Op. Cit. Pag. 16.

11 BLANCHOT, M.: “ (...absolute Leere des Himmels...)in COELEN, M. Die andere Urszene, Berlim, 2008, p.19, apud HAN, Byung Chul, op. Cit. Pag. 18.