Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Participatory culture and the enduring presence of Auto da Compadecida in the collective memory

A cultura participativa e a permanência da obra O Auto da Compadecida no imaginário coletivo

Fabiana de Barros Monteiro Soares

Universidade de Pernambuco, Brasil

Thelma Panerai Alves

Universidade Federal de Pernambuco, Brasil

Abstract

Auto da Compadecida is a play written by Ariano Suassuna in 1955, which tells the adventures of João Grilo and Chicó, with elements of social, political and religious criticism. It was first performed in Recife in 1956 and is considered one of the most popular texts of modern Brazilian theater. It was filmed in 2000 and became the highest grossing Brazilian film of that year, with 2 million viewers, and is considered by many to be the best Brazilian comedy of all time. At the end of 2024, a sequel to the story was released, making it the second highest grossing Brazilian film after the Pandemic, with over 4 million viewers. The friendship and adventures of the characters have inhabited the collective imagination of Brazilians for more than two decades, and the memes and cut scenes, always present on the networks, recover and renew the story. Considering this set of media and the extrapolation of the original play by so many means and with the participation of fans and spectators, and using the evaluative indicators of transmedia skills, we analysed the historical path of the literary work Auto da Compadecida, from the novel to the successes of the cinema screens. In this way, the aim of this work was to show that the novel is a transmedia narrative and that the participatory culture of the audience, one of the pillars that defines a transmedia storytelling, means that this story remains in the collective imagination, supporting this heritage of Brazilian culture.

Keywords: Memes, Transmedia Storytelling, Participatory Culture, Collective Memory, O Auto da Compadecida.

1 Introdução

O Auto da Compadecida é uma peça teatral escrita por Ariano Suassuna, em 1955, que conta as aventuras de João Grilo e Chicó, com elementos de crítica social, política e religiosa. A primeira encenação ocorreu em Recife, em 1956, e é considerado um dos textos mais populares do teatro brasileiro moderno.

Em 2000, ganhou sua versão para o cinema e tornou-se o filme brasileiro de maior bilheteria daquele ano, com 2 milhões de espectadores, sendo considerada por muitos a melhor comédia brasileira de todos os tempos. No final de 2024, uma sequência da história foi lançada, tornando-se a segunda maior bilheteria para um filme nacional pós-pandemia, superando a marca de 4 milhões de espectadores.

É possível identificar as transformações ocorridas entre os três meios - teatro, televisão e cinema – ao investigar como o suporte influencia a configuração da obra e o modo como os públicos se relacionam com ela (Antônio, 2012). Nesse contexto, a peça se apresenta como um híbrido entre o teatro moderno brasileiro e a literatura de cordel, dialogando com o folclore nordestino e com tradições populares orais. Já a adaptação televisiva reconfigura elementos do texto original, incorporando estratégias da linguagem televisiva, como ritmo acelerado, humor visual e estética de telenovela , ao mesmo tempo em que conserva traços da cultura popular nordestina. A versão cinematográfica, por sua vez, condensa a narrativa da série televisiva, mantendo o estilo dinâmico do diretor — com cortes rápidos, múltiplos enquadramentos e ênfase na oralidade. Por fim, a sequência lançada nos cinemas em 2024, embora não baseada diretamente em texto de Ariano Suassuna, conserva a essência de sua obra. Chancelada pelos herdeiros do autor, ela mantém viva a estética e o espírito do mestre.

A literalidade e a teatralidade presentes em O Auto da Compadecida (Guidarini, 2006) - que combinam o trágico e o risível, o cômico e o dramático, os maneirismos e as expressões regionalizadas, os trocadilhos semânticos e as histórias fantásticas, entre outros, compõem a mistura que mantém viva – há mais de duas décadas - a amizade e as aventuras dos personagens no imaginário coletivo dos brasileiros. Nas redes sociais, os memes e os cortes de cenas seguem recuperando e renovando essa narrativa, atualizando-a constantemente. Além disso, o humor tratado como crítica social (Bakhtin, 1987) encontra o ambiente necessário para que os fãs sigam produzindo e reproduzindo falas dos personagens, ressignificando-as em novos contextos e usos cotidianos.

A força dos memes está em como eles permitem que os seus produtores e consumidores expressem atitudes, críticas ou humor de forma simbólica e visual, transformando os espaços digitais em arenas interativas, conseguindo assim a participação da comunidade na sua divulgação e reconstrução. Sendo assim, o significado de um meme raramente é único e sempre depende de conhecimentos sociais compartilhados e da criatividade coletiva (López e Cardema, 2020). Isso faz dos memes tanto reflexos culturais quanto construções colaborativas (Jenkins 2009).

Diante da multiplicidade de mídias envolvidas e da ampliação da peça original por meio de diferentes suportes – impulsionada pela participação de fãs e espectadores -, este trabalho recorre aos indicadores de competências transmidiáticas para analisar o percurso histórico de O Auto da Compadecida, desde sua forma literária até suas consagrações nos cinemas e nas redes sociais, onde se multiplicam os memes e reinterpretações da obra. A partir da análise de alguns desses memes, busca-se demonstrar que O Auto da Compadecida constitui uma narrativa transmidiática, sustentada por uma cultura participativa que, ao reinterpretar e ressignificar a obra em novos contextos, contribui para a sua permanência no imaginário coletivo e para a valorização contínua desse patrimônio da cultura brasileira.

O artigo está organizado em seis seções. Esta introdução que recupera brevemente a trajetória da obra de Ariano Suassuna, e apresenta os objetivos deste estudo. Em seguida, na seção 2, conceituamos as narrativas transmidiáticas e os memes, fundamentos teóricos que sustentam a análise. A seção 3 estabelece a relação entre a obra O Auto da Compadecida e a transmídia. Na seção 4, descrevemos o percurso metodológico adotado, incluindo os critérios de seleção e análise dos memes. A seção 5 é dedicada à análise propriamente dita dos memes selecionados, enquanto, na seção 6, apresentamos as considerações finais do estudo.

2 As Narrativas Transmidiáticas e os Memes

Narrativas transmidiáticas são histórias que se desenvolvem em diferentes mídias, sendo que cada novo suporte contribui com elementos únicos e complementares à construção do enredo. Trata-se de um fenômeno transversal que pode ocorrer com qualquer narrativa, promovendo o engajamento ativo dos consumidores, que passam a atuar como coautores nas expansões e nas ressignificações da história em diversas plataformas (Jenkins, 2009; Scolari, 2013; Scolari, Bertetti e Freeman 2014).

As narrativas transmidiáticas podem também ser compreendidas a partir da concepção da Cultura da Convergência (Jenkins, 2009) que, por sua vez, está apoiada em três conceitos-chaves: a convergência dos meios de comunicação, a cultura participativa e a inteligência coletiva.

O conceito de convergência dos meios refere-se à coexistência e interconexão de diferentes sistemas midiáticos, pelos quais os conteúdos circulam de forma fluida, acompanhando os deslocamentos do público entre plataformas em busca de entretenimento e informação (Jenkins, 2009). A cultura participativa, por sua vez, caracteriza-se pelo envolvimento ativo de fãs e consumidores na criação, adaptação e circulação de novos conteúdos (Jenkins, 2009), ampliando a narrativa original. Já o conceito de inteligência coletiva diz respeito à capacidade das comunidades virtuais de mobilizarem os saberes individuais de seus membros, combinando expertises e experiências em favor de um conhecimento coletivo e compartilhado (Jenkins, 2009).

Reforçando as características da cultura da convergência presentes nas narrativas transmidiáticas, Gosciola (2014, 13) observa que esse tipo de narrativa potencializa a força convergente dos meios de comunicação, destacando-se por sua abertura ao engajamento colaborativo. Nesse contexto, a audiência não apenas expressa suas opiniões, mas pode contribuir de forma decisiva para o desenvolvimento e expansão das tramas.

Considerando a dimensão performativa dentro da cultura digital e o papel colaborativo da audiência, os memes se configuram como potentes artefatos culturais. Mais do que simples peças de entretenimento, eles circulam amplamente pelas redes sociais, ao mesmo tempo em que reinterpretam, remixam e recriam narrativas já existentes, contribuindo ativamente para a sua difusão, atualização e ressignificação.

Os memes podem ser descritos como produtos simbólicos da cultura digital que incorporam práticas intelectuais e artísticas e que encontraram possibilidade de expansão a partir de um cenário midiático transformado pelas tecnologias Web 2.0 e Web 3.0 (Polishchuk et al., 2020). Refletindo valores sociais, emoções, humor e crítica, parecem oferecer uma resposta ao excesso de informação, a partir de formatos curtos e reconhecíveis e que se destacam no meio digital (Polishchuk et al., 2020). Contudo, são reconhecidos fortemente como expressões do folclore digital ou como uma cultura pop nascida digitalmente, estando intimamente ligados ao contexto em que são criados e consumidos. Estão amplamente inseridos na cultura participativa por diversas razões. Eles não são consumidos passivamente e estão sempre sendo reinterpretados e compartilhados por usuários que criam suas próprias versões e significados. Cada nova versão é uma obra criada pelo usuário (López e Cardama, 2020).

Como característica fundamental, os memes se originam de mídias já existentes, sendo reapropriados ou remixados em formatos diversos - como vídeos, imagens ou frases – e, assim, compõem duas camadas de tradução cultural: a criação e a disseminação (López e Cardama, 2020). Essa característica permite que esses novos conteúdos circulem entre diferentes plataformas, da mesma forma que outrora ocorria com as tradições orais, evoluindo constantemente e sendo ressignificados coletivamente (Jenkins, 2009).

Nesse sentido, ao refletirmos sobre as narrativas transmidiáticas no ambiente digital contemporâneo, torna-se relevante reconhecer os memes como elementos narrativos potentes, que não apenas circulam dentro dos mundos ficcionais, mas que também dialogam com esses mundos, tensionando e transformando-os por meio de práticas sociais dos fãs ou usuários. Podemos dizer, então, que os memes operam simultaneamente como formas de expressão e como instrumentos de negociação simbólica de significados culturais.

3 O Auto da Compadecida e a Transmídia

Quando decidiu criar O Auto da Compadecida, um texto para teatro em 1955, Ariano Suassuna certamente não imaginou a longevidade e o alcance de sua obra. Segundo ele mesmo, o Auto foi inspirado em três folhetos da literatura de cordel1 muito famosos do romanceiro popular nordestino. Cada um desses folhetos compõe um dos atos da peça, que já foi encenada em diversos palcos brasileiros desde 1956.

O texto ganhou adaptações para a TV e para o cinema. Ariano diz que era um autor de poucos livros e de poucos leitores2 e acreditava que essas adaptações para os veículos de massa o tornaram conhecido pelo grande público, alavancando a divulgação de sua obra.

O Auto da Compadecida, ao ser recriado em múltiplas versões no teatro, na TV e no cinema, teve sua circulação ampliada de forma mais orgânica do que intencional, impulsionada pela interação espontânea do público em várias redes sociais. Esse movimento favoreceu desdobramentos da obra, como cortes, paródias e memes, que passaram a ser difundidos nas mais variadas plataformas midiáticas, expandindo suas possibilidades narrativas e culturais.

Diferentemente de franquias cuidadosamente planejadas, como Harry Potter e Star Wars, o caso de O Auto da Compadecida exemplifica como uma obra pode se tornar transmidiática pela força de sua relevância cultural e afetiva. À luz da cultura participativa, um dos pilares da cultura da convergência, defendemos neste estudo que foi sobretudo graças ao engajamento do público que a obra se expandiu e passou a circular em múltiplas plataformas e contextos. Além disso, buscamos argumentar que essa trajetória evidencia tanto a potência da cultura popular brasileira como forma de resistência (Cascudo, 2001), quanto a flexibilidade das narrativas consistentes, capazes de atravessar diferentes formatos, mídias e gerações.

4 Percurso Metodológico

Como fãs e consumidoras da obra de Ariano Suassuna, nos posicionamos também como observadoras e usuárias das produções midiáticas derivadas de O Auto da Compadecida. Há anos acompanhamos a circulação, nas redes sociais, de memes construídos a partir de frases e cenas icônicas dos filmes, os quais vêm sendo continuamente associados a situações diversas do cotidiano.

Para este trabalho, selecionamos quatro memes que trazem falas emblemáticas de personagens da obra. A escolha foi feita de forma aleatória, com a intenção de aplicar a esses materiais o modelo de análise que será apresentado a seguir.

Inicialmente, apresentamos os quatro memes escolhidos para a análise. O primeiro traz a clebre frase “Não sei, só sei que foi assim”, recorrente no discurso do personagem Chicó sempre que é questionado sobre a veracidade das histórias que conta. Essa expressão tornou-se um dos marcadores mais reconhecíveis do personagem e gerou inúmeras variações imagéticas nas redes sociais. Para este estudo, escolhemos uma dessas versões, representada na Figura 1.

Figura 1 – Meme a partir do filme Auto da Compadecida. Fonte: Internet (2025).

O segundo meme, apresentado na Figura 2, remete a um diálogo entre João Grilo, Chicó, o padeiro e sua esposa, ao negociarem o valor do salário que os protagonistas receberão por trabalharem na padaria. Na cena, João Grilo pergunta: “E quanto é o salário?”, ao que o padeiro responde: “O salário é pouco, mas em compensação o serviço é muito.” Essa frase, de tom irônico, evidencia a desigualdade na relação entre patrões e empregados, revelando de forma crítica a exploração da força de trabalho e a naturalização da precarização das condições laborais.

Figura 2 - Meme a partir do filme Auto da Compadecida. Fonte: Internet (2025).

O terceiro meme selecionado, representado na Figura 3, aborda os altos e baixos econômicos vividos pelos personagens ao longo da narrativa. A frase “Estou cansado dessa agonia de ficar rico, ficar pobre”, sintetiza, com tom irônico e melancólico, uma experiência recorrente na vida de muitas pessoas: a instabilidade financeira e a constante oscilação entre esperança e frustração. Na cena, além de João Grilo e Chico, também está presente a namorada de Chicó, D. Rosinha, que, a partir de certo momento da história, também passa a compartilhar a mesma “agonia”, refletindo a precariedade e a incerteza material que atravessam a vida dos protagonistas.

Figura 3 - Meme a partir do filme Auto da Compadecida. Fonte: Internet (2025).

O último meme selecionado, na Figura 4, remete à cena do julgamento, presente no terceiro ato da obra, quando João Grilo tenta negociar sua volta à vida travando um diálogo insólito com Deus e o diabo. A frase destacada no meme, “É sempre assim: depois de morrer, todo mundo fica bonzinho” é dita pelo diabo e revela, de forma irônica, a tentativa tardia de redenção motivada pelo medo da condenação eterna. Ao mesmo tempo, essa fala lança uma crítica mordaz ao esquecimento coletivo dos erros cometidos em vida, frequentemente suavizados ou apagados após a morte, num gesto social de absolvição póstuma.

Figura 4 - Meme a partir do filme Auto da Compadecida. Fonte: Internet (2025).

Com os memes selecionados e identificados, passamos à apresentação da metodologia adotada neste estudo. Nosso objetivo é demonstrar como O Auto da Compadecida constitui uma narrativa transmidiática, cuja permanência no imaginário coletivo se deve, em grande parte, à dinâmica da cultura participativa. Através da apropriação criativa por parte dos usuários nas redes sociais, a obra de Ariano Suassuna continua a circular, a ser reinterpretada e a reforçar seu lugar como patrimônio simbólico da cultura brasileira.

Para realizar esta análise, propomos a utilização de alguns dos indicadores avaliativos sistematizados por Silva (2022). Em seu estudo, o autor organiza um conjunto de 62 indicadores que servem para avaliar o desenvolvimento de competências na criação de narrativas transmidiáticas. Embora esses indicadores tenham sido originalmente concebidos como instrumento de apoio para professores na avaliação de produções estudantis, optamos por ampliar sua aplicação, adaptando-os à análise dos memes selecionados.

Os indicadores propostos por Silva (2022) estão agrupados em nove categorias distintas. Para este estudo, selecionamos duas delas: a categoria “Intervenção crítica e reflexiva” e a categoria “Ressignificação de personagens e narrativas”. O Quadro 1 apresenta os indicadores escolhidos, detalha suas respectivas descrições e os relaciona às categorias correspondentes, servindo como base para a análise dos memes selecionados.

Categoria da Competência Indicadores
Intervenção crítica e reflexiva 56. Inserir e refletir sobre aspectos históricos, vivências e problemáticas pessoais/coletivas nas narrativas
58. Inserir e refletir sobre aspectos socioculturais, geográficos e políticos locais
Ressignificação de personagens e narrativas 60. Reescrever, mesclar e recontextualizar personagens de uma narrativa
Quadro 1 – Indicadores de competências transmidiáticas. Fonte: Adaptado de Silva (2022).

A escolha desses três indicadores tem o propósito de identificar e analisar a presença dessas competências nos memes selecionados. Partimos da hipótese de que, ao evidenciar tais competências, será possível demonstrar que esses memes constituem formas de narrativas produzidas por fãs que contribuem ativamente para a divulgação e a permanência da obra na memória coletiva do público brasileiro. Nesse sentido, entendemos que tais práticas colaboram para a preservação simbólica da obra, reafirmando seu valor como patrimônio cultural imaterial.

5 Análise

O primeiro meme selecionado apresenta uma das frases mais marcantes não só do filme, mas de toda a obra de Ariano Suassuna: “Não sei, só sei que foi assim”. A expressão carrega, de forma simples, um conteúdo profundo, denso, passível de múltiplas interpretações – tanto no contexto narrativo da peça/filme quanto em relação à realidade social contemporânea. Sua força reside justamente na versatilidade: pode operar como piada, crítica ou reflexão, dependendo do uso e da situação em que é mobilizada.

O personagem Chicó é marcado por uma imaginação fértil, que se manifesta nas histórias fantasiosas com as quais relata suas experiências e aventuras. Entretanto, ele raramente assume a responsabilidade pela veracidade de seus atos ou palavras. A frase “Não sei, só sei que foi assim” funciona como um recurso estratégico para escapar das contradições de suas narrativas, especialmente quando se vê diante de situações que não consegue – ou não deseja – explicar. Essa postura ambígua reforça tanto o tom cômico da personagem quanto a sua função crítica dentro da trama.

Ao utilizar essa oração como recurso cômico no cotidiano, os produtores e reprodutores do meme reproduzem, de forma deliberada ou intuitiva, o comportamento característico de Chicó: relatar acontecimentos sem compromisso com a veracidade – seja por desconhecimento de suas origens, seja por desinteresse em investigá-las. A frase também funciona como estratégia discursiva para lidar com o inexplicável em diferentes esferas da vida social, incluindo eventos políticos, econômicos e culturais. Como aponta o indicador 56, o uso dessa oração demonstra a capacidade do meme de inserir e refletir aspectos históricos, vivências e problemáticas contemporâneas. Em tempos marcados pelo excesso de informação e pelo caos sociopolítico, muitos se reconhecem na simplicidade e na honestidade despretensiosa da fala, o que dialoga com a ideia de preservação de memes como artefatos culturais relevantes na era digital (López; Cardama, 2020). Nesse processo, cada usuário que compartilha ou adapta o meme assume simbolicamente o papel de um novo Chicó, mobilizando a competência descrita no indicador 60 e contribuindo para a ressignificação contínua da narrativa original.

O segundo meme apresenta um diálogo em que Chicó e João Grilo questionam os proprietários da padaria sobre o valor que receberão pelo trabalho prestado. A resposta “O salário é pouco, mas em compensação o serviço é muito”, aponta para uma crítica social construída a partir da sátira e do humor, revelando de forma irônica a precariedade das condições laborais no interior do Nordeste brasileiro e as assimetrias nas relações de poder. A fala escancara a lógica da exploração do trabalho e a naturalização da desigualdade de classes, temas que, apesar do contexto histórico da narrativa, permanecem relevantes na realidade contemporânea.

O universo criado por Suassuna em O Auto da Compadecida recorre a personagens simples para mostrar, com astúcia e humor, a luta cotidiana pela sobrevivência em meio a uma estrutura social marcada pela injustiça. Nesse contexto, o padeiro representa a figura do patrão autoritário e desprovido de empatia, encarnando as dinâmicas de poder presentes nas relações de trabalho. Sua fala expressa uma lógica perversa e naturalizada, na qual o excesso de trabalho, aliado à baixa remuneração, é tratado com trivialidade – ou mesmo como algo esperado – dentro de uma hierarquia social profundamente desigual.

A relação patrão-empregado, evidenciada na fala do padeiro, permanece atual no mundo do trabalho, o que explica a força e a recorrência desse meme nas redes sociais, onde é amplamente compartilhado como forma de denúncia ou ironia diante das condições laborais precárias. Como discutem Polishchuk et al. (2020), os memes digitais funcionam como formas contemporâneas de crítica social e resistência simbólica. Ao resgatar a fala do padeiro, o meme amplia o alcance e a potência dessa representação, na medida em que denuncia as injustiças e contradições do mercado de trabalho que exige inúmeras competências, longas jornadas e alta produtividade, oferecendo remunerações irrisórias. Essa ressignificação demonstra como o humor, mesmo em sua transposição para novas mídias, continua atuando como ferramenta crítica (Polishchuk et al., 2020). Tal uso se alinha aos indicadores 58 e 60, ao promover reflexões sobre aspectos socioculturais, políticos e geográficos locais, recontextualizando os personagens da história original e projetando-os em novos espaços e temporalidades. Esse processo de expansão e circulação da história em diferentes mídias e formatos é, conforme Gosciola (2014), uma das marcas centrais das narrativas transmidiáticas.

O meme “estou cansado dessa agonia de ficar rico, ficar pobre”, atribuído ora a João Grilo, ora a Chicó, encapsula, com ironia e verdade, a sensação recorrente de instabilidade econômica vivida por grande parte da população brasileira – tanto no contexto histórico retratado por Ariano Suassuna quanto na contemporaneidade. Na narrativa original, os protagonistas sobrevivem por meio de trambiques e artimanhas, acumulando dinheiro rapidamente, e perdendo logo depois. A fala surge como um desabafo cômico, mas carrega uma crítica sutil ao ciclo da pobreza: a oscilação constante entre breves momentos de alívio financeiro e o retorno à escassez. Conforme discutem Polishchuk et al. (2020), ao viralizar nas redes sociais, esse meme adquire nova força simbólica, expressando, com humor, o esgotamento de uma geração sobrecarregada por longas jornadas de trabalho, baixa remuneração, endividamento e incertezas. Assim, o humor de Ariano funciona simultaneamente como válvula de escape emocional e como uma crítica social disfarçada de piada – um recurso poderoso de resistência cultural em tempos de crise. Assim, esse meme suscita reflexões tanto sobre vivências pessoais quanto sobre experiências coletivas, abordando aspectos socioculturais que se alinham aos indicadores 56 e 58. Ao compartilhar ou adaptar essa fala, cada usuário expressa sua própria percepção da realidade econômica e, também, se funde simbolicamente ao personagem que a pronuncia, tornando-se, ele mesmo, mais um a viver a “agonia de ficar rico, ficar pobre”. Esse processo de identificação e ressignificação revela a ativação do indicador 60 ao mostrar como o usuário recontextualiza o personagem, atualizando sua fala e ampliando sua potência crítica no cenário contemporâneo.

Por último, escolhemos o meme construído a partir de uma fala proferida durante o julgamento celestial, quando Suassuna coloca no texto um embate simbólico entre o castigo, representado pela figura do diabo, e a misericórdia, representada pela Compadecida, ou Nossa Senhora. Nesse contexto, o diabo assume o papel de acusador implacável, incapaz de aceitar desculpas ou arrependimentos tardios. É nesse momento que ele dispara a fala que virou meme: “É sempre assim: depois de morrer, todo mundo fica bonzinho”. Podemos entendê-la como uma crítica mordaz a um padrão recorrente do comportamento humano – o arrependimento que só se manifesta diante da iminência da perda ou da morte -, mostrando o quanto a ética e a autorreflexão muitas vezes são postergadas até que já não haja mais tempo para reparação.

Na obra, há uma tentativa de reescrever os contornos da moralidade diante da morte, ao mesmo tempo em que se denuncia a hipocrisia e seletividade social que acontece na vida real. Podemos observar esse fenômeno no caso de pessoas que são notoriamente violentas ou corruptas em vida, mas que passam a ser reverenciadas após a morte. A fala do diabo, com tom sarcástico, critica a tendência de romantizar a memória dos mortos, promovendo uma espécie de absolvição simbólica que minimiza ou silencia suas falhas em nome de uma lembrança idealizada – crítica que permanece incisiva no contexto atual.

Nesse sentido, a crítica elaborada por Suassuna dialoga com o fenômeno contemporâneo da construção seletiva da memória, tanto nas esferas pessoais quanto nas representações públicas. A obra antecipa, inclusive, discussões atuais sobre o julgamento moral e a chamada “cultura do cancelamento”, em que figuras públicas transitam entre a vilanização e a idolatria, dependendo do contexto e da recepção momentânea. Na cultura da convergência, esses julgamentos passam a ser mediados por tecnologias digitais e por novas práticas culturais de participação, exposição e ressignificação. Assim, o meme em questão articula-se diretamente aos três indicadores selecionados para este estudo, ao promover reflexões sobre vivências e problemáticas coletivas, abordar aspectos socioculturais amplos e permitir a adaptação simbólica da personagem a diferentes situações do cotidiano – tanto no ambiente físico quanto no virtual.

Desse modo, a análise dos memes inspirados em O Auto da Compadecida revela não apenas a permanência da obra de Ariano Suassuna no imaginário coletivo, mas também sua potência crítica ao dialogar com as tensões e contradições da sociedade contemporânea. A aplicação dos indicadores de competências transmidiáticas nas análises permitiu evidenciar que esses memes constituem formas legítimas de narrativas produzidas por fãs, que, nesse contexto, contribuem ativamente para a difusão, atualização e preservação da obra na memória cultural do público brasileiro (Gosciola, 2014; Jenkins, 2009).

6 Considerações Finais

A análise dos memes inspirados em O Auto da Compadecida evidencia a vitalidade das narrativas populares quando adaptadas aos ambientes digitais contemporâneos. Ao serem convertidas em memes, as falas icônicas de Chicó, João Grilo, o Padeiro e o Diabo extrapolam seus suportes originais — a literatura e o teatro — e passam a habitar o ecossistema midiático atual, caracterizando-se como formas legítimas de narrativa transmidiática (Jenkins, 2009). Esses memes não apenas recontam trechos da obra, mas também expandem seu universo simbólico ao dialogarem com problemáticas contemporâneas como a precarização do trabalho, a desigualdade social e a hipocrisia moral.

A utilização dos indicadores de competências transmidiáticas propostos por Silva (2022) possibilitou avaliar os memes enquanto práticas de apropriação criativa, que reinterpretam e ressignificam o enredo original, ampliando sua dimensão crítica e reforçando sua atualidade. Como aponta Scolari (2013), essa prática de remediação e adaptação para novas plataformas estimula a coautoria e a continuidade narrativa nos ambientes digitais, transformando o público em agente ativo da cultura.

Portanto, os memes analisados funcionam como dispositivos de resistência cultural e crítica social, reafirmando que a obra de Ariano Suassuna permanece viva, dinâmica e relevante, graças à sua migração e ressignificação em novas linguagens e plataformas de comunicação.

Notas finais

1Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=JYwkqT5LX_0 onde Ariano fala à TV Brasil como surgiu a ideia de fazer o auto. Reexibição do programa “Os Mágicos”, produzido pela TVE-RJ na década de 1970, no qual o escritor é entrevistado pelo jornalista Araken Távora em sua casa no Recife, às margens do Rio Capibaribe.

2Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=gRl3cs-wLeE onde Ariano fala sobre ser um autor de poucos livros e de poucos leitores durante uma palestra. Canal Cortes Filosóficos - Sintetizando Conceitos.

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