AVANCA | CINEMA

Moda Vestra - um espetáculo de cinema ao vivo sobre o Algarve

Ana Perfeito

Escola Superior de Educação e Comunicação - Universidade do Algarve, Portugal

Bruno Mendes Silva

Escola Superior de Educação e Comunicação - Universidade do Algarve, Portugal

Abstract

“Moda Vestra” is a collective of artists from the Algarve, who perform visuals and music in real-time. They play classical instruments like accordion and bass guitar, and use computer softwares and interfaces for the electronic music and live visuals. We define this language as Live Cinema. Live because both musicians and visual artist are performing in real-time, and cinema because there is a story to tell the audience, using images in movement with sound.
This article has two main objectives. First is to draw a state of the art related to this phenomenon known as Live Cinema, that crosses with genres such as audiovisual performance and concepts such as real-time. The second aims to analyse the concept, the morphology and the work’s methodology of “Moda Vestra collective. Which also became a phenomenon because of their alternative way of telling stories from a stage.

Keywords: Real-time, Live Cinema, Audiovisual Performance, Music, Moda Vestra

I. Introdução

Moda Vestra - moda de “canção” e de “atual”, “vestra” que significa “vossa” em Latim - é um coletivo de três artistas naturais do Algarve. Um acordeonista (João Frade), um produtor de música eletrónica (Rafael Correia), e uma cineasta (Ana Perfeito). Em 2018, os três foram convidados pela Rede Azul (rede de teatros do Algarve)1 para criar uma performance audiovisual sobre as identidades Algarvias, e apresentá-la em 11 salas da região. O objetivo era: explorar ideias do que é o Algarve e do que já foi; despertar consciências para problemas atuais da região. Usando uma ótica artística experimental, misturando artefactos tradicionais com meios e técnicas contemporâneas e digitais.

Para a interpretação musical nesta digressão, foram convidados mais dois músicos: Paulo Machado (nas teclas, acordeão, baixo), e Emanuel Marçal (no acordeão). Ficando assim, cinco elementos em palco. Por ser um espetáculo ao vivo, os criativos acharam interessante usar o vídeo de forma semelhante à música. Em primeiro lugar, decidiu-se que o vídeo é projetado a partir do palco, considerando também a cineasta uma das performers 2 - ao contrário de outro tipo de performances audiovisuais em que a projeção é feita a partir da régie (e.g. os cineconcertos, que serão abordados mais à frente neste artigo). Em segundo lugar, enquanto os músicos reproduzem samples3 e tocam instrumentos musicais, a cineasta está também a reproduzir videoclips em tempo real (i.e. real-time). Criando assim, um espetáculo de cinema ao vivo (i.e.live cinema).

O trabalho começou com uma pesquisa de imagens e sons sobre o Algarve. As temáticas acordadas para este fim foram: eventos culturais e religiosos; paisagens degradadas ou em bom estado; natureza da região. As fontes de recolha foram: “filmes de arquivo” (archive footage)4; filmagens atuais da cineasta e de outros colaboradores.

Posteriormente, foram criadas várias faixas musicais com acordeão, música eletrónica, samples de vozes e sons sobre tradições e natureza (e.g. pragas de Alvor e som de pássaros da região). No vídeo, foram utilizados clips que remetiam para ambientes antigos (e.g. excertos do carnaval de Vila Real de Santo António de 1973) outros clips remetiam para o Algarve contemporâneo (e.g. viagem contínua pela estrada Nacional 125), e ainda outros que remetiam para a natureza (e.g. filmagens subaquáticas na costa).

No primeiro espetáculo foram tocadas as faixas musicais, e misturados os videoclips (ver figura 1). O resultado foi positivo. No entanto, a mistura de vídeos em tempo real, coloca problemas que a música não coloca. A música consegue transmitir mensagens, maioritariamente, de uma forma sensorial, i.e., a batida rítmica e sincronização entre instrumentos e samples, são os fatores chave para a música comunicar com o espetador. No vídeo não bastam esses dois. É necessário também que os conteúdos mostrados nas imagens, tenham ligações conceptuais. Aqui surge um desafio neste tipo de linguagem: conseguir construir uma narrativa ao mesmo tempo que se misturam os clips visuais ao vivo. Mais à frente, será explicada a solução que os artistas Moda Vestra encontraram para superar esta dificuldade.

O artigo está dividido em duas partes: a primeira pretende apresentar um estado de arte relativo ao live cinema, referindo cronologicamente, trabalhos relevantes de outros autores que da mesma forma, tentaram contar histórias misturando vídeo e música em tempo real; a segunda parte, descreve em detalhe o conceito de Moda Vestra, assim como o processo de trabalho e metodologia utilizada durante os 11 espetáculos.

II. Estado de arte

O termo live cinema pode ser associado à era dos “filmes mudos” (silent films) - de 1890 a finais de 1920 - que marcou o início do cinema. Nesta altura, ainda não existiam tecnologias para sincronizar som com imagens, portanto, os filmes mudos traziam apenas os visuais com textos embutidos. A sua visualização acontecia em auditórios e era acompanhada por música ao vivo. Na maioria dos casos, por pianistas e organistas, mas quando dispunham de orçamentos maiores, também por orquestras (Kobel 2007, 7-9). Ir ao cinema significava também ir a um concerto. No entanto, Martin Miller Marks - num estudo aprofundado sobre a música na era do cinema mudo - refere que o que era tocado nos filmes, não existia em separado. “unlike concert music, film music does not usually come out of, or go into, a repertoire; it exists only as an accompaniment to a film.” (Marks 1994, p9). Mas isto era quando ainda não era possível sincronizar som com imagem. Atualmente, existe uma empresa (Cineconcerts)5que produz eventos com um formato semelhante - filmes são acompanhados por orquestras ao vivo - mas com a diferença que as músicas tocadas são as bandas sonoras originais dos filmes. Estas, mesmo fora da performance, podem funcionar em separado, como música para concertos ou álbuns musicais.

Analisando o filme “The Circus” de 19296, podemos perceber que ainda na era dos filmes mudos, a música já desempenhava um papel importante para a narrativa da história (e.g. quando Charlin Chaplin corre, a batida acelera, nos momentos em que ele caminha devagar, tocam, lentamente, menos instrumentos). No entanto, para esta sintonia poder acontecer ao vivo, teriam que ser sempre os músicos a acompanhar o filme, e nunca o projecionista a acompanhar os músicos, i.e., o projecionista não poderia alterar nem improvisar nada ao vivo - como acontece no live cinema dos dias de hoje - apenas projetar o filme completo do inicio ao fim, não sendo este (à data) considerado um performer.

No início do século XX, artistas experimentais desenvolveram trabalhos dentro de um estilo que hoje chamamos visual music. Segundo Betancourt (2004 141-167 e 209-213), entre eles estão Thomas Wilfred (dinamarquês-americano 1889-1968) e Oskar Fischinger (alemão-americano 1900-1967). O primeiro criou pianos - chamados Clavilux - capazes de projetar luzes em movimento, que eram manuseados com as teclas do mesmo, como se de música tratasse7. Wilfred denominou este tipo de arte com luz: “Lumia”. O segundo, usava métodos como o stop motion8para criar filmes com visuais abstratos que se movimentavam ao ritmo da música9. Fichinger foi dos maiores influenciadores da animação, e as suas experiências mostraram a possibilidade de visuais desempenharem estruturas semelhantes à música. Contudo, ainda não era possível fazê-lo ao vivo.

Em 1940 a Walt Disney lança Fantasia10, um filme de animação que foi projetado ao vivo com oito segmentos diferentes, acompanhado por uma orquestra (Garity, William & Watson, Jones 1942 1-15). Neste espetáculo, podemos perceber que a parte visual teve mais ação em tempo real do que nos tradicionais filmes mudos, visto que executou as seguintes particularidades: no primeiro segmento da performance foram projetadas as sombras dos músicos numa tela azul; os visuais eram animações - de personagens cartoons e visuais abstratos - que se movimentavam em sintonia com a batida da música; havia um narrador/apresentador entre segmentos que explicava o conceito da atuação. Este formato foi denominado de “road-show”, uma linguagem já mais próxima das performances audiovisuais atuais.

Merrill Aldighieri (cineasta americana) no seu documentário “The V.J. Diaries”11, afirma que foi a pioneira deste género. A sua primeira atuação foi numa discoteca famosa em Nova York chamada “Hunnah”. A artista foi convidada para exibir os seus filmes experimentais em vários monitores que ficavam por cima do palco e do bar. Ela perguntou se podia projetar os vídeos ao mesmo tempo que a música tocava - e não apenas nos intervalos - ficando como um complemento ao Deejay (i.e., Disc Jockey, que abreviado é DJ) em vez de uma quebra na noite. Merrill usou imagens filmadas ao vivo por uma camara e clips de filmes que já trazia consigo, incluindo trabalhos próprios e archive footage. Ela ía improvisando e alternando com dois leitores de vídeo cassetes (U-matic)12. Esta atuação levou a artista a conseguir um emprego na discoteca, e meses mais tarde numa entrevista à MTV (Music Television Network), ela disse que era uma VJ. Aqui se popularizou o termo, utilizando-se também para os cineastas que produziam music videos13.

O uso de filmagens de camaras em direto e videoclips de archive footage, misturados por uma interface em tempo real, continua a ser o método usado por artistas de live video, no entanto, hoje em dia as interfaces são maioritariamente digitais, e não analógicas.

III. Live Cinema

Como apresentado no capítulo anterior, o termo live cinema é usado desde os finais do século XIX, no entanto, o significado nessa altura, é diferente do que é hoje.

Rather than screening a traditional, linear edited film, a live cinema performance allows artists the freedom to experiment and improvise within a selection of different material, prepared video clips, audio visual samples or more generative code based plugins that can be run in VJ software such as VDMX. This freedom allows the artist to present their work as a fully live and interactive performance, adding different audio and visual effects to their material on-the-fly. These different feeds of video can be distributed across multiple screens, layered, looped and edited to create immersive, three dimensional works that are very different to a traditional cinema experience. (The Light Surgeons, 2011)

The Lights Surgeons é um coletivo de artistas audiovisuais britânicos que desenvolveram Super Everything14 (2011-2017), uma performance audiovisual sobre a Malásia, que junta projeção e mistura de videoclips, com música ao vivo. O processo de trabalho deles começou por ser semelhante ao de um filme documentário, pois foram ao país pesquisar, filmar e captar material sobre temáticas que achavam relevantes. Mas a forma como o “documentário” foi projetado, foi num processo mais semelhante ao dos Vjs do que ao do cinema. A footage e sons previamente gravados, foram misturados em tempo real e ao vivo. Esta intersecção de métodos de cinema, com métodos de Vjying, é comum nos espetáculos de live cinema dos dias de hoje.

Outro projeto com características semelhantes foi “Everything Is Going According to Plan”, uma colaboração entre a banda Massive Attack e o cineasta Adam Curtis - para o Manchester Internacional Festival 201315. O conceito desta performance é uma perspetiva nova sobre o impacto do poder e política sobre o ser humano. Curtis, num texto que escreveu no blog da BBC antes do espetáculo, disse “(…) interest in trying to change the way people see power and politics in the modern world. To say to them - have you thought of looking at it like this?” Para a concretização desse conceito, o artista projetou vários vídeos de archive footage - sobre políticos conhecidos, Chernobyl, etc. - num recinto antigo, em vários monitores translúcidos que rodeavam o público por três lados. A banda tocou músicas que já tinham, mas muitas delas foram alteradas para entrar na narrativa do “filme”, que por vezes também tinha som e textos. Em vários artigos o espetáculo foi chamado de “film essay”, no entanto Curtis, ainda no mesmo texto na BBC referiu “The best way we can describe it is “a Gilm” - a new way of integrating a gig with a film that has a powerful overall narrative and emotional individual stories.”

Live Cinema vs. VJ

Autores de live cinema são muitas vezes confundidos com VJs pela sua forma parecida de projetar visuais. Contudo, é necessário diferenciá-los.

Live cinema describes work which is in essence artistic, to differentiate from VJng, which can resemble visual DJing. DJs don’t produce their own material, they mix music, the same way as VJs can mix already existing material. (…) The act of mixing, remixing and selecting becomes the work of a VJ. Live cinema creators’ goals appear to be more personal and artistic than those of VJs, and their work tends to be presented in different context, like museum or theatre, and often to an audience similar to that of cinema (…) as in clubs the public is not there mainly to see the visuals but to enjoy various sensorial inputs simultaneously. (Makela, 2006)

Tal como refere Mia Makela em “The practices of live cinema”, as diferenças entre estas duas linguagens está nos seus objetivos. Os VJs normalmente, pretendem entreter a audiência, maioritariamente de forma sensorial - em bares e discotecas, onde os screens não são o foco principal, e o público não está constantemente a visualizá-los. Já os espetáculos de live cinema, procuram conceitos e contam histórias, ainda que de forma não linear. Por isto, a audiência é mais semelhante à dos cinemas tradicionais, onde o público se encontra sentado a assistir com atenção. Estes dois tipos de performances audiovisuais usam métodos semelhantes, mas têm fins diferentes, i.e., ambos misturam videoclips em tempo real, enquanto que um pretende entreter, o outro pretende desenvolver conceitos e contar histórias.

Real-Time

A ideia do real-time está relacionada com ações que estão a acontecer no momento. Nas performances de live cinema podemos mencionar as seguintes: a escolha dos visuais e efeitos por parte do performer; o feed de camaras que estão a filmar no momento; criação de gráficos com programação ao vivo; efeitos que reagem com o batimento da música. Para essas ações, tem de haver artefactos que possam ser manuseados ao vivo - tal como instrumentos são tocados na música. Merrill Aldighieri nos anos 70 usava leitores de VHS analógicos, mas hoje em dia, com as tecnologias digitais, existem mais possibilidades. Habitualmente, são utilizados os chamados “softwares de VJ” (como o Modelo8 ou Resolume Arena). Estes permitem armazenar uma grande quantidade de clips, misturá-los entre camadas, adicionar efeitos, e enviar a imagem para um ou vários projetores. Os clips não têm necessariamente de ser vídeos. Podem ser também gráficos abstratos - mais utilizados por VJs.

Como já referido, existe também a possibilidade de criar gráficos em tempo real através de programação. Um bom exemplo é o projeto audiovisual português Boris Chimp 504 16 (constituído pelo músico Miguel Neto e pelo artista visual Rodrigo Carvalho). Estes criam gráficos por programação ao vivo através de um software chamado quartzcomposer, e, misturam-nos com um software de VJ (VDMX). Aos gráficos são adicionados efeitos que estão reativos ao som. O software de VJ recebe - através de cabos e placas de som - informações sobre as ondas sonoras do software do músico, que disparam funcionalidades consoante a intensidade das ondas.

Boris Chimp 504 criam performances audiovisuais em “real-time”, normalmente apresentadas em teatros e cinemas. Mas será que por serem projetados gráficos em vez de filmagens, ainda podem ser chamadas de live cinema?

IV. Moda Vestra

De 6 de Outubro 2018 a 2 de Março 2019, Moda Vestra apresentou 11 espetáculos em 11 salas de teatros do Algarve17. Depois da última atuação - no Teatro das Figuras em Faro - já se podia definir o evento como uma apresentação de live cinema. No entanto, o género não estava definido desde o início - a construção foi um “work in progress”. Na antepenúltima atuação - em Tavira, Fevereiro 2019 - Rafael Correia referiu numa entrevista ao jornal Barlavento: “O projeto tem sido construído em paralelo com ensaios e espetáculos, e hoje é muito diferente do que era quando começámos.”

O objetivo deste capítulo é descrever o “work in progress” desde o início da criação, até ao final da digressão, abordando dois elementos em separado: música e narrativa.

Música

Originalmente, o projeto foi pensado para ser apenas musical, composto por João Frade (músico de acordeão tradicional Algarvio) e Rafael Correia (produtor de música eletrónica para Hip Hop). A primeira proposta consistiu em criar uma fusão destes dois estilos musicais que remetesse para espaços e épocas diferentes do Algarve. O acordeão remete para imaginários tradicionais do interior, e a música eletrónica representa ambientes mais urbanos e contemporâneos. Entretanto, para ilustrar melhor estes universos, surgiu a ideia de adicionar vídeo. Aqui entra a cineasta Ana Perfeito, que já havia desenvolvido visuais ao vivo para outras bandas, usando archive footage e filmagens próprias.

A partir deste momento, percebeu-se que a música teria que adotar uma linguagem mais “visual”, i.e., teria de se enquadrar de alguma forma com o que se tivesse a projetar ao vivo. Todavia, não se pretendia usar um único filme completo do início ao fim, e acompanhar com uma banda sonora - como acontece nos cineconcertos - pretendia-se que fosse um concerto, em que vídeo e música tivessem de igual forma a agir em “real-time”.

O processo de criação - visual e sonoro - aconteceu em simultâneo. Diferente de outros projetos do mesmo género em que Ana Perfeito já tinha participado. Nesses projetos, ela criou visuais para bandas que já tinham músicas prontas, não havendo a hipótese de a música receber inputs dos vídeos. Em Moda Vestra isso pôde acontecer, pois foi um projeto audiovisual de raiz.

A primeira técnica foi usar o som de alguns dos vídeos na composição da música. Assim - ao vivo - há uma sincronização audiovisual, como se de cinema tratasse, mas com performance dos visuais em tempo real. Por exemplo, num dos temas musicais, os clips de vídeo projetados retratam pássaros na Ria Formosa, enquanto que a música tocada nesse momento, contem o som desses mesmos animais.

Para além dos samples de sons dos vídeos, as músicas são compostas por acordeão, guitarra baixo, sintetizadores e ritmos (ou beats) criados digitalmente. Para a criação e live act da parte digital, foi usado um software de produção musical (Ableton) que também serve para tocar ao vivo. O funcionamento deste é semelhante ao software que se usa para os visuais (Resolume Arena): ambos armazenam clips que podem ser tocados em “real-time”, e misturados com efeitos e transições. Estes softwares podem ser manuseados por vários “controladores MIDI” 18, tal como mostra a figura 2.

Narrativa não linear

No primeiro espetáculo, - a 6 de Outubro 2018 no Cineteatro Louletano19 - foram apresentados 10 temas (ou faixas audiovisuais) com durações de 3:30 a 6 minutos. Cada faixa representava individualmente um universo cinemático específico, dentro do mesma assunto global: o Algarve.

Uma delas, recebeu o nome provisório de Corridinho, inicialmente porque foi inspirado no ritmo da música tradicional Algarvia com o mesmo nome. Esta foi tocada com os três acordeões em simultâneo e acompanhada por ritmos de música digitais. Visualmente, foram projetados clips que continham imagens do carnaval de Vila Real de Santo António de 1973 (ver exemplo na figura 3).

Os clips têm durações máximas de 10 segundos, e repetem continuamente, por isso lhes chamamos de vídeo loops. A escolha e mistura destes foi feita ao vivo, não seguindo nenhuma sequência pré-estruturada - para poder haver improviso.

Outro tema foi Underwater. O nome - que ainda é provisório também - foi escolhido porque refere-se ao Algarve subaquático. A ideia era levar o espetador a observar as profundezas do oceano. Para isso, foram projetados vídeo loops com imagens de peixes e plantas, captadas por mergulhadores na costa Algarvia. A música tinha um ritmo lento e samples de sons aquáticos (ver figura 4).

Todos os clips (ou video loops) usados no espetáculo foram criados previamente, através de um programa de edição de vídeo (Adobe Première). Esse processo consistiu em selecionar partes de filmes completos, com o maior conteúdo e movimento possível, no menor tempo possível. Os movimentos servem para acompanhar o ritmo da música ao vivo. Estes podem ser encontrados tanto no conteúdo do filme (e.g. pessoas a dançar, a caminhar, peixes a nadar) como na forma de ser filmado (e.g. os travellings e zooms, camara filma a partir de um carro em movimento). Deviam ser curtos, para haver uma maior variedade de conteúdo e ação em tempo real.

Os filmes vieram de diferentes fontes. Por exemplo, as imagens usadas para o Corridinho foram retiradas de um filme cedido pelo arquivo municipal de Loulé. Para o Underwater, foi uma colaboração com uma empresa de mergulho de Albufeira, que enviou as filmagens que faz durante as suas “viagens” subaquáticas.

Em todo a apresentação, foram adicionados efeitos visuais em direto (e.g. mudanças de cor) e os clips eram sobrepostos em camadas (layers) nas transições. Alguns dos efeitos eram áudio-reativos, i.e., disparavam com a frequência do som. Para este efeito, foi necessário ligar o computador - por cabos de áudio e placas de som externas - à mesa de áudio principal que estava na régie.

Tal como na parte musical digital, a parte visual também é manuseada ao vivo por controladores MIDI, como podemos ver na figura 5. Estes, foram pré-programados com o software utilizado na performance: Resolume Arena. Os botões e knobs assumiam funções como: fade in e fade out da projeção, selecionar clips, disparar efeitos e modicar a intensidade dos mesmos.

Esta primeira performance teve uma boa aceitação por parte da audiência. No entanto, o grupo abordou aspectos que poderiam ser melhorados. Por exemplo, entre músicas existiam pausas sonoras e a audiência não sabia se deveria aplaudir ou não, pois a imagem continuava a ser projetada, – eram texturas gráficas em movimento - e habitualmente nos concertos musicais, as pausas entre músicas são bastante perceptíveis. Outro aspeto abordado foi a ausência de uma narrativa, ou mensagem específica para passar à audiência. Eram representados universos diferentes dentro da temática Algarve, mas não existia uma narrativa contínua do início ao final do espetáculo. Depois de abordadas estas questões, o objetivo foi conseguir uma solução que permitisse continuar com o concerto musical e visuais improvisados ao vivo, mas conseguir também contar uma história.

Makela (2006 s/p), compara a linguagem do cinema com a do live cinema da seguinte forma: “The communication of cinema consists of shots and their order. Continuity is one of the key concepts of cinema.”, enquanto que no live cinema, Makela explica que os significados são atingidos através de dois aspectos: montagem e composição, assemelhando-se mais à poesia “(..) poetry language is used for its aesthetic and evocative qualities in addition to its ostensible meaning.” De fato, em Moda Vestra, as composições podiam ter inúmeras interpretações. Por exemplo, num dos momentos do tema “Winter”, uma imagem de pássaros era sobreposta a um vídeo com um aglomerado de prédios junto à beira mar. Muitos expectadores afirmaram ter interpretado esta composição como uma crítica ao turismo não sustentável. Outros, afirmaram que o espetáculo tinha muita ironia - estilo próprio da poesia, que se pretendia manter, contudo, havia aspectos a melhorar.

Para superar a questão das pausas entre músicas, o grupo decidiu experimentar o seguinte: dividir o espetáculo por blocos, i.e., as pausas - sonoras e visuais - passaram a acontecer apenas entre blocos de temas, e nunca entre temas individuais. A partir desta ideia, ponderou-se a possibilidade de designar esses blocos de capítulos, e com isso, criar uma narrativa. Sendo que o assunto principal era o Algarve, e existia material audiovisual que retratavam eventos dos último 50 anos, tentou-se construir uma história global a partir desse período, até aos dias de hoje. Assim, cada um dos capítulos abordava respectivamente, as seguintes questões: o que somos; o que fomos; o que fizemos para chegar onde estamos; e por fim, a previsão de um futuro.

Narrativa por capítulos

Para estruturar a parte visual com este novo formato, adotou-se a seguinte metodologia: agrupar os vídeos loops já existentes por categorias. O objetivo era responder às questões acima referidas, mesmo que de forma metafórica. Os capítulos ficaram com a seguinte estrutura:

Todos os videoclips continuavam a ser misturados por camadas, e com efeitos audio-reativos. Este formato trouxe novas possibilidades: mais improviso em real-time - cada clip já pode ser usado em vários temas diferentes, em vez de estar associado apenas a único tema; mais mensagens subliminares - clips de diferentes universos eram misturados entre si, e.g. na música Last do segundo capítulo, imagens de mulheres no interior Algarvio a lavar roupa, eram sobrepostas a imagens com mulheres na praia, a envergar biquinis e a jogar raquetes.

Esta estrutura já estava mais próxima daquela utilizada no cinema. Segundo Syd Field, em “The Foundation of Scriptwriting”, a estrutura essencial da narrativa de um filme, é dividida em três atos: ato 1 - é contextualizada a história da personagem principal no tempo e no espaço; ato 2 - acontece uma serie de acontecimentos à personagem principal, que o impede de conseguir atingir os seus objetivos; ato 3 - resolução da história, ou seja, como os problemas do ato 2 foram resolvidos (Field 2005 p21-30).

Se analisarmos a estrutura de Moda Vestra com a de Field, poderemos encaixar o capítulo 1 e 2 “o que somos” e “o que éramos” no ato 1; o terceiro capítulo “o que fizemos” no ato 2; e o capítulo 4 “a previsão do futuro” no ato 3. Contudo, para estar totalmente de acordo, teria de existir uma personagem principal, e, acontecimentos específicos em continuidade. Em Moda Vestra isso não acontece. Há vários eventos com personagens distintas que, ainda que dentro do mesmo capítulo, não estão em continuidade. No entanto, as composições e montagens dos clips, conseguem transmitir várias mensagens distintas, no qual o significado é deixado para ser completado pelo público. Este princípio encaixa com o conceito do nome “vestra”, que em latim significa “tua” (o público) que entra na construção da história.

Os três espetáculos seguintes funcionaram melhor. No entanto, ao vivo, não era possível notar a diferença entre os blocos, mesmo que existissem pausas no som e na imagem. Por isso, decidiu-se adicionar algo mais: vídeos com o nome dos capítulos. Os nomes escolhidos foram: caos (o que somos), origem (o que fomos), desenvolvimento (o que fizemos para que essa mudança acontecesse), equilíbrio (previsão de um futuro). Ao vivo, estes eram lançados depois de uma pausa, e antes da primeira música de cada bloco, chamando-lhes assim, separadores. Continham poesia, letras com o nome do capítulo, e ambientes sonoros.

A poesia é da autoria de Napoleão Mira, um convidado que, no último espetáculo em Faro (ver figura 6), veio narrá-la ao vivo. Um exemplo desta poesia foi “Caos… Este era no tempo, em que fervilhava na sustância, o exagero da desordem”.

V. Conclusão

Desde a era dos filmes mudos - no final do século XIX - que existem espetáculos com música ao vivo e projeção de moving pictures. Contundo, nessa época, somente a música reunia estruturas e artefatos que possibilitavam agir em real-time. No início do século XX, artistas experimentais como Oskar Fischinger desenvolveram estruturas para visuais, mais parecidas com as da música, e.g. animações abstratas em stop motion. Nos anos 70, artefatos como leitores de VHS, permitiram aos VJs desempenhar funções que os colocaram numa posição de performer: misturam e projetam videoclips ao vivo, enquanto as bandas e DJs atuam.

Atualmente, vários artistas audiovisuais - como os The Light Surgeons, Adam Curtis, etc. - desenvolvem espetáculos que cruzam os métodos dos VJs - mistura de visuais em real-time - com o objetivo do cinema tradicional - desenvolver conceitos e contar histórias. Os The Light Surgeons definem esta género como live cinema.

Se partirmos do princípio que essa é a definição de live cinema, podemos concluir que os Boris Chimp 504 também estão incluídos no género. Estes, mesmo usando visuais abstratos - em vez de filmagens - têm um conceito desenvolvido - “(…) an audiovisual real-time performance that emphasizes audio synthesis and graphical languages in a futuristic Sci-Fi aesthetics (…)” - uma história para contar: “In 1969 the Chimp Cosmonaut Boris 504 was sent in a mission to the moon. He never came back (…)” 20 - e misturam visuais em real-time.

Os artefatos utilizados neste tipo de performances são interfaces digitais e analógicos (e.g. Resolume Arena, controladores MIDI). Estas tecnologias permitem que, ao vivo, seja possível projetar vários clips audiovisuais, adicionar efeitos, misturar por camadas, e, até criar gráficos através de programação.

Moda Vestra é um espetáculo de live cinema. Músicos e cineasta desempenham uma performance ao vivo (em live), e uma história é contada com princípio, meio e fim - como no cinema. No entanto, a narrativa só ganhou um princípio, meio e fim, quando o grupo estruturou o alinhamento do espetáculo por capítulos/blocos de músicas. Antes disso, eram explorados vários universos distintos de forma não linear, ainda que dentro de um conceito global: o Algarve.

Estes capítulos pretendem contar, cada um deles, partes da história da região nos últimos 50 anos. Todavia, o material audiovisual utilizado não tinha sido preparado desde o início para este fim. O resultado foi que, apesar de cada capítulo ter universos temporais, espaciais e visuais parecidos (e.g. o bloco chamado “origem”, junta clips de eventos antigos do Algarve com músicas tocadas maioritariamente pelo acordeão e baixo) não estão a contar histórias em continuidade, como no cinema. Apenas a lançar várias ideias que podem ser interpretadas de diversas formas. Outra razão pelo qual a história não estava perceptível, foi que o tema global - o Algarve nos últimos 50 anos - era muito vasto, não era uma história, mas sim um tema.

Para uma narrativa linear acontecer em performances audiovisuais deste género, poderíamos experimentar o seguinte processo de criação: 1) escolher uma história; 2) dividi-la por capítulos; 3) dar nomes aos separadores para usar entre capítulos; 4) fazer pesquisas ou filmagens de material audiovisual que preencham esses mesmos capítulos. Passamos a dar um exemplo prático. 1) história: um futebolista que morreu num estádio de futebol com um ataque cardíaco, mas a empresa contou que ele tinha morrido dias depois do jogo, já no hospital. 2) capítulos: quem é a personagem; o que fez naquele dia; o que lhe aconteceu; o que os outros pensaram que lhe aconteceu. 3) nomes dos separadores: Carlos Silva; jogo Benfica-Porto Maio 2019; o acidente real; o acidente virtual. 4) material audiovisual a usar por ordem dos capítulos: imagens de arquivo que contam quem é Carlos Silva; imagens do jogo de futebol antes do acidente acontecer; visuais aproximados que mostram os socorristas a dizer que ele parou de respirar; imagens da empresa a contar que ele tinha morrido no hospital.

Os conteúdos dentro de cada capítulo seriam - como em Moda Vestra - improvisados em real-time. Contundo, usando este processo de criação desde o início, a história seria mais perceptível para a audiência. Desta forma, existe: uma personagem principal; acontecimentos específicos em continuidade, possíveis de serem verbalizados. Assim, a narrativa estaria totalmente de acordo com a estrutura de Syd Field, para o cinema. Esta visão possibilita desenvolver um novo género que poderíamos denominar de “real-time cinema”.

Imagens

Figura 1 - Moda Vestra 6 de Outubro 2018, Cineteatro Louletano.

Figura 2 - Mesa de Rafael Correia, ao vivo em Moda Vestra.

Figura 3 - Fotograma de um dos video loops tocados no tema “Corridinho”.

Figura 4 - Fotograma de um dos video loops tocados no tema “Underwater”.

Figura 4 - Fotograma de um dos video loops tocados no tema “Underwater”.

Figura 6 - Narração de Napoleão Mira, entre capítulos, no último espetáculo em Faro.

Notas Finais

1 A produção do projeto contou com o apoio e parceria de 365 Algarve (programa cultural), Direção Regional de Cultura do Algarve, e projeto TASA (associação de artesanato que cria objetos com técnicas ancestrais locais).

2 “A performer is a person who acts, sings, or does other entertainment in front of audiences.” (Collins English Dictionary. Performer).

3 Por sample entende-se um “pequeno trecho sonoro retirado de obras musicais ou de outras gravações, para posterior reutilização numa nova obra musical.” (Priberam Dicionário. Sample).

4 De acordo com a loja online archivevalley.com, “filmes de arquivo” ou archive footage, são filmes do passado que podem ser reutilizados noutras obras artísticas. É diferente de stock footage, estas são filmagens genéricas que foram criadas já com o propósito de venda, para utilização em filmes publicitários.

5 https://www.cineconcerts.com/about-cineconcerts

6 Cena do filme “The Circus” https://www.youtube.com/watch?v=79i84xYelZI

7 Demonstração de um Clavilux https://www.youtube.com/watch?v=gbs3NQ2mf4c

8Stop Motion Animation is a technique used in animation to bring static objects to life on screen. This is done by moving the object in increments while filming a frame per increment. When all the frames are played in sequence it shows movement.“ (Techopedia. Stop Motion).

9An Optical Poem” de Oskar Fischinger 1938 https://www.youtube.com/watch?v=6Xc4g00FFLk&t=117s

10 “Fantasia” filme completo https://www.youtube.com/watch?v=r7gLlIv4ito

11 Teaser do documentário “The V.J. diaries” https://vimeo.com/34572005

12 Demonstração de uma U-matic https://www.youtube.com/watch?v=In4Q790f8xc

13 Os music videos tiveram origens no final dos anos 20, quando surgiram os talkies, i.e., quando já era possível gravar som com imagem. No entanto, tornaram-se populares nos anos 80 com a MTV. (Moller, Daniel 2011)

14 Vídeo teaser de Supereverything https://vimeo.com/38638236

15 Fragmento do espetáculo “Everything Is Going According to Planhttps://vimeo.com/76571554

16 Boris Chimp 504 ao vivo em 2015 https://www.youtube.com/watch?v=EFVpd27ajjo

17 Teatros por ordem de atuação: Cineteatro Louletano; Auditório Carlos do Carmo, Lagoa; Auditório da Biblioteca Municipal de Castro Marim; Museo do Trajo Algarvio, São Brás de Alportel; Auditório Municipal de Albufeira; Auditório Municipal de Olhão; Teatro Mascarenhas Gregório, Silves; Centro Cultural de Lagos; Biblioteca Municipal “Alvaro de Campos”, Tavira; Teatro Municipal de Portimão; Teatro das Figuras, Faro.

18 Segundo o website bestdigitalpianoguides.com “A MIDI Controller is a keyboard that includes some additional buttons allowing user to have a completely customisable device that could be mapped with buttons and keys to produce a sound effect like any keyboard could produce. These devices can be connected to your computer system and with the use of software integration (…)

19 Video reportagem sobre o primeiro espetáculo no Cineteatro Louletano https://www.youtube.com/watch?v=D4qPgmDGJ10&t=57s

20 https://borischimp504.com/

Referências bibliográficas

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