Capítulo / Chapter V | Convidados / Guests

Autobiographies in Anthropology, Cinema, and Education. Between Technologies, Reflexivity, and Interdisciplinarity.

Autobiografias na Antropologia, Cinema e Educação. Entre Tecnologias, Reflexividade e Interdisciplinaridade.

José da Silva Ribeiro

EDUMATEC, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

Ana Beatriz Pimenta de Carvalho

EDUMATEC, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

Thelma Panerai Alves

EDUMATEC, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

Abstract

The present article analyzes teaching, research, and audiovisual production pathways in the context of international and interinstitutional cooperation, exploring how these dynamics contribute to teacher training and the development of creative processes in education. The research reflects on the potential of anthropology for a more reflective and inclusive education, questioning the role of cinema and digital technologies as pedagogical mediators. In particular, the study emphasizes the use of autobiographical approaches at the intersection of anthropology, cinema, and education, analyzing how these practices foster the construction of subjectivities, expand creative repertoires, and contribute to the formation of critical and conscious individuals. Methodologically, a qualitative and participatory approach is adopted, involving the analysis of students’ audiovisual productions and the reflections of faculty members engaged in the project. The results highlight the significance of international and interinstitutional cooperation as a space for cultural and epistemological exchanges, enhancing pedagogical innovation and encouraging new forms of expression and critical thinking. The study concludes that autobiographies, combined with cinema and digital technologies, serve as fundamental strategies for teaching and research, fostering a dialogue between individual and collective experiences in the learning process.

Keywords: Autobiographies, Anthropology, Cinema, Education, Interdisciplinarity.

Introdução

Iniciamos, em 2023, uma atividade formativa e de produção audiovisual na AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual com a Escola Superior de Educação de Viana do Castelo (ESEVC), de Portugal, com a Universidade Rey D. Juan Carlos (URJC) de Espanha. Participaram também colegas do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC) e do Núcleo de Práticas Artísticas Autobiográficas (NuPAA) da Universidade Federal de Goiânia (UFG). No decorrer da atividade formativa intensiva, durante os Encontros de Cinema de Viana do Castelo, decidiu-se ampliar a formação para o projeto de pesquisa, ensino e extensão Autobiografias na Antropologia, Cinema e Educação. A atividade denominada Curso de Antropologia Visual: Autobiografias nas Artes, no Cinema, nas Ciências Sociais e nas Humanidades tinha como objetivos: 1) Disponibilizar uma formação de base em Antropologia Visual, entendida no sentido lato e no processo histórico da sua consolidação e na temática específica do curso. 2) Disponibilizar produções significativas em Antropologia Visual que possam funcionar como formas inspiradoras das práticas a desenvolver no curso. 3) Desenvolver práticas de campo e de produções visuais, sonoras e audiovisuais e sua divulgação em eventos nacionais e internacionais e nas redes sociais. 4) Questionar as dimensões éticas, estéticas, epistemológicas e políticas das práticas desenvolvidas no trabalho de campo e nas produções realizadas. O curso teve a duração de 30 horas e dele resultaram 3 produções audiovisuais: Uma marca no espaço e no tempo, de Samuel Rego; HabitaSom, de Lara Palácio e Renata Baptista; Abrigo de Ilka Palini.

Paralelamente, apresentava-se à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), através de seu Programa de Pós-graduação em Educação Matemática e Tecnológica (EDUMATEC), um projeto de ensino, pesquisa e extensão Etnografias Audiovisuais Participativas que visava 1) Desenvolver as metodologias visuais participativas / etnografias audiovisuais digitais participativas. 2) Verificar e analisar transformações da etnografia decorrentes da inclusão das metodologias audiovisuais participativas. E, neste contexto, o desenvolvimento das autobiografias na Antropologia, Cinema e Educação.

No projeto propunha-se: 1) Oferecer disciplinas no Programa de Pós-graduação em Educação Matemática e Tecnológica (EDUMATEC), com a possibilidade de integrar alunos de outros Programas de Pós-graduação. 2) Organizar oficinas de formação, investigação, produção abertas a estudantes e, se for política da instituição, a coletivos exteriores. 3) Criar um seminário permanente de pesquisa. 4) Proceder ao levantamento de práticas de utilização de etnografias audiovisuais / digitais em Antropologia, Artes, Educação e áreas afins. 4) Criar, ativar e desenvolver redes de cooperação internacional com centros e núcleos de pesquisa na América Latina e na Europa, sobretudo, no Espaço Ibero-Americano. 5) Tornar público os resultados do projeto nas redes sociais, nas publicações científicas e culturais, nos foros internacionais da espacialidade na Europa – Congressos, Conferências e Cursos de Verão, na América Latina – ARNA - Action Research Network of the Americas e na Red de Cultura Visual Abya Yala, entre outras. 6) Proceder à análise, reflexão e fundamentação teórica, ética e estética das produções e dos processos de pesquisa.

Foram criadas três disciplinas partilhadas entre professoras do EDUMATEC e o professor visitante: 1) Tópicos de tecnologias educacionais: Possibilidades metodológicas de Design de Pesquisa, Literacia Mediática e Autobiografias na Educação (2023); 2) Autobiografias na Antropologia, Cinema e Educação (2024 e 2025), disciplina compartilhada com a AO NORTE, a Escola Superior de Educação de Viana do Castelo (ESEVC) e a Universidade Rey D. Juan Carlos (URJC); 3) Tecnologias, Educação e Cinema. Foi também apresentado um projeto de extensão a UFPE - Contar, contar-se: Oficina autobiográfica multimodal (sénior).

A presente reflexão tem como objetivo proceder à análise, à reflexão e fundamentação teórica, ética e estética das produções e dos processos de pesquisa.

Antropologia e Educação: Uma Conexão Necessária

A pesquisa etnográfica, originalmente consolidada na Antropologia como um método para compreender as culturas a partir da experiência imersiva e da observação participante, tem se expandido para diversas áreas, incluindo a Educação. Essa expansão ocorre porque a etnografia permite um olhar aprofundado sobre os processos de ensino e aprendizagem, captando as dinâmicas sociais, emocionais e culturais presentes nas práticas educativas. Entendemos a etnografia como um método que busca descrever e interpretar a vida social e cultural dos grupos estudados (dos grupos com quem se estuda), a partir da imersão prolongada do pesquisador no contexto. No campo educacional, a etnografia tem sido utilizada para analisar as interações entre professores, alunos e outros agentes do processo educativo, além dos discursos pedagógicos e das práticas institucionais que moldam o ensino e a aprendizagem.

Numa perspetiva tradicional da etnografia, o investigador deverá manter uma distância analítica em relação ao seu objeto/sujeitos de estudo (pessoas com quem se estuda), recusar a imersão total na medida em que a proximidade excessiva poderia dificultar um olhar objetivo ou identificar as estruturas subjacentes à cultura observada. Estas abordagens tendem a ser ultrapassadas por modelos de pesquisa partilhada (Jean Rouch), metodologias audiovisuais participativas, reflexividade e formas de etnografias reversas em que os tradicionais etnografados são atualmente eles próprios, os etnógrafos. A autoetnografia, abordagem que combina a etnografia com a autobiografia1, posiciona o pesquisador como sujeito e objeto da investigação2 (o observador observa-se na sua observação-participação). A autoetnografia permite que os pesquisadores analisem suas próprias experiências em diálogo com contextos culturais mais amplos, oferecendo perspetivas subjetivas sobre a prática docente, os desafios institucionais e a aprendizagem ao longo da vida.

A etnografia na e da educação desafia o ensino tradicional, baseado na transmissão de conhecimento e em construções abstratas de saber, que tem sido amplamente questionado por abordagens autobiográficas e autoetnográficas.

Algumas tendências e transformações no campo educacional incluem a transição do modelo tradicional de transmissão do conhecimento para uma abordagem voltada ao desenvolvimento de competência. Embora também seja alvo de críticas, esse modelo apresenta possibilidades interessantes e tem sido incorporado em políticas e práticas de ensino superior, como no Processo de Bolonha3. Outra perspetiva emergente destaca a educação como experiência vivida, na qual a etnografia na educação desloca o foco da transmissão de conteúdos para a compreensão do ensino e da aprendizagem como práticas situadas e relacionais.

O conhecimento não é visto como algo externo, mas como uma construção dinâmica que emerge das interações entre os sujeitos e seus contextos. Também a aprendizagem baseada em narrativas, através da incorporação de relatos de vida, memórias e experiências pessoais no ensino, possibilita uma educação mais reflexiva e significativa. Nesse sentido, as autobiografias e as autoetnografias oferecem caminhos para a aprendizagem baseada em narrativas, permitindo que os alunos se tornem protagonistas de seus processos formativos. Ao valorizar a experiência vivida, a etnografia na educação questiona modelos rígidos de ensino e propõe abordagens mais flexíveis, culturalmente situadas e socialmente contextualizadas.

Desta maneira, tanto na pesquisa como na prática pedagógica incentiva-se a prática reflexiva entre professores e alunos. O docente deixa de ser apenas um transmissor de conhecimento e assume o papel de pesquisador do seu próprio fazer pedagógico, analisando continuamente suas práticas e interações com os estudantes. Esse processo contínuo de investigação e reflexão impulsiona inovações metodológicas e epistemológicas que ampliam a compreensão sobre os processos de ensino e aprendizagem. Alguns caminhos promissores incluem: a) Etnografia digital na educação, na qual o uso de plataformas digitais, redes sociais e ambientes virtuais de aprendizagem tem transformado a experiência educacional. A etnografia digital permite investigar como os alunos interagem, aprendem e constroem conhecimento nesses espaços; b) autoetnografia coletiva, na qual, em vez de relatos individuais, pesquisas autoetnográficas podem ser construídas coletivamente por grupos de professores e estudantes, refletindo sobre suas experiências comuns e os desafios educacionais enfrentados; c) pesquisa audiovisual e multimodal, em que o uso do cinema, do documentário e da fotografia como ferramentas etnográficas na educação amplia as possibilidades de expressão e análise dos processos formativos, criando novas formas de compreender e representar a experiência educacional.

A pesquisa visual possibilita que estudantes e professores documentem suas experiências de aprendizagem, contribuindo para novas formas de produção e compartilhamento do conhecimento. Além disso, no contexto da educação decolonial, a etnografia tem sido utilizada para desafiar epistemologias eurocêntricas e coloniais, ampliando o espaço para saberes locais e práticas pedagógicas baseadas no reconhecimento e na valorização da diversidade cultural.

Portanto, a pesquisa etnográfica na educação, aliada à autobiografia e à autoetnografia, possibilita uma abordagem mais reflexiva e situada do conhecimento. Ela desafia a ideia de ensino como transmissão unidirecional e propõe uma educação baseada na experiência, na narrativa e na construção compartilhada do saber.

A relação da Antropologia com a Educação é objeto de muitas abordagens5. Vamos sobretudo tomar como referência a obra de Tim Ingold, Antropologia e/como Educação, tomando apenas algumas notas. A primeira é a do desafio de deixar a educação como método de transmissão e pensar nela como uma prática da atenção, mas também do cuidar “deixá-los ser para que possam falar connosco… Ele ou Ela tem coisas a dizer ou a nos mostrar e grita para ser notado. E devemos observar, ouvir e responder. Isto é o que significa cuidar” (Ingold, 2020: 48). Tim Ingold defende uma “antropologia como uma prática da educação” e a escola como campo de observação.

De facto, existem muitas semelhanças entre a escola e o campo, considerados locais de estudo, e muito do que eu disse sobre o que significa estudar poderia aplicar-se igualmente à condução do trabalho de campo antropológico. O estudo no campo é comunitário em vez de solitário, segue problemas reais, mas não para encontrar soluções; é especulativo, mas não preditivo; crítico, mas não apegado à crítica (Ingold, 2020: 92).

Como vimos anteriormente, Ingold propõe uma visão inovadora da relação entre Antropologia, Arte e Educação, recusando o modelo tradicional da educação como transmissão de conhecimento para enfatizar a prática da atenção e o cuidar. Para ele, aprender não significa simplesmente receber e acumular informações, mas estar no mundo de forma ativa e sensível, explorando e interagindo com o ambiente. Sugere, assim, que a educação deva ser um processo aberto e experiencial, no qual aprendemos prestando atenção ao mundo e às suas relações, de maneira semelhante à forma como um artesão molda um objeto ou um artista trabalha sua obra. Ele rejeita a ideia de um conhecimento estático e pronto para ser transmitido, argumentando que aprender envolve envolvimento sensível, experiência e cuidado.

Para Ingold, a antropologia não é apenas uma disciplina académica, mas uma forma de aprender através da vida, desenvolvendo um olhar atento às pessoas, aos materiais e aos processos que nos cercam. Assim, ele aproxima a antropologia da arte e da prática pedagógica, defendendo que todas compartilham um interesse pelo fazer, pelo sentir e pelo habitar o mundo de maneira relacional. Um conceito-chave em sua abordagem é o de correspondência, ou seja, aprender envolve acompanhar, responder e crescer junto com o mundo. Em vez de acumular conhecimento como um depósito, a aprendizagem acontece no fluxo da vida, em um processo contínuo de envolvimento.

Para Ingold, a educação não deve ser vista como um simples repasse de conteúdos, mas como uma prática que exige atenção, escuta e cuidado. A antropologia, nesse sentido, é uma forma de aprender com o mundo, desenvolvendo uma sensibilidade ética e estética que nos permite viver de maneira mais conectada com os outros e com o ambiente.

Não podemos deixar de referir a Pedagogia da pergunta, de Paulo Freire e António Faundez, e a Pedagogia da escuta, de Loris Malaguzzi, desenvolvida em Reggio Emilia. Embora tenham surgido em contextos diferentes e com focos distintos, suas abordagens pedagógicas apresentam convergências significativas e interessantes Tanto Malaguzzi quanto Freire enfatizam o protagonismo do aluno no processo educativo. Malaguzzi valoriza a capacidade da criança de construir seu próprio conhecimento através da exploração e da experimentação, enquanto Freire destaca a importância da participação ativa dos alunos na problematização da realidade e na busca por soluções. Outro ponto de convergência entre essas abordagens é o reconhecimento da experiência como fonte de conhecimento. Malaguzzi valoriza as experiências sensoriais e as múltiplas linguagens da infância, enquanto Freire considera a importância das experiências de vida dos alunos como ponto de partida para a reflexão crítica. Além disso, ambos veem o educador como um mediador do processo de aprendizagem, e não como um mero transmissor de informações. O educador deve criar um ambiente estimulante, formular perguntas desafiadoras e incentivar a reflexão crítica, tornando a aprendizagem mais dinâmica e significativa. O diálogo também ocupa um papel central em ambas as abordagens. Na pedagogia de Malaguzzi, o diálogo acontece entre as crianças, os educadores e as famílias, enquanto na pedagogia de Freire, o diálogo é essencial para a conscientização e a transformação social. Por fim, ambas as pedagogias se opõem à educação tradicional, que consideram passiva, repetitiva e descontextualizada.

Embora tenham focos distintos (o desenvolvimento da criança, em Reggio Emilia; e a conscientização e transformação social, em Freire), a “Pedagogia da Escuta” e a “Pedagogia da Pergunta” compartilham uma visão humanista da educação, que valoriza o protagonismo do aprendiz, a experiência, o diálogo e a reflexão crítica. Ambas as abordagens nos convidam a repensar o papel da educação, na formação de cidadãos mais conscientes, criativos e engajados com o mundo.

A Centralidade das Abordagens Autobiográficas. Dados de uma experiência.

Como referimos anteriormente foram criadas no EDUMATEC, no ano de 2023/2024, duas disciplinas: a) Tópicos em Tecnologias Educacionais: Possibilidades Metodológicas de Design de Pesquisa, Literacia Mediática e Autobiografias na Educação (2023); e b) Autobiografias na Antropologia, Cinema e Educação (2024 e 2025), disciplina compartilhada com a AO NORTE e a Escola Superior de Educação de Viana do Castelo, em Portugal, e a Universidade Rey D. Juan Carlos, na Espanha.

A primeira disciplina foi partilhada com a professora Ana Beatriz Gomes Pimenta de Carvalho. A disciplina foi organizada em 3 módulos formativos: a) Design de Pesquisa; b) Exploração de Novos Paradigmas de Literacia Mediática e Lifelong Learning; c) Autobiografias na Educação e Metodologias Audiovisuais Participativas. A disciplina foi frequentada por 20 alunos, sendo que 18 alunos concluíram os trabalhos de avaliação.

O primeiro módulo tratou do processo exploratório e processo explanatório da pesquisa, paradigmas e modelos de pesquisa, presença do pesquisador na pesquisa e outras formas de reflexividade; apresentação do resultado de pesquisa – a escrita e os meios. Procurou-se que os alunos relacionassem a teoria e a prática orientada para o desenvolvimento das suas pesquisas. A atividade final – realização de uma oficina PechaKucha6, permitiu que os alunos expusessem e partilhassem, de forma sintética, criativa e reflexiva seus projetos de pesquisa.

No segundo módulo - Exploração de Novos Paradigmas de Literacia Mediática e Lifelong Learning - procurou-se dar resposta às questões prementes da sociedade atual, sentidas pelas estruturas internacionais e transnacionais, como a UNESCO, entre outras, decorrentes das tecnologias digitais, Inteligência artificial, da literacia mediática, da Lifelong Learning (aprendizagem ao longo da vida) Lifewide Learning (aprendizagem sobre todos os aspetos da vida). Neste módulo, foi proposto aos alunos a participação no I Encontro de Pesquisas sobre Educação e Cultura Digital, I Encontro de Egressos do EDUMATEC e II Encontro de Pesquisas Latino-Americanas sobre Educação e Cultura Digital. Realizou-se uma mesa-redonda internacional online sobre questões da literacia e cinema – inscrita na I Semana de Educação Midiática7 - evento a que a natureza da Pós-graduação EDUMATEC deu continuidade nos anos seguinte.

No terceiro módulo - Autobiografias na Educação e Metodologias Audiovisuais Participativas, abordou-se o histórico das metodologias participativa e das autobiografias na educação e na formação de professores, os porquês dos estudos de caso, a especificidade da pesquisa em ação – Research in action (Bent Flyvbjerg), redefinição dos papéis do pesquisador. Como atividade prática do módulo, organizou-se uma oficina de autobiografias audiovisuais, com a participação e produção de todos os alunos.

Desta atividade resultaram 18 produções audiovisuais e uma reflexão espontânea e imprevista, instintivamente registada em vídeo na última aula8. Como, através das vozes dos alunos, podemos perceber o que foi mais relevante no percurso de formação: a tecnologia - construção da narrativa, de registo e edição vídeo - ou a autobiografia? Na autobiografia, o que os alunos consideraram mais relevante? Há referências à continuidade e ao desenvolvimento das práticas?

Tim Ingold ao identificar educação como prática da atenção refere que “devemos deixá-los ser, para que possam falar connosco” (48). Não vamos interpretar, recontextualizar ou de algum modo filtrar as falas dos alunos participantes nesta disciplina. Ouçamo-los ou leiamos a transição de suas falas. Não há nesta proposta qualquer incentivo à valorização da professora e do professor responsáveis pela disciplina, mas não podemos deixar de referir que, na edição do audiovisual, Diário I.

Aluna 1

Essa foi a disciplina em que eu mais aprendi em tão pouco tempo. Eu surtei em alguns momentos em que tentava e não conseguia. Foi muito enriquecedor não só a questão de conhecimento tecnológico que eu não tenho muito ainda (mas me fez aprender bastante), mas também o autoconhecimento. A pessoa acha que sabe tudo sobre si, que não tem mais nada para conhecer, descobrir. Mas descobri muitas coisas sobre mim nessa atividade.

Aluno 2

Eu tive uma boa experiência na disciplina. Eu gosto muito de trabalhar com vídeos, com edição de vídeos. Porém há algum tempo eu não trabalhava com isso. A minha última experiência com edição de vídeo, produção de roteiro, a questão audiovisual, foi na minha graduação em alguns projetos. Falar um pouco da minha história foi um momento assim de resgate de mim mesmo. Saber de onde eu vim, todo esse processo. A colega falou sobre aprendizagem ao longo da vida. Meu vídeo resume também um pouco disso e hoje onde estou é um reflexo de quem eu fui anos atrás e a pessoa que eu vou ser no futuro é um reflexo do que estou construindo agora.

Aluna 3

Eu acho que a maior aprendizagem desse exercício de fazer um filme autobiográfico foi tentar me enxergar, tentar me conhecer, relembrar aquilo que estava guardado assim na minha memória e que eu não revisitava com tanta frequência. Fazendo a autobiografia, eu consigo justamente reforçar de onde eu vim, onde eu estou e para aonde quero chegar. Isso para mim é muito importante, não esquecer de onde eu vim porque é justamente as minhas raízes, de onde eu venho que me faz ter força para continuar e atingir os meus objetivos pessoais e profissionais também.

Aluna 4

A experiência da construção dessa narrativa autobiográfica de certa maneira faz a gente revisitar momentos em que estava perdido, largado. Me fez perceber como esses momentos são de certa forma formadores. Formadores de mim. A gente só dá valor àquelas questões acadêmicas, mas a gente revisita aqueles aprendizados né, que a gente constrói ao longo da vida e que de certa maneira eles fazem todo sentido em nossa vida.

Aluna 7

Eu acho que poucas são as oportunidades que a gente tem de se desenvolver nesse nível, tecnicamente e emocionalmente. Tipo, o tempo inteiro a gente tava aprendendo uma coisa nova, técnica, pensando ‘meu deus como é que vou fazer, eu nunca fiz isso mas revisitando as nossas histórias e se emocionando. Então é como se tivesse dois mundos em um dentro dessa disciplina, eu sou muito grata por ela.

Aluna 8

Ah eu acho que o que eu mais posso falar dessa disciplina foi a vivência da sala de aula né. As trocas que a gente teve aqui, ver como os colegas estavam produzindo. Enfim, tudo foi enriquecedor para o processo da gente de se ver como produtor de um material. Viver um pouquinho do cinema dentro da disciplina foi muito interessante pra gente como parte dessa criação. E foi desafiador também falar sobre si, pensar em como falar, fosse uma narrativa ou outro tipo de produção. Mas foi muito interessante o processo. Como todo mundo falou é agradecer ao professor pelo momento, pelos desafios propostos para a gente. Eu acho que foi muito importante.

Aluna 9

De uma maneira geral a gente vai vivendo em um sistema que coloca a gente num caminho responsivo, de muitas vezes só dar respostas. E a disciplina possibilitou a gente revisitar a nós e achar as próprias respostas, no sentido de que a educação pode ser sim coletiva, colaborativa. Considerando esse contexto, na matemática a soma das partes é igual ao todo, mas a gente vê que a soma de todas essas partes extrapolou todo esse todo do que a gente compartilhou com cada colega como foi esse processo de constituição. De nós enquanto estudantes e também como sujeitos nesse processo de aprendizagem. Obrigada, professor.

Aluna 12

A disciplina para mim foi muito rica em vários aspetos. Houve um lado criativo que eu pensava que já estava há muito tempo adormecido e me fez refletir muito sobre algumas questões que eu vivia muito na minha adolescência quando eu fazia teatro e criava roteiros. Quando eu fui para a minha parte da autobiografia me fez relembrar esse resgate do que eu fazia e de questões que ao longo do tempo foram deixadas de lado. Para mim isso realmente foi muito rico, de poder ser revivido e relembrado. Muito obrigada, professor, pela possibilidade de trazer esse resgate e essa aprendência de um modo geral.

Aluna 13

Vou repetir o que eu falei quando eu apresentei o meu vídeo. De início, revisitar minha história, ter que compartilhar essa história não foi uma coisa confortável. Inclusive quando eu estava fazendo meu diário de bordo eu vi que meu primeiro comentário desse dia foi assim: não quero falar da minha história. Para quê eu tenho que falar da minha história? Inclusive isso virou tema da terapia. Inclusive terça-feira, o senhor, professor, foi tema da minha terapia de novo. Mas foi um processo de descoberta de mim, da vida tanto profissional como acadêmica. A gente vai crescendo, vai tendo aí um número maior de responsabilidade nas nossas costas e a gente vai se perdendo da gente mesmo, das nossas raízes. A gente vai se desempoderando daquilo que é importante. Mais especificamente, a autobiografia fez eu me reencontrar com a Marina que veio de Águas Compridas e entender que a Marina que veio de Águas Compridas é muito importante na Marina que mora a 50 horas de distância daqui da federal. E a disciplina como um todo (eu percebi inclusive no diário onde começava com as notas bem pequenininhas e no final já estava escrevendo uma página de comentário) me deu a oportunidade de mostrar que eu consigo…

Aluna 14

Foi desafiadora, reveladora. Para quem já participou, já fez terapia, é muito difícil falar da gente. Mas eu descobri um lado meu que fazia tempo que eu queria ter mais contato, que é o de escrever. Escrever sem ser nada obrigado, sem ser nada acadêmico, técnico. Foi quase um poema, uma carta para mim e eu amei fazer isso. Acho que eu quero fazer mais. Fiquei feliz de ser cineasta, estudei mais, descobri mais coisas e fiquei feliz com o resultado. Fiquei feliz de me ver ali, de me enxergar e saber que as pessoas conseguiram me enxergar também, e dizerem ‘aquilo’ ali é a cara de Jéssica, mesmo me conhecendo pouco. Mas você saber que as pessoas conseguiram te reconhecer em algo que você fez é muito lindo.

Dos testemunhos depreendem-se muitas questões relevantes que deixamos ao leitor para uma leitura atenta e aberta a interpretações. Aquilo que entendemos decorre também do ambiente criado pelos participantes das aulas, que nos trouxeram não apenas aprendizado, mas também uma experiência inesquecível. Para mim, um final no exercício da profissão de professor.

Cinema como Recurso Pedagógico

O cinema, além de ser uma manifestação artística, uma expressão cultural e um campo que envolve indústria, tecnologia e entretenimento, tem se consolidado como um potente recurso pedagógico. Sua riqueza narrativa, estética e simbólica permite que os espectadores entrem em contato com diferentes realidades, estimulem o pensamento crítico e ampliem sua visão de mundo.

No contexto educacional, o uso do cinema ultrapassa a simples exibição de filmes, tornando-se um mediador do conhecimento e um espaço de diálogo entre diferentes saberes, que favorece conexões interdisciplinares.

Ao contrário dos modelos tradicionais de ensino, baseados na transmissão unidirecional do conhecimento, o cinema oferece uma experiência sensorial e reflexiva. A combinação de imagens, sons e narrativas permite que os espectadores vivenciem e interpretem realidades diversas, promovendo aprendizagens significativas e experienciais.

Na escola, o cinema pode ser integrado de diversas formas, enriquecendo o processo de ensino e aprendizagem: a Educação Visual e o Letramento/Literacia Audiovisual levam os estudantes a ler imagens, a conhecer a linguagem cinematográfica e a analisar os diferentes elementos da narrativa (roteiro, montagem, fotografia, som, etc.); as disciplinas de História e Ciências Sociais permitem explorar representações históricas e socioculturais em filmes, incentivando a análise crítica de suas interpretações e impactos; a Literatura promove a adaptação das obras literárias, as práticas de escrita criativa e a exploração dos diálogos nas linguagens artísticas; as Ciências estimulam o uso do cinema como recurso para a aprendizagem científica, usando a câmara como instrumento laboratorial ou de observação e análise, ou mesmo a exibição de documentários e ficções científicas para explorar conceitos complexos e debater questões éticas e tecnológicas.

Mais do que um mero instrumento didático, o cinema na escola abre janelas para diferentes realidades, permitindo a identificação de personagens, de situações e a compreensão de diversos contextos sociais, culturais e históricos. O cinema contribui para a desconstrução de discursos hegemónicos e de estereótipos, permitindo que os alunos questionem representações culturais, relações de poder e construções ideológicas presentes nas obras audiovisuais, desenvolvendo, assim, uma leitura crítica dos acontecimentos; estimula a identificar temas, discursos e subtextos em diferentes gêneros e cinematografias; fomenta o pensamento crítico e a conscientização social, tornando-se, assim, um recurso essencial na formação de cidadãos mais reflexivos e participativos.

São múltiplas as possibilidades de inserção do cinema na escola, por meio de práticas pedagógicas que promovem o conhecimento das cinematografias de diferentes países. Essa iniciativa tem sido incentivada pelos Planos Nacionais de Cinema e pela inclusão do cinema nos Planos Nacionais de Educação, reforçando sua importância como recurso de aprendizagem e de formação cultural. No Brasil, a valorização do cinema na educação foi consolidada com a Lei Federal 13.006/14, originada do Projeto de Lei (PL 185/2008), do senador Cristóvão Buarque. Sancionada pela Presidência da República, em 26 de junho, e publicada no Diário Oficial da União, em 27 de junho do mesmo ano, a legislação alterou o Artigo 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Com essa mudança, foi acrescentado o seguinte parágrafo 8º: “A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, duas horas mensais.”

Por sua vez, a criação de oficinas de produção audiovisual incentiva os alunos a desenvolver roteiros, filmar e editar pequenas produções sobre temas relevantes para sua realidade. Além disso, incentiva a exploração de diferentes abordagens para a realização de tarefas escolares, promovendo um conjunto de competências integradas na prática audiovisual. Essas oficinas favorecem o desenvolvimento da criatividade na construção de histórias, a sensibilidade estética e emocional no uso do som, da imagem e da montagem, bem como as habilidades tecnológicas na captação e edição de conteúdos. Também fortalecem competências sociais de trabalho em equipe e de liderança, promovendo a reflexão sobre responsabilidades éticas relacionadas aos direitos de imagem, direitos autorais e liberdade de expressão, entre outras competências, na literacia mediática dos alunos.

Explorar o cinema, e dentro dele, as formas autobiográficas e narrativas pessoais como meio de expressão identitária permite que os alunos contem suas histórias e reflitam sobre suas trajetórias, de maneira profunda e autêntica. O contato com autores relevantes no campo do cinema e das autobiografias estimula a uma reflexão crítica, afastando essas práticas autobiográficas e autoetnográficas do âmbito do modismo, da superficialidade ou da preguiça mental e emocional.

Em estudos autobiográficos, Philippe Lejeune é uma figura central e suas teorias são fundamentais para qualquer análise séria de textos autobiográficos, sejam eles literários, históricos ou pessoais. Este autor tem contribuído significativamente para o entendimento da autobiografia, destacando a importância da veracidade e da autenticidade no relato autobiográfico. Seu trabalho é amplamente citado em estudos de Literatura, História, e Ciências Sociais, influenciando pesquisadores que analisam textos autobiográficos sob diferentes perspetivas, incluindo a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia. Embora cético ou crítico em relação à hipótese de autobiografias no cinema ou “Cinema-eu” e “Autobiografilme”, abre amplas vias de exploração, reflexão e de desenvolvimento de novas práticas referindo obras e práticas desenvolvidas pelos cineastas (Lejeune, 1987:7).

Por outro lado, Alain Bergala, figura influente no campo do cinema, é amplamente reconhecido por sua atuação como crítico de cinema, cineasta e por suas contribuições ao ensino do cinema e à alfabetização cinematográfica. Em suas reflexões, ele destaca algumas razões para o crescente interesse pelo autobiográfico no cinema a partir do final do século XX. Salienta que se trata de uma abordagem reflexiva e intimista, explorando temas como memória, identidade e a relação entre imagem e realidade, convidando-nos a ver o cinema não apenas como uma forma de entretenimento, mas como uma arte poderosa capaz de transformar nossa perceção do mundo e de nós mesmos. Interroga-se sobre as razões e os meios que impulsionam o desejo pelo autobiográfico no cinema, por parte de cineastas, empresas cinematográficas e realizadores de documentário e de ficção que se sentem atraídos por essa experiência autobiográfica.

Uma das primeiras razões apontadas por Bergala é a reação ou resistência ao excesso de normas e padrões impostos pelo cinema comercial, em um contexto de indústria cada vez mais globalizada, tanto na produção como na distribuição. O surgimento de novas tecnologias de captação de imagem, com alta qualidade, funcionalidades avançadas e custos mais acessíveis, aliado ao desenvolvimento de softwares de edição profissional de fácil acesso, contribuiu para uma maior independência económica e criativa na produção e difusão cinematográfica. Estas condições não nos impedem de procurar razões mais profundas e mais importantes:

provavelmente devem ser buscadas do lado do que se pode definir como um ‘mal-estar da civilização’ deste fim de século (diríamos também do tempo em que vivemos). Para resumir, uma necessidade aumentada e angustiada de localização de si mesmo em uma civilização com mudanças cada vez mais rápidas, onde as estruturas tradicionais de transmissão e de referência simbólicas (a família, o meio de trabalho, um modo de vida inscrito em um modelo de classe) já não estão em condições de desempenhar seu papel (Bergala, 1998: 6).

Bergala interroga-se sobre as causas do desejo de autobiografia no cinema e identifica algumas delas em diferentes dimensões da experiência subjetiva. Ele recorre ao conceito de “sujeito que se compromete” (Lacan); à “função reparadora” referida por Lejeune em relação à escrita; ao combate contra algo que ameaça o sujeito, em sua integridade ou identidade, especialmente em contextos de luto difícil. Nessas situações, o cinema em primeira pessoa possibilita um diálogo íntimo com o.a ausente, restaurando uma conexão com um mundo que, diante da perda, parece desmoronar. Além disso, ele relaciona esse desejo ao sentimento de deslocamento – seja existencial ou geográfico, como no caso de migrantes que se veem afastados de sua cultura e identidade. Estas são algumas situações em que mobilizar os instrumentos e os meios que permitem um cinema de tipo autobiográfico requer uma energia inicial frequentemente maior do que na escrita, e, assim, um compromisso no ato que geralmente supera desejos vagos ou volúveis. É difícil imaginar alguém empreendendo um projeto autobiográfico sem que haja, em seu íntimo, algo que reclame de uma forma ou de outra reparação (Bergala, 1998:8).

Bergala ainda observa que mobilizar os recursos necessários para um cinema autobiográfico exige uma energia inicial frequentemente maior do que na escrita, pois demanda um compromisso profundo com o ato criativo, superando meros impulsos passageiros. Como ele destaca: “É difícil imaginar alguém empreendendo um projeto autobiográfico sem que haja, em seu íntimo, algo que reclame de uma forma ou de outra reparação” (Bergala, 1998:8).

O desafio de Alain Bergala ao cinema autobiográfico ou à autobiografia no cinema nos deixa um espaço de reflexão e criatividade para o que podemos chamar de auto-geo-socio-biografia incorporada num espaço, num território vivido, num tempo histórico e num contexto social e político que se desvela pelo cinema e pela vida - VIDA COMO NARRATIVA.

Essa questão da inscrição do “eu” em um corpo ou, na ausência, em um olhar sobre o mundo é uma das mais novas e perturbadoras que se tenha colocado na autobiografia filmada com relação à tradição da escrita autobiográfica. Como um cineasta pode dizer “eu” com um instrumento no qual filmar em primeira pessoa exclui geralmente que se esteja no campo que se filma? Como falar de si ao filmar o mundo? A singularidade de seu olhar sobre o mundo pode bastar para inscrever, na ausência, nas suas imagens, o “eu” de um cineasta que nunca estaria visível nelas? Como falar de si no passado —o que a escrita permite com toda a facilidade do mundo—, com um equipamento condenado a registar um estado presente dos corpos e do mundo? (Bergala, 1998: 10)

A vida como narrativa é abordada por Jerome Bruner no final da década de 1980 - Life as Narrative. Lembremos acima das palavras de Cavalier “Antes eu acreditava que era necessário viver muito para filmar um pouco. Agora sei que filmar e viver é a mesma coisa” Para Bruner, o pensamento tem sido entendido apenas como um instrumento da razão, medido pelas leis da lógica ou da indução. Isto parece nos leva a uma visão do pensamento que levou alguns de seus entusiastas a acreditar que todo pensamento é reduzível à computabilidade por máquina… Nos últimos anos, venho observando outro tipo de pensamento, um que é bastante diferente em forma da razão: a forma de pensamento que entra na construção não de argumentos lógicos ou indutivos, mas de histórias ou narrativas. O que quero fazer agora é estender essas ideias sobre narrativa à análise das histórias que contamos sobre nossas vidas: nossas “autobiografias. (Bruner, 1987: 11).

Bruner induz a alguns importantes questionamentos: as autobiografias são registos do que aconteceu ou são “interpretação e reinterpretação contínua de nossa experiência?”, autobiografia deve ser vista como um conjunto de procedimentos para “criação de vida”? Se sim, não valerá a pena “examinar em detalhes minuciosos como a física ou a história fazem sua criação de mundos, talvez devêssemos explorar em igual detalhe o que fazemos quando nos construímos autobiograficamente?” (Bruner, 1987: 13).

Jerome Bruner propõe explorar uma ideia sobre a natureza do pensamento, especialmente o pensamento narrativo, distinto do pensamento lógico tradicional. Ele argumenta que, além de construirmos argumentos racionais, também construímos histórias ou narrativas, o que influencia a maneira como entendemos e relatamos nossas vidas, ou seja, nossas autobiografias. Essa abordagem, fundamentada no construtivismo, sustenta que não há uma “vida real” objetiva ou fixa, mas sim uma interpretação contínua e subjetiva da experiência vivida, construída a partir da interação entre cultura e indivíduo. Bruner explora a ideia de que nossas autobiografias são formas de “criação de mundos”, comparando-as à criação nas ciências e nas artes.

A narração de uma vida não é apenas um reflexo da realidade, mas uma construção ativa, sujeita à interpretação e reinvenção constante. Isso levanta problemas filosóficos e cognitivos, pois a autobiografia é reflexiva: o narrador e o protagonista são a mesma pessoa. Esse ato de auto-narração é influenciado por normas culturais, linguísticas (e das linguagens literárias, artísticas, cinematográfica) e pessoais, resultando em relatos que são sempre interpretações parciais e instáveis.

Autobiografias: Antropologia, Cinema e Educação

A segunda disciplina aqui apresentada, Autobiografias: Antropologia, Cinema e Educação, teve sua realização completa na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2024, prevendo-se a sua retomada em 2025, novamente com a participação da AO NORTE; da Escola Superior de Educação de Viana do Castelo (ESEVC), de Portugal; e da Universidade Rey D. Juan Carlos (URJC), da Espanha.

Os objetivos da disciplina foram o de: 1) Oferecer uma formação básica e interdisciplinar, favorecendo uma base teórica e prática nas áreas de Antropologia, Cinema e Educação, e integrando conhecimentos e perspetivas desses campos; 2) Disponibilizar produções inspiradoras, com a apresentação de obras e produções significativas de Antropologia Visual, Artes, Humanidades, Educação, Cinema e Ciências Sociais, que sirvam como referência para práticas criativas e reflexivas dentro e fora do curso; 3) Desenvolver o design de pesquisa e de produto, aperfeiçoando as práticas de campo e a produção de conteúdos visuais, sonoros e audiovisuais, para a divulgação dos resultados em eventos nacionais e internacionais, bem como em redes sociais. 4) Refletir sobre questões éticas, estéticas, epistemológicas e políticas das práticas desenvolvidas no trabalho de campo e das produções audiovisuais e artísticas realizadas.

A disciplina teve uma natureza interdisciplinar, combinando abordagens da Antropologia, do Cinema e da Educação e explorando as narrativas autobiográficas como instrumento de investigação e expressão cultural. Sua dimensão teórico-prática foi apresentada em 30 h online e sua dimensão exclusivamente prática (oficinas) foi vivenciada em 30 h presenciais.

Os professores, de diferentes países (Brasil, Portugal e Espanha), promoveram um ambiente de aprendizagem colaborativa e intercultural, em 06 módulos teórico-práticos. Os conteúdos criados pelos professores e disponibilizados aos alunos nos módulos de formação teórico-prática tiveram relação direta com o autobiográfico na Antropologia, nas Artes, nas Ciências Sociais, na Educação e nas Humanidades, em geral, apontando para a interdisciplinaridade. No módulo prático, os conteúdos se dirigiram para a pesquisa visual, sonora e audiovisual, tanto no método como na criação e produção audiovisual autobiográfica.

A metodologia da disciplina adotou estratégias expositivas, interativas e dialógicas, promovendo aprendizagens significativas e colaborativa, a troca de ideias e os insights sobre os temas tratados. Desta maneira, a metodologia adotada favoreceu a criação de uma comunidade de aprendizagem internacional e interconectada, incentivando e fortalecendo o trabalho em equipe e o desenvolvimento da inteligência coletiva.

A diversidade de perspetivas académicas e culturais dos docentes contribuiu para a ampliação dos repertórios intelectuais dos alunos, fortalecendo competências como sensibilidade cultural, adaptabilidade e colaboração internacional. Além disso, as atividades desenvolvidas incentivaram a reflexão crítica e a produção de ensaios escritos e audiovisuais, proporcionando experiências práticas de construção autobiográfica.

Os seis módulos que compuseram a disciplina (parte online) foram os seguintes:

Módulo 1. Histórico e Práticas da Antropologia Visual (José da Silva Ribeiro – AO NORTE e UFPE, Brasil; Renato Athias - LAV-FIFER/UFPE, Brasil; Lisabete Coradini - NAVIS/UFRN, Brasil)

Módulo 2. Autobiografias na Arte e Cultura Visual (Manoela Afonso Rodrigues - NuPAA/UFG, Brasil; Helder Dias - ESE - Viana do Castelo, Portugal)

Módulo 3. Ensaio Autobiográfico no Cinema (Alfonso Palazón Meseguer – URJC, Espanha; Jesús Ramé López - URJC, Espanha)

Módulo 4. O Autobiográfico na Realização Cinematográfica: do Roteiro à Direção (Denise Moraes Cavalcante – UNB, Brasil; Daniel Tavares -ESE/IPVC, Portugal)

Módulo 5. Autobiografias na Antropologia, nas Ciências Sociais e na Educação (Elsa Lechner - (CES/UC, Portugal)

Módulo 6. Narrativas Autobiográficas na Educação e na Formação Profissional (Thelma Panerai - EDUMATEC/UFPE, Brasil)

A coordenação da disciplina foi partilhada com a professora Thelma Panerai. Após a finalização dos módulos, teve início a parte prática e presencial, com a Oficina de Produção Audiovisual e Criação Artística (30 horas), resultando em produções autobiográficas que refletiram a diversidade de experiências e perspetivas dos participantes. Essas criações não apenas consolidaram os conhecimentos adquiridos ao longo do curso, mas também reafirmaram o potencial do cinema como ferramenta de expressão identitária, experimentação estética e reflexão crítica sobre a própria trajetória.

É possível afirmar que a disciplina seguiu um percurso interdisciplinar e multimodal4, refletindo a própria natureza da autobiografia como campo de estudo e desenvolvimento de prática, permitindo uma compreensão mais rica dos temas abordados, mas também gerando novas possibilidades de pesquisa e experimentação. Entre elas, destaca-se a análise de filmes autobiográficos como prática etnográfica, ampliando a noção de “texto” na Antropologia e desafiando métodos tradicionais de ensino ao integrar medias audiovisuais à pedagogia.

Faz-se necessário assinalar que a autobiografia contemporânea vai além da escrita tradicional, expandindo-se para múltiplas linguagens e formatos. Sua natureza multimodal se manifesta por meio de diversas mídias narrativas, tecnologias e suportes, incorporando registos sensoriais híbridos em que imagens, sons, gestos e materialidades enriquecem a produção de sentido. O cinema autobiográfico exemplifica essa expansão ao não apenas narrar, mas também sugerir, evocar e experimentar. Por meio de recursos como montagem, sonoplastia e jogos de luz e sombra, ele constrói uma narrativa de si que transcende o texto escrito, oferecendo novas camadas de significado e expressão.

Dessa forma, a disciplina Autobiografias: Antropologia, Cinema e Educação, tendo sido recentemente criada e composta por professores de diferentes países, contou com o entusiasmo dos estudantes, o que se refletiu na participação ativa e no comprometimento tanto dos alunos quanto dos docentes ao longo das atividades. As tarefas propostas foram bem recebidas, demonstrando um bom nível de assiduidade e engajamento. Além disso, os professores, pesquisadores com vasta experiência acadêmica, trouxeram contribuições valiosas, apresentando propostas inovadoras nos módulos anteriormente descritos.

Os resultados indicaram que a disciplina contribuiu significativamente para o enriquecimento das narrativas autobiográficas em diferentes áreas do conhecimento, ampliando o olhar dos participantes para as particularidades culturais e para o potencial da inteligência coletiva. No entanto, alguns desafios foram identificados, como barreiras linguísticas, diferenças de fuso horário e a diversidade nos níveis de preparação acadêmica, apontando aspetos a serem aprimorados nas futuras edições do curso.

Conclui-se que, nesta disciplina, a abordagem interdisciplinar entre Antropologia, Cinema e Educação demonstrou grande potencial para a análise e construção das autobiografias, criando um espaço de aprendizado crítico, criativo e intercultural. O estudo reforça a importância de aprofundar investigações sobre as narrativas autobiográficas como estratégia pedagógica e metodológica, promovendo a autoformação, a reflexão sobre identidades e a valorização da diversidade cultural no contexto educacional.

Conclusão: inquietações

Como podemos integrar as diferentes disciplinas – antropologia, cinema, comunicação e tecnologia, ir além da transmissão de conhecimentos, desenvolver competências interdisciplinares avançadas emocionais, de criatividade e resolução de problemas?

Que práticas inovadoras foram introduzidas nas aprendências? Houve algum impacto nos alunos?

Como a experiência partilhada levou os professores a aprofundar conhecimentos em áreas afins às suas temáticas habituais de ensino e investigação?

Será que as autobiografias terão papel relevante no desenvolvimento de uma educação reflexiva, crítica e criativa?

E as práticas interdisciplinares poderão de algum modo contribuir para o desenvolvimento integral do indivíduo e para formar cidadãos em tempos de desafios complexos?

Estas algumas das questões que nos colocamos e nos remetem para uma atitude de observação participantes, para a consideração das vozes dos alunos, para análise compartilhadas das produções audiovisuais.

Notas finais

1A autobiografia é um relato narrativo da vida de uma pessoa escrito por ela mesma, no qual o autor e o protagonista coincidem. Envolve uma construção subjetiva da memória e da identidade, articulando experiências pessoais com contextos históricos e culturais. No contexto educacional, autobiografias de professores e estudantes têm sido utilizadas para revelar trajetórias formativas, identificar desafios da docência e compreender os processos de construção identitária no ambiente escolar.

2Clifford Gertz considera a experiência do interlocutor, à luz da experiência que este tem do antropólogo, na dinâmica da “observação do observador”, ou seja, o método geertziano assinala assim a passagem da observação participante à observação da participação.

3Processo de Bolonha é uma iniciativa europeia lançada em 1999 com o objetivo de harmonizar os sistemas de ensino superior dos países participantes, promovendo a mobilidade de estudantes e docentes, a comparabilidade dos diplomas e a criação de um Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES). Suas principais reformas estruturais são a adoção de um sistema de três ciclos de ensino (licenciatura, mestrado e doutoramento), o uso de créditos ECTS (European Credit Transfer and Accumulation System), a transição do ensino baseado na transmissão de conhecimento para o desenvolvimento de competências e um maior enfoque na empregabilidade e na qualidade do ensino. Até ao presente 49 países aderiram ao Processo de Bolonha.

4A multimodalidade foi introduzida para chamar a atenção para a importância de se considerar não só a linguagem verbal como outros aspetos semióticos, a música, o silencio, a distância, os gestos etc.) na comunicação e na construção dos textos.

5Ver “Desafios das categorias na relação entre dois campos de conhecimento: a antropologia e a educação”, de Neusa M. M. Gusmão ou Amurabi Oliveira “Dez anos de Antropologia da Educação na América Latina.

6O PechaKucha é um formato de apresentação dinâmica e visual criado no Japão em 2003, baseado na regra 20x20: 20 slides exibidos por 20 segundos cada, totalizando 6 minutos e 40 segundos. O formato incentiva a concisão, foco na narrativa e uso de imagens impactantes. A relevância na educação deve-se ao fato de desenvolver a capacidade de comunicar ideias de forma objetiva, clara e estruturada; estimular o uso criativo de imagens; treinar o ritmo, fluidez e confiança na exposição oral. https://www.pechakucha.com/

7Primeira semana de Educação Mediática no Brasil https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/semana-de-educacao-midiatica

8É hábito haver na última aula uma conversa final sobre como decorreram as aulas a que se segue um lanche e a despedida. Foi neste âmbito que os estudantes falaram, o registo no celular parece ter motivado para os 18 testemunhos. Estes constituem-se como dados preciosos para uma reflexão aprofundada sobre como entender as autobiografias a partir da experiência vivida pelos estudantes.

Referências bibliográficas

Livros

Freire, Paulo e Faundez, António. 1985. Por uma Pedagogia da Pergunta, Rio e Janeiro: Paz e Terra,

Ingold, Tim. 2023. Antropologia e/como Educação, Editora Vozes.

Lechner, Elsa. 2023. Dimensões coletivas do trabalho biográfico como pesquisa-formação: oficinas biográficas em foco, Linhas Críticas, 29.

Lejeune, Philippe. 2008. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Artigos em revistas

Leroux, Louis. Patrick. 2004. Théâtre autobiographique: quelques notions. In Jeu - Revue de théâtre, (111), 75–85.

Artigos ou capítulos de livros

Bergala, Alain. 2008. Si “yo” me fuera contado Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez págs. 27-34. T & B Editores.

Ellsworth, Elisabeth.2001. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: Silva, Tomaz Tadeu da. (org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica.

Lejeune, Philippe. 2008. Cine y autobiografía, problemas de vocabulario, Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez, págs. 13-26 T & B Editores.

Lejeune, Philippe. 2008. Veintiún años después. Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez, págs. 11-12. T & B Editores.

Livro eletrónico e textos em linha

Bruner, Jerome. 1987. Life as Narrative. Social Research, 54(1), 11–32. http://www.jstor.org/stable/40970444.

Freire, Paulo, Carta de Paulo Freire aos professores, https://www.researchgate.net/publication/250983836_Carta_de_Paulo_Freire_aos_professores/inline/jsViewer/039ed9120cf2e77d0c926679?inViewer=1&pdfJsDownload=1&origin=publication_detail&previewAsPdf=false

Gusmão, Neusa, Desafios das categorias na relação entre dois campos de conhecimento: a antropologia e a educação. REIS | v. 5 | n. 2 | jul.-dez. 2021 | p. 9-36 | Rio Grande DOI: https//doi.org/10.14295/reis.v5i2.13936, Editora da FURG. Campus Carreiros.

Oliveira, Amurabi Dez anos de Antropologia da Educação na América Latina: uma análise das Reuniões de Antropologia do Mercosul (RAM) entre 2011 e 2019 REIS | v. 5 | n. 2 | jul.-dez. 2021 | p. 64-78 | Rio Grande DOI: https//doi.org/10.14295/reis. v5i2.13732, Editora da FURG. Campus Carreiros.

Ribeiro, José da Silva, Cinema na Escola e para além da Escola Avanca Cinema 2022 http://publication.avanca.org/index.php/avancacinema/article/view/461

Ribeiro, José da Silva; Anjos Afonso Rodrigues, Manoela. 2023. «Autobiography: expanding field of experimentation. (Autobiografia: campo de experimentação em expansão).”. CINEMAS., v.02, p.21 - 35, 2023. 02 21-35. https://www.ao-norte.com/cinemas/02/cinemas02.php.