Sophia de Mello Breyner de Andresen na poesia de cinema de João César Monteiro

Maria Eugénia Pereira

Universidade de Aveiro, Portugal

Abstract

In the year of the celebrations of the centenary of the birth of Sophia de Mello Breyner Andresen I decided to go to meet the poet through the artistic and aesthetic creation of the still very young João César Monteiro.
The documentary, with the name of the poet, is the first movie by João César Monteiro and it shows how the filmmaker likes to work without safety net.
João’s work goes back and forth between poetry and reality, imagination and the palpable, Sophia and the People, the cult and the popular. The sublime and the trivial is no more than a play of mirrors, a play between Sophia’s and João’s artistic expressions.

Keywords: João César Monteiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Documentar, the Sublime and the Trivial

No ano das celebrações do centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen, decidi ir ao encontro da poetisa por meio da criação artística e estética do ainda muito jovem João César Monteiro, sabendo, a priori, que o cineasta já visava uma cinematografia pessoal.

Enfant terrible da crítica cinematográfica de então, João César Monteiro defende um Cinema Novo, alheado das imposições da estratégia cinematográfica oficial. Defensor acérrimo de “uma revolução cinematográfica em Portugal” (Monteiro 1969a, 125), mas impedido, por razões financeiras, de a concretizar pela realização de filmes de longa-metragem, de ficção, aproveita o subsídio da Fundação Gulbenkian para se estrear na realização com uma curta-metragem e para começar a desenvolver a sua técnica.

O documentário, se assim o podemos repertoriar, Sophia de Mello Breyner Andresen, insere-se numa conjuntura político-cultural que, apesar de não favorecer o acesso ao vanguardismo estético do cinema europeu, deixa que uma nova geração cinéfila, liderada, primeiro, por António da Cunha Telles e, depois, pelo Centro Português do Cinema, se afirme.

Mas o fracasso financeiro dos filmes de Cunha Telles em Portugal leva-o a abandonar esta nova vaga de cinéfilos e a enveredar por um cinema mais comercial. A onda de revolta gerada pelos defensores de um Cinema Novo em Portugal, que o acusam de traição, vai desencadear uma tomada de consciência coletiva e mudar o rumo do cinema.

Sophia de Mello Breyner Andresen, o primeiro filme de João César Monteiro, ainda João César Santos, porque é com este mesmo nome que ele assina esta curta-metragem datada de 1969, esboça já, mesmo que muito rudimentarmente, a sua tendência de fazer cinema.

Gostando, como ele próprio o diz, de “trabalhar sem rede, [de] transformar o acto de filmar em pura contingência” (Monteiro 1974, 115), nesta curta-metragem, João César Monteiro serve-se de estratégias que instauram uma poética da descontinuidade, onde diversos planos, que funcionam como blocos narrativos antitéticos, são gerenciadores de um movimento de vai e vem cujo objetivo é a criação de um sistema de equilíbrio antagónico, no qual a imaginação simbólica aparece como “tensão de duas ‘forças de coesão’, de dois ‘regimes’ em que cada um invente[a] as imagens em dois universos antagónicos” (Durand 1964, 71).

Apesar de não ter sido esse o seu desejo, o cineasta começa a sua carreira com esta experiência pretensamente documentarista, que enquadraremos na esteira estilística da Nouvelle Vague, do neorrealismo italiano, do expressionismo alemão e da moral da imagem de Serge Daney.

No intertítulo inicial, o cineasta dedica o seu filme a Carl Theodor Dreyer, um entusiasta do universo interior do ser humano, com uma obra cinematográfica de estilo poliédrico, que procurava recolocar o mistério num mundo desencantado. Para João César Monteiro, o cineasta dinamarquês é o autor de uma das mais belas obras cinematográficas. Refere-se a Gertrud, de 1964.

Ora, se é verdade que João César Monteiro ainda é muito jovem quando realiza esta curta-metragem, o facto é que nela já se encontram elementos matriciais da sua obra futura: a água; a câmara, como agente do real ou, melhor dizendo, como ferramenta de reelaboração do real, cujo referencial é o quotidiano, o detetável; a provocação, por meio de acontecimentos inesperados e de artifícios que subvertem o guião (Melo 2017); a instauração de uma autoridade que organiza o caos da ausência narrativa; o elemento literário; a erudição muito profunda e a sabedoria popular; a forte riqueza plástica.

E assim se vislumbra aquilo que viria a ser o Novo Cinema no período repressivo português.

Entendo, tal como João Bénard da Costa, que este filme não é um documentário, mas acrescentarei ainda que é antes um fracionamento e um apuramento de uma poesia autotélica, cuja forma toma como referente a própria linguagem cinematográfica, encontrando-se a subjetividade forjada no real exclusivo do poético. O olhar deitado sobre Sophia de Mello Breyner Andresen decorre, assim, de um enlace entre o real e a sua construção e gera o sagrado, isto é, e tal como a chamaria Jean Cocteau, a poesia de cinema. “A beleza do mundo, como se sabe”, diz-nos o próprio João César Monteiro, “é a beleza do cinema” (2005, 17). Depois, também considero que os artifícios empregues pelo cineasta para captar a verdade, a transparência por trás da poetisa (Melo 2017), geram poesia.

A fotografia, tal como já referimos, é uma dimensão fundamental da poética e estética de João César Monteiro e, nesta sua primeira curta-metragem, ela já desempenha um papel relevante. Fiel à ética do respeito pelo real, herdada da Nouvelle Vague, João César Monteiro privilegia a iluminação natural, quando nos apresenta, ainda no genérico, a Sophia, a escrever, à beira de uma janela.

Fotograma 1 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (0:22)

Neste primeiro plano do filme (fotograma 1), a personagem aparece em contraluz para, como ele próprio o diz a Manuela Paixão, numa entrevista, “ver e fazer ver a luz” com o intuito de “fazer ver o que não é uma realidade visível” (Paixão 1992). Preferindo aguardar pacientemente a hora do dia em que a luminosidade é a pretendida, em vez de recorrer a grandes artifícios luminotécnicos, filma Sophia em contraluz, enquadrada pela moldura da janela. Os nossos olhos recaem de imediato sobre a silhueta esbelta, debruçada sobre umas páginas de papel, que resplandecem sob a luz solar – e que alude à criação – e uma fruteira com pêssegos e bananas. Este jogo da luz e da sombra criado por Abel Escoto, sob o mando de João César Monteiro, parece, por um lado, querer desmaterializar o corpo e materializar o espírito. Com efeito, a obscuridade das sombras sobre o corpo de Sophia contrasta com a luz que ilumina o seu rosto, as suas mãos e as folhas de papel.

Em pano de fundo, muita, muita luz e o oceano, elemento matricial. A permeabilidade entre o dentro e o fora, o interior da casa e o exterior, a fruteira e o mar coloca-nos para lá do visível, num entre o real e o imaginário.

A acompanhar essas imagens, ouve-se, em voz-off, o próprio João César Monteiro a assinar a obra, a dar-lhe um título e a fornecer algumas informações sobre a ficha técnica, substituindo, assim, o genérico escrito, e replicando um processo explorado por Godard em Le Mépris, em 1963. Coloca, então, o cinema dentro do cinema, para que fique claro que, apesar de este filme ser sobre Sophia, ele é, antes de mais, um filme sobre cinema, uma criação poética do próprio autor. Aliás, ele próprio afirmará que: “(…) a poesia não é filmável e não adianta persegui-la. O que é filmável é sempre outra coisa que pode ou não ter uma qualidade poética. O meu filme é a constatação dessa impossibilidade, e essa intransigente vergonha torna-o, segundo creio, poético, malgré-lui. […] [M]ais do que um filme sobre a Sophia que […] só de modo aleatório é parte dele, o meu filme é um filme sobre o cinema e matéria nele” (Monteiro 1969b, 405). Ora, paradoxalmente, João César Monteiro mostra-nos e dá-nos a ouvir poemas de Sophia.

De seguida, sob fundo preto em letras brancas, surge um poema de Jorge de Sena “Versos e filhos como os dás ao mundo? / Como na praia te conversam sombras de corais? / Como de angústia anoitecer profundo? / Como quem se reparte? / Como quem pode matar-te? / Ou como quem a ti não volta mais” (Monteiro 1969c, 0:44). A amizade e a afinidade estéticas que uniram estes dois poetas teriam de estar patentes no filme de João César Monteiro, que tanto preza o seu inconformismo e a sua subversão.

Fotograma 2 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (0:54)

Dois dos pilares do cinema cesariano já nos foram, pois, apresentados: a luz, e o seu inverso, a sombra, e a água, que se encontram associados aos décors da casa e do mar, respetivamente. Por isso, na primeira sequência do filme (fotograma 2), vemos Sophia e a sua família a passear de barco pela costa de Lagos, irradiando a luz sobre as personagens e o mar. Em barulho de fundo, ouve-se o motor do barco. Sophia permanece simbolicamente com os pés e as mãos na água, leva as mãos ao rosto para se refrescar e com elas molha um dos seus filhos. João César Monteiro capta esse momento de união com a água e com o filho, numa clara alusão à dinâmica da vida, do nascimento e da transformação. O cineasta reforça esta sua ideia quando, aproveitando, uma vez mais, a ampla e clara luminosidade de um dia de sol de verão no Algarve, insiste em filmar a forma como esta se reflete na água do mar, afastando, por momentos, a câmara da figura principal para captar a luz que, ao refletir-se na água, confere uma dimensão onírica às rochas das grutas. Esta ligação entre o mundo aquático e o mundo terrestre estabelece uma ponte entre o mundo dos homens e o dos Deuses, o mundo real e a poesia.

Apesar de a sequência seguinte se desenrolar no interior, na casa de Sophia, no sofá da sua sala, o elemento líquido continua a estar presente, pois a história que Sophia conta ao filho é a do seu próprio conto, intitulado A Menina do mar, e o cineasta estabelece, então, a união com o elemento terra, como se a figura materna Sophia se encontrasse associada quer a um quer ao outro. Terra e água, dois passivos femininos que ele usa para representar, por um lado, a poetisa, por outro, a mãe.

Fotograma 3 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (2:02)

No plano conjunto, em plongée, Sophia, sentada ao lado do filho Xavier, aparece, de novo, em contraluz, mas, desta vez, sob o efeito da iluminação artificial de um candeeiro, que guia o nosso olhar em direção à blusa branca que a poetisa tem vestida (fotograma 3). De costas para a luz, os traços do seu rosto, numa semipenumbra, são os de uma Deusa bela e altiva que tenta encantar o pequeno que a ouve contar a história. Contudo, na sua busca do quotidiano e do trivial, João César Monteiro não corta o comentário que, no final da história, o Xavier faz à mãe:

- Gostaste, Xavier?
- Gostei, mas podia ter feito uma voz mais natural…
- Uma voz mais natural, como é que era?
- Inventou uma voz.
- Inventei uma voz? Mas eu sempre leio…
- Não é a sua!
- Não é a minha? (Monteiro 1969c, 4:17 a 4.30)

Partindo do princípio de Hervé Bazin, para quem “tous les films documentaires dont l’objet est de rapporter des faits (…) perdent tout intérêt si l’événement n’a pas eu lieu réellement devant la caméra”, (2002, 60) e aproximando-se de Jean-Luc Godard, pela reivindicação da liberdade do cinema enquanto espaço de criação, regista o quiproquó entre mãe e filho e mostra a Deusa, a poetisa, tornada mulher.

Segundo João Bénard da Costa (2009), o cineasta pretendia captar Sophia em diferentes registos, porque era essa pessoa que lhe interessava ter à frente, por isso, com a câmara, regista os momentos mais subtis, mais inesperados.

Seguindo os passos de Serge Daney, para quem “a verdade do cinema é o registo; [e para quem] distanciar-se dele é sair do âmbito do cinema” (1994, 159), João César Monteiro capta “a realidade apresentada diante da câmara” (Daney 1993, 177) e, pela imagem cinematográfica, duplica-a segundo a sua própria experiência. A imagem não é, pois, o reflexo do mundo, é o reflexo de um mundo que se deixou objetivar.

João César Monteiro estabelece interconexões entre a poetisa, que tem a magia da palavra, e a mãe, a mulher, no dia a dia, numa rede de relações dentro da qual Sophia também comunica com o mundo, e vice-versa.

A presença do autor está, pois, na feição de reelaborar o real, na pegada interpretativa que faz dele. Expõe as várias realidades de Sophia e, depois, liga-as a um sistema mais amplo do real.

Por isso, a transição para o plano seguinte procede-se pela imagem de um caranguejo que sai da água e avança sobre a rocha. Como se, saído da história, o crustáceo tivesse saltado do mundo da fantasia para o mundo real, do universo poético para o universo do homem. João Bénard da Costa afirma, a esse respeito, o seguinte: “Não é um documentário, é um filme sobre os caranguejos que se veem passear nas rochas, a água do mar, os mergulhos, aquilo que está em toda a poesia, o apelo à limpidez, à transparência, à verdade e a uma consciência muito clara daquilo que ela chama num poema ‘os jogos perigosos da transparência” (Costa 2009, 0:54 a 1:21).

Fotograma 4 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (4:42)

A câmara vai-se aproximando progressivamente de Sophia e ela surge num plano médio frontal. O foco da luz, colocado a baixa altura, ilumina a parede que se encontra por trás de Sophia e confere à personagem que declama uma dimensão mais espiritual e metafísica (fotograma 4), se não fosse, tal como o afirmou Xavier antes, a artificialidade da leitura.

Na impossibilidade de registar a poesia, João César Monteiro procura criá-la cinematograficamente. O poético não está, pois, nos versos declamados por Sophia, mas na relação que o cineasta estabelece entre estes e o contexto insólito em que são lidos.

Sophia começa, então, a ler o seu texto “Arte Poética III”:

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual estava poisada, em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. (Monteiro 1969c, 4:40 a 5:41)

Fotograma 5 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (5:49)

Fotograma 6 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:02)

Fotograma 7 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:09)

Fotograma 8 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:34)

Vemos, pois, que o quarto em frente ao mar, a fruta em cima da mesa e o brilho do mar são retomados pelo filme, como se, pela linguagem cinematográfica, se quisesse também fazer poesia.

Mas a estilização de João César Monteiro segue alguns dos preceitos de Hervé Bazin, porque se constrói principalmente “en une dialectique du concret et de l’abstrait par l’action réciproque d’éléments contradictoires de l’image” (2002, 112).

Com efeito, a poesia de João César Monteiro também reside na sobreposição entre o verso que Sophia lê em voz-off, “a obra de arte faz parte do real”, e uma cena da vida quotidiana que aparece no ecrã, e que é composta por um plano de uma criança a correr por uma ladeira abaixo.

Ou quando Sophia acaba a leitura do seu poema e surgem, inesperadamente, na tela, pessoas do povo, a conversarem, no mercado do peixe (fotograma 5).

Ou, ainda, quando, subitamente, a voz de Sophia volta a irromper, sobrepondo-se a leitura do poema a imagens de pessoas a conversarem no mercado, de um homem a olhar pela janela, de peixe exposto em bancadas, de vendedores a amanharem o peixe (fotogramas 5 a 8):

Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. Como Antígona, o poeta do nosso tempo diz: (…) (Monteiro 1969c, 5:50 a 6:37).

Fotograma 9 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (7:04)

Fotograma 10 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:39)

Fotograma 11 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:44)

Fotograma 12 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (6:55)

Até que Sophia volta a aparecer no ecrã, mas agora em primeiro plano, para fechar o seu discurso, dizendo: “Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres” (Monteiro 1969c, 6:41). E enfrenta a câmara com o olhar (fotograma 9) para desaparecer logo de seguida da visão do espetador.

O autor, retira beleza às palavras proferidas por Sophia ao associá-las a imagens cruas do amanhar de um peixe à machadada, do retirar das vísceras e de duas crianças a comerem peixe (fotogramas 10 a 12). Contudo, é nessa sobreposição que se estabelece uma ligação entre o sublime e o abjeto que reside a poesia:

Mesmo que fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre dizer-nos isto: que não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. (Monteiro 1969c, 6:43 a 7:04).

Quando Sophia profere estas últimas palavras, vemos gaivotas a levantar voo e a voar. Silencia-se a sua voz e ouvem-se os pássaros a grasnar.

Este vai e vem entre a poesia e a realidade, a imaginação e o palpável, Sophia e o povo, o culto e o popular, o sublime e o trivial não é mais do que um jogo de espelhos, onde, artisticamente, ora se exprime Sophia, ora se exprime João César Monteiro. O cineasta recusa o discurso unívoco, o da poetisa, e, por isso, alterna a imagem de Sophia com as de pessoas comuns num mercado do peixe, sobrepõe ao discurso cuidado e erudito as falas desgovernadas da gente no mercado, ao silêncio das pausas na leitura da poetisa os assobios e os ruídos de fundo de uma manhã no mercado do peixe.

E é deste vai e vem entre a literatura, a poesia, e o quotidiano, o banal que nasce a componente humorística, irónica e paródica de João César Monteiro.

Com efeito, a irreverência leva-o a subverter as normais relações entre as coisas e a recorrer ao burlesco para gerar um universo semântico inesperado, para desconstruir e, mediante novas projeções do imaginário, reconstruir.

Mas, tal como com as ondas do mar, no movimento do vai e vem, tudo é reposto, mas também tudo é alterado.

João César Monteiro, nesta curta-metragem, revela ter uma grande predileção pela câmara estática e só utiliza o enquadramento para determinar o modo como o espectador deve percecionar o mundo que está a ser criado pelo filme. Por isso, no plano geral que se segue, e que foi rodado no mesmo espaço interior, o da sala de Sophia, vê-se a poetisa, ainda sentada no sofá, do lado esquerdo do ecrã. A filha mais nova, sentada no chão, do lado direito da tela, parece fitar o cameramen.

Fotograma 13 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (7:57)

Uma vez mais, o foco da luz incide sobre a blusa de Sophia, que contrasta com o preto do sofá, tornando-a resplandecente. A poetisa, numa pose altiva e de olhos baixos, discursa muito seriamente sobre a nudez da sua vida (fotograma 13), sobre a poesia, quando, subitamente, a filha se levanta e põe um disco dos Beatles a tocar. Inesperadamente, ouvem-se risadas. Confundida e perturbada, Sophia interrompe o seu discurso e desce à terra. Jorge Silva Melo comenta este plano, salientando o facto de o episódio do disco ter sido premeditado por João César Monteiro, porque ele “quando filmava, queria provocar para encontrar o ponto de fratura, de irritação” (Melo 2017, 2:21 a 2:28). Para que a representação de Sophia não caísse numa abstração demasiado fria, afastada da vida, o cineasta recorre a um artifício, a uma provocação, para dar a conhecer a outra Sophia, a mulher comum.

E é com esta artimanha que ele faz a passagem para a sequência seguinte.

Com efeito, voltamos ao exterior, à praia, ao sol e ao mar, enquanto Sophia, em voz-off, declama o seu poema “Esta gente”:

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo. (Monteiro 1969c, 8:47 a 9:43).

Nesta sequência, o cineasta realiza uma panorâmica descritiva, para filmar toda a praia, mas, depois, apresenta várias imagens estáticas de casas térreas algarvias, brancas, de uma chaminé ornamentada e de um vaso grego, tendo por fundo o mar. Neste lugar luminoso, onde predomina o branco, a cor do céu que envolve a casa e que se derrama até ao mar, vivem pessoas ignoradas e pisadas, humilhadas e calcadas. O cineasta encerra, então, esta sequência com uma gaivota a voar no resplandecente céu azul, símbolo da liberdade.

Surge então Sophia, ainda simbolicamente vestida com uma blusa branca, a passar muito rapidamente pela ombreira de uma porta exterior, como se de um ser divino se tratasse. As duas paredes brancas emolduram-na e a sua blusa sobressai sobre o fundo mais escuro.

Fotograma 14 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (9:38)

No plano seguinte, numa mise en scène, Sophia aparece durante uns breves segundos em primeiro plano, com um lenço escuro na cabeça, que lhe cobre praticamente o cabelo todo, salientando-lhe, assim, o rosto. Numa herança do expressionismo alemão, a fotografia, de alto contraste entre luz e sombra, revela um rosto metade luz, metade sombra, metade humano, metade divino (fotograma 14).

E eis que Sophia vira o lado do rosto iluminado e, numa panorâmica, a câmara vai viajar por uma parede branca, até que pára com uma fotografia do mar e do horizonte, enquanto se cala a voz de Sophia.

A segunda metade do filme funciona em espelho, as cenas repetindo-se, mas intensificando-se.

Fotograma 15 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (9:45)

Assim, na primeira sequência desta segunda parte, voltamos ao interior da casa, ao lugar onde Sophia costuma escrever. Todavia, desta vez, o cineasta optou por um plano de pormenor da mesa, sobre o qual se encontram pousados um caderno aberto, uma mão segurando um cigarro, um copo de água, uma fruteira com bananas e pêssegos e uma concha, servindo de cinzeiro. A luz do sol filtrada pelo vidro da janela cria um ambiente intimista (fotograma 15).

Fotograma 16 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (10:18)

Subitamente, Sophia debruça-se sobre o caderno, coloca a sua mão direita sobre ele e começa a escrever. O nosso olhar pára, então, primeiro, sobre as mãos de Sophia, depois, vai seguindo os seus braços, até que descobre o seu perfil. E é nesse preciso momento que o cineasta movimenta lentamente a câmara, fazendo-a parar num plano médio e, depois, voltar à posição inicial. Muda, então, para um plano de detalhe sobre a mão que escreve no caderno (fotograma 16).

Fotograma 17 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (10:59)

Até que a mão pára, poisa o lápis sobre o caderno e vê-se, então, em primeiríssimo plano, o rosto de Sophia ainda mergulhado num estado de inebriamento, parecendo estar a olhar para a cesta da fruta - a matéria do real. Numa mise en scène, vemo-la, de seguida, a pegar num copo de água, que leva à boca, e a dirigir o olhar para o mar, que vê através da janela (fotograma 17).

A água continua a ser o elemento escolhido para a transição com a sequência seguinte, pois vemos Sophia com a família a mergulhar e a nadar no mar. A personagem, agora no seu papel de mãe, de ser humano, diverte-se na companhia dos seus filhos. Tal como na sequência inicial do barco, aqui também, João César Monteiro insiste em filmar o reflexo da luz sobre as ondas do mar.

Num vai e vem constante, o cineasta transportar-nos novamente para o sofá da sala, para acompanhar o discurso de Sophia sobre a existência e a eternidade:

Eu não sou nada saudosista. As coisas para mim, as coisas que me interessam são as coisas que continuam a ser atuais, que continuam a ser vivas, que continuam a actuar. Quando deixarem de atuar é porque deixaram de existir, é porque não existiam realmente. Eu acredito profundamente que nós vamos escolhendo a eternidade neste mundo. Quer dizer, que é já aqui que construímos a eternidade e que aquilo que vamos encontrar é aquilo que nós fomos capazes de encontrar já aqui. Porque se não fomos capazes de encontrar aqui, também não podemos encontrar mais tarde. (Monteiro 1969c, 12:02 a 12:44)

Num jogo de câmara, que ora faz zoom in, e deixa que analisemos os traços, as expressões da poetisa, ora faz zoom out, e impede que a estudemos para nos obrigar a ouvi-la, João César Monteiro capta a atenção do espetador.

Numa nova mise en scène, Sophia desce simbolicamente umas escadas da casa lentamente, um xaile escuro pelos ombros e, depois, atravessa uma porta - que contrasta com as paredes brancas – em direção à luz e ao mar, até que desaparece.

As sequências finais são, de alguma forma, surpreendentes pela incoerência. Primeiro porque, pela primeira vez, o realizador põe a filha mais velha de Sophia a falar, em voz-off, apesar de esta se encontrar presente na tela do ecrã, sobre a mãe e sobre a relação dela com a Isadora Duncan, enquanto vai mostrando a vida de Sophia em fotografias.

Fotograma 18 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (13:41)

Ora, algumas frases pronunciadas chamam, desde logo. a nossa atenção: “a verdade sobre uma pessoa não é um espetáculo e o público está aqui para se divertir. Alguém lembra-se de alguém que disse que primeiro é preciso decidir a favor do seu próprio espírito e do seu próprio gosto e a seguir de ter tempo e coragem de exprimir todo o seu pensamento a propósito do assunto escolhido. É preciso, enfim, dizer tudo simplesmente, fixando como objetivo não as soluções mas a convicção”
(Monteiro 1969c, 13:16 a 13:42).

Estas palavras são como que um testemunho que serve para definir o caráter de Sophia. Por tal facto, nas cenas seguintes, vemo-la a nadar sozinha na água, a divertir-se com os filhos, sentada à beira mar. Passa uma vez mais do estatuto de personagem ao de mãe.

Fotograma 19 - Sophia de Mello Breyner Andresen (1969c) (14:55)

Tal como já referimos, João César Monteiro não queria filmar a dignidade, por isso, criava uma fratura para que o ser altivo e próximo dos Deuses se tornasse humano. Assim, numa das últimas cenas, vemos os 5 filhos de Sophia a rirem-se descontraidamente no sofá onde Sophia leu poesia, filosofou, falou sobre a vida, até que, seguindo a ordem de João César Monteiro, que se encontra por trás da câmara, começam a falar sobre a Sophia mãe, desconstruindo a imagem que o leitor tem da Sophia poetisa e desmistificando-a (fotograma 19).

João César Monteiro encerra, então, a sua obra com um primeiro plano de Sophia à beira da janela, a olhar para o mar. A câmara segue o seu olhar, pára sobre o mar, enquanto se ouve Sophia a recitar o seu poema “Inscrição”: “Quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”.

“Le documentaire a un étrange statut”, afirmou Guy Gautier em Le documentaire. Un autre cinéma, “il est vécu comme un film romanesque (…), mais revécu sur un autre registre, à condition qu’il soit revécu dans des conditions sociologiques, de quelque manière réglées, mais non ritualisées” (1995, 154). No caso de Sophia de Mello Breyner Andresen, estamos perante um documentário que é uma criação, uma vez que João César Monteiro, enquanto autor, marca o filme com o seu cunho pessoal.

Signatário da sua personagem, Sophia, quando invade o espaço dela, procura redimensioná-la pela humanidade. Retira-lhe peso no papel de poetisa e acrescenta-lhe valor no papel de mulher e mãe.

Encena, recorrendo a artifícios, para, perante a câmara, não atribuir tanta importância a determinados valores e ícones da poetisa, mas para dar conta de que, no cinema, a verdade comporta a obrigação da desmistificação. Ao registar as imagens, imiscui-se e imiscui-nos naqueles lugares, na intimidade e na vida de Sophia. Ao reconstruir a casa, a mesa, a fruteira, o caderno, a janela, o sofá, a praia, as casas, o realizador dá a conhecer, mas também se dá a conhecer, identificando-se com o modo como ela escreve e vive.

Marcado pelo neorrealismo italiano, César Monteiro também sai à rua para filmar a gente, a sua vida, o seu dia a dia, sem disfarce e sem distorção. Contudo, na hora da montagem, sobrepõe ou alterna essas imagens capturadas, onde a verdade do dia a dia de um povo impera, com trechos de poemas de Sophia, como se os textos de Sophia só tivessem validade literária quando paradoxalmente sobrepostos ou alternados com passagens da vida quotidiana.

Para João César Monteiro, a razão (ou a essência) de fazer cinema é uma compreensão do real e uma memória dos dois autores – Sophia e João César Monteiro, num entrelaçar de Cinema e Literatura, vida e Encenação.

 

Referências bibliográficas

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Daney, Serge. 1994. Persévérance. Paris: P.O.L.

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