Abstract
The focus of this article is to discuss the issues that involve the problematization of the construction of identity and the hegemonic discourses, especially the racial one, from the reflection of the reach of the cinema and its pedagogical potential in Education. The cinematographic narratives are punctuated with concepts that approach, among other subjects, equality, the emancipation of the man and the freedom, allowing a reflection that takes into account the quotidian of the classroom in the High School and extra room, with the objective to analyze the criticality relations that were built in the learning relationship. This, because we consider cinema a powerful tool for human education, education and reflection, based on experiences inside and outside the school environment, by the students. We emphasize that among the objectives of this article is the use of cinema as a vehicle and teaching-learning instrument, which makes it possible to highlight the cultural, historical, literary and political particularities, providing an unrestricted view of this art as an educational medium. We will emphasize that the correlation between knowledge and cinema goes beyond the scope of formal education, since we consider the multiplicities of knowledge presented by it, making it possible to overextend its common use as an audiovisual fomentation. We chose the film narratives used in short animated films, highlighting, among others, “Vida Maria” by Márcio Ramos and “Happiness” by Steve Cutts.
Keywords: Cinema, Education, Identity, Daily life, Speech
Introdução
Este artigo é resultado de um primeiro olhar do projeto de Doutorado sobre o objeto definido de pesquisa, que parte das pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares, e que requer “mergulhar” no nosso próprio cotidiano. O foco deste trabalho é discutir as questões que envolvem a problematização da construção da identidade e os discursos hegemônicos, principalmente o racial, a partir da reflexão do alcance do cinema e do seu potencial pedagógico na Educação. As narrativas cinematográficas estão pontuadas de conceitos que abordam, entre outros temas, a igualdade, a emancipação do homem e a liberdade, permitindo uma reflexão que leva em conta o cotidiano da sala de aula no Ensino Médio e extra sala, com o objetivo de analisar as relações de criticidade que foram construídas na relação de aprendizagem. Isso, por considerarmos o cinema uma poderosa ferramenta para instrução, educação e reflexão humanas, com base nas experiências vividas pelos discentes dentro e fora do ambiente escolar.
Nele, faremos a ponderação sobre a peculiaridade educativa do cinema, assim como a sua representação do “real”, a partir de especificidades culturais da contemporaneidade, além de fazer uma abordagem histórica, refletindo sobre a formação da identidade da sociedade brasileira. Não podemos deixar de apontar que a fantasia proposta pelo cinema significaria uma simples reflexão daquilo que chamamos de realidade. Neste contexto, como obra de arte, ele nos dá “o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade” (Benjamin, 1994: 187).
Apontaremos ainda a importância de pensar o cinema como prática inserida no ambiente educacional da sala de aula, utilizado como recurso didático. Isso, uma vez que ele pode também ser reconhecido como uma das metodologias que, a partir da sua linguagem, é capaz de levar à reflexão que irá ajudar a desenvolver a criticidade. Dessa forma, incentiva na produção de debates na sala de aula, que possibilitam discussões que perpassaram pelo gênero, cor, classe social, indústria do consumo e outras peculiaridades presentes nocotidiano da sociedade.
Hoje, o conhecimento expressa-se muito mais por meio de imagens como leitura de mundo. Por isso a importância em examinar a obra cinematográfica como objeto de estudo, como tem sido a preocupação de um grande número de pesquisadores da educação. Já que ele produto cultural, de preceitos e concepções da sociedade em que vivemos (DUARTE, 2002, p. 106). Algumas dessas pesquisas visam analisar de que forma as imagens do cinema contribuem na tessitura da rede de percepção de tudo que compõem os mundos de cada um que com ele interage (DUARTE, et.al, 2004, p.67-79).
Vimos que, a partir da exibição dos curtas-metragens exibidos na sala de aula, temas relacionados ao sexismo, ao feminicídio e à violência que ocorre contra a mulher de pele negra, mas que não passa pelo olhar da sociedade foram trazidos ao debate pelos alunos, sem nenhuma ingerência minha enquanto professor, já que assumi o papel de simples expectador. Vislumbraram o olhar que temos sobre nós mesmos e que temos do outro, não o enxergando como um igual, mas fazendo questão de destacar as diferenças para excluir o outro, assim como a impossibilidade de ver como cidadão pleno e possuidor de direitos.
Raça, identidade e linguagem
A palavra “raça” possui, ainda hoje, sentido semântico que agrega um grande conjunto de ideias, logicamente, solidárias de identidade, sejam elas individuais, coletivas ou nacionais. Embora o debate sobre seu significado, estudo teórico do ser e, menos ainda, biologicamente não é mais muito significativo.
No ano de 1735, com a publicação do Systema Naturae, de Lineu, o homem era distribuído em quatro categorias e trazia a ideia de raça, por classificação, do ser humano pela cor da sua pele e de sua origem. O europeu era o branco; o americano era o vermelho; asiático escuro e o africano era o negro.
A obra, com o decorrer das publicações subsequentes, além de incluir descrições, passou a definir o homem não mais como Homo, mas como Homo sapiens, no topo de todos os mamíferos. Duas categorias de seres humanos foram incluídas: o homem monstruoso, que variava “conforme o clima e o ar”, e o homem selvagem, quadrúpede mudo e peludo.
A classificação permaneceu, mas agora acrescida de atributos físicos e psicológicos: os europeus possuíam cabelos sedosos, amarelos ou castanhos, olhos azuis, eram brancos, musculosos, inteligentes, trabalhadores, vestiam-se de acordo com a lei. Os americanos tinham a cor do cobre, encolerizados, eram geridos pelos costumes, cabelos lisos e negros, desenhavam-se com finas linhas vermelhas. Os asiáticos eram descritos como escuros, duros e deprimidos, rígidos e conduzidos pela opinião, presunçosos, e além de usarem roupas largas, eram gananciosos. Os africanos eram negros, com cabelos encarapinhados e nariz achatado, lerdos, apáticos, governados pelos desejos. As classificações, acrescidas das descrições psicológicas e físicas estão carregadas dos preconceitos produzidos durante os três séculos antecedentes.
A raça, na atualidade, continua sendo uma ideia construtiva de vivência social e política das comunidades humanas, pois vemos que há grupos sociais que se caracterizam, no sentido identitário, ao redor da raça tida como natural e fundamental. Ela é uma classe entre as diversas que está incitada, tanto nos procedimentos de constituição de identidades, como nos de distinção, uma vez que sua aplicação e suas atualizações cunham procedimentos e conexões de integração e de restrição. Não se pode negar que a raça pode ser um modo de acessibilidade a meios que têm significados sociais, e como discurso, ela agrega e sensibiliza, por isso, é utilizada para reunir indivíduos e grupos que irão estabelecer uma base de ação para entrar na disputa pelo poder político e dos recursos econômicos.
Não pretendo discutir ou tomar partido, seja da tese de que o racismo está estruturado em um conceito biológico da raça, da escravidão dos negros africanos, ou de que ele tenha se originado, em um passado muito distante, do conflito entre negros e brancos. Não obstante, os sociólogos brasileiros vêm, desde a década de 1950, criticando a “democracia racial” que se prega no Brasil. Em oposição a esse discurso eles chamam a atenção para a existência da forte discriminação que ocorre no país.
Embora certos estudiosos se recusem a aceitar que o “problema do preconceito racial” seja o problema central, nos estudos de relações raciais, e ainda que se admita que o preconceito, seja qual for a importância que se lhe dê, como problema de estudo, deva ser focalizado no contexto da “situação racial” em que se manifesta, o fato é que a preocupação com o mesmo está pelo menos implícita em toda a pesquisa que se faz nesse setor. Mesmo quando se estuda uma “situação racial” em que se supõe inexistente (ou quase inexistente) o preconceito, está pelo menos implícito o interesse em compará-la com situações em que sua ocorrência é insofismável. (NOGUEIRA, 2006, p. 290)
Uma nova cultura foi desenvolvida, a partir de 1492, ou seja, do “mau encontro” (CLASTES, 2004, p. 107), entre a Europa e as Américas, em consequência do deslocamento da Europa para as Américas, resultado do contato com as várias hierarquias étnicas culturais presentes nos territórios e com a vinda, forçada, do negro para esse continente, que através de suas tradições e vernáculos influenciou, descentralizou e modificou os modelos europeus de alta cultura, enquanto modelo universal de cultura, gerando o que hoje denominamos de cultura popular. Stuart Hall, em sua obra, Da diáspora, nos diz que “a contemporaneidade é fascinada pelas diferenças sexuais, raciais, culturais e, sobretudo étnicas”. Não há nada que o pós-modernismo global mais goste que um certo tipo de diferença, um toque de etnicidade, um certo “gosto do exótico” – que podemos também entender como sexual.
No decênio de 1960, foi despertada pelo movimento social negro a discussão do racismo no Brasil, que gerou a adoção de algumas medidas afirmativas, nos anos 2000, com bases sociorraciais, como a inclusão do ensino da história de África, de língua portuguesa, dos afrodescendentes, o que gerou desconforto por um lado, mas orgulho de outro.
Embora possamos notar que, no cotidiano, vem enfraquecendo cada vez mais e perdendo importância a convicção de haver qualquer nivelamento com base biológica, a enunciação da “raça” perdura como mito, ao serem acentuadas as descrições corporais, assim como quando se referem, tanto negativa como positivamente, a certos atributos de algum grupo. A raça, no entanto, ao ser ainda imaginada como um dos elementos que compõem um grupo étnico, oculta determinadas preconcepções raciais que estão profundamente arraigadas nos pensamentos; e o estado de coisificação provocado por sua discriminação tanto racial como cultural perdura, ainda que a enunciação racial não seja sustentada pelas concepções biológicas. O conceito de raça é utilizado para assegurar a atividade das normas sociais, pois, se observamos, ele não pode ser resenhado, pois está condicionado à vigência de afinidades sociais dos grupos, como nos aponta Almeida:
Assim sendo raça um conceito cujo significado só pode ser recolhido em perspectiva relacional. Ou seja, ração não é uma fantasmagoria, um delírio ou uma criação da cabeça de pessoas mal-intencionadas. É uma relação social, o significa dizer que a raça se manifesta em atos concretos ocorridos no interior de uma estrutural social marcada por conflitos antagônicos” (ALMEIDA, 2018, p.40)
A produção da identidade alterna-se em dois movimentos, haja vista que de um lado estarão os processos de consolidação e fixação da identidade, em oposição aos que desejam desordenar; não podemos entender como uma forma negativa e revolucionar a identidade. O mesmo processo ocorre na linguagem, com as estruturas discursivas da língua e a linguística, nas quais temos a base de elaboração da identidade. Em ambas há outra interseção, que está relacionada à fixação, intenção da linguagem e da identidade. No entanto, como ocorre com a linguagem que não consegue se fixar, pois está constantemente em mudança, provocada pelo usuário, o mesmo ocorre com a identidade, pois essa tendência a fixação é uma incoerência, tanto para os que desejam estabilizá-la, como para os que querem desestabilizá-la.
A teoria cultural e social pós-estruturalista tem percorrido os diversos territórios da identidade para tentar descrever tanto os processos que tentam fixá-la quanto aqueles que impedem sua fixação. Tem sido analisada, assim, as identidades nacionais, as identidades de gênero, as identidades sexuais, as identidades raciais e étnicas. Embora estejam em funcionamento, nessas diversas dimensões da identidade cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obedecem a dinâmicas diferentes. Assim, por exemplo, enquanto o recurso à biologia é evidente na dinâmica da identidade de gênero (quando se justifica a dominação masculina por meio de argumentos biológicos, por exemplo), ele é menos utilizado nas tentativas de estabelecimento das identidades nacionais, onde são mais comuns essencialismos culturais. No caso das identidades nacionais, é extremamente comum, por exemplo, o apelo a mitos fundadores. (SILVIA, 2014, p.84)
À primeira vista, a definição de “identidade” é fácil de verbalizar, pois podemos afirmar que ela é aquilo que eu sou; se nasci no Brasil, só posso ser brasileiro; posso ser negro, heterossexual, homossexual, homem, velho, novo, mulher, etc. Como afirmei, a identidade vista por esse prisma é um predicado, um evento totalmente independente. E com base nessa análise, a identidade só alude a si mesma. A mesma independência ocorre ao se opor, tendo como diferença que o passa a ser o diferente, o outro, ele é argentino, ele é branco, ele é transexual, etc. Neste caso, estamos auto referenciando a diferença que, como a identidade, unicamente existe. Não percebemos, no cotidiano, que a afirmação na enunciação de uma identidade enuncia também a diferença do outro, porque a identidade e a diferença navegam no mesmo rio e barco; elas possuem uma afinidade iminente. Logo, ao mesmo tempo em que a linguagem ajuda a afirmar minha identidade, nega a do outro, pois ao afirmar que sou “homem”, oculto nesse discurso uma verdadeira corrente de negativas de identidades: não sou mulher, não sou homossexual, etc.
Além de serem interdependentes, identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado de atos de criação linguística. Dizer que são o resultado de atos de criação significa dizer que não são “elementos” da natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais. (SILVIA, 2014, p.76)
Um breve olhar sobre o preconceito, o racismo e a discriminação
Preconceito, racismo e discriminação não são sinonímias. Comumente, no cotidiano, atribuímos ao preconceito a mesma marca semântica do racismo. Pelo simples fato de mencionarmos o vocábulo surge um verdadeiro redemoinho de “racismos” catalogados. O engano que ocorre entre os dois fica evidenciado no dia a dia, mas devemos entender que o preconceito, seja ele qual for, não deve ser considerado como uma mostra de racismo, uma vez que é o racismo que origina os mais inapropriados e mais terríveis preconceitos. Entre eles está o pensamento de que existe entre os seres humanos uma concepção racial de superioridade e inferioridade. “O preconceito racial é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias.” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Ocorre a partir da constituição e significação que é estabelecida a partir do conceito sobre definida pessoa ou grupo escolhido seja por fatores históricos e/ou sociais.
O racismo está presente no cotidiano do racista, que reparte seus pensamentos, opinião e julgamentos contrários ao negro dentro de sua própria casa e para os seus familiares sem medo de provocar qualquer desordem, pois há um pensamento já fundado historicamente por esses pares, já que “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018: 25).
“A discriminação racial é atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados” (ALMEIDA, 2018: 25). Ela envolve produzir tratamento distinto por motivo da raça, tem como condição principal “o poder” e o uso da força que irá assegurar ao poder vantagens ou desvantagens em função da raça; ela pode ser classificada como indireta e direta. A direta está associada aos países que desejam levantar muros, fazem o fechamento de suas fronteiras, ao desprezo e recusa das pessoas, grupos em função da sua condição racial, sejam eles judeus, árabes, mulçumanos, negros, ou estabelecimentos que se opõem a atender clientes de determinada origem. A indireta ignora as minorias; ela incide na determinação de regras e normas que incialmente aparentam ser inócuas, no entanto, não produzem resultados negativos e trágicos que afetam o Direito do cidadão.
Discriminação e preconceito, embora sejam bastante diferentes, lembram os personagens Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Elas foram geradas como os dois irmãos, ao mesmo tempo, e são práxis constantemente relacionadas do racismo. Ao observarmos o cotidiano comum, identificamos que a ação da discriminação indireta na sociedade brasileira, além evidenciar a interseção entre o preconceito e a discriminação, revela que elas podem ser usadas com o propósito de uma ocultar a outra, principalmente em uma sociedade em que a acessão do negro é somente ilusória e o preconceito dissimulado acarreta a recusa de direitos.
Não podemos unificar o racismo, já que ele não se manifesta da mesma forma em todos os Estados-nações. Na Europa, ele está associado ao imigrante e à exploração da força de trabalho. No Brasil, não entra em discussão o nacionalismo que ocorre nos países europeus, mas sim a ligação a um determinado grupo étnico, mesmo que ele seja a maioria e considerado como nacional.
A similitude brasileira está na prática do capitalismo comum nesses Estados-nações, uma vez que o racismo é parte integrante da economia e da política. Ele é uma das exteriorizações das criações do capitalismo. O racismo, no Brasil, não é a sobra da escravidão, pois ambos são fundamentos da modernidade e do capitalismo, visto que não podemos dizer que existe uma incompatibilidade entre a modernidade, o capitalismo e a escravidão, pelo contrário, pois, ao enunciar qualquer um deles ocorre a atração natural dos outros dois.
Daí podemos entender que democracia racial, ideologia exteriorizada no país, é a produção de um enunciado racista que tem como objetivo legitimar a violência e a desigualdade racial diante as particularidades do capitalismo praticado no país. Por outro lado, não podemos olhá-la somente como uma quimera, pois a democracia racial, enquanto “mito”, é uma ideia significativa no intuito de reduzir e abrandar os preconceitos.
No caso da população negra, a democracia racial condensou um compromisso[...], que tinha duas vertentes, uma material e outra simbólica. Materialmente, a ampliação do mercado de trabalho urbano absorveu grandes contingentes de trabalhadores pretos e pardos, incorporando-os definitivamente às classes operárias e populares urbanas. Simbolicamente, o ideal modernista de uma nação mestiça foi absorvido pelo Estado e as manifestações artísticas, folclóricas e simbólicas dos negros brasileiros foram reconhecidas como cultura afro-brasileira. O “afro”, entretanto, designava apenas a origem de uma cultura que, antes de tudo, era definida como regional, mestiça e, como o próprio negro, crioula. A ideologia política da democracia racial, como pacto social, foi predominantemente o trabalhismo, tendência que data da Primeira República. (GUIMARÃES, 2006, p. 276)
Em exigência da renovação do capitalismo, algumas das vezes, é necessário que se faça também uma atualização do racismo; nesse caso, pela depreciação. Isto ocorre em nome da igualdade racial presente nessa “democracia”. Atualmente, cresce no país o pensamento dos que argumentam que as desigualdades sociais atribuídas ao conceito de raça e da classificação subjetiva, ou de como são qualificadas etnicamente, somente poderão ser debeladas a partir das atuações e políticas que fortaleçam as identidades raciais, pois a implementação das políticas de ações afirmativas necessitam de políticas de identidade.
Cinema e educação
O cinema, enquanto recurso didático, é mais que uma simples ferramenta, pois não é preciso salientar sua relevância e influência na disseminação de opiniões, relatos históricos e principalmente diversão. Sua entrada na sala de aula, além de auxiliar no processo de “ensinoaprendizagem” (ALVES, 2008, p 18), proporciona que, a partir do seu cotidiano, cada aluno possa realizar uma tessitura de tudo que projetado e ouvido, uma vez que a sala de aula é um imenso e mutável laboratório, porque trabalhar com o cotidiano é preocupar-se com a tessitura.
Trabalhar com o cotidiano é se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las não como apoio e verdade, mas como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade no cotidiano. (ALVES, 2008, p. 24)
A várias investigações discursivas que são feitas sobre o cinema incidem sobre o ponto de vista dos que o conceberam. Pensar o cinema somente como arte ou técnica reduz sua contribuição social e cultural. Nele existe uma composição de significante e significados que podem ser percebidos como uma tentativa de reprodução da realidade, que se dá em uma narrativa produzida a partir da escolha na filmagem de uma determinada imagem e não de outra. Imagens que cada espectador irá perceber de acordo com a tessitura que irá produzir.
Porém ele é discurso, se referido às intenções do cineasta, às influências que exerce sobre público, etc.; e é próprio desse discurso, o princípio mesmo de sua eficácia enquanto discurso, justamente apagar as marcas da enunciação e se disfarçar em história. O tempo da história, como se sabe, é sempre o “consumado”; assim também, o filme de transparência e narração plenária repousa em uma negação da falta, da busca, a que ele nos reenvia por sua outra face (sempre mais ou menos retrocessiva), sua face farta e repleta: realização formulada de um desejo não formulado. (METZ, 1983. pp. 403)
O cinema enquanto criação cultural está ligado diretamente à identidade, que nos proporcionou refletir e compreender junto com os alunos, em sala de aula, a partir dessa forma de arte sobre a nossa identidade, a partir de suas elaborações históricas. É importante salientar que ao utilizarmos a “identidade cultural” temos como propósito trazer à tona alguns matizes que nacionalmente nos adjetivam de brasileiros, uma vez que a cultura trabalha com o campo da prática, já que é ensinada e aprendida, ou seja, ela é “aprendizagemensino” (OLIVEIRA, 2013, p.276). A cultura seria:
[...] o conjunto de relações que, em uma dada forma de civilização, os homens mantêm com o mundo, e a sociedade designa mais particularmente as relações que os homens mantêm entre si. A cultura fabrica organização: cultivamos a terra, construímos casas, produzimos objetos manufaturados[...] (LÉVI-STRAUSS apud CHARBONNIER, 1989, p. 35).
Destacamos que a conceituação do que seja a identidade cultural transcende a singularidade de uma definição somente, uma vez que, por ser complexa, torna-se difícil possuir uma definição acabada, em virtude de ser ela instável e ágil. Trabalhamos com ela na qualidade identidade nacional que delimita uma sociedade e sua forma de estar e ser no mundo.
Vida Maria x Happiness
“Vida Maria”3 é um curta-metragem em animação produzido pelo animador Márcio Ramos, e lançado em 2006. Happiness 4 é um curta-metragem, de 2017, em animação, do britânico Steve Cutt. A apresentação dos curtas em sala de aula, onde leciono, surgiu depois de meu comentário sobre o filme “Revelações”, em português, e The Human Stain, em inglês, que foi adaptado do romance do escritor Philip Roth, roteiro de Nicholas Meyer; e direção de Robert Bento. O elenco composto por Nicole Kidman e Anthony Hopkins.
O filme aborda o que ocorre com o conceituado professor universitário de literatura clássica, Coleman Silk (Anthony Hopkins) que é acusado de racismo por ter empregado a palavra “spooks”, que possui duplo sentido na língua inglesa. Ela é sinonímia de “espectros, assombrações”, no caso usada pelo personagem para qualificar dois alunos que nunca apareceram em suas aulas; e o outro, depreciativo e racista, rotula homens de pele negra como os dois alunos faltosos. Um detalhe que chama atenção é que ele é acusado, o que o leva a se demitir da universidade, embora seja judeu. Isso coloca fim à sua pacata e rotineira vida; sua esposa morre. No segundo momento, Coleman se aproxima do escritor Gary Sinise para narrar sua ingrata história, na qual há um segredo muito bem guardado e revelado, que poderia livrá-lo da acusação, somente com a morte do professor e de sua amante, a faxineira da universidade, interpretada por Nicole Kidman. No dia do sepultamento de Silk, Sinise se aproxima de uma senhora negra e pergunta se ela era amiga de Coleman, e recebe como resposta que ela era irmã dele, e que seus pais eram negros. Fato que despertou nos alunos a seguinte pergunta, porque ele não falou que era filho de negros e embora sua pele fosse branca?
Ao assistirem ao curta “Vida Maria”, a ligação com o cotidiano das mulheres que fazem parte do convívio de cada um era identificada e nomeada. As diferenças estavam pontuadas em decorrência da cor da pele de cada um dos alunos. Para alguns a vida dura e a exploração de família, vista no filme, eram as mesmas a que suas mães, por serem negras, eram expostas pelos seus patrões nas casas em que trabalhavam como domésticas.
O curta aborda a vida de uma menina de cinco anos, na fase de alfabetização, que se diverte ao começar a escrever o próprio nome. Ela é obrigada pela mãe a abandonar a autoaprendizagem para ficar responsável por todas as obrigações domésticas e braçais da roça. A narrativa mostra o seu crescimento sempre ligado às obrigações que desempenha até o seu envelhecimento e reprodução do que ocorreu com ela para a filha que irá sucedê-la. O ciclo vem se repetindo a gerações, como demonstra o caderno contendo o registro de todas as mulheres daquele ambiente, tendo todas o mesmo primeiro nome composto por “Maria”.
Alguns alunos associaram a cerca de madeira que protege o sítio com as senzalas dos escravos; outros focaram na cor das personagens femininas, que nomearam como mulatas. Algumas alunas apontaram o discurso machista da narrativa, relacionando-os ao crescente número de feminicídios que vêm ocorrendo em todo o país, gerando um debate de que somente são noticiados quando ocorrem com mulheres de pele branca e de classes sociais mais elevadas. Uma das alunas informou sobre a violência ocorrida com a sua vizinha, que foi espancada pelo esposo e ninguém fez nada, relatando que ouviu a seguinte frase da sua avó: “Aquela preta deve ter feito alguma coisa, pois ninguém apanha sem motivo”. Chama atenção o fato de a aluna se autonomear como “parda” ou “morena” tendo a mãe “negra”, mas apontar que a sua avó paterna tem a pele “branca”. O posicionamento da aluna teve como contra-argumento de uma colega de classe de pele negra a seguinte frase: “Olha aqui …você está fazendo como o professor do filme, que teve vergonha de falar que era preto, somente porque tinha a pele branca”.
A exibição do curta “Happiness” narra como a prometida felicidade pode ser alcançada em uma sociedade totalmente competitiva, mas que se apresenta como normal, pois está naturalizada; faz parte do cotidiano e a felicidade individual é conseguida a partir da infelicidade de um indivíduo ou grupo. A utilização de ratos no lugar de homens remete a mesma comparação que o nazismo fazia com os judeus, e a situação em que os escravos eram colocados nos navios negreiros. No curta, temos a utilização de ratazanas com todas as características humanas; sempre correndo nas calçadas, lutando por mercadorias em liquidações nos shoppings, lotando trens do metrô e constantemente bombardeadas por propagandas, que vão desde refrigerantes até drogas, que asseguram a felicidade se forem compradas e utilizadas. No entanto, essa felicidade dura somente até o momento da compra.
Em oposição ao que ocorreu na exibição do curta de Márcio Ramos, poucos alunos se viram inseridos no cotidiano do filme de Cutt. Apontaram que as ratazanas representavam o ser humano. Houve identificações que chamaram a atenção, no caso em que as personagens aparecem embriagadas e sob o efeito de drogas. Vários alunos atribuíam às personagens o nome de um aluno ou aluna, inclusive narrando em detalhes quando e onde o fato aconteceu; narração que foi motivo de orgulho daquele que foi exposto. Assim como na imagem que reproduziu as ratazanas em um bordel, várias foram apelidadas pelos alunos e alunas com o nome de suas colegas da turma e de outras turmas da escola.
Devemos ter em mente que um filme não é composto somente por imagens. Nele há também as interpretações que irão ocorrer a partir dele e no seu entorno. Por isso, ao exibi-lo em um determinado contexto devemos observar aquilo que não é imagem; no caso dos alunos, as reações diante das imagens que os ligavam ao seu cotidiano, à sua realidade, como no caso da aluna que narrou que o Metrô lotado do curta era igual ao que ele utilizou uma única vez com a mãe, após ir ajudá-la numa faxina na casa onde ela prestava serviços como diarista.
Considerações finais
Procuramos destacar que o emprego de filmes pode e deve ser uma proposta educacional. Primeiro, por ser diferenciada e quebrar o paradigma do cotidiano educacional; e em segundo, por ser uma atividade que proporcionará um dos elementos essenciais nos ambientes escolares, a socialização entre os alunos e o professor, uma vez que possibilitará ao docente um mergulho na cultura que é produzida por cada aluno, ou pelo grupo social no qual que ele convive fora da escola.
Embora a minha pesquisa de Doutorado ainda esteja em andamento, e na qual o projeto pretende investigar as particularidades das relações raciais incidentes na Educação, que vêm precedidas da exposição das raízes históricas e sociais do enganoso pensamento racial que pôs e imputou ao cidadão negro condições, intensamente, desvantajosas na sociedade, elegemos dedicar um subtítulo ao cinema. Isso, a partir da aplicação da pesquisa na sala de aula das turmas do Ensino Médio, visto que os filmes dialogam, em seus conteúdos, com os cotidianos dos alunos, ao mesmo tempo em que apresentam temáticas relevantes no sentido de desvelar os discursos apresentados pelo senso comum e, simultaneamente, considerar as diversidades, no nosso caso a brasileira e, em particular, a diversidade racial em alguns de seus enredos.
Observamos nesse primeiro momento que essa prática de estudo nos permitirá examinar o conhecimento do percurso da desigualdade e da exclusão na modernidade e a sua distinção das sociedades dos antigos regimes, uma vez que, na homogeneização e no universalismo, ocorre a negação das diferenças. Isso impede a comparação pelo desmoronamento dos próprios termos de comparação, já que o homogêneo e o universal são considerados como normais e têm como base uma diferença com poder social para excluir o outro.
Notas finais
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá. Pesquisador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – UNESA (PIBIC) 2018/2019. Pesquisador do Programa Pesquisa Produtividade UNESA. luizcarlosacampos@gmail.com
2 AGRADECIMENTOS - gostaria de expressar agradecimentos a Educare - Universidade Corporativa Estácio - pela concessão de ajuda de custos para apresentação deste trabalho na AVANCA | CINEMA 2019 - Conferência Internacional de Cinema - Arte, Tecnologia, Comunicação.
3 Vida Maria: diponivél em: https://www.youtube.com/watch?v=yFpoG_htum4
4 Vídeo de animação: Happiness: disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e9dZQelULDk
Referências
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Nota Texto:(Almeida 2018, 40)
Nota Texto: (Almeida 2018, 25)
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Nota Texto: (Alves 2008, 24)
Nota Texto: (Alves 2008, 18)
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Nota Texto: (LévI-Strauss apud Charbonnier, 1989, 35).
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Nota Texto: (Clastes 2004, 107)
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Nota Texto: (Duarte 2002, 37)
DUARTE, Rosália. Cinema & educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Nota Texto:(Duarte 2002, 106)
SETTON, Maria da Graça Jacinto. Cinema: instrumento reflexivo e pedagógico. In: SETTON, M. G. Jacinto (Org.). A cultura da mídia na escola ensaios sobre cinema e educação. São Paulo: Annablume: Usp, 2004.
SETTON, Maria da Graça Jacintho, Org. A cultura da mídia na escola: ensaios sobre cinema e educação. São Paulo: Annablume: Usp, 2004. p.67-79.
METZ, Christian. História/Discurso (Nota sobre dois voyeurismos) In: Xavier, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. P. 403 -410.
Nota Texto: (Metz 1983, 403)
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem. In. Em Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo, T.A. Queiroz, 1954- 1985.
NOGUEIRA. Oracy Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem, pp. 287-308 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1 2006.
Nota Texo: (Nogueira 2006, 290)
OLIVEIRA. Inês Barbosa. Currículo e processos de aprendizagemensino: Políticaspráticas Educacionais Cotidianas. Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 3, p. 375-391, set./dez. 2013 p 376
Nota Texto: (Oliveira 2013, 376)
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. – 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
Nota Texto: (Silva 2014, 84)
Nota Texto: (Silva 2014, 76)
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. 2.Ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 2, pp. 269-287 novembro 2006 276.
Nota Texto: (Guimarães 2016, 27)
SHOHAT, E; STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Trad. Marcos Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
Obras de arte
Vida Maria. 2006. Animação de Márcio Ramos. Brasil. DVD
Nota Texto: (Vida Maria 2006)
Happiness. 2017. Animação de Steve Cutts. Inglaterra. DVD
Nota Texto: (Happiness 2017)