Abstract
This paper aims to introduce the project CinePsi and explore the pedagogical possibilities of film clubs in the teaching of Psychology and other themes related to Arts and Humanities. CinePsi is an extension project from the Psychology Institute in Universidade de Brasília (UnB), Brazil. The group intertwines studies about cinema and psychology and promotes film club activities in the university. Besides free exhibitions of movies outside of the commercial circuit, the project enables interdisciplinarity through debates with guests from different fields, like Philosophy, History and Pedagogy. CinePsi enables students, professors and film enthusiasts to meet and it creates a horizontal teaching method, making space for themes that are frequently forgotten in traditional Psychology courses, like racism, LGBTQ+ rights and the anti-asylum movement. The group also aims to spread audio-visual culture and share less popular films with the public.
Keywords: Psychology, Cinema, Human Development, Film Clubs, Education.
Introdução
A prática cineclubista, além de promover a circulação audiovisual não mediada pelo lucro, também favorece o intercâmbio cultural por meio da participação ativa do público em debates propostos nos campos sociais, estéticos, culturais e cinematográficos (Tavares, 2006; Uribe Polo, 2023). Ainda, podemos pensar nos cineclubes como espaços de democratização do acesso à cultura e lazer, uma vez que costumam ser gratuitos e abertos ao público geral, diferente das salas de cinema comerciais. Somados, todos esses aspectos fazem dos cineclubes espaços de aprendizagem sobre o cinema, sobre o fazer cinematográfico e sobre questões sociais. A partir da socialização, sensibilização de consciências e da educação, os cineclubes apresentam-se como importantes agentes de ressignificação da prática audiovisual e difusão intelectual.
É a partir dessa ideia que surge o CinePsi, com o objetivo de promover a prática cineclubista dentro do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de Brasília (UnB) e criar um espaço de diálogo sobre temas emergentes dentro da Psicologia, utilizando o filme como mediador do debate.
O presente trabalho se refere a um relato de experiência, visto que os relatos dos integrantes do projeto de extensão CinePsi são fundamentais para compreender como o projeto se configura como um espaço dialógico na Universidade de Brasília. Segundo Daltro e Faria (2019) o relato de experiência é uma modalidade de estudo que se encontra no território das pesquisas qualitativas, tendo como prisma a elaboração de trabalhos por meio da memória dos sujeitos, afetados por experiências significativas. Desse modo, o/a pesquisador/a organizará as narrativas a partir de suas escolhas e, poderá selecionar quais períodos reflexivos serão necessários para processar a sistematização das experiências vividas (Daltro & Faria, 2019).
Desenvolvimento
Sob uma perspectiva sócio-histórica, os filmes são produtos culturais que foram produzidos em determinados locais, contextos e em determinado ponto do tempo. Dessa maneira, eles não só dizem algo da sociedade onde foram produzidos, como também reproduzem valores e morais e transmitem essas ideias ao espectador (Aumont & Marie, 2003). Do ponto de vista da Psicologia do Desenvolvimento, tudo isso faz com que os filmes funcionem como recursos simbólicos que propulsionam o desenvolvimento humano, promovendo a expansão da experiência e da consciência e instigando a construção de pensamento crítico-reflexivo. A partir da identificação ou não-identificação com aquilo que está na tela, direcionamos nosso desenvolvimento e modificamos nossas visões de mundo, a forma como nos reconhecemos e a forma como percebemos o outro. Assim, reconhecemos o grande potencial do cinema como recurso para estudar Psicologia do Desenvolvimento e as teorias de desenvolvimento humano, bem como a relevância de se investigar os processos que acontecem na interação indivíduo-filme.
No cinema, uma narrativa se desenrola a partir de uma linguagem organizada (linguagem fílmica) que tem o objetivo de capturar a atenção do espectador e provocar nele reações. Imagem, som e movimento se combinam para construir o que chamamos de filme. É importante notar, porém, que o sujeito que assiste ao filme participa ativamente da construção de significados do que está sendo transmitido, pois ele não é mero receptor dessa imagem. Ao entrar em contato com o filme, o indivíduo deposita naquela obra o que traz em si de cultura, morais, experiências pessoais, etc. É nesse movimento, no qual o filme influencia o espectador e o espectador influencia o filme, que constroem-se significações e se dá a interação estética (Borges, 2008).
Compreendendo o filmes como recursos discursivos indissociáveis de seus aspectos sociais, culturais e ideológicos (Bakhtin, 2003; Fernandes, 2019) e os cineclubes como espaços de integração, convivência e compartilhamento de saberes, estes configuram-se como potentes espaços dialógicos para construção de saberes e debates interdisciplinares.
Ao se pensar em um espaço dialógico, pressupõe-se um espaço em que diálogos acontecem e geram transformação. Para Bakhtin, o termo dialogismo faz parte dos processos que constituem a linguagem e se refere aos discursos que não podem ocorrer de forma isolada, individualizada e sem a participação de influências do coletivo (Bakhtin, 2003). Ou seja, os discursos envolvem as relações sociais, as interações humanas, e não se constituem como entidades desmembradas dos contextos socioculturais.
O CinePsi funciona com sessões semanais que acontecem todas as sextas-feira na Universidade de Brasília. As sessões são gratuitas e abertas para todo o público interno ou externo da UnB. Após a exibição dos filmes, ocorrem debates com profissionais e pesquisadores não só da Psicologia, mas também de áreas como a pedagogia, comunicação e história.
O cineclube constitui-se como um espaço de interlocução entre estudantes, docentes e demais interessados na linguagem audiovisual, promovendo uma proposta de ensino horizontal e dialógico. O grupo tem como propósito ampliar o debate em psicologia, incorporando temáticas frequentemente ausentes nos currículos tradicionais, como relações étnico-raciais, direitos LGBTQ+ e a luta antimanicomial. Além disso, busca fomentar a cultura audiovisual por meio da divulgação de obras menos difundidas, contribuindo para a formação crítica e plural do público.
Potencialidades pedagógicas dos cineclubes
Desde seu surgimento em 2023, o CinePsi exibiu cerca de 45 filmes dos mais variados gêneros e formatos, incluindo documentários, longas-metragens, curtas-metragens e animações. Ainda, os curadores do cineclube selecionaram dezenas de filmes de fora do circuito norte-americano e estadunidense, buscando apresentar aos cineclubistas narrativas e linguagens diferentes daquela que é hegemônica.
Como primeira potencialidade pedagógica dos cineclubes, evidencia-se sua capacidade de “educação do olhar” dos espectadores. Esse processo relaciona-se à habilidade do público de tomar os elementos da linguagem fílmica como uma linguagem da qual ele se sinta capaz de se apropriar para suas próprias interpretações. Através do contato com obras cinematográficas menos populares, o público depara-se com temporalidades, linguagens e estruturas que desafiam as narrativas tradicionais e hollywoodianas. Assim, os cineclubes possibilitam discussões sobre estética e linguagem, sensibilizam os olhares dos cineclubistas e potencializam o desenvolvimento de um senso crítico. Melo (2019) discute como o estabelecimento de um cineclube auxilia no desenvolvimento da prática de cinefilia, que é culturalmente relevante para o aprofundamento da linguagem fílmica.
Outro ponto desenvolvido pelo CinePsi é o protagonismo estudantil. Os estudantes integrantes do grupo participam ativamente da tomada de decisões envolvendo o cineclube, da curadoria das obras exibidas e muitas vezes atuam como mediadores e debatedores nas discussões que acontecem ao final de cada sessão. O projeto surge como um espaço formativo de diferentes competências e habilidades (pesquisa, curadoria, mediação e comunicação, por exemplo), e enquanto um cineclube formado dentro do curso de psicologia, possibilita a criação de um novo espaço de aprendizado dessa ciência, somando-se a outra linguagem para aprofundar os conhecimentos.
Ainda, considerando a intersecção com outras áreas do conhecimento, os cineclubes promovem a interdisciplinaridade dentro das universidades. Destaca-se o processo de construção e planejamento das sessões, nos quais os participantes engajam-se em estudos sobre cinema, linguagem fílmica, programação cultural e curadoria. Ainda, o momento de discussões facilita o intercâmbio cultural entre estudantes de diferentes cursos, além de pesquisadores e profissionais de diferentes campos de atuação. Em um processo colaborativo e horizontal, os cineclubistas compartilham saberes de áreas como pedagogia, história, artes, comunicação, filosofia e literatura. Esse tipo de diálogo, preconizado por Darcy Ribeiro no processo de idealização da Universidade de Brasília, é raro, infelizmente. No entanto, todas essas áreas do conhecimento contribuem para a formação dos futuros profissionais de psicologia ao promoverem uma visão ampla, diversa e culturalmente contextualizada do ser humano e seus processos de desenvolvimento.
Por fim, nota-se o cineclube como espaço de atualização dos currículos de Psicologia. Temas emergentes e atuais, relacionados aos direitos humanos e novas epistemologias, são amplamente ignorados pelas ementas das disciplinas obrigatórias e das grades curriculares atuais nas graduações em Psicologia. Ao utilizar filmes como mediadores de debates, surge a possibilidade de discutir esses assuntos, gerando interesse dos estudantes e promovendo uma formação mais diversa. Muitos dos assuntos abordados, inclusive, partem de demandas dos próprios graduandos. Nesse sentido, destacamos alguns dos temas discutidos ao longo da existência do CinePsi, bem como sua relevância para a formação dos estudantes de psicologia:
Subjetividades LGBTQ+ e Teoria Queer
A partir da exibição de filmes como Bixa Travesty (2018), Alice Júnior (2019), Tatuagem (2013), Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), Moonlight (2016) e Tudo Sobre Minha Mãe (1999), o CinePsi promoveu debates relacionados às vivências de pessoas LGBTQ+, abordando questões dos processos de desenvolvimento e amadurecimento de subjetividades dissidentes, bem como os desafios enfrentados nos campos da saúde e educação. Além disso, os cineclubistas tiveram contato com pressupostos teóricos da Teoria Queer e as discussões iniciadas por pensadoras como Judith Butler, Sofia Favero, Conceição Evaristo e Patricia Hill Collins.
Dentro do campo da psicologia, os temas relacionados à sexualidade, além de serem tratados como tabus, são majoritariamente pesquisados a partir de uma perspectiva cis-hétero. Dessa forma, torna-se comum deparar-se com profissionais da saúde que demonstram imenso despreparo no manejo de demandas emocionais de pessoas trans, por exemplo. Essa postura acaba por afastar pessoas LGBTQ+ dos espaços de cuidado em saúde mental, por receio de sofrerem preconceitos ou terem seus sentimentos invalidados. Esse fator contribui para que a população LGBTQ+ no geral apresente elevados índices de sofrimento psíquico. (Butler, 2015; Collins, 2016; Favero, 2020)
Relações étnico-raciais
Com a exibição de filmes como Corra! (2017), Medida Provisória (2020), Madame Satã (2002), Besouro (2009), Infiltrado na Klan (2018) e Faça A Coisa Certa (1989), foram promovidos debates sobre relações étnico-raciais, focando em aspectos como o processo de miscigenação brasileiro, arte e cultura preta, processos de identificação racial e impactos do racismo na saúde mental da população negra.
De modo geral, os textos clássicos utilizados como referência para estudos em psicologia clínica e psicologia social foram escritos por autores homens brancos e europeus. Em um processo de colonização, a psicologia brasileira importou esses autores e conceitos e tentaram adaptá-los à realidade brasileira. Esse movimento criou um saber psicológico que desconsidera aspectos essenciais para a compreensão da saúde e desenvolvimento de pessoas não-brancas, como os impactos do racismo na autoestima dessas pessoas. (Silva, 2004; Santos, 2014; Santos et al, 2017)
Nos debates promovidos pelo CinePsi, os cineclubistas entraram em contato com autores e psicólogos pretos, além de conceitos como Psicologia Preta, aquilombamento e discussões que partiam de práticas afro-centradas. Esses momentos favoreceram a divulgação de textos, pensadores e obras amplamente ignoradas nas bibliografias dos principais cursos de psicologia do país.
Saúde indígena e povos originários
Após as exibições de filmes como A Febre (2019) e O Território (2022), realizamos discussões acerca da situação dos povos originários brasileiros diante do contexto de mudanças climáticas e conflitos envolvendo recursos naturais, abordando temas como epistemicídio, resistência indígena e cosmovisões dos povos originários.
Nessas sessões, a presença de estudantes indígenas potencializou o debate através do compartilhamento de relatos pessoais e provocações sobre a permanência estudantil de graduandos e pós-graduandos indígenas, tendo em vista a falta de políticas de assistência. Ainda, a deslegitimação dos saberes indígenas como saber científico contribui para o surgimento de uma psicologia que acaba por reforçar estereótipos e estigmas associados a essa população.
Luta antimanicomial
Com a exibição de filmes como Em Nome da Razão (1979), Praça Paris (2017), Baile das Loucas (2021) e Bicho de Sete Cabeças (2000), o cineclube promoveu debates sobre a luta antimanicomial brasileira e temas como loucura, saúde mental e serviços de atenção psicossocial. A fundamentação teórica desses debates incluía textos de pensadores latino-americanos como Martin Baró e Milton Santos, que propõe uma Psicologia orientada por uma práxis comunitária e consciente da realidade latino-americana.
A Luta Antimanicomial representa um movimento que articula solidariedade, conflito e denúncias sociais com o objetivo de transformar os modelos de saúde mental pautados em concepções preconceituosas do “louco” e da “loucura” no Brasil (Luchmann e Rodrigues, 2007). O debate promovido pelo CinePsi possibilitou entender como lógicas manicomiais ainda resistem no cuidado em saúde mental brasileiro. Essa lógica, pautada na patologização e isolamento dos sujeitos ditos “loucos”, representa uma grave violação dos direitos humanos.
Conclusão
A experiência relatada ao longo deste trabalho evidencia a relevância dos cineclubes universitários como dispositivos pedagógicos potentes, capazes de articular ensino, extensão e formação crítica. No caso do CinePsi, observamos como o cinema pode ser utilizado não apenas como objeto de estudo, mas como mediador de debates que mobilizam afetos, reflexões e deslocamentos teóricos. A prática cineclubista, tal como proposta pelo projeto, permite a circulação de narrativas diversas, o questionamento de epistemologias tradicionais e a valorização de saberes muitas vezes marginalizados nos currículos formais dos cursos de Psicologia. Nesse sentido, o CinePsi não apenas amplia o repertório estético e cultural dos participantes, mas também promove o contato com diferentes formas de existir no mundo, atuando como um espaço de formação ético-política.
Ao proporcionar encontros entre estudantes, docentes, profissionais e membros da comunidade, o projeto se constitui como um território de diálogo inter e transdisciplinar, em consonância com o ideal de universidade proposto por Darcy Ribeiro. A escolha de filmes que abordam temáticas como sexualidade, racialidade, saúde indígena, loucura e direitos humanos possibilita o enfrentamento de lacunas presentes na formação em Psicologia, ao mesmo tempo em que fortalece o compromisso social da universidade pública. Além disso, ao fomentar o protagonismo estudantil, o CinePsi contribui para o desenvolvimento de competências essenciais à prática profissional, como a escuta sensível, a mediação de conflitos, a leitura crítica da realidade e o trabalho coletivo.
Portanto, o CinePsi reafirma o cinema como linguagem viva e transformadora, capaz de interpelar o sujeito, provocar deslocamentos e favorecer o desenvolvimento de uma consciência crítica e sensível. Como prática de extensão, o projeto também se destaca por sua capacidade de promover uma educação emancipatória, que articula conhecimento acadêmico e experiência estética de modo horizontal e democrático. Diante dos desafios contemporâneos enfrentados pela Psicologia e pela universidade pública brasileira, iniciativas como esta revelam-se essenciais para a construção de uma formação comprometida com a pluralidade, com a justiça social e com a valorização da diversidade humana em suas múltiplas expressões.
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