Capítulo / Chapter IV | Cinema – Tecnologia / Technology

Gamification in Cinema: the Numbers that God Made in Drowning by Numbers and “Nosedive”

Gamificação no Cinema: os Números que Deus Fez em Drowning by Numbers e “Nosedive” 1

Francisco Silveira

Centro de Literatura Portuguesa – FLUC, Portugal

Abstract

In a progressively narrowed structure, I first seek to relate the Quantified Self movement to the notion of gamification, locating the widespread explosion of both terms around 2010. Adopting the definition of media theorist Mathias Fuchs of this second concept as an ideology that aims to hide labor exploitation, a need for a technological desublimation is established, i.e., to reveal the materiality and general logic of big data companies, their inherent institutional use. I then turn my attention to the artistic practice “cinema” – here taken in a metonymic sense, which includes television and streaming series. I briefly go through the history, context and recent cases in the field that reverberate an infiltration of gamification into its aesthetic structure. Finally, there is space to introduce some films whose narrative centralizes game mechanics (whether digital or not). In this connection, the movie Drowning by Numbers (Peter Greenaway; 1988) and the episode “Nosedive” (Joe Wright; 2016) of the web (television) series Black Mirror (Charlie Brooker; 2011-) will serve as a case study. I raise and question the plot itself, the thematization as a specific way in which a cinematographic work can “counter-gamify”, while reflecting on the obsessive use of numbers and games in these two works. Always in a conscious and admittedly dystopian tone, I end with an attempt to rethink/complete the definition of gamification proposed by Fuchs – based on the film and the episode.

Keywords: Gamification, Cinema, Quantified Self, Exploitation, Counter-gamification.

I

[...] gamification (or “gasification” as Apple charmingly auto-corrects to)
(Ismail 2017)

Em 2007, Gary Wolf e Kevin Kelly, editores da Wired Magazine, designavam um velho fenómeno, concretizavam-no sob a forma de um movimento específico: “Quantified self”. Juntava-se-lhe como slogan uma atualização de uma máxima inscrita no templo de Apolo em Delfos nos tempos da Grécia Antiga: o “conhece-te a ti mesmo” evoluía então para “self-knowledge through numbers” (Quantified Self apud Lupton 2016, 3). À boleia da digitalidade, a companhia Quantified Self Labs, criada pelos dois editores, propunha-se a servir uma comunidade internacional por via de conferências, exposições, fóruns internéticos ou guias online para ferramentas de rastreamento. Um rastreamento que passa por tornar as mais diversas dimensões corporais e as suas ações mensuráveis mediante computação vestível.

Se por um lado dispositivos como um relógio ou uma máquina de eletrocardiogramas permitiam, muito antes do advento do digital, a obtenção de dados quantitativos ligados ao corpo e/ou a objetivos, por outro a contemporaneidade hipertecnológica trouxe a sua multiplicação diária e portátil expandida a qualquer espetro da vivência humana. Ainda, se a nível individual poderíamos simplificar esta biometria ao cubo a algo inócuo ou até positivo, proporcionando, por exemplo, um melhor controlo doméstico de reveses de saúde, um olhar (re)coletivo desvela outro cenário. Sucedem-se os atos e as notícias de manipulações informativas, consumistas, eleitorais alcançáveis por uma algoritmização total dos nossos comportamentos em linha. Multinacionais, com os seus termos de uso progressivamente inegociáveis até porque aliados a uma monopolização/absorção crescente de serviços, têm sido colocadas na origem deste problema. Mas este é também um discurso que tende a limitar-se ao desvio “comportamental” e a descurar o “estrutural”. Haveria somente certas grandes empresas ou secções de big data nelas em conluio com “governos maus” e adjacente falta de regulação. Quiçá por tal crítica rasa, tem surgido, anexa e galopante, a ideia de uma autoexploração individual caracterizada por um excesso de horizontalidade democrática em redes sociais, que atestaria não só o tamanho perigo de organizações sociais nesses termos quanto o colapso das promessas utópicas da internet.

O presente trabalho pauta-se por um idêntico tom desencantado e tecno-distópico, contudo pretende interrogar a dominância crítico-teórica suprarreferida. Em encadeamento, começo por hipotisar a gamificação, o termo nuclear deste estudo, enquanto subtipologia do “eu quantificado” (ou vice-versa?). O mais aceite é que o termo – no original anglófono gamification – terá sido cunhado em 2002 por Nick Pelling, um desenvolvedor de jogos britânico que criou então um serviço de consultoria chamado Conundra com o intuito de criar interfaces jogáveis para dispositivos eletrónicos. Passando a estar em voga desde (circa) 2010, cristalizou-se a definição de “the use of game design elements in non-game contexts” (Deterding et al. 2011, 9). Ou seja, o processo de utilizar/incorporar mecânicas, dinâmicas e motivações psicológicas de jogos – tais quais interfaces/plataformas com regras, enredos, emblemas, equipas, níveis, pontos, rankings, status ou prémios – enquanto meio para alcançar um fim em atividades ou áreas societárias que não são tidas, pelo menos necessariamente, como um jogo. Do trabalho à saúde, educação, desporto, relações de amizade ou amorosas, indústria, vendas, marketing, política, terrorismo, forças armadas, limpezas e todo o tipo de tarefas rotineiras. Mais concretamente, essas características de jogo devem e conseguem, crê-se, exponenciar a motivação, o altruísmo, a lealdade, a colaboração, a criatividade, o consumo, o aperfeiçoamento, a realização, a autonomia, a diversão, a disciplina, a competição ou a produtividade de trabalhadores ou clientes. No fundo alcançar objetivos, quer pessoais, quer corporativos, estes dois em perfeita harmonia.

De qualquer modo, ainda que a definição cristalizada no artigo de Sebastian Deterding (et al) possa primar por um eventual rigor científico, assume-se também uma definição fria, rígida. Ao não ter tanto em conta um impacto sociopolítico/institucional e no corpo vivido, dá ares ela mesma de informada pela lógica oculta da gamificação (catapultada pelo funcionamento em rede da sociedade, pela algoritmização e perfilização descritas atrás). Trata-se, afinal, de um texto mais preocupado com questões e distinções conceptuais. Por seu turno, em “Gamification as 21st Century Ideology” (2014a) e “Predigital Precursors of Gamification” (2014b), Mathias Fuchs pensa o fenómeno dentro de uma perspectiva histórica e cultural. Toma o significado dominante do termo como insuficiente, complementando:

I would in analogy claim that game design elements applied to non-game contexts do not make a society gamified. It is the permeation of many societal sectors with methods, metaphors, and values that stem from the sphere of play that produce gamification. (2014b: 129).

Indo mais além, o investigador salienta que a gamificação se assemelha hoje aos “cura-tudo” dos charlatões medievais, a uma promesse du bonheur (riqueza, saúde, fim do sofrimento, redução dos efeitos do envelhecimento) reminiscente de um discurso de “religious salvation” (Fuchs 2014a: 144) inquestionável. Disseminada por empresas, pelo jornalismo, por hospitais ou pela academia, revestiu-se a gamification de uma confiança inabalável cujos eventuais efeitos negativos são abafados até à inexistência por um discurso hegemónico. “When we’re playing games, we’re not suffering” (Jane McGonigal apud Fuchs 2014a: 146) ou, em informações de serviços de saúde, “fun ways to cure cancer” (H. Scott apud Fuchs 2014a: 144) – pegando em exemplos dados pelo autor, deparamo-nos com uma completa hipernormalização de enunciados/slogans estupidificantes.

A partir daí, Fuchs foca as relações laborais, estabelece um paralelo entre o 1934 de Mary Poppins – “In ev’ry job that must be done / There is an element of fun / You find the fun and snap! / The job’s a game!” (Pamela Lyndon Travers apud Fuchs 2014a: 146) – e o Crash da Bolsa de Nova Iorque ocorrido entre 1929, entre a explosão da gamificação a partir de 2010 e a crise económica versão global de 2008. Este quadrado lógico entre sistema bancário e work = fun não sugere só que o conceito não se circunscreve a aplicações de smartphone, a videojogos rudimentares, ao mundo (pós-)digital. Sobremaneira, esse apontamento apresenta uma sombria hipótese reacionária adstrita a momentos de desemprego e precariedade laboral massivas: o da gamificação enquanto dispositif, ideologia, máscara.

Ora, diante do panorama traçado, como voltar do estado gasoso ao estado sólido, operar uma dessublimação mais do que tecnológica, tecnocrática? Um trilho de resistência tem sido colocado nas próprias práticas artísticas, nomeadamente em videojogos de “counter-gamification” (Daphne Dragona apud Fuchs 2014a: 152). Isto é,

there are artists that criticise ludic ideology by demonstrating through parody or subversion how games are instrumental in promoting user sovereignty – where there is none (Fuchs 2014a: 151).

Eis uma hipótese sobre a qual aqui se refletirá. Pois, e no caso do cinema? Quais as particularidades, qual a evolução do meio e, sobretudo, como ajudar a desvelar uma ironia? A profunda ironia de uma empresa de big software apresentar corretores automáticos que sublimam a gamificação em gaseificação, que denunciam a hipnose do seu próprio ar soporífero?

II

Colocando um interlúdio no tom distópico deste trabalho, antes de, sustentado na definição de Fuchs, repensar/completar o conceito de gamificação à luz do filme Drowning by Numbers (Peter Greenaway; 1988) e do episódio “Nosedive” (Joe Wright; 2016) da série web-televisiva Black Mirror (Charlie Brooker; 2011-), há então que olhar para a estrutura da prática artística “cinema”.

Em primeiro lugar, se temos de considerar na genealogia das imagens fílmicas a perspetiva renascentista, a pintura e a fotografia, não é menos verdade que a invenção do cinema deve muito a antigas animações de feira, a objetos que, mediante uma interação externa, táctil, causavam a ilusão de movimento (e.g., o zootropo). Já em pleno século XX, a rondar 1910, as chamadas galerias de tiro cinemáticas concretizam um exemplo arqueológico de cinema interativo. Nestas,

players shot live bullets at projected images on the screen [...] offering [...] an obvious forerunner of the first-person shooter games that have become a staple of the digital era (Cowan 2018, 19),

algo que ajuda a desmontar uma linearidade histórico-mediática, uma visão evolucionista rígida. Acertar nos alvos acionava um recetor metálico móvel atrás do ecrã que, conectado aos primeiros (e por captura sonora), os lograva pausar junto com o filme e registar a pontuação.

Nesse sentido, podemos ler a gamificação na história precursora do cinema. Ademais, apesar do cinematógrafo e da película, que parece clamar pela nossa contemplação, se terem sincronizado com a predominância de uma arte mais literário-psicologista em termos de mainstream, a década de 1970 acentuou uma grande mudança no que concerne ao papel do espectador: o surgimento da indústria de home video através da novidade das cassetes de vídeo. Os filmes passavam assim a ser produzidos também para a televisão. Em simultâneo, o formato dos LaserDiscs, dotados de acesso aleatório, veio permitir a seleção instantânea de capítulos ou cenas, de uma maneira que um playback de fita, linear do VHS jamais poderia. À mercê de tal desenvolvimento, surgem, aliás, os jogos LaserDisc ou full-motion video, assim designados pela técnica de narração que fazia uso de vídeo pré-gravado (live-action ou animação) nos seus gráficos. Mas mais do que a pervivência generalizada desse princípio nas cutscenes/cinematics pré-renderizadas, tais videojogos faziam destas o seu fundamento. Uns mais por via de narrativas ramificadas e listas de opções clicáveis, outros adotando uma narrativa praticamente pré-determinada e cuja ação do jogador pouco influi na progressão. Não admira, portanto, que que lhes seja sinonimizada a denominação de interactive film.

O DVD nos anos 90 e o blu-ray no primeiro decénio do terceiro milénio só vieram reforçar a existência de uma interface manipulável através de botões de play, pause, rewind ou fast forward. Nessa margem da “videojoguização” do cinema, verifica-se uma proliferação de filmes-puzzle como Lost Highway (David Lynch; 1997) ou Memento (Christopher Nolan; 2000), defronte dos quais o espectador se vê suscitado a preencher, a criar um nexo para uma narrativa não-linear, fragmentada, altamente complexa, e a discutir hipóteses em comunidades online. Sob a forma de jogos mentais, o seu fundamento traz à superfície que até uma receção contemplativa, psicologista constitui uma modalidade de interação, conquanto sem interface.

Outra ocorrência remete-nos precisamente para Peter Greenaway, realizador de Drowning by Numbers. Lev Manovich aponta-lhe um cinema de base de dados. Isto é, uma arte consonante com essa forma cultural dominante do software computacional: pesquisar, navegar, hiperligar, indexar, acrescentar e classificar itens de modo quase instantâneo por princípios diversos tais quais autor, país, cronologia ou a pura aleatoriedade. Especificamente:

Working to undermine a linear narrative, Greenaway uses different systems to order his films. He wrote about this approach: “If a numerical, alphabetic color-coding system is employed, it is done deliberately as a device, a construct, to counteract, dilute, augment or compliment the all-pervading obsessive cinema interest in plot, in narrative [...]”. His favorite system is numbers. [...] By using numbers, Greenaway “wraps” a minimal narrative around a database. (Manovich 2001, 238)

De facto, todos estes casos se tornaram uma realidade ainda mais premente pela convergência de meios no computador, numa rede informática potenciando ao cubo as hipóteses de manipulação de dada obra por parte do recetor. Daí que um filósofo de arte como Noël Carroll sugira que “one day the history of what we now call cinema and the history of video, TV, computer-generated imaging, and whatever comes next will all be thought of as a piece” (Carroll 1996, 65) e prefira a ideia de uma arte da “imagem em movimento” (65-66). Daí também que eu mesmo tenha optado pela liberdade metonímica de classificar um episódio de uma série televisiva enquanto caso de “gamificação no cinema”, até porque “Nosedive” (e a terceira temporada onde se inclui) foi primeiramente disponibilizado ao público na Netflix, uma plataforma de streaming – a própria série exprime essa direção convergente para o computador porquanto, ao invés, a transmissão das duas primeiras temporadas se deu de início num canal televisivo.

Pense-se, qual epítome, em Black Mirror: Bandersnatch (David Slade; 2018), precisamente um filme(!) interativo, e um especial catalogado fora da contagem de episódios e temporadas da série. Aí, a narrativa foca um jovem programador no desenvolvimento de um videojogo, adaptado de um livro choose your own adventure intradiegético intitulado Bandersnatch. Enquanto espectadores, somos instados a tomar decisões pelo protagonista Stefan mediante o telecomando (ecrã táctil ou rato, consoante o dispositivo de visualização...). Usualmente duais, dicotómicas, em jeito de legenda no ecrã, com a obra a seguir a escolha padrão caso não respondamos em 10 segundos. Posto isto, a idiossincrasia desta criação resulta da autotematização do livre-arbítrio ou falta dele. Esta toada faz-se máxima quando podemos revelar ao protagonista em 1984 – já a sentir-se um fantoche, paranoico – que está a ser a ser visto e controlado por uma plataforma chamada Netflix no século XXI.

A herança dos jogos LaserDisc ou full-motion video revê-se aí, e que critério resta neste supremo formato híbrido para escolher entre “filme” ou “jogo”? À medida que olhamos para o presente e para o futuro, mais somos obrigados a olhar para trás e a desconstruir eventuais especificidades mediais. Por cada recurso a motion capture, atores reais a criarem personagens movimentando-se mais fluidas e realistas, por cada cinematização dos videojogos identificada, poderíamos contrapor o óbvio ululante de que a representação não é inerentemente cinemática e já vinha do teatro ou existiu paralela em dramas radiofónicos. E se ressalvássemos a nuance do atuar para uma câmara e a reprodutibilidade para lá de um contexto original de hic et nunc, também seria válido problematizar que a motion capture pode bem limitar-se a sensores inerciais (como acelerómetros e giroscópios) sem uma câmara e mecanismos óticos. O que – remoinho hiperbólico – colidiria em filmes sem câmara, de película raspada e manipulada indo direta ao projetor, conforme em alguns trabalhos de Stan Brakhage (e.g., Mothlight; 1963), mas também sem atores, representação.

Ainda, considere-se a ascensão académica da ludologia até ao novo campo dos Game Studies – por recusa de uma aplicação direta e dominante da narratologia nos seus objetos, achando que estes têm propriedades mais determinantes – e a crescente proposta de os videojogos serem eles mesmos uma prática artística. Para além desta emancipação facilitar uma necessária atenção e validade, Gordon Calleja levanta um ponto pertinente: “one characteristic which distinguishes engagement with digital games from other media objects like literature and film is their ability to populate represented environments with other, human players” (Calleja 2007, 208). Chama-lhe “shared involvement” (208). Todavia, o cinema também se cruza com experiências de realidade virtual que chegam a literalizar esse ambiente representativo populado comunitariamente. Difícil de opor, antes num continuum cinzento com a VR tradicional mais dada a mundos gerados computacionalmente e à jogabilidade,

The term Cinematic Virtual Reality (CVR) can be defined as a type of experience where the viewer watches omnidirectional movies [...] can develop a feeling of being there within the scenes and can freely choose the viewing direction. From a content point of view, we use the prefix “cinematic” or “narrative” to define those VR experiences that are narrative-based, instead of purely for novelty, entertainment, exploration, etc. […] Its appearance may vary from simple 360-degree videos, where the only interaction for viewers is to choose where to look, to complex computer-generated experiences where the viewer can choose from multiple branches or even interact with objects and characters within the scene. (Tong, Lindeman e Regenbrecht 2021)

Se no prefixo narrative cabe tudo isto, inclusive a sua dicotomia com a ludologia culmina borrada neste jogo conceptual. Ilustra-se quer a possibilidade participatória de uma narrativa, quer a influência identitária, de uma narrativa pessoal ou social em algo a pender para o jogo. Com efeito, tal como a noção de cinema expandido, cunhada logo na década de 1960 para desafiar convenções e incluir a prática num seio maior das media arts mediante o uso de efeitos especiais, computadores, holografia e dar peso construtivo ao espectador levado até galerias ou ao ar livre, a gamificação no cinema não pode desconsiderar o seu entorno. Um entorno capitalista-tentacular numa longa teleologia das representações do real que extravasa hoje, em plena pós-digitalidade, para: a massificação de estratégias de fidelização (filmes + refeição); ofertas de bilhetes por popularidade numérica numa rede social; algum reducionismo da crítica cinematográfica a estrelas e afins e websites de consenso assentes em médias aritméticas ponderadas. Não será, porventura, descabido aventar que tais factos sociais, encadeados, metaforizam uma narrativa transmédia – vários canais distintos de um universo interconectado – no que toca à gamificação no cinema.

Adiante, analisar “Nosedive” em detrimento de Bandersnatch enquanto corpus de (contra-)gamificação será, enfim, escolher um caso menos óbvio para poder estudar algo mais próximo de uma regra, normalidade cinematográfica, priorizando uma abordagem mais hermenêutica e menos material/estrutural. Isto havendo de todo o modo uma breve retoma, comparação final com os espécimes experimentais aqui contados.

Entretanto, apertando o cerco a outros casos temático-narrativos em que o recurso a mecânicas de jogo competitivas sugere uma definição mais restrita de gamificação, saltam à vista eXistenZ (David Cronenberg; 1999), Inception (Christopher Nolan; 2010), Sucker Punch (Zack Snyder; 2011) ou Scott Pilgrim vs the World (Edgar Wright; 2010), porquanto a sua estrutura narrativa segue uma ideia de níveis e os protagonistas têm de alcançar certos objetivos dentro de cada um deles.

Se esses quatro filmes são passíveis de ser arrumados numa gamificação por níveis sci-fi/fantasista, a hiperviolência de Saw (James Wan; 2004), Funny Games (Michael Haneke; 1997), Dogtooth (Yorgos Lanthimos; 2009) e The Lobster (Yorgos Lanthimos; 2015), todos diegeticamente desligados da digitalidade, concretiza uma gamificação sádica realista-horrorífica. Nestes, as personagens são obrigadas a sofrer pelo prazer lúdico de outrem, a aceitar regras e ordens inegociáveis para sobreviver.

Por fim, as curtas-metragens Sight (Daniel Lazo e Eran May-Raz; 2012) e Hyper-Reality (Keiichi Matsuda; 2016) formam um par de gamificação tecno-aumentada, projetando um futuro próximo em que a própria visão das personagens é saturada por interfaces digitais de AR e MR. Tudo é jogável e quantificável, desde cortar um pepino real em pedaços completamente uniformes para ter a maior pontuação possível (em Sight), a subir o nível de catolicismo pelo cumprimento de tarefas solicitadas (em Hyper-Reality).

Não sendo estas referências filmográficas e as tipologias “gamificantes” que podem constituir exaustivas, podem servir de introdução ao estudo da gamificação em Drowning by Numbers e “Nosedive”, ao facto de me ir debruçar sobre as suas narrativas “tão diferentes mas tão iguais”. Será com base nelas que discutirei a sua duplicidade, a sua (contra-)gamificação.

Se na incerteza ontológica entre jogo e realidade com que eXistenZ encerra ainda paira a dúvida – “Hey, tell me the truth... are we still in the game?” –, em Drowning by Numbers e “Nosedive” não restam dúvidas... Posto tudo isto, conforme alguém da fita de Cronenberg diria a quem lê este trabalho: “You have to play the game to find out why you’re playing the game”.

III.1

Drowning by Numbers is about game-playing: […] counting to a hundred because counting is one of the basic ways games are organized. The film is filled with number games...
(Peter Greenaway apud Pally 2000, 109)

No exterior noturno, logo à frente da fachada de uma casa, uma menina com um pomposo vestido branco que parece retirado de um conto de fadas ou de uma boneca de porcelana inicia uma contagem enquanto salta à corda. De 1 a 100, sempre que enuncia um algarismo, num ritmo monocórdico, enuncia também o nome de estrelas no céu. O filme abre assim e, no primeiro plano dessa cena, a menina avista-se pequeníssima no fundo do enquadramento. Está, todavia, central, conferindo simetria às janelas da casa que a ladeiam pela esquerda e pela direita.

Uma luz algo intermitente que parece a de um farol e que por vezes é de um vermelho de advertência, projeta a sua sombra gigante na fachada branca. Na frente, na superfície do plano, observa-se uma grande ave morta atada a uma estaca. Chegada aos 100, a personagem para e quando questionada pela mulher que passa – Cissie Colpitts (#1) –, responde: “Once you’ve counted 100, all the other hundreds are the same”. A quantificação surge assim elevada a cosmogonia, a cosmovisão, a princípio orientador do mundo – minúsculos e falidos com asas quebradas, vivemos elevados na sombra de números. Essa cena, o modo como obriga o espectador a uma experiência repetitiva de duração, estabelece o tom da obra, espelha a sua estrutura futura.

Situada vagamente numa aldeia/vila da Inglaterra dos anos 80, domina na fotografia uma verde paisagem bucólica e costeira, uma iluminação trabalhada de forma a intensificar as cores e os contornos dos corpos, mesmo em momentos diurnos. Nascentes, poentes, noites e filtros alaranjados, esverdeados ou azulados embatendo no rosto das personagens pautam a ambiência do filme, conferem-lhe um tom de realismo mágico. Assemelhando-se a uma pintura a óleo barroca ou flamenga e em movimento, Drowning by Numbers foca tanto as referidas paisagens como naturezas-mortas ou linhas arquitetónicas, obceca em formas e padrões. A representação pastoral vai sendo contrastada pelo grotesco de corpos mortos, quer de animais quer de humanos. A banda sonora sublinha um registo amoral, de humor negro.

Ora, a estrutura narrativa encaminha-nos para uma abordagem da gamificação. Cissie Colpitts (#1), uma mulher talvez nos seus 50 e muitos anos, afoga o marido numa banheira por estar extenuada da infidelidade dele. Com a promessa de futuros favores sexuais, o amigo e local médico legista Madgett determina um ataque cardíaco como causa de morte. Mais tarde, a filha de Cissie, também Cissie Colpitts (#2), afoga o marido na praia em resposta ao seu desinteresse erótico. De novo, Madgett oculta o homicídio, agora pela promessa sexual da Cissie número 2. Por último, Cissie Colpitts (#3), sobrinha da segunda mulher, afoga numa piscina o homem com quem há poucos dias se casara, desta feita pela suspeita de este pertencer a um grupo contra-conspirativo que tenta provar a culpa das suas familiares. Mais uma vez, Madgett ajuda com a condição de um posterior pagamento lascivo.

Entre tudo isto, Smut, filho de Madgett com cerca de 10 anos, tem como grande hobby um macabro registo e inerente contagem de todas as mortes animais e humanas com que se depara, comemorando cada uma com a libertação de fogo-de-artifício. Nas suas taras taxonómicas, há ainda lugar para aprofundar e regrar o “The Great Death Game” numa competição: “a contest between red-paint days and yellow-paint days. So far yellow-paint days are winning by thirty-one corpses to twenty-nine”.

Ouvimo-lo numa narração em voz off e percebemos a hereditariedade do seu divertimento insólito ao ouvir da mesma maneira, ao longo do filme, a sua descrição dos jogos inventados pelo pai e jogados coletivamente ao ar livre. Um deles por exemplo, consiste numa variação dos antigos auspícios com a burocratização de “Sheeps and Tides”: “Sheep are especially sensitive to the exact moment of the turn of the tide. In this game, nine tethered sheep react, pull on the stakes, jolt the chairs and rattle the tea-cups. Bets are taken on the combined sensitivity of any three lines of sheep – read vertically, horizontally, or diagonally”.

Outro, o aparentemente inacabável e “carnavalesco” “Hangman’s Cricket”, em que não há limite para o número de participantes e que tem como auge satírico a apreensão das próprias regras: “The full flavour of the game of Hangman’s Cricket is best appreciated after the game has been played for several hours. By then every player has a fair understanding of the many rules and knows which character he wants to play permanently”. Mas o princípio da quantificação e da jogabilidade não acaba aí. Todo o filme de Greenaway está estruturado em torno de uma contagem até 100. Desde o 1 até essa centena, quase sempre linearmente, os números surgem na mise-en-scène através de cartas, t-shirts, postes, veículos, ou inclusive pela boca de alguma personagem a propósito de um assunto qualquer.

Para compreender o fim da fita, importa notar que a menina que saltava à corda no prólogo vai: surgindo ao longo da narrativa sempre à frente da mesma fachada, com o mesmo vestido, e saltando; sendo noturnamente visitada por Smut, que se apaixona por ela sem reciprocidade. Perto da conclusão, quando inicia uma nova contagem das mesmas estrelas até 100, fica-se por umas duas dezenas, acaba súbita e mortalmente atropelada por um automóvel.

Num entrelaçamento de eventos, esse mesmo carro, que desvelamos ser conduzido por membros do grupo contra-conspirativo, chega ao relvado costeiro onde se costumam praticar os jogos coletivos atrás referidos. Um lugar onde já estavam Madgett, as três Cissies, Smut e mais pessoas. Frustrado por não ter sido sexualmente recompensado, o médico legista ameaça às mulheres divulgar a verdade sobre o óbito dos seus maridos e decide, em última medida, deixar um jogo decidir.

Uma confrontação gamificada, um puxar de cordas. Dum lado, Madgett, as Cissies, Smut e anónimos, do outro o grupo que tenta provar as três mortes como homicídios e anónimos – narra Smut: “The sides need to be evenly matched with weight and strength to make it an interesting contest”. Num efeito dominó, a polícia chega ao local e um detetive seu conhecido chama Smut até perto; o lado de Madgett perde subsequentemente o equilíbrio de forças, e o jogo; Smut sabe que a menina da corda morreu.

Em conclusão, repetição e variação: as três Cissies levarão Madgett para um barco, para o enorme lago ao lado, para um barco que, sabotado, vai afundando. Sem saber nadar, Madgett, apático e existencialmente derrotado, acabará afogado... com a hipótese de contar o segredo.

Enquanto isso, Smut, apático e existencialmente derrotado, joga na costa o jogo solitário e perifrástico do seu próprio suicídio, enforcando-se numa árvore: “This is the best game of all because the winner is also the loser and the judge’s decision is always final”.

III.2

There’s an argument almost every story this season has gaming elements to it. In “Nosedive”, it’s a gamified world.
(Charlie Brooker apud Mallett, 2016)

Em letras garrafais e numa font despojada de ornamentos: “NOSEDIVE”, o título. Aparece num rosa-bebé sincrónico com a cor de um céu que parece nascente e com um suave canto de pássaros. Nesse plano geral de abertura, fitamos o asfalto, pequenos jardins verdejantes que antecedem as moradias claras à esquerda, à direita e à frente; e ainda cercas brancas, um par de bandeiras estadunidenses em pano de fundo. O cenário relembra os subúrbios idealizados pelo american way of life na década de 1950. Cedo, emerge no som um piano minimalista, contemplativo e na imagem aproxima-se uma jovem mulher – Lacie – fazendo jogging com auriculares sem fio e olhando para o telemóvel. Também o sol ascende e exponencia o clima idílico. Quando para para alongar, à frente da sua casa atravessada em cima por uma ponte-estrada, percebemos que, pelo smartphone, entrevê o perfil de pessoas numa rede social e classifica-as com 5 estrelas.

O episódio situa-se num futuro próximo em que a esmagadora maioria das pessoas vive com umas lentes intraoculares de realidade aumentada. Associadas a um mecanismo de reconhecimento facial, essas lentes permitem visualizar ao lado da face de outros indivíduos quatro aspetos: o nome, uma foto de perfil, uma classificação de 0 a 5 e o número total de votos. Durante um qualquer encontro casual, pessoa x pode classificar a pessoa y com quem interage. Aliás, na sociedade da transparência digital que “Nosedive” hipotisa, a regra aparenta ser essa: à mínima interação, os humanos diegéticos reagem automaticamente com uma nota.

Dum ponto de vista cénico, como o início prenunciava, as roupas, os objetos, as paredes e afins são brancos ou versões claras de cinza, azul, amarelo ou rosa... Ou seja, e também pela predominância de linhas retas e superfícies envidraçadas, trata-se de um universo pastel, de algodão doce, hiper-higienizado – sem violência, conflito ou infelicidade visíveis.

Sintetizando então o percurso narrativo, a protagonista (um 4.2) decide procurar uma casa melhor e onda possa viver sem o irmão Ryan (um 3.7). Encantada com um bairro e com a moradia que aí visita, percebe que a hipótese está fora do seu orçamento. Exceto se alcançar um índice de aprovação de 4.5 e conquistar, por conseguinte, o direito a um desconto de 20%. Assim, quando Naomi (um 4.8), uma amiga dos tempos de escola que vive num luxuoso sítio distante, lhe pede para ser dama de honor no seu casamento, irrompe a oportunidade perfeita e Lacie dedica-se a preparar um discurso que lhe valha uma subida substancial de aprovação.

A partir daí, a sua “sorte” muda: a) primeiro, o seu voo é cancelado e, por causa de disputas com o irmão e com estranhos, o seu 4.1 impede-a de um lugar imediato noutro por um 0.1; b) ao discutir e gritar, por isso, no aeroporto, a segurança baixa o seu rating para 3.1 durante 24 horas e informa-a de que “During this period, all down votes are subject to a times two multiplier”; c) reduzida a um 2.8 por condutores que lhe recusam boleia, só a consegue por meio de Susan, uma mulher velha (um 1.4) guiando um camião danificado, etc.

A certa altura, Naomi telefona a Lacie e “desconvida-a” para o casamento devido ao rating baixo (2.6). Determinada, continua a viagem até que, chegando, embriagada, resolve invadir a cerimónia (1.1) e iniciar o discurso. Neste, progressivamente incoerente e descontrolada, com a pontuação em queda livre, ataca os noivos.

Por fim, é capturada, sendo-lhe retirada a tecnologia ocular através de uma máquina, e colocada numa prisão. Aí, num momento falsamente esperançoso, entra numa troca de insultos em tom de brincadeira com um homem na cela em frente, descobrindo a “liberdade” de já não ter de se preocupar com uma pontuação...

III.3

Feita esta necessária apresentação/explicação estético-narrativa de Drowning by Numbers e “Nosedive”, passo a discorrer sobre a sua eventual (contra-)gamificação e, uma particularidade se levanta desde logo, com fundamento no capítulo II deste trabalho. Uma vez que tradicionalmente o cinema foi e é uma prática artística menos predisposta à interação externa, palpável, impelir tecnológica ou conceptualmente essa dimensão constitui um ato mais vanguardista. Assim, se em videojogos desconstruir a ideia exagerada de soberania do utilizador, retirar a jogabilidade se assume uma prática subversiva, é pouco provável que uma obra cinematográfica dê num futuro próximo o duplo salto de não considerar a interação uma mudança, uma evolução, mas antes uma fantasia.

Perante obras cinematográficas, a narrativa, o universo diegético parece-me ser o ponto-chave para pensar numa hipótese de contra-gamificação. Nos casos de Drowning by Numbers e “Nosedive”, o que está em causa é um retrato totalitário do quantified self, dos números, da competição. Ou seja, hiperbolizando o status quo da realidade extradiegética, per se já avançado e aterrador, procuram ficcionar o seu limite implosivo, um pico de entropia do sistema que se confunde com a própria destruição das personagens. Personagens que quanto mais vivem, mais se parecem com o mundo... que as mata.

Dessa forma, o facto de ambos se gamificarem da cabeça aos pés, de se coadunarem superficialmente com essa ideologia, não significa que a aceitem no âmago. E isso é tanto mais válido porquanto se enquadram num registo de humor negro – são sátiras! Claro está, enquanto produtos de uma indústria poderosa – “Nosedive” “pertence” à Netflix e Drowning by Numbers venceu um prémio no festival de Cannes – exclamam a duplicidade tensa de poderem ser considerados pró-gamificação.

De qualquer modo, repare-se que as duas obras encenam uma distopia utópica à maneira de Huxley – o filme por via de uma encantadora paleta cornucópica, o episódio através de uma tranquilidade rosa simpática. E, então, na experiência de os acompanharmos, dessublimam-se, revelam como a obstinação geométrica e simétrica dos seus enquadramentos está ao serviço de um calculismo tecnocrático. Em Drowning by Numbers, a numeração de 1 a 100 constitutiva da narrativa organiza uma resposta sarcástica do realizador/argumentista à hegemonia de um modelo estético que exige linearidade, velocidade, acessibilidade, suspense, uma sucessão empolgante de acontecimentos com causa-efeito que impeçam aborrecimento. Assim, o ritmo do filme responde provocativamente com lentidão, com repetição e com previsibilidade.

Noutra dimensão, cria-se uma analogia com a sacralização da gamificação, com a sua autopreservação a sobrepor-se a tudo e todos, a qualquer capacidade ética. Daí que o terceiro e o quarto homem sejam assassinados para esconder o próprio podre dos dois homicídios anteriores. Em igual lógica, a repetição desses crimes manifesta uma certa infalibilidade do sistema, qual doença hereditária que passa por três mulheres da mesma família e com o mesmo nome. Num sentido simbólico, o envelhecimento e a ideia de morte por velhice que o “1 até 100” também exprime não fazem então mais do que renovar-se geracionalmente.

E se o ciclo ainda persiste, na figura da menina que conta as estrelas e do menino que conta as mortes – em infâncias já doutrinadas –, por outro lado pouco importa que eles morram, pouco importa que se mate uma nova geração (tal como a precariedade laboral na “realidade real”). Os dois são somente peões de deixar tudo na mesma, vítimas necessárias, inevitáveis e hipernormalizadas para continuar a salvar a crise perpétua do sistema... Triplamente pouco importa: alguém algures está pronto para ocupar os seus dois lugares.

Voltando a Fuchs, saliente-se que a menina a saltar à corda concretiza a “repetitiveness of gaming” como “an after-image of involuntary servitude” (Theodor Adorno apud Fuchs 2014a: 149) e que as suas ações de jogadora se assemelham às do trabalhador proletário ao realizar aquilo que é desprovido de todo o significado: “drudgery of the player” (Walter Benjamin apud Fuchs 2014a: 149).

Os jogos que acompanhamos, as suas regras mais que absurdas, ilustram como uma camada civilizada, erudita, inteligente, intelectual está muitas vezes a disfarçar a mais pura selvajaria. O filme satiriza a não-consciência de não se ter em mente esse enunciado tão óbvio através do “puxar de cordas” para decidir a (não-)confissão de crimes gravíssimos; e do jogo final de Smut cujas normas não passam de uma maneira “burrocrática” e encapotada de dizer que se vai suicidar.

Dado que a narrativa do filme nos oferece um exemplo de gamificação não-digital, afigura-se interessante que Mathias Fuchs identifique o século XVIII, o barroco tardio (ou o rococó) no qual Drowning by Numbers se inspira imageticamente, enquanto período histórico em que já tinha ocorrido uma vaga gamificadora (Fuchs 2014b, 136). O investigador fala de uma gamificação avant la lettre nas maneiras sociais, na música, na prática religiosa, no teatro, na dança e no ensino do século XVIII (136). Metaforicamente, Madgett, Smut ou a menina que salta à corda parecem ir beber a essa escola jocosa tão remota no tempo...

Mas o que o Fuchs não nos diz, depois de resgatar Doris Lessing a descrever esse século XVIII –

This country becomes every day more like the eighteenth century, full of thieves and adventurers, rogues and a robust, unhypocritical savagery side-by-side with people lecturing others on morality (Doris Lessing apud Fuchs 2014b, 136)

–, é que circa 1760 começa a Revolução Industrial em Inglaterra e, em encadeamento, a fase madura, a dominação global de algo chamado capitalismo. Outra vez metaforicamente, é como se as três gerações de Cissies fossem somente um eco repetido em variação desde há 200 anos atrás de 19882 ... A gamificação que transcende gerações no filme é a gamificação que transcende gerações fora dele. Há uma linha de produção rotineira que liga 1760 a 1988...

... a 2010. E, por último, não será antes que a digitalidade (o meio mais habitual da gamificação atual) começa no pensamento que levou ao seu desenvolvimento? Quão atrás teríamos de ir para encontrar o motor propulsor desse sistema máximo de representação numérica do mundo? Atrás da Revolução Industrial? Bem depois do virtuosismo e dos floreados do rococó, “Nosedive” também é uma obra cinematográfica que critica autorreflexivamente efeitos da gamificação na estrutura do cinema: a aludida “hotelização” da crítica em estrelinhas. No episódio a epidemia existe num estado ainda mais terminal, evoluiu do discurso sobre obras de arte para pessoas. E, por detrás desse universo em que as personagens treinam sorrisos ao espelho e evitam a discussão de problemas para receberem muitas estrelas, determina-se uma passividade agressiva em que todos se estão a atacar de antemão.

Percebe-se a analogia com a nossa realidade real, o modo como quem está “acima” configura – lógica circular – a autoridade que se defende em tristes tiques autoritários por ser autoridade (sendo-se premiado com uma certa impuni(bili)dade que deriva de um medo silente e/ou de uma servilidade graxista por parte de quem está abaixo). Conforme Fuchs aponta acerca da natureza ideológica que reina na gamificação, já nada importa se x é verdade ou mentira, tampouco interessa a capacidade de raciocínio, argumentativa: «What matters here is an ensemble of references (“I am a game designer”), of status symbols (TED talks), of power (R&D director of the Institute for the Future)[...]» (Fuchs 2014a: 145).

A aproximação entre dinheiro na realidade e rating no episódio bafeja a materialidade ideológica de um sistema injusto e insanamente assimétrico, mas que há muito experienciamos naturalizado. Conformada e invisível, a “ideology works best when it distorts reality in such a way that we do not notice the distortion because everything seems to be alright” (Fuchs 2014a: 147). Daí que, pavorosamente, a infraestrutura, a instituição que desenvolve as lentes de contacto especiais nunca seja sequer aludida no enredo. Assim, num universo ficcional de discriminações instituídas, interiorizadas e subliminares, acompanhamos pessoas que, pela justificação de um índice de aprovação baixo, são despedidas, impedidas de ter acesso igualitário a um voo substituto, a um carro alugado.

Deste lado do ecrã, tais dados rememoram o programa de crédito social de habitantes em parcial implementação (desde 2014) pelo governo chinês – até ver, nunca entrou num modo de funcionamento totalizante. A expectativa era a de que, sustentado em tecnologia de coleta e análise de big data e avaliando a integridade societária dos indivíduos, uma baixa pontuação pudesse determinar o banimento de transportes públicos; a exclusão dos filhos de uma escola considerada melhor; impedimento de aceder a certas ofertas de emprego; ou uma velocidade de internet mais lenta... Contudo também no ocidente constatamos indícios de semelhante futuro por aplicações tais quais a Uber, que permite aos condutores e aos passageiros classificarem-se de 1 a 5 estrelas após cada viagem.

Falta deslindar o porquê de ter caracterizado o fim do episódio como um “momento falsamente esperançoso”. Ora, note-se que vamos apreendendo um afunilamento existencial impraticável à medida que a pontuação de Lacie cai. Isto por dois motivos interligados: não só há, per se, restrições sociais crescentes pelo facto de o rating descer, como também, de modo progressivo, esse programa de classificação de seres humanos se afirma via única para aceder a serviços imprescindíveis (à semelhança da gradativa dependência da internet na realidade real).

Nesse sentido, quando a personagem é presa – independentemente de talvez apenas estar detida de modo provisório e pela justificação aceitável de ter ameaçado pessoas com uma faca – a des-gamificação não se adivinha libertadora. Por mais que as lentes oculares representassem o negrume de um eventual dispositivo de sousveillance reivindicativa ter sido apropriado contra a população, perdê-las parece ficar uns pontos acima no ranking de arruinamento individual. É intradiegeticamente plausível que a “liberdade” de já não ter de se preocupar com uma pontuação corresponda à liberdade de, abaixo do zero, ter morrido no mundo social... porque, tal como em Drowning by Numbers, a única saída do jogo é a não-saída da própria morte.

Erika M. Thomas e Romin Rajan argumentam uma cumplicidade do episódio com a sua diegese opressiva. O primeiro e o segundo motivo residem na deslocalização espácio-temporal encenada (no regime holográfico de um algures futurista) e na sobrevalorização das redes sociais enquanto fonte de tirania. O terceiro motivo decorre da conclusão empática com e catártica de Lacie, sustentadas nos comportamentos exemplares do irmão Ryan e de Susan:

The most insidious consequence of these representations of escaping simulation is that they only serve to further the simulation. For Baudrillard, there is no escaping the hyperreal. He explains, “the media are the vehicle for the simulation which belongs to the system and for the simulation which destroys the system, according to a circular logic [...]” [...] Since the viewer is still watching a television show, revolutionary potential remains encapsulated within the vehicle of simulation itself, mass media. “Nosedive,” as a form of mass media, cannot act as its own authentic negation. (Thomas e Rajan 2018, 231)

Não discordando por inteiro, e para além do já referido sobre a prisão de Lacie (talvez mais literal do que uma ironia arquitetónica de emancipação), gostaria de concluir abrindo algumas perspetivas nos intervalos desta argumentação. Afinal, não deriva ela da experienciação do episódio que anestesiaria os espectadores? Porque se colocariam os autores num plano transcendente? Nesta linha de pensamento, a referência a Baudrillard aparece como um argumento de autoridade que duplica a fatalidade proclamada.

Sugiro que a deslocalização espácio-temporal pode produzir um efeito de estranhamento que não só nos impele a refletir na normalidade que damos por adquirida quanto institui um retrato mais fiel de como a opressão tende a ser encenada – postergando-se declarativamente para um “fora” onde ela existe “a sério” e para um “outro” que é, ele sim, o verdadeiro responsável. Outrossim, essa desfamiliarização fica a meio caminho, mantendo, por exemplo, o universo anglófono da sua produção. Para ser mais preciso, antes de sonhar com a solução luxuosa de Pelican Cove, Lacie está na antecâmara eufemista de ser despejada (junto com o irmão), já que a casa é propriedade privada de um senhorio que a avisou da visita imediata de compradores, e o seu contrato termina dentro de um mês. O momento de negociação de uma nova casa ou o relato de Susan, cujo marido morreu de cancro, explicitam timidamente o preço elevado de um sítio estável para viver, em que certo rating serve de desconto, e um tratamento experimental muito caro, exclusivo (negado) para o qual o rating se firmava fator de desempate.

Por outras palavras, conforme aludido acima, a abstração determinante dinheiro coexiste na narrativa, espelhada numa metonímia. Dessarte se nega também qualquer diagnóstico absurdo de um panóptico 2.0, horizontal, no qual as pessoas, com os seus distúrbios obsessivo-comparativos, se vigiam recíprocas e se autoexploram por desejo, como se sem decisores e critérios hierárquicos (dos quais fazem parte o design autotélico do sistema de classificações). O relativo escape da simulação, a pretensa escolha pessoal de Ryan e de Susan não passa de um ethos de leveza despreocupada, pois ambos se sinalizam bem prejudicados.

Todavia, e doutro prisma, quiçá se possa rearticular a razão de Thomas, Rajan e Baudrillard. Significa isto que talvez não haja forma de “Nosedive” e Drowning by Numbers, por extensão, não serem assim; de edificarem uma espécie de cinema diferente, subversivo, antissistema com a qual uma contra-gamificação seria efetiva, real, insurrecionária. Qual lógica aceleracionista, porventura as obras de arte podem isto: mostrar a sua insuficiência, pior, a sua co-optação. Eis a derradeira contra-gamificação que, paradoxo, fomentam. A de deixar de acreditar, deixar de esperar a influência e a iluminação do artista bom e belo (este meu texto critico-teórico incluso) a vir dizer o que se deve e pode fazer em nome da mudança social.

Seguindo este ponto de vista, a contra-gamificação partiria mais da nossa cabeça, da nossa leitura, da nossa revolta do que de propriedades imanentes a uma obra. Isto pelo menos no que toca a uma arte concebida nos termos de uma obra – “círculo mágico”(!) circunscrito a uma elite que merece expressar-se e lucrar –, em vez de algo mais afim de um situacionismo a quotidianizar essa noção de arte até se tornar irreconhecível, fundida num qualquer protesto ou ato banal. Mas ao contrário do que assevera Baudrillard, reconhecer o fatalismo deste regime de propriedades, este reduto especial do especialista, pode muito bem ser o gatilho para agir sobre ele e desfatalizá-lo.

Que na minha reescrita de Fuchs a contra-gamificação se torne quase um conceito metanarrativo da opressão, reafirma a necessidade de um para responder ao sublimar, à mera capa nova da exploração laboral por intermédio da gamificação. Porém e em complemento, o filme de temática pré-digital analisado neste trabalho mostra-nos um dos contratempos destes conceitos operativos totalizantes, em que, entretanto, não há como não cair na redundância e no vago de equivaler a gamificação a interatividade e à digitalidade e, em devolução, a digitalidade ao capitalismo e à mesma gamificação que significa uma opressão para lá do capitalismo:

In [...] Drowning by Numbers, Greenaway [...] reveals [...] that structuralism, or any attempt to subject the ineffable mystery of existence to a single, reductive explanatory system, renders a work, regardless of subject matter, inherently comic (Lawrence 1997, 72).

Mas há uma ressalva, uma nuance de diferença quando comparado com “Nosedive” neste seu formalismo decadente. À semelhança da pleonástica diversidade dos números, algarismos até 100, ao invés de um megassistema pervasivo de ratings à laia de redes sociais, Drowning by Numbers exibe uma vasta panóplia de jogos. Alguns paródias desfamiliarizantes de jogos reais, facilitando a perceção da sua arbitrariedade – a narração apática das regras por Smut, amiúde em voz off, acentua-o. Acontece que o seu cariz de soma nula, a sua competitividade, a íntima relação com destruição e morte de tantos deles patenteia a homogeneidade da heterogeneidade. Há nisto um paralelo em potência com o mercado laboral, toda a sua propaganda de liberdade e uma igualdade cada vez mais maquilhada com a ideia realizada de equidade (que mantém estratos). Antes ou a par de sermos aviários de dados, assalariados de motores de buscas, alguém era e é o joguete de um empregador ou administrador. Uma centena de (falsas) escolhas liberais não são menos um totalitarismo do que a aparente distopia monolítica de “Nosedive”.

Distópicos até ao osso como o timbre tecnofóbico deste trabalho, Drowning by Numbers e “Nosedive” narram a incapacidade dos (video)jogos em reagirem à sua domesticação massiva, em reclamar qualquer potencial transgressor face à gamificação. Em síntese, esta última supera qualquer ideia lata de competição num sistema capitalista, do lucro maximizado, afigurando-se mais rigoroso afunilar o alvo alargando-o, dizer que a gamification é uma espécie de segunda, terceira ou centésima camada que exacerba sistemas. À sua luz de apagamento ideológico, mais e mais tipos e graus de censura avaliação ou hierarquia seriação enquanto mecanismos de organização ganham contornos crescente e socialmente inevitáveis e necessários.

Podemos, enfim, propor que estas duas criações cinematográficas formam um par de (contra-)gamificação teo-numerológica. Resgatando de Roger Caillois a ideia de dois polos de jogo, a paidia da espontaneidade, do autotelismo e da autodeterminação e o ludus das regras, dos objetivos e do controlo (cf. Caillois 2001, 13), são obras em que nada resta do primeiro. Sem espaço para brincar, um “jogo (mais que) pervasivo” ascendeu a sina quotidiana destas personagens fílmicas, está em todo o lado a toda a hora. E “mais do que” quebrar as fronteiras do “círculo mágico” de Huizinga – a imagem metafórica de uma estrutura contratual limitada no espaço e no tempo para os jogadores em jogo (cf. Huizinga 1980, 10) –, ambas tornam as fronteiras a redundância do planeta Terra.

Para completar a definição de Fuchs, poderíamos, então, acrescentar que a gamificação se trata de uma fuga de um sistema preparada pelo próprio sistema, uma fuga distópica capaz de levar os indivíduos ainda mais para dentro dele. Contra mil panaceias de um internacionalismo cosmopolita pela tecnologia, leaderboards, highscores e quantified selves fadaram-nos a um ciberprovincianismo, porque, pensando digitalmente, esquecemo-nos de não nos tornarmos nós mesmos representações numéricas... como, na realidade, já antes sucedera analogicamente. Uma contagem crescente versus uma contagem decrescente, Drowning by Numbers e “Nosedive” ensaiam uma paródia contra o peso das abstrações que ganham vida própria, porque, sem lhe saber a materialidade, afogámo-nos em queda livre na superfície de um ecrã.

Notas Finais

1Comunicação/artigo financiados pelo Centro de Literatura Portuguesa – FLUC.

2Mera referência simbólica ao ano de estreia do filme.

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Filmografia

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