Abstract
In the 1990s and 2000s, directors like Pedro Costa (“Cavalo Dinheiro”, 2014) and Philippe Grandrieux (“Sombre”, 1998) made films that challenged the classic notion of screen as we know it. Diluted images in the darkness that merge with the dark of the movie theater itself. It is possible to say that the projection is not only what is projected, but the 6 sides of a room (walls, floor and ceiling) that compose the immersive experience of contrasted and underexposed images. The compositions of the shots allow empty spaces, especially in the margins, so that a dilution between projection and reality occurs. Later, director Scott Barley (“Sleep Has Her House”, 2017) presented films that can “only” can be seen in dark rooms. Watching one of his movies out of the dark is watching an invisible work. One bias that seems to contrast with the new immersive technologies of virtual reality. An experience that does not need new cameras and equipment - Barley himself uses only one IPhone to make movies. These directors democratized the making of immersive films using just two basic and essential concepts of cinema: light and shadow. The immersion now can be really made with a cell phone and creativity. Exploring the trend of films that claim the return of the dark room is our proposal. A cinema that tends to the classical conditions of exhibition, but in which is very innovative and with capacity similar to those of the new technologies that try to expand seventh art.
Keywords: Imersão, Sala de Cinema, Mise-En-Scène, Realidade Virtual
Introdução
Para tentar desenhar uma ponte entre a linguagem cinematográfica e uma linguagem ainda não firmada da Realidade Virtual nos parece necessário rever a história do cinema em um sentido próximo a da arqueologia das mídias como propõe Elsaesser (2018), das espectatorialidades e também da mise-en-scène, pois o fator mais explícito que diferencia os dois suportes – e que acaba também aproximando-os – é a questão espacial. Interligando essas importantes teorias e práticas do cinema e seguindo o argumento de que “ os atuais ambientes tecnológicos de imersão e de agenciamento estão promovendo a ocorrência de um fenômeno novo, que podemos definir como uma hipérbole do sujeito” (MACHADO, 2009, p.75, grifos do autor), uma radical ampliação da ideia de narciso como narcose que McLuhan (2002) já antevia para o interator com as mídias em 1964.
Nos aproximamos de certas questões que o cinema experimental já nos convidava a pensar. Sua história já nasceu revolucionária e visionária e bastaria analisar um filmete pintado a mão de Stan Brakhage para dissecar a questão espacial da escuridão, porém, queremos englobar também a narrativa e o documental para ampliarmos nossas possibilidades.
No decorrer do século passado, houve um progressivo desmantelamento do espaço quando nos referimos a mise-en-scene no cinema narrativo. De um espaço cênico organizado explorado por uma câmera a uma coleta de fragmentos de um mundo muito mais amplo que uma unidade de cena. De suas origens em Méliès percorrendo os primórdios do cinema narrativo em nomes como D. W. Griffith e Erich Von Stroheim (os primórdios da espacialização) até John Ford e Kenji Mizoguchi (a perfeição clássica), Éric Rohmer e Jacques Rivette (a revisão do clássico), Maurice Pialat e Philippe Garrel (a atenção ao descontrole), desaguámos na decomposição total do espaço em Claire Denis e Philippe Grandrieux.
Em seu livro O Cinema e a Encenação, Jacques Aumont, ao comentar o filme O Intruso de Denis, se pergunta: “Será o fim da mise-en-scène?”. O autor aponta para a questão espacial:
Em O Intruso, Claire Denis conta uma história acerca da qual é impossível saber que partes são “reais” e que partes são sonhadas ou fantásticas; o filme multiplica as elipses, nunca assinaladas como tais e de duração variável, tornando difícil e aleatória a compreensão da história (muitos pormenores não são esclarecidos); enfim, não há mise en scéne no sentido de disposição do plano como quadro: os planos são quase sempre pormenores – principalmente os rostos em primeiro plano –, o que acaba por impedir, quase permanentemente, que se restabeleçam mentalmente as relações espaco-temporais entre personagens e entre planos. (AUMONT, 2008, 179)
Como apontado, o plano não atende a função que cumpria na mise-en-scène clássica de explorar um espaço cênico ordenado, agora este registra pequenos fragmentos de um universo macro indelineável, impossibilitando uma consciência de linearidade narrativa e a diferenciação de objetivo e subjetivo.
Philippe Grandrieux em seus filmes coordena universos semelhantes; deleita-se no subjetivo, rejeita a narrativa e agrupa um emaranhado de “pormenores” na infinitude da escuridão, conectados por uma energia que só pode ser descrita por meio da sensação. Em Sombre, seu primeiro longa-metragem, ainda é possível traçar uma narrativa. Jean, um serial killer, assassina as mulheres com quem tem relações sexuais sem motivação clara da causa dos atos - o filme apenas apresenta que são prostitutas ou mulheres que facilmente se ofereceram. As imagens são extremamente subexpostas, chapadas, tremulas, carregadas de ruído e muitas vezes desfocadas. Edson Costa Júnior compara a figurabilidade do filme com as pinturas de Rembrandt: “Tal como Fromentin sugere a respeito de Rembrandt, a sombra, ainda que não seja o fim, é o princípio da poética de Grandrieux e um de seus principais meios de expressão”. (COSTA JUNIOR, 2016, 157). O autor ainda acrescenta sobre a força da escuridão:
A luz crepuscular que submerge na escuridão a paisagem da primeira sequência de Sombra antecipa a ameaça que o personagem principal, Jean, um serial killer, sofre ao longo de todo o filme: o de perder os seus traços constitutivos, ter o seu insumo carnal subtraído pelo negrume que impregna a imagem e ser transformado em um ser sem corporeidade, espectro negro que vaga pelo mundo. (COSTA JUNIOR, 2016,158)
Costa Junior aponta o papel sensorial e a carga figural da escuridão em Sombre. Não distante de signos culturalmente consensuais, formalizados e já involuntários: o desconhecido; a ameaça; o mal. No cinema de Grandrieux, os “pormenores” de Aumont estão diluídos num magma negrume; a câmera captura os lampejos restantes de luz. A composição total do plano não é uma regra e muitas vezes a noção quadrilátera da tela é perdida pois, quando as arestas do plano não são iluminadas, a única figura visível é o que o foco de luz não delimitado ilumina. Seu documentário White Epilepsy (2012) “foi filmado totalmente no escuro (...) para ver esse filme as para as imagens ser visíveis a pupula precisa dilatar (GRNDRIEUX In COPELAND, 2015).
Além dessa questão envolvendo uma fisiologia do olhar, a decomposição espacial. Que segue a essa questão se torna evidente. Antes de cineastas como os que abordamos aqui tínhamos uma caixa cênica numa tela e agora um mundo muito mais amplo que não pode ser comportado dentro da limitação do plano; o extracampo é uma área volumosa e desconhecida. Do outro lado, filmes que utilizam a escuridão como a priori da obra, que tem o extracampo como uma área não iluminada, um magma de sombra e uma tela que perdeu sua formalização figural quadrilátera. Tal qual a sala de cinema? Um ambiente fechado escuro com uma projeção apontada para uma das paredes. A sensorialidade diferenciada concebida pela sala escura pode ser percebida na exibição de qualquer obra, mas filmes como Sombre e White Epilepsy operam além da luz projetada, a própria tela se dilui na escuridão, uma projeção expansiva que não se prende mais a apenas uma das paredes mas sim aos seis lados de uma sala; o espectador habita o macro do filme (o extracampo) enquanto o faixo de luz da projeção ilumina elementos deste mundo amplo.
Em White Epilepsy e consecutivamente em Meurtrière (2015), corpos performam lentamente desfigurando-se na escuridão enquanto seus movimentos revelam a verticalidade da tela que antes não era perceptível. Grandrieux utiliza a diluição da tela na escuridão para explorar novos formatos do suporte, seu cinema explora a bidimensionalidade, mas profetiza seu impacto no tridimensional da sala escura. A utilização de imagens chapadas em Sombre acaba encontrando um paradoxo de dimensões: rejeita a profundidade de campo, mas encontra a profundidade do extracampo.
Porém o cinema da virada do milênio não se resume ao do espaço decomposto. Uma série de diretores continuarão a atualizar as noções clássicas de mise-en-scène, dentre eles Pedro Costa, que em sua obra docuficcional Cavalo Dinheiro (2014), figurará em um espaço cênico os traumas do cabo-verdiano Ventura. Como afirma Ranciére pensando a política nos filmes de Costa, “o cineasta parece ser testemunha de outra época” (2012, p.148), daí talvez o espaço, ou ambiente de Cavalo Dinheiro causarem uma estranheza também virtual.
Espaços com alta profundidade de campo, iluminação seleta e estilizada que ampliam e escondem a tridimensionalidade dos planos ao possibilitar um infinito na escuridão. Personagens perambulam lentamente no labirinto cênico da demolida Fontainhas e conversam apenas por sussurros - como em uma sala de cinema - como se escondessem-se de algo muito maior que eles e que aparentemente está em todo lugar ou pode surgir a qualquer hora. Da escuridão surgem médicos, soldados e até mesmo tanques de guerra provindos de um trauma passado, são os fantasmas de Ventura.
Filipe Furtado em seu texto para a revista Cinética sobre o filme traça pontes entre o documental e o ficcional, o que é visto e o que não é visto, o real e o mito e por fim aproximando a influencia clássica - declarada constantemente pelo diretor, principalmente as de John Ford e F. W. Murnau- ao até então último lançamento de Costa.
Fontainhas já não existe mais, demolida em nome do desenvolvimento. Mas ela resiste no imaginário do cinema de Pedro Costa. Se podemos dizer que há alguma mudança entre Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro, é justamente o novo trabalho ser o primeiro no qual o bairro já existe somente como mito, um espaço de cinema que Costa resgata tanto quanto John Ford faz com o forte da cavalaria americana ou sua Irlanda natal. Não há no cinema contemporâneo esforço maior de dignificar um espaço como o empreendido por Costa com sua Fontainhas e a sua crença de que aquelas pessoas existam como figuras de cinema. (FURTADO, 2018)
As sombras possibilitam a edificação da fábula e também a reestruturação do passado. O que não é visto se figura na estilização e desconfiguração do real. Em uma das cenas Ventura e Vitalina, outras personagens de Cavalo Dinheiro (2014), estão sentados à noite na rua, um ponto de luz no extracampo ilumina parcialmente seus bustos. Janelas com luzes acesas revelam prédios no fundo. Estes são os únicos elementos visíveis no plano: os personagens na frente e os edifícios ao fundo. O resto da composição é um emaranhado apagado. Qual é a distância entre os elementos visíveis? Diferente de Sombre, o filme não assume uma bidimensionalidade, há um longo espaço cênico, opaco porém profundo. Aqui a projeção cria uma extensão da sala de cinema, o cênico se une ao real, como no próprio conteúdo docuficcional do filme.
Cavalo Dinheiro (2014) encontra uma tridimensionalidade oposta, por exemplo a de Adeus à Linguagem 3D (2014) de Jean-Luc Godard onde o dispositivo 3D amplia o realismo, mas revela a projeção, as arestas dos planos não escondem o caracter bidimensional. Godard encontrou no 3D aimagem que talvez desde sempre: o realismo que sempre revela sua falsidade, uma imagem que se auto comenta como imagem e que não esconde o esforço opaco de uma por trás de sua transparência. Já em Pedro Costa as arestas constantemente desaparecem entre as escuridões da imagem e da sala, aumentando o realismo ao reunir as tridimensionalidades (plano + sala de cinema) em uma só. Estamos sob a mesma ameaça figural que assombra Ventura, precisamos sussurrar também. “A grandeza de Pedro Costa está em (....) fazer com um único e mesmo movimento o cinema do possível e do impossível” (RANCIÉRE, 2012, p.163), esta também uma grandeza de Godard.
Como citado no início, o cinema experimental já havia alcançado resultados parecidos explorando a tridimensionalidade da escuridão, inclusive tanto Grandrieux quanto Costa chegaram onde chegaram pela ousadia de ir além. Por exemplo, filmes como Ensemble for Somnambulists (Maya Deren, 1951), Pas de Deux (Norman McLaren, 1968), Chants (Martine Rousset, 1995) já trabalhavam com corpos dispostos e dissolvidos no total escuro. Entretanto, o filme que melhor parece sintetizar tudo que foi discorrido ate aqui é Black Ice (Stan Brakhage, 1994).
Obra simples que combina tinta sobre filme com uma outra camada de tinta reproduzida por meio de uma copiadora óptica. A imagem é predominantemente preta, e as tintas se manifestam em duas velocidades, umas aparecem e somem como um corte seco e as outras surgem e se diluem como em fades. O produto final funciona como se adentrássemos a escuridão num ritmo constante, a diferença de velocidade entre as tintas destacam-nas como elementos dispostos em diferentes pontos da terceira dimensão do negrume. Brakhage encontra a profundidade na bidimensionalidade de uma pintura abstrata graças a escuridão. Exibir Black Ice em 6 projeções que cobrem totalmente os seis lados de uma sala vazia deve ser como mergulhar num vazio sem fim.
Aqui chegamos a tônica desse artigo, a ideia de tentar comparar esses trabalhos com a Realidade Virtual. O VR consiste em uma total reconfiguração do espaço, os seis lados de uma sala ou criar um espaço infinito (um novo mundo). Pedro Costa expandiu o espaço da sala de cinema e encontrou a possiblidade de uma distância imensurável nas sombras, Philippe Grandrieux fez da projeção uma lanterna que ocasionalmente encontra detalhes e elementos perdidos no escuro. O francês utilizou a tela como micro e a sala como macro, o português a sala como macro e a tela como sua expansão. O VR mira o que o cinema de certa maneira já alcançou. A tela não é mais o limite da sétima arte. O visual, o sonoro e o sensorial não são mais um mistério. E a interação? Retomaremos a isto em breve.
Scott Barley: cineasta do escuro?
Recentemente, um proeminente jovem diretor surge assumindo as influências de Grandrieux, Costa, Deren e Brakhage. Scott Barley, faz um cinema predominantemente escuro. Assistir seu longa Sleep Has Her House (2017) ou seus últimos curta-metragens (The Green Ray, Hinterlands e Womb) fora de uma sala escura é como assistir um filme invisível, apenas o som resta como evidência da obra.
Além dos diretores citados, dois outros que também compõem a lista cinéfila de Barley: Béla Tarr e Artavazd Peleshian.
A câmera de Taar é metafísica e em Sátántangó (1994) alcança a onipresença que talvez o diretor já buscasse ao longo de sua longa carrerira. Diferentemente de Grandrieux, o plano não seleciona detalhes do mundo; Tarr tem tempo suficiente (7 horas e 30 minutos) para mapear toda a narrativa em diversos pontos de vista, a câmera circunscreve, literalmente em círculos, pois é consciente do passado, do presente e do futuro, todos ligados pelo vazio. A esperança é inútil, resta observar o desenrolar das evidências.
Já a montagem do russo também mapeia, une documentos do mundo. Diferentes espaços e diferentes tempos unidos pelo movimento; a energia que circunscreve metafisicamente e compõe o todo. A montagem distante de Peleshian tem como mote exatamente as distâncias; o que une e que não é visto (novamente o extracampo). A proximidade conceitual com Grandrieux e Denis, por exemplo, é clara, porém o russo opera no documental e em condições muito diferentes.
Scott Barley também documenta um mundo, um mundo que pode chamar de seu, que edifica a fábula na escuridão (como Costa) unindo filmagens com desenhos e pinturas impossíveis de distinguir. Em Sleep Has Her House, a luz cai sobre as montanhas como um divino que se aproxima. Divino incerto de sua benevolência já que também estamos inundados na escuridão da sala que induz o conforto pela quietude sonolenta e silenciosa. A ausência de luz nos leva aos estados de pré-sono. Por mais belo e calmo que o divino pareça há um mistério que foge de nossa zona de conforto. A câmera de Scott mapeia em longos planos como a de Tarr e uma lógica peleshiana de montagem une os espaços já que não conhecemos as distâncias espaço-temporais deste mundo, entretanto, a energia que une todos os fragmentos é quietíssima. A única distância que se assume, mesmo que invisível, é a entre a luz e a sombra.
Em uma entrevista a Ela Bittencourt para a Kinoscope, o diretor comentou: A importância da escuridão e da imagem subexposta também vem do meu desejo de trazer um tato à visão - ir além da figuração, além do objeto, e sentir a liminaridade entre a luz e a escuridão como seu próprio sujeito, sentir o peso do que é conhecido e o que é desconhecido. (BARLEY, 2018).
No ápice do conforto em nossas cadeiras, um belíssimo e longuíssimo plano do por-do-sol marca a passagem do segundo para o terceiro ato e cessa completamente a luz até que uma tempestade surge. Tempestade que surge não no filme, mas na sala, já que as poucas luzes da projeção se foram. Um raio ilumina a sala toda enquanto trovões, vento e chuva ocupam o som tridimensionalmente. Nós, espectadores, fomos largados no meio de uma tempestade, indefesos e, a cima de tudo, vulneráveis. A luz está caindo sobre a escuridão pela última vez e nós também estamos fazendo parte da purificação final do mundo de Scott. Ao fim, nos encontramos com o vazio, com o mistério, com o fim do espaço: uma roda azul, similar a um buraco negro1 que remete uma pincelada de Brakhage e um feito similar ao de Black Ice conduzido pelo efeito flicker que se movimenta em ritmo diferente da circunferência anil. Adentramos o vazio.
Na mesma entrevista, Barley comenta sobre a relação entre escuridão, mistério e como nos comportamos diante destes:
A escuridão sempre foi um pré-requisito para realmente entrar no mundo da tela, e sua importância na concessão de ressonância experiencial não pode ser exagerada. No auditório, as luzes se apagam. Esperamos em uma sala escura por um mundo de luz se abrir para nós, e enquanto nosso corpo pode permanecer em nosso assento, a essência incorpórea em todos nós caminha na direção da luz bruxuleante, assombrando-a, como nos assombra. Nossas almas investem, buscam na curiosidade e fome nas imagens e sons. (BARLEY, 2018)
O diretor grava suas imagens com um IPhone. Com esse telefone celular, ele reuniu toda uma trajetória da espacialidade na escuridão e compôs uma obra completa. Utiliza tanto a bidimensionalidade quanto a tridimensionalidade, inclusive, um plano chapado pode lentamente se revelar um zoom, ampliando a imagem em proporções inimagináveis para qualquer lente. A imagem sempre se expande, em um sentido mcLuhaniano se estende e parece sempre buscar o extracampo e unir-se com a escuridão da sala, criando um ambiente que remete a realidade virtual sem a necessidade das novas2 máquinas de visão.
A informação do celular nos traz uma nova questão, a do custo. Enquanto o VR se mostra uma tecnologia mais cara a cada aprimoramento, o cinema, com mais de um século de experiência, se simplifica. As teorias desenvolvidas ao longo deste tempo se aplicam aos mais simples dos suportes enquanto as câmeras diminuem e melhoram cada vez mais.
Tudo que foi analisado até aqui é resultado do mistério, do esconder, do não mostrado e isto vai contra a ideia consensual da reconstituição total do espaço no VR. Enquanto a nova tecnologia visa criar um mundo novo, filmes como os de Barley, Costa e Grandrieux alcançam resultados sensoriais muito mais efetivos. Porém, o primeiro fascínio do cinema também foi o de revelar o que não era visível e desmitificar o que era impossível. As cronofotografias de Étienne-Jules Marey fotografando como animais se posicionavam ao cair e os fotogramas sequenciais de Eadweard J. Muybridge revelando se o cavalo botava ou não as quatro patas no chão durante o galope. Posteriormente, os irmãos Lumière já se debruçaram no mistério; filmaram e se depararam com a ontologia do real registrado. E em seguida, Edwin S. Porter e Georges Méliès vão começar a separar o que mostrar e o que esconder. Talvez a Realidade Virtual ainda esteja nos seus anos de “pré-cinema”e talvez o cinema expandido e os casos aqui pensados tenham já antevisto novas possibilidades para a projeção, para a sala e para a espectatorialidade.
Enquanto o streaming3 e redes de compartilhamento de vídeo (Vimeo, YouTube, etc.) ganham cada vez mais espaço, o grupo de diretores do escuro clama o retorno as salas de cinema. Potencializam a experiência que em um século foi perdendo gradativamente seu valor áureo. Scott Barley distribui seus curta-metragens em seu canal no Vimeo e seu longa-metragem está disponível na rede de streaming Kinoscope, porém aconselha os espectadores a “assistirem no escuro com fones de ouvido ou com um sistema de som de qualidade.” Não só potencializa mas também atualiza a experiência aos novos meios. A democratização acontece não só na feitura (em que fazer um filme se torna cada vez mais acessível), mas também na distribuição e na experiência imersiva. As salas de cinema se preparam para receber novas formas de exibição e a própria exibição passa por novas formas como propoém COPELAND (2015), BOVIER e MEY (2015) refleindo a exibição de um filme como exposição.
E a interação?
Até agora, o sensorial da escuridão se cristalizou nos signos opressores determinados na longa história das figuras (medo, impotência, mal, desconhecido etc.) e como resultado a interação ocorre na inércia do corpo. O corpo do espectador na sala de exibição tem como reação os desencadeamentos do desconforto e do conforto; por exemplo um susto ou um sono. Qualquer atitude de retorno é como um pormenor não registrado pela câmera experienciado apenas pelo espectador.
O cinema parece ser a principal fonte inspiratória da Realidade Virtual. Enquanto isso, temos artistas que começam a unir os dois involuntariamente; o cinema se expandindo e o VR se estendendo a partir de seu antecessor. A sétima arte, não parece perder força, muito pelo contrário, parece estar sempre um passo a frente pela sua sabedoria e dinamismo técnico progressivo. Basta olharmos para trás para entender um pouco melhor o espaço e suas propriedades. Da imagem fotográfica para a imagem cinematográfica, o diferencial foi o tempo. Da imagem cinematográfica para a imagem digital, o diferencial foi a ausência de referente. O que de fato falta para o VR firmar suas linguagens, signos e códigos? O cinema já descobriu que a interação não compete exclusivamente a Realidade Virtual e jogos eletrônicos. A sétima arte aparenta estar mais próxima de alcançar os efeitos do VR que a nova tecnologia de fundar uma linguagem própria. Na era da hibridação das linguagens os projetos mais interessantes se tornam os que combinam as potências de cada tecnologia.
Tanto que o cinema, os jogos eletrônicos e a ciência surgem para a Realidade Virtual como ameaças de dominação. Porém entendemos que novos meios prolongam mídias anteriores de acordo com o que Marshall McLuhan e Eric McLuhan formularam como leis da mídia, em suma quatro erguntas que a mídia deve responder: 1- O que a nova mídia vai aperfeiçoar?; 2- O que ela tornará obsoleto? 3- O que essa tecnologia pode recuperar do que perdemos?; 4- Como essa ferramenta vai se reverter quando levada ao limite? (MCLUHAN; MCLUHAN, 2002). Os filmes que aqui brevemente cotejamos, em particular um filme como Sleep Has Her House (2017) e as ideias de Barley parecem compreender essas indagações sem esquecer que é possível ser virtual sem a realidade virtual.
Conclusão
É possível, queremos crer, afirmar que esses filmes reivindicam o retorno do público as salas de cinema. Pelo método de distribuição de Scott Barley, por meio de streaming e redes de compartilhamento (alertando a necessidade do ambiente escuro), poderíamos definir a escuridão como o ponto chave desta reivindicação. Porém, outros fatores são imprescindíveis para a completa experiência sensorial de introspecção. Hugo Mauerhofer já indicava elementos essenciais no que chamava de “situação cinema”:
Esses elementos psicológicos - o tédio sempre pairando sobre a situação cinema, a imaginação mais alerta, a passividade voluntária e acrítica e o anonimato que conduz o espectador para dentro de sua esfera mais privada - são os alicerces da “psicologia da experiência cinematográfica” que esboçamos acima (MAUERHOFER, 1983, 380).
Ao longo de seu “Psychology of Film Experience”, Mauerhofer destrincha estes alicerces apontando os efeitos psicológicos que a sala de cinema exerce no espectador. Disserta sobre o escuro assim como o tratamos acima, relacionando a alteração da “sensação de espaço”. Para ele, já que o escuro dificulta a visibilidade de elementos no campo de visão, nossa imaginação é mais ativa na sala e precisa fazer um retrato subjetivo do que está mal iluminado, além de atrair nossa atenção para o que é projetado.
Outro ponto é o conforto tedioso da sala e sua sensação alterada de tempo, como uma pausa no cotidiano do espectador que durante a sessão está confortável, em anonimato e voluntariamente em condição passiva/receptiva. O espectador está propício tanto a “situação cinema” quanto ao estado de sono, devido as afinidades condicionais destes.
A sala de cinema propicia ao público a atenção e estímulo imaginário, além de conforto e tédio. Uma condição potencializa a outra e nao à toa salas com camas de casal são lançadas no mercado exibidor como mostra recente reportagem 4.
Diretores como Grandrieux, Costa e Barley não reivindicam apenas a escuridão, mas sim um conjunto de estados psicológicos proporcionados pela sala de cinema. Eles são conscientes destes fatores e suas obras aproveitam estes como potencializadores figurais e sensoriais. Ver um filme de Scott Barley em casa no escuro, já ajuda bastante, mas é necessário um série de renúncias de condições do cotidiano contemporâneo, como o controle remoto que interrompe a experiência, o “estado online” que não permite o anonimato, o conforto demasiado de sofás e camas, dentre outras condições que podem até ser ajustadas, mas nunca igual a sala de cinema.
A invisibilidade de Sleep Has Her House (2017) à luz do dia exorciza o caráter instalativo da televisão; a obra não pode ser apenas uma tela disposta em um espaço, sua existência demanda a desaparição deste. Vale frisar sempre que a tridimensionalidade sonora também é necessária para a experiência introspectiva completa, logo a sala de cinema deixa de ser uma demanda apenas da imagem mas também do som.
O real mal iluminado da sala de cinema é um espaço virtual no qual o espectador pode ampliar sua imaginação. Os filmes citados apenas utilizam este espaço virtual como ferramenta de fábula, figuração e sensação; imaginam e criam junto ao espectador. Pensam a totalidade: todos os reais de uma sala são considerados (real do filme na tela, extracampo e espaço mal iluminado) e todo imaginário é conduzido (imaginário do filme, da projeção como dispositivo transparente e o espaço virtual da sala). A realidade virtual sempre existiu na sala de cinema valendo lembrar à guisa de conclusão o que Stan Brakhage e Hollis Frampton já anteviam: a projeção se torna performance; performance imersiva e virtual como tentam fazer os cinestas que aqui abordamos.
Notas Finais
1 O próprio Barley postou em rede social uma comparação da imagem que mencionamos com a imagem científica do primeiro buraco negro recentemente divulgada.
2 Cabe aqui ao menos mencionar que finalmente o encontro entre o cinetoscópio de Dickson e Edison e o cinematógrafo dos Lumière acaba de um ponto de vista arqueológico da mídia se encontrando. O projeto imersivo “Visorama” do artista e pesquisador brasileiro André Parente parece sintetizar bem essa junção.
3 Recentemente a Netflix anunciou a compra de antigas salas de cinema incluindo o histórico Egyptian Theatre em Los Angeles, hoje uma cinemateca
4 Para mais detalhes ver: https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/suica-lanca-sala-de-cinema-so-com-camas-de-casal-23660935.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=Extra&fbclid=IwAR09b0D_1SLRqPCLxCm-mUDen_D1AVUqFOzw12GfVNBu02uUZGwE6SxvXZY
Referências
AUMONT, Jacques. 2008. O cinema e a encenação. Lisboa: Edições texto e grafia.
BARLEY, Scott Interview. 2018. BIttencourt - Scott Barley on Sleep has her house and the thrill of darkness.https://read.kinoscope.org/2018/01/11/scott-barley-sleep-house-thrill-darkness/
BOVIER, François; MEY, Adeena (eds.). 2015. Exhibiting the moving image. Zurich: JRP.
COSTA JUNIOR, Edson. 2016. Apesar da noite: a materialidade da figura humana em Philippe Grandrieux. ARS (São Paulo), 14(28). http://www.revistas.usp.br/ars/article/view/122455
COPELAND, Mathieu (ed.). 2015. The exhibtion of a film/ L’exposition d’un film. Genéve. Les presses du reel.
ELSAESSER, Thomas. 2018. O cinema como arqueologia das mídias. São Paulo: Senac.
FURTADO, Filipe. 2014. A sombra dos abutres. In revista Cinética. http://revistacinetica.com.br/home/ cavalo-dinheiro-de-pedro-costa-portugal-2014/
MACHADO, Arlindo. 2009. Regimes de imersão e modos de agenciamento. In: MACIEL, Katia (org.) Transcinema. Ruio de Janewiro: Contracapa
MAUERHOFER, Hugo. A psicologia da experiência cinematográfica. 1983. In: XAVIER, Ismail (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal.
MCLUHAN, Marshall. 2002. Os meios de comunicação como extensões do homem. Rio de Janeiro: Cultrix
MCLUHAN, Marshall; MCLUHAN, Eric. 2002. The laws of media. Toronto: Toronto Press.
RANCIÉRE, Jacques. 2012. As distâncias do cinema. Rio de Janeiro: Contraponto.