Abstract
In Cinematographic Poem (29/11/1986), Manoel de Oliveira claims:” We are left with the memory/Of the life we lived/which becomes the food/ Life itself feeds on/The possibility of art itself.” The filmmaker-poet defines memory as the creative impulse behind filmmaking. Visit or Memories and Confessions (1982/2015), Voyage to the Beginning of the World (1997) and Porto of My Childhood (2001) are but examples of how art can build the memory. In these films, Oliveira’s camera becomes what he calls the” memory reservoir” where objectivity and subjectivity meet. In the words of João Bénard da Costa, referring to Voyage to the Beginning of the World, it is the vision you get through the rear-view mirror. The going back of time to time, the time labyrinth of spaces and objects, redemption or the refusal of a Proustian look, they all allow one a journey beyond time that only memory can undertake. In these films, Manoel de Oliveira recalls spaces and times. The memory of photos and objects, homemade films, archive footage, ethereal characters, real spaces and acting spaces become the inevitable lever of cinematic creation. Intertextual games and time collages help build the memory path in filmmaking. With Oliveira, memory, captured between fiction and documentary, defines the inevitability of art. Is it the recovery of lost time or the total awareness of the filmic nature of time? Memory is just something inevitable and urgent.
Keywords: Manoel de Oliveira, Tempo, Memória, Espaço, Cinema.
Introdução
O cineasta-poeta define a memória como alavanca criativa do percurso fílmico. Visita ou Memórias e Confissões (1982/2015), Viagem ao Princípio do Mundo (1997) e Porto da Minha Infância (2001) projetam a possibilidade da arte na construção da memória. Neles, a câmara de Oliveira, no encontro entre objetividade e subjetividade, torna-se naquilo que o cineasta chama o “reservatório de memória”. O regresso do tempo ao tempo, o labirinto temporal de espaços e objetos, a redenção ou a recusa de um olhar proustiano dão-nos uma viagem para lá do tempo que só a memória poderá fazer. Nestas obras, Manoel de Oliveira percorre a memória dos espaços e dos tempos. A memória de fotografias e de objetos, de filmes caseiros, de imagens de arquivo, de personagens etéreas, de espaços reais e de espaços de representação torna-se a alavanca inevitável de uma criação cinematográfica. Os jogos intertextuais e as colagens temporais constroem o percurso da memória na matéria do cinema. A memória em Oliveira, retida entre ficção e documentário, define a inevitabilidade da arte. Será ela a recuperação do tempo perdido ou a completa consciência da força fílmica do tempo? A memória é apenas algo de inevitável e de urgente.
Memória – alavanca criativa
Em Poema Cinematográfico (29/11/1986), Manoel de Oliveira afirma:
A vida é banal,
Efémera e fugaz,
Onde tudo mais ou menos se repete,
Para logo se escapar,
A cada milionésimo de segundo.
Fica a memória
Da vida vivida,
Que se torna alimento
Da própria vida,
Possibilidade de toda a arte.
Eis a única forma possível,
Que ativa os factos vividos
E é geradora de histórias e ficções.
Sem memória
Seria apagado o passado,
O conhecimento e o saber.
E partiríamos sempre do zero,
Milionésimo a milionésimo
De segundo.
(…)
Instante
Sem memória,
Sem consciência,
Sem tempo
- Instante apenas.
Molécula que te esgueiras
No córrego apressado
Em seu destino cego
E se precipita
No fundo desse abissal espírito.
Mar recôndito e sem medida
Que és memória,
Coisa escondida,
De todos os tempos
E de tempo nenhum.
Mas tu, memória!,
Excitas a vida e a imaginação
Que preservas
E selecionas,
- Assim, o cinema.
(Lardeau, Tancellin e Parsi 1988, 65)
O cineasta-poeta define a memória como alavanca criativa do percurso fílmico. Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015), Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997) e Porto da Minha Infância (Oliveira 2001) projetam a possibilidade da arte na construção da memória. Neles, a câmara de Oliveira, no encontro entre objetividade e subjetividade, torna-se naquilo que o cineasta chama o “reservatório de memória”. Num depoimento recolhido por Serge Daney e Raymond Bellour, Manoel de Oliveira confessa:
O cinema é a câmara que, como uma espingarda, pomos ao ombro para ir à caça. Se gostarmos de qualquer coisa, disparamos… Mais longe recomeçamos. Caçamos num espaço que, para nós, é também o tempo, o tempo da descoberta. Ao olhar ou ao caminhar neste espaço histórico, vamos captando coisas que estão imediatamente presentes e que, por isso mesmo, são já do passado. Daí a grande importância da memória e do livro, e de tudo o que resistiu. O que não resistiu desaparece ou fica apenas na lembrança. Posso falar do reservatório de memória que tenho em mim. O que exprimimos é mais ou menos interessante segundo a qualidade desse reservatório que cada qual tem dentro da sua cabeça. (Daney e Bellour 2008, 164)
Ao longo destas obras, Manoel de Oliveira, enquanto homem/cinema e enquanto personagem, projeta, através da sua voz, esse mesmo reservatório. Em Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015), Manoel de Oliveira apresenta, na casa, a memória de duas gerações, É a casa que, segundo ele, “esta é pois a casa onde vivi a minha maturidade (…) percorri a minha mais longa viagem de um tempo de 40 anos.” Na fábrica do pai, havia um homem que, segundo ele, com a idade veio a perder a memória e começou a trocar as cores cuja receita tinha de cabeça. Trocar as cores não será a representação do inconformismo e a alavanca da criatividade?
A memória que conduz às palavras está inevitavelmente ligada à infância: “É sempre o meu Porto de infância”. Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997), os travellings demorados são elementos organizadores do labirinto da memória fílmica e da reflexão inequívoca que as personagens constroem acerca do tempo. O travelling – para a frente e para trás – projeta a visão de alguém, dos passageiros e do motorista que é duas vezes condutor: da estrada e da estrutura temporal. João Bénard da Costa afirma:
Ao princípio ainda não vimos ninguém, a câmara avança com o carro num imparável travelling para a frente. Mas, à medida que vamos sabendo mais dos passageiros dele, os travellings não nos empurram para a frente, mas para trás. É o contra-plano do plano o que sobretudo é mostrado. Oliveira costuma ter horror aos planos que não planos de ninguém. Desta vez não se contradisse como apressadamente se pode concluir. Essa visão é a visão do retrovisor, é a visão só possível ao condutor.” (Costa 2008, 178)
Porto da minha Infância (Oliveira 2001) projeta a memória como alavanca de tudo. A frase inicial do filme é a memória: “Recordar momentos de um passado longínquo é viajar fora do tempo. Só a memória de cada um o pode fazer. É o que vou tentar.”
Manoel de Oliveira propõe a tentativa de uma especialização do tempo da memória de modo a que ela se torne imortal e intemporal. Uma intemporalidade reforçada algumas sequências depois: “Decorreram os anos. Mudaram os tempos, tudo levaram. Tudo ficou esquecido. Só em mim, a triste memória: tudo continua vivo.”
Em Viagem ao Principio do Mundo (Oliveira 1997), as palavras da memória estão estranhamente ligadas às incoerências e ambiguidades da palavra saudade. Judite refere que “o nosso querido realizador também tem as suas recordações. Também vem matar saudades.” Manoel/personagem refere que “souvenir é o passado que nos chama.”. Afonso retoma a memória do pai e assume a sua identidade – “o que ele me contava da sua infância são coisas que nunca se esquecem. Como se eu as tivesse vivido em lugares onde nunca estive.” Manoel relaciona as “reminiscência que se avivam”, “como lava que se reativa no fundo de um vulcão. Como o que se passa em Sarajevo.”
Objetos e memórias
A memória em Oliveira está retida num processo documental, nos movimentos (planos panorâmicos, travellings), de uma câmara que procura, quase incessantemente, objetos ligados a espaços e a tempos. Objetos sem tempo mas com consciência, que comprovam a ausência do instante e do efémero e que impõem a duração e a permanência. A permanência dos objetos são a presença inevitável naquela casa percorrida pelas vozes em A visita ou memórias e confissões (Oliveira 1982/2015). A permanência exata nos quadros de Júlio Régio define, por si só, a memória de uma criação cinematográfica (As pinturas do meu irmão Júlio). O anjo e o santo que guiam o percurso das escadas aparecem e desaparecem, como que a fugir. Os móveis, as flores, e a coleção de objetos são protagonistas do percurso identitário da casa. A caravela é a alavanca da memória de um passado nacional. Os legumes, as louças e a chaleira, na cozinha, constituem o presente de uma casa que ainda não desapareceu da realidade mas que, pela ausência humana, projeta já uma carga fantasmagórica. A coleção de búzios e conchas apanhadas, pela câmara, algumas vezes, tornam-se a representação do mar (tão omnipresente na obra oliveiriana) criada pela voz masculina do visitante misterioso. A casa é um navio, no percurso pelos búzios na mesa, reforçados pelo azul e branco das bibelots na casa de banho. Fala-se de decks, dos camarotes brancos no corredor e o travelling constrói-se num corredor branco, num E la Nave va felliniano.
A janela do deck leva-nos ao “mar simbolizado pelo pinheiro chorão ali em baixo”. E a baía está relvada. A memória do ausente define-se nas palavras da voz off e ultrapassa as imagens do presente.
Os objetos que vão sendo filmados constituem-se como identidades de um percurso de 40 anos através de uma casa real, com passado e presente que se tornará, para Manoel de Oliveira, dentro em breve, uma evidência da memória. Em Porto da minha infância (Oliveira 2001), ele denuncia um acessório arquitetónico, elemento decorativo de uma construção e de um gesto: a barra de metal dourado da sucursal da Confeitaria Oliveira, na rua 31 de janeiro. É o objeto que aguenta os corpos dos amigos, que se torna o alvo de um grande plano e protagonista de mais uma ficcionalização da memória. No fim, sofre o mesmo desaparecimento dos edifícios anteriormente referidos: “O varão metálico que apoiava aquela boémia já não existe. Hoje é isto.”
O lado objeto da memória assume a representação visual e projeta a construção documental do discurso fílmico. A memória começa a tornar-se, a transfigurar-se em arte através das fotografias e das imagens de arquivo. A imagem, como repositório, é transformada em alavanca de criação e de jogo documental.
As fotografias dos familiares no quarto do casal em Visita ou memórias e confissões (Oliveira 1982/2015) são “uma porção de retratos” que passam relativamente rápidos, no jogo do móvel e das molduras. Retratos que “nunca são reais” mas que definem uma objetividade e uma identidade no plano fixo sobre a cómoda. Retratos do clã Oliveira – “do meu clã” – que, num outro momento do filme, o cineasta faz questão de identificar.
Na continuidade identitária da casa e da memória, surgem fotografias, postais e folhetos publicitários da fábrica do pai, a sobreposição de fotografias e de espaços filmados sobretudo na presença imagética da casa da avó (com os grandes planos das fotografias dos avós). A entrevista a Maria Isabel decorre num jardim real ao lado da realidade fotográfica, numa sobreposição de um rosto que se prolonga nas diversas fases da juventude, a preto e branco. A casa da Veiga também se define num jogo de cor e de preto e branco com os retratos do passado, lado a lado com o percurso colorido das vinhas. O mesmo percurso simbólico das fotos percorre a criação documental em Porto da minha infância (Oliveira 2001). As fotografias são objetos de transição entre o passado e o presente, entre o que era e o que é agora.
O arquivo fotográfico é indissociável do arquivo fílmico, seja ele composto por filmes “caseiros” ou por documentos, reportagens de acontecimentos sociais. O percurso pela memória já não existe sem eles. Em O Porto da minha Infância (Oliveira 2001), o arquivo fílmico estrutura o paralelismo entre o passado e o presente na caracterização dos espaços desaparecidos face à imanência dos espaços atuais. Ilustram a “falécia curiosa” a que Oliveira assistiu: o homem que faz a escalada da torre dos clérigos perante a admiração e a estupefação do público. As imagens das exposições de flores e das corridas no Palácio de Cristal comprovam a “tradição” daquele tempo. A memória do movimento estrutura-se, ao mesmo tempo, num processo de relação entre o real, a memória e a criação cinematográfica. O rio Douro, na sua mais prosaica realidade, estabelece um dialogismo urgente e indiscutível com os excertos de Douro Faina Fluvial (Oliveira 1931) e O Pintor e a Cidade (Oliveira 1956). A memória dos amores inocentes com a prima Guilhermina estabelece o diálogo com os excertos de Aniki Bóbó (Oliveira 1942). As ruas e as casas do Porto Capital Europeia da Cultura projetam o diálogo com as “costureirinhas” da Camisaria Confiança – “intérpretes involuntárias” do primeiro filme português e alavanca para uma nova ficcionalização em homenagem a Aurélio da Paz dos Reis. Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015) concretiza a memória da luz que sai daquele pequeno projetor, naquele escritório. Manoel de Oliveira mostra-nos os movimentos de filhos e netos numa evolução escolhida entre o preto e branco e a cor.
Casas, janelas e árvores
A câmara percorre o espaço privilegiado e inequívoco da memória na obra oliveiriana: a casa. A casa define o passado, projeta o presente e constrói a finitude de um futuro imprevisível. A casa envelhece, torna-se ruína, plano fixo ou estrutura que recebe movimentos através de planos panorâmicos e travellings em Porto da minha infância (Oliveira 2001) e Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997). As casas em ruínas são alavancas de memória e a prova do repositório que Oliveira enunciou. Em Porto da minha Infância (Oliveira, 2001), as casas “são outras”. Só a memória daquele tempo ficou”. O documentário é o eterno substituir de umas casas por outras. A casa torna-se uma inevitabilidade na construção e na transfiguração da memória. A casa da infância, a fábrica do pai e a garagem onde montou o Douro Faina Fluvial (Oliveira, 1931) são o ponto comum entre Porto da minha Infância (Oliveira 2001) e Visita ou memórias e confissões (Oliveira 1982/2015). Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997), o Grande Hotel do Peso é a consciência da passagem inequívoca do tempo. Em Porto da minha infância (Oliveira 2001), os planos longos permitem a reflexão, mais uma vez, acerca da casa em ruínas, das janelas da casa da infância, nos espaços abertos de estruturas desfeitas e de telhados ausentes num intenso paralelismo semântico com o conteúdo da canção cantada por Maria Isabel. Emerge, no processo da memória, a casa em ruínas, ruínas enquanto rugas do tempo. Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira, 2001), as ruínas do Grande Hotel do Peso são a “entrada do Tempo”. Quando Manoel/personagem afirma “Isto é desolador” consagra definitivamente as ruínas da casa como imaginário de memória: “O que representam estas ruínas? O futuro de um passado que foi fulgurante.” São ruínas que têm uma existência concreta no espaço real mas não no espaço da memória interpretada por Judite: “Paredes em ruínas para nós, não para a tua memória Manoel, para ti está tudo como dantes”. Os traços de envelhecimento da casa acompanham a marcha lenta de Manoel, Afonso, Duarte e Judite.
A casa é a protagonista de Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015). É a casa que serve de pretexto para as deambulações labirínticas da câmara. Ela encarna a inevitabilidade da separação, a eminência da ruína e da ausência que provocaram o acordar da memória. Manoel de Oliveira constrói, neste percurso fílmico através da casa, uma memória arquitetónica, uma memória literária nas palavras de Agustina Bessa Luís e o mistério das vozes à procura de uma identidade espacial e humana. A casa é o percurso das vivências significativas (alegrias, festas, desgostos, dificuldades). Não será, por acaso, que a duração dos planos durante a visita à cozinha e ao louceiro seja tão curta. Serão espaços sem recordações? A casa de Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015) é uma casa-mundo, uma casa pessoa, uma “a casa somos nós.” Aqui a casa abre-se constantemente para o exterior e para a luz. Os intensos planos-sequência percorrem espaços interiores que desabrocham em luz através de contínuas janelas e varandas. A memória abre-se para o jardim na luz filtrada pelas janelas, em travellings calmos. A janela é “olho vazado” mas que nunca deixa de ver e de ser olhado.
Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira, 1997) e Porto da minha Infância (Oliveira 2001), as janelas estão degradadas, sem vidros, perdem a essência do obstáculo e abrem-se para todas as temporalidades. Porto da minha Infância (Oliveira 2001) enuncia a janela dos medos do jovem Manoel e da boémia juvenil encostada àquele varão dourado da Confeitaria Oliveira. Os clubes noturnos identificam-se, um a um, pela luz filtrada das grandes janelas que escondem o provável e o improvável daquelas noites. Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997), a ausência dos vidros e das molduras conferem à janela o protagonismo da degradação mas também a presença inequívoca da recordação.
As janelas oliveirianas são sempre interrompidas, enquadradas e estruturadas pela sumptuosidade e a omnipresença de inúmeras árvores. E as árvores são memória construída pelo realizador. Porto da Minha Infância (Oliveira 2001) projeta as tílias protetoras junto ao carinho do lar e a lembrança da árvore da Forca que então existia no Jardim da Cordoaria. Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997) constrói uma árvore do tempo, com uma marca de um banco de infância - como em Vertigo, segundo Bénard da Costa (Costa 2008, 175). A marca do banco é a prova da mudança e da imensidão no abraço de Judite e nas palavras de Manoel/personagem: “reparem como o tempo mudou a posição das marcas”. A árvore é também o repositório da memória “Porque, naquela altura, penso que a marca era… digamos… aqui (…) O que isto foi… e como agora está! Nem jardim, nem portas, nem janelas… Só me ficaram os gemidos gravados na minha alma como a marca na árvore.” Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015) inicia com as palavras “Lembro-me das árvores…” e continua com o plano panorâmico, com travellings e planos-sequência através das árvores. E as árvores tornam-se bailarinas de inverno e a palmeira é o porteiro. Na imensidão da árvore, encontramos a individualidade de uma flor única, de um apontamento em zoom, de um percurso por algo de recôndito: a flor única da magnólia em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997), no jardim do Grande Hotel do Peso, quase tocada pela mão reticente de Manoel e, a flor única encurralada pela câmara, num grande plano, em Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015). Será ela a “única molécula” da memória de que nos fala o Poema Cinematográfico?
A memória é labiríntica, o labirinto é um constante ataque à memória, através de semelhanças, avanços e recuos. Em Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015), o percurso pela casa é um percurso labiríntico através de salas, recantos, vestíbulos, quartos, escadas, quadros e pequenas esculturas. É um labirinto intencional, é a construção da intensidade e da irregularidade da memória – como os percursos quotidianos de quem viveu ou vive na casa. É um espaço labiríntico do presente e espaços labirínticos que se renovam na criação ficcional da estadia nos calabouços da PIDE em Lisboa. Manoel de Oliveira associa, aliás os dois conceitos quando nos conta “Dois esbirros da Pide, um tanto estupefactos pelo aspeto labiríntico da minha casa.” Tal como foi labiríntica essa passagem pela PIDE.
Conclusão
O poema enuncia a memória como possibilidade de toda a arte. Em Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997), aquando das recordações do colégio de La Guardia e a propósito das palmatoadas levadas, Judite pergunta: “Quer dizer… não te ficaram saudades?” Ao que Manoel/personagem responde: “Ficaram-me as mãos a arder!”
E as mãos não pararam de arder no manejar da câmara. A memória projeta a necessidade do discurso fílmico, da criação cinematográfica.
O discurso fílmico espelha-se, quase sempre, em duas vozes. Maria Lúcia Dal Farra refere:
Todavia, num outro rumo, um novo roteiro vai se cumprindo nessa película a que estamos assistindo, cujas locações móveis e erráticas se firmam nessa estrada meandrosa que, afinal, se bifurca para duas memórias diversas que vão, então, se fundir na figura de um ser quase mitológico – na versão lusitana de um Sísifo em sacrifício e de um Prometeu acorrentado: o dito Pedro Macau. (Farra 2010), 247)
Duas vozes em Porto da minha Infância (Oliveira 2001) com a voz de Manoel jovem sobreposta à voz de Manoel da atualidade. Vozes em espelho com Manoel e Afonso nos intensos travellings de Viagem ao Princípio do Mundo (Oliveira 1997). As duas vozes que percorrem a casa de Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015).
As mãos a arder transformam-se em criação cinematográfica: a memória que “excita a vida e a imaginação” e que “preserva e seleciona” como o cinema. A memória que completa a consciência da força fílmica, da criação cinematográfica. A memória que orienta a Viagem ao Princípio do Mundo, num realizador que, nas palavras de Duarte, “queria viajar de borla.”
A memória é inevitável e urgente em A Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015). É a construção narrativa do próprio filme: é a preservação da memória de uma casa, alavanca de reflexão e de criação cinematográfica. A personagem real Manoel torna-se etérea, como que um fantasma ouvido pelo casal, um fantasma que faz com que os objetos se movam em cima da mesa, e constrói uma memória futura de uma casa identificada nos factos do passado. Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015) é a manutenção viva de uma memória. A exigência de uma projeção post-mortem é uma opção conscientemente estética.
Em Porto da Minha Infância (Oliveira 2001) Manoel de Oliveira refere: “Graças ao cinema, podemos ver e rever estes bocados para recordar coisas que só em nós viveram, só a memória de cada um o pode fazer. E fazê-lo não será a melhor maneira de vos dar a conhecer?”
Em Visita ou Memórias e Confissões (Oliveira 1982/2015), o cineasta afirma: “Lembro-me da minha infância, lembro-me dos meus pais, da minha mulher, dos meus filhos, de um tempo que foi, e de um futuro que vai ser passado. Lembro-me de mim, da minha infinitesimal presença, no tempo e no espaço e sumo-me…”
Afinal, não sumiu. Não desaparece porque instituiu a memória como alavanca urgente e inevitável de criação cinematográfica. Criou, num projeto cinematográfico e estético, a inevitabilidade da memória.
Referências bibliográficas:
Dal Farra, Maria Lúcia. 2010. “Viagem a que Mundos?” In Manoel de Oliveira: Uma Presença – estudos de literatura e cinema. Organizado por Renata Soares Junqueira. São Paulo: Editora Perspectiva.
Daney, Serge, Bellour, Raymond. 2008. “O Céu é Histórico – Depoimentos recolhidos por Serge Daney e Raymond Bellour. Apresentados por Philippe Tancelin”. In Manoel de Oliveira, O Cinema Inventado à Letra. Editado por António Preto. Porto: Colecção de Arte Contemporânea Público/Serralves.
Lardeau, Yann, Tancelin Philippe and Parsi, Jacques. 1988. Manoel de Oliveira. Paris : Éditions Dis Voir.
Oliveira, Manoel, Costa, João Bénard da. 2008. Manoel de Oliveira por Manoel de Oliveira e João Bénard da Costa. Lisboa: Ed. Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.
Filmografia:
Douro Faina Fluvial. 1931 De Manoel de Oliveira. Portugal. NOS. DVD.
Aniki Bóbó. 1942. De Manoel de Oliveira. Portugal. NOS.DVD.
O Pintor e a Cidade. 1956. De Manoel de Oliveira. Portugal. NOS. DVD.
Visita ou Memórias e Confissões. 1982/2015. De Manoel de Oliveira. Portugal. NOS. DVD.
Viagem ao Princípio do Mundo. 1997. De Manoel de Oliveira. Portugal. NOS.DVD.
Porto da Minha Infância. 2001. De Manoel de Oliveira. Portugal.NOS.DVD.