A verdade da direita: a produção audiovisual de memória sobre a ditadura de 1964

Mônica Mourão

ESPM Rio, Brasil

Abstract

This paper aims to understand memory operations made by Brasil Paralelo (Parallel Brazil) to construct a positive imaginary of Brazilian military dictatorship (1964-1985) as a strategy in nowadays politics. Brasil Paralelo is an independent media, in their own words. It was created in 2016, the year President Dilma Rousseff was impeached. According to their creators, Brasil Paralelo is not an enterprise or an NGO. It does not accept public money and it’s sustained by people’s donation. On March 31, the documentary “1964, o Brasil entre armas e livros” (“1964, Brazil among guns and books”) was realesed, exactly in the military coup anniversary. This paper is going to analyze it, aiming to understand the role of right-wing audiovisual productions in the disputes of Brazilian memory concerning the military dictatorship.

Keywords: Truth, Narrative, Memory, Brazililan Dictatorship, Right-wing Audiovisual Production

Introdução

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – João 8:32.

A verdade que liberta, pregada por Jesus Cristo segundo o evangelista João, tem sido usada, no Brasil contemporâneo, por grupos de direita para defender como verdadeira a visão política deles, silenciada – segundo eles – pela hegemonia da esquerda na esfera cultural. Tentativas de restabelecer tal verdade são articuladas em diferentes âmbitos. A frase acima, por exemplo, foi dita pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro1, em diversas ocasiões. Também foi proferida pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em seu discurso de posse, no dia 1º de janeiro de 2019.

Se todo produto cultural está intrinsecamente ligado ao contexto político-histórico do qual faz parte, tal relação não poderia ser mais evidente do que no documentário “1964, Brasil entre armas e livros”, feito pelo grupo Brasil Paralelo. Com o objetivo de restabelecer a “verdade” sobre a ditadura militar (1964-1985), ao considerar que ela foi ensinada de forma equivocada nas escolas, o documentário reverbera o discurso do atual governo federal, de intelectuais e think tanks conservadores e neoliberais que atuam no país.

O autor Paul Ricoeur, ao desenvolver sua ideia sobre a “tríplice mimese”, aponta para uma compreensão das narrativas através de seus diferentes “momentos”: o mundo pré-figurado (mimese I), o reino do como se (mimese II) e a jusante da narrativa (mimese III). Destaca, assim, que qualquer narrativa contém imitação e criação, e tanto o mundo do qual ela parte (mimese I) quanto o que se poderia chamar, nos estudos de comunicação, de recepção (mimese III), estão presentes na própria narrativa (mimese II) (Ricoeur 1994). Para nos ancorarmos também nos estudos fílmicos, Vanoye e Goliot-Lété (2008) lembram-nos, de outra maneira, que “embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte (em relação a outros produtos culturais como a televisão e a imprensa), os filmes não poderiam ser isolados de outros setores de atividade da sociedade que os produz” (Vanoye e Goliot-Lété 2008, 27).

A versão atual disponível do YouTube do documentário “1964” se inicia com vozes em off de estudantes universitários que teriam sido censurados em seus locais de estudo ao tentar exibir o filme, enquanto imagens de notícias e trocas de mensagens sobre a repercussão do filme são mostradas na tela.

– Eu me manifestei como voluntário para reproduzir esse filme na minha faculdade. E eles me disseram que não era possível reproduzir esse filme porque esse filme não condiz com a diretriz da faculdade.
– Mas só que, quando o evento não é de extrema esquerda, eles apenas alegam que é falta de agenda.
– Tinha um professor que ele era responsável por esses agendamentos, mas só que como nós já tivemos alguns problemas, passando outros filmes que não são da pauta da esquerda, o professor tem sido perseguido o tempo inteiro e hoje ele se encontra impossibilitado de agendar.
– Então eu fui atrás dos diretores da faculdade e obtive praticamente a mesma resposta, disseram que o Brasil Paralelo não ia entrar nessa faculdade.
– Recebemos informações que esses professores receberam represálias da parte da própria diretoria (Ferrugem 2019).

A recepção negativa sobre o documentário foi incorporada porque serve à própria lógica do filme: constrói a ideia de que traz uma verdade que incomoda, que a esquerda é autoritária e domina os espaços acadêmicos – algo que será retomado ao final do filme, quando é defendida a tese de que a esquerda foi derrotada militarmente, mas venceu na esfera cultural. É essa, afinal, a grande motivação do documentário: ser uma arma para combater o “marxismo cultural”. A recepção (mimese III), incorporada à narrativa, porém, também dialoga fortemente com o mundo pré-figurado (mimese I): o Brasil está, no momento em que essas linhas são escritas, sofrendo um dos maiores ataques ao ensino público2.

O documentário começou a repercutir antes mesmo do seu lançamento. No dia 05 de fevereiro de 2019, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente Jair Bolsonaro, postou na sua conta no Twitter o seguinte texto, acompanhado do trailer do filme:

1964, O FILME!
Uma produção Brasil Paralelo @brasilparalelo que estreia nos cinemas dia 31 de MARÇO falando verdades nunca antes contadas - muito menos pelo seu professor de história!
(Twitter, Eduardo Bolsonaro, 05 fev 2019)

A própria data de estreia do documentário já dizia a que ele veio: 31 de março seria o dia do golpe militar de 1964 (há historiadores que afirmam que a data foi 1º de abril, refutada pelos militares por ser o Dia da Mentira). O filme viria então no bojo da disputa entre os que marcam o dia com protestos e a memória da violência estatal perpetrada pelo regime e parte da direita que o comemora como uma vitória contra o comunismo internacional. O fato de ter sido recomendado pelo filho do presidente (vale lembrar que Jair Bolsonaro tem três filhos que seguem carreira na política institucional e são bastante próximos do governo federal) é um indicativo importante de um dos nossos argumentos: a narrativa do “1964, o Brasil entre armas e livros”, apesar de feita por uma produtora que se afirma independente, reitera o discurso do atual governo.

A estreia do documentário foi cercada de polêmica. A rede de salas de cinema Cinemark exibiu sessões de pré-estreia do filme nas cidades de São Paulo, Brasília, Recife, Curitiba e Belo Horizonte, no domingo, dia 31 de março. Porém, depois das críticas recebidas, emitiu um comunicado afirmando que “não se envolve com questões político-partidárias”. A exibição seria resultado de “um erro de procedimento em função do desconhecimento prévio do tema” (Correio Braziliense 2019). Os apoiadores da ditadura, em resposta, conseguiram colocar a hashtag #BoicoteCinemark em primeiro lugar nos trending topics do Twitter.

É em meio a essas operações de memória que “1964” desponta para recontar a história da ditadura, com um verniz de legitimidade científica que mal disfarça o viés ideológico pró-conservadorismo, incorporando e reverberando disputas que dizem respeito a outras questões políticas em jogo no Brasil contemporâneo.

A direita verdade

Com duas horas de duração, o documentário “1964, o Brasil entre armas e livros” tem toda sua primeira parte destinada a construir a ideia (antiga) de ameaça do comunismo internacional no período da guerra fria. Ao ouvir especialistas e mostrar documentos do arquivo do Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários que provariam a presença do serviço secreto da União Soviética no Brasil, defende-se que houve de fato um golpe, porém, além de ter recebido maciço apoio da população, ele evitou um “mal maior”: a subjugação do Brasil ao comunismo internacional.

A tese não é nova: ela foi elaborada pelos próprios militares no período mesmo do golpe. O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, no livro “Em guarda contra o perigo vermelho”, mostra como o medo do comunismo foi construído de forma sistemática às vésperas de dois períodos autoritários no Brasil: o Estado Novo, em 1937, e a ditadura, em 1964 (Motta 2002). Os jornais da época, usados no documentário como prova de que havia de fato um perigo do comunismo, não deveriam, portanto, ser tratados como garantia de verdade. Em qualquer caso, são documentos que devem ser alvo de desconfiança de pesquisadores, visto que não reproduzem, como nenhum documento é capaz de reproduzir, fatos incontestáveis (Le Goff 1994). Compreender que o jornalismo é um espaço de disputas e que a grande imprensa brasileira faz parte de uma fração da burguesia nacional é também necessário para que se pondere o teor ideológico de suas publicações.

Mas nada disso é considerado pelo Brasil Paralelo. Capas e manchetes de jornal são usados, ao longo do filme, para justificar sua versão dos acontecimentos: primeiramente, o perigo vermelho; depois, o apoio da sociedade civil ao golpe (superdimensionado no documentário) e, mais adiante, a violência da ditadura, que seria uma resposta aos atos terroristas cometidos por grupos de oposição ao regime. Em nenhum momento o filme contesta o que era publicado pela imprensa, quando é sabido que, além do apoio de boa parte da imprensa ao regime, outro fator que levou à publicação de notícias positivas sobre a ditadura e negativas sobre a oposição foi a instalação da censura.

O documentário não ignora a censura, mas demora a abordá-la (para uma narrativa que se utiliza de tantas imagens de jornais) e, ao fazê-lo, minimiza-a. A censura teria, segundo o filme, sido feita de forma amadora, abrangendo a proibição a temas por questões morais, e não necessariamente políticas. Mesmo quando se tratava de política strictu sensu, contudo, ela é suavizada:

Engraçado que as pessoas falam de regime militar e da ditadura e da censura... Primeira coisa: todas as publicações da Teologia da Libertação no Brasil foram feitas durante o regime militar. [...] Eu digo: que ditadura é essa, cara? Então não há essa censura como se fosse uma censura geral, em que você tivesse andando na rua e dissesse “Fora, regime militar!” e imediatamente alguém te levava para o porão do DOPS para botar num pau-de-arara. Que porcaria é essa? Isso não condiz com os relatos históricos (Bernardo Kuster in Ferrugem 2019).

A tese do amadorismo aparece também em relatos da esquerda sobre a censura. No documentário “O Pasquim: a subversão do humor”, da TV Câmara, entre os diversos casos contados pelos jornalistas responsáveis por esse jornal da imprensa alternativa, está o da censora que gostava de uísque, passou a ser presenteada sempre com uma garrafa em sua mesa e a relação de cordialidade (assim como a autorização de temas que deveriam ser proibidos) fez a ditadura afastá-la d’O Pasquim. Porém, segundo a pesquisadora Beatriz Kushnir, essa prática fez parte da burocracia estatal e era mais organizada do que alguns relatos memorialísticos podem dar a entender3. Segundo normas das portarias 123 e 134, de 1966, que existiram por quase 20 anos, os censores passavam por cursos de aperfeiçoamento e especialização na Academia Nacional de Polícia. Entre os temas, estavam: técnica de censura, direito aplicado e teatro (lembrando que a censura também incluía a classificação etária de artes e espetáculos) (Kushnir 2012, 177).

Diversas formas de perseguição a jornalistas (desde o impedimento de participar de coletivas até agressões físicas contra eles ou seus familiares) e atentados a bomba contra bancas de jornal não são mencionados pelo “1964, Brasil entre armas e livros” (Marconi 1980). Mesmo que se considere que não tenham sido impactantes numericamente, o fato de ter acontecido coloca tais situações no “horizonte de possibilidades” (Portelli 1996) ou “campo de possibilidades” (Velho 1994) de todo um grupo.

Desse modo, as omissões de “1964” têm um forte significado. Um caso marcante de violência contra jornalistas e opositores (pacíficos) do regime foi ignorado pelo filme e representou um momento de inflexão na ditadura: o assassinato de Vladimir Herzog. Diretor da TV Cultura de São Paulo – como tevê pública/estatal, havia sido nomeado pelo governador do partido dos militares, a Arena –, Herzog era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi preso durante a Operação Radar. Não resistiu à tortura e faleceu em 25 de outubro de 1976. Os militares forjaram uma fotografia para fingir suicídio, porém a versão não foi aceita por familiares, amigos e militantes, e o assassinato levou milhares às ruas para um culto ecumênico organizado em memória do jornalista judeu, marcando um processo de mobilização da sociedade civil contra o regime. A Operação Radar, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), promoveu o assassinato de onze militantes do PCB entre 1974 e 1976. O Partido, como o próprio documentário conta, não era favorável à luta armada. Assim, como justificar a violência contra seus integrantes? Omitindo-a.

O discurso reverberado através da narrativa de “1964” é feito também através de uma estética que se utiliza de filtros e efeitos sobre imagens de arquivo (em movimento e fotografias), com uso de trilha sonora entre o canto gregoriano (no início do filme, quando são mostrados monumentos e brasões) e música instrumental que dá um tom de “denúncia” ou “teoria da conspiração” ao longo das falas dos entrevistados. Um narrador conduz o documentário, costurando as falas dos 24 “especialistas”4, todos enunciadores do mesmo campo de sentidos: uma visão revisionista da ditadura, que minimiza sua violência, responsabiliza a esquerda por ela e produz um discurso panfletário contra a presença marxista no campo cultural e nas universidades.

Segundo o documentário, tanto militares quanto grupos de esquerda queriam conspirar. Como prova disso, acusa o presidente deposto João Goulart5 e o parlamentar trabalhista ligado a ele, Leonel Brizola, de terem fugido do país, ao invés de voltar a Brasília após o anúncio de vacância da presidência da República pelo Congresso Nacional. Segundo o jornalista Lucas Berlanza, “é muito fácil a gente julgar as coisas do ponto de vista de hoje, mas tecnicamente houve um golpe em 1º de abril” (Berlanza in Ferrugem 2019). Isso porque a presidência só poderia ser declarada vaga caso o presidente estivesse fora de território nacional, o que não havia acontecido ainda quando o Congresso o destituiu. Porém, apesar de afirmar que houve golpe, o documentário suaviza a violência deste ato.

O movimento de 64 não foi um movimento militar. Ele começa como movimento civil. Os líderes eram sobretudo governadores de Estado. Os militares foram entrando de pouquinho na coisa. Só que, no final, eles se precipitaram, eles nem queriam dar o golpe, foi o Mourão Filho que se precipitou e obrigou os outros generais a entrarem na coisa. Eles estavam tudo quietinhos num canto. Aí o Mourão Filho, que era um doidão, botou os tanques na rua, começou a ir em direção ao Rio de Janeiro, e eles todos tiveram que se mobilizar (Olavo de Carvalho).

Pela fala de Olavo de Carvalho, a ditadura teria um amplo apoio da sociedade e a entrada dos militares na política institucional teria sido feita de maneira atrapalhada e como uma decisão individual. Na sequência, o narrador afirma que “os militares mais uma vez exerciam a função do extinto poder moderador” (Ferrugem 2019). Em seguida, o jornalista Lucas Berlanza minimiza ainda mais explicitamente o autoritarismo do regime:

Então existe uma força, embora ela não tenha o poder total, ela não exerça o poder total, ela se sente no direito de obrar acima da Constituição. Então você pode falar que há uma meio ditadura, vamos dizer assim. Uma ditadura abstrata, uma ditadura iminente pairando sobre as regras (Lucas Berlanza in Ferrugem 2019).

Para o filme, apenas com o Ato Institucional nº 5 (AI-5) o Brasil teria sido mergulhado numa ditadura, que não seria necessária: “É possível combater o terrorismo militante, covarde e assassino sem que esses países deixem de lado o respeito à lei, à ordem e à democracia” (William Waack in Ferrugem 2019). Mesmo quando critica o autoritarismo, porém, o documentário coloca na oposição a responsabilidade pelo recrudescimento do regime. Além disso, ao falar sobre a perseguição feita aos opositores logo que instalada a ditadura, em 1964, ela também é justificada:

As listas de cassação dos atos institucionais até que não erraram muito. Porque as pessoas ali cassadas muitas delas estavam implicadas com relações com o serviço secreto estrangeiro, entendeu? E isso representava um crime realmente e tinha, como a gente já falou antes, a consequência da perda dos direitos políticos (Renor Filho in Ferrugem 2019).

Para culpar a esquerda pelo autoritarismo da direita, mostrar que havia grupos que se preparavam para a luta armada antes mesmo da ditadura é um dado importante. O filme se baseia nele, mas vai além, pintando de criminosos hediondos todos que empreenderam a luta armada, além de misturar historicamente os momentos da organização da guerrilha rural com as ações de grupos guerrilheiros urbanos.

Mesmo antes de 1964, movimentos rurais e guerrilhas armadas já existiam e estavam determinados a fazer a revolução. Após o 31 de março, esses grupos passam a adotar métodos hediondos e submetem o Brasil a anos tenebrosos. O terrorismo revolucionário se torna cotidiano. O crime, o medo e o sangue marcam presença na vida dos brasileiros. Assaltos a bancos e a estabelecimentos comerciais, explosão de bombas em lugares públicos, fuzilamento e tortura de inocentes. Os revolucionários assassinavam até os próprios colegas que quisessem desistir da luta armada. Os comunistas brasileiros seguiam o exemplo de seus companheiros ideológicos que, em outros países, já somavam mais de 50 milhões de assassinatos em nome da revolução. No mês de fevereiro, antes da subida dos militares ao poder, o PCdoB enviou militantes para a China com o objetivo de aprender as técnicas de guerrilha de Mao Tsé Tung. Foram estes cidadãos que voltaram quatro anos depois e formaram a Guerrilha do Araguaia, com a intenção de replicar a Revolução Chinesa no Brasil 6. [...] Bandidos e terroristas, hoje reverenciados como heróis nacionais, sequestraram, torturaram e assassinaram inocentes em nome de seus ideais. Essa, uma verdade pouco noticiada nos anos seguintes pela imprensa e a academia brasileira, que tratou tudo como uma luta contra a ditadura e pela democracia (Ferrugem 2019).

Na sequência, entram depoimentos de personalidades de esquerda: Dilma Rousseff, como presidenta, dizendo que participou do processo de resistência à ditadura; Carlos Araújo, que foi marido dela, falando que tinha orgulho de ter participado da organização de luta armada VAR Palmares, cita ações de expropriação nos bancos e ações em quarteis para pegar armas; Fernando Gabeira, que fez parte da organização do sequestro do embaixador norte-americano em troca da liberdade de 15 presos políticos, afirma que ninguém queria a democracia, e sim o socialismo, a ditadura do proletariado; Vera Magalhães, também militante da luta armada, conta que eram contra a ditadura burguesa, mas eram a favor da ditadura do proletariado. O narrador, então, decreta: “É a mentira que, de tão repetida, tornou-se história”. Afirma ainda: “[...] eram dezenas de grupos que, com brutalidade e frieza, cometiam atrocidades contra o povo brasileiro” (Ferrugem 2019).

Estes grupos protagonizariam a política no Brasil nos anos seguintes. O narrador cita a Teologia da Libertação e fala especialmente de Dilma Rousseff e Carlos Marighella: “No ano de 2013, Marighella foi homenageado em sessão solene no Senado Federal, pelo que foi chamado de luta social, assim como filmes exaltando seus feitos foram produzidos pela esquerda que aplaude e comemora a barbárie e a criminalidade” (Ferrugem 2019). Ao mencionar o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, o filme mostra José Dirceu, então um dos presos políticos libertados e, nos anos 2000, um dos principais líderes do Partido dos Trabalhadores (PT) acusado e preso por corrupção.

Assassinatos como este e outros atentados terroristas aconteceram centenas de vezes nas décadas de 60 e 70. Os nomes dessas pessoas foram apagados da história ao serem ignoradas pela imprensa e pela academia. Nada se falou das vítimas que o comunismo fez no Brasil. A história dos inocentes não foi contada. Foram 119 vidas assassinadas em nome da revolução. A maioria não tinha a ver com a guerra entre militares e terroristas. Há uma divergência sobre o número de mortos e desaparecidos durante o regime militar. 424, segundo os movimentos de esquerda; 362, segundo os militares. O número verdadeiro deve estar em algum lugar no meio dessa diferença. Com o terrorismo comunista cada vez mais crescente, a esquerda radical deu o pretexto para que a população sentisse medo e a linha dura do Exército conseguisse expandir seu poder. E foi nesse ambiente de guerra que psicopatas, torturadores e criminosos de ambos os lados se valiam para praticar as suas perversidades em nome de uma causa ou de outra. A tortura contra opositores já era presente na política desde a ditadura de Getúlio Vargas. Infelizmente, ela não teve o seu fim no regime militar. A guerra travada pelos terroristas expandia as justificativas para a repressão por parte do Exército. Do outro lado, permitia que o movimento estudantil usasse os mortos em combate para construir a ideia de que a tortura era uma política de Estado, fazendo dessa bandeira seu instrumento político e sua publicidade. O exagero fez parte dessa instrumentalização. Algumas pessoas que constam como desaparecidas, na verdade, se autoexilaram ou eram delatores que ganhavam uma nova identidade do governo para não serem mortas pelos próprios ex-companheiros de guerrilha. Não é preciso justificar tortura e ditadura para reconhecer que crimes foram cometidos. Os objetivos das guerrilhas eram claros, e a democracia não estava entre eles. A palavra sequer aparece nos livros, discursos e debates da época. O governo de Costa e Silva sofria forte oposição. Das manifestações estudantis aos atos terroristas. O governo se via cada vez mais isolado (Ferrugem 2019).

A ponderação feita anteriormente pelo documentário, ao tratar do golpe, de que não se pode julgar com os olhos de hoje os acontecimentos do passado não serve para a esquerda. O uso de números e um suposto posicionamento intermediário, junto com uma estrutura de documentário baseada em “especialistas” e documentos, funciona como um discurso que se pretende à verdade, à semelhança do discurso científico (Foucault 2001) e também do jornalístico (Resende 2002).

Ao discutir o conceito de autor, Foucault lembra que, nos séculos XVII e XVIII começou-se a aceitar os discursos científicos por eles mesmos, com sua escrita desvinculada de uma autoria. “1964” usa dessa lógica durante quase todo o documentário, porém cabe lembrar que, no início, há uma abertura em que um dos organizadores do Brasil Paralelo apresenta o filme – logo após as vozes em off de estudantes que foram impedidos de exibi-lo nas universidades. A presença de Filipe Valerim busca criar um elo de confiança entre o espectador e o conteúdo a que ele terá acesso dali em diante, associando este conteúdo à independência também presente na forma de financiamento do filme – o que aciona a aversão da direita brasileira às leis de incentivo e fomento à arte e à cultura.

Além de uma linguagem pretensamente científica, também é possível associar o documentário “1964” a um tipo de texto jornalístico que Fernando Resende (2002) definiu como “cego”, em oposição ao “ruidoso”. Este primeiro tipo se limita ao discurso legitimado do jornalismo, não faz uso de estratégias narrativas complexas nem se abre às possibilidades de diálogo e alteridade. Uma de suas marcas é justamente o apagamento do autor – como diria Foucault – ou a ausência do narrador, nas palavras de Resende. A ideia aqui não é que o narrador inexista, mas que não se posicione explicitamente, fazendo as vezes de um narrador onisciente que apenas profere “a verdade”. A linguagem e a estética de “1964”, portanto, apresentam características do que Jason Stanley classificou como antiintelectualismo próprio da política fascista:

Numa democracia liberal saudável, uma linguagem pública com um vocabulário rico e variado para fazer distinções é uma instituição democrática vital. Sem isso, o discurso público saudável é impossível. A política fascista procura degradar e rebaixar a linguagem da política; a política fascista procura, assim, mascarar a realidade (Stanley 2019, p. 63).

Novamente, o filme extrapola o texto do filme e reverbera um sentimento de aversão ao pensamento crítico nas universidades que tem pautado recentes políticas de educação do executivo federal. O governo decretou, no dia 30 de abril de 2019, o contingenciamento de 30% do orçamento de universidades e institutos federais. Inicialmente, o corte seria apenas para as universidades que promovem “balbúrdia”, ou seja, atividades de contestação ao atual governo7. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, também defendeu a entrada da polícia nos campi universitários para combater o uso de drogas e misturou a crítica política com a moral, ao afirmar que bagunça seria: “Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus” (PALHARES, 30 abr 2019). A associação das instituições federais e de seus estudantes e professores a atitudes moralmente condenáveis pelos grupos conservadores deu a tônica em “memes”, comentários e outras narrativas na internet. Esse seria o resultado da dominação desses espaços pela esquerda: discurso que já era reproduzido pelo documentário, lançado um mês antes da declaração do ministro.

Qual era o grande barato para quem fazia Humanas na USP entre 71 e 74? Tomar batida escondido ali perto da Avenida Rebouças. Aí ficava todo mundo bêbado às duas horas, três horas da tarde. Ficava falando mal dos milicos... O grande barato daquela época (William Waack in Ferrugem 2019).

A suposta degradação moral promovida pelo domínio da esquerda nas universidades foi usada no dia 15 de maio de 2019, no plenário do Congresso Nacional, por deputados apoiadores do governo Bolsonaro para defender a medida de contingenciamento de recursos. A “infiltração” teria acontecido durante a ditadura, segundo o documentário, como uma estratégia gramsciana de revolução, segundo Olavo de Carvalho. A infiltração na esfera cultural é assim descrita pelo narrador do filme:

Na década de 60, a sociedade ocidental passava por uma mudança cultural profunda. Crenças, valores e tradições que se acumularam durante os séculos passaram a ser contestadas. O movimento hippie nos Estados Unidos, o Maio de 68 na França são reflexo dessa revolução cultural que ocorria no ocidente, quando jovens e estudantes protestavam e entravam em confronto com a polícia exigindo mudanças sociais. Usando a máscara de demandas sociais genuínas como a liberalização sexual, movimento por paz mundial, aborto e a quebra da noção tradicional de família, jovens eram usados como massa de manobra de uma trama que não conseguiam ver. Percebendo que a classe trabalhadora não havia aderido à revolução como Marx havia previsto, o filósofo comunista Georg Lukács concluiu que o movimento revolucionário não deve se preocupar com a destruição do capitalismo, mas sim das bases da filosofia ocidental: a filosofia grega, o direito romano e a revolução judaica cristã. O fundador do Partido Comunista Italiano passa a escrever os Cadernos do Cárcere, onde relata que a estratégia marxista deve acontecer no meio cultural, excluindo todos os valores à moral, à religião, à família. Para isso, os comunistas devem ocupar espaço e exercer controle dos meios educacionais, das instituições religiosas, dos meios de comunicação, a fim de pervertê-los e criar um novo modo de pensar [...].

Tudo isso deveria ser feito de maneira silenciosa, para que as pessoas fossem conduzidas a essa hegemonia cultural sem que percebessem, passando a raciocinar nos termos da linguagem socialista sem se dar conta. Se o comunismo econômico falhou, se as ditaduras comunistas todas acabaram em genocídio, foi na guerra cultural que a esquerda conseguiu o seu grande triunfo.

A tese aqui também não é nova: a de que a oposição à ditadura era formada por “inocentes úteis”, massa de manobra de organizações que os usavam sem que eles se dessem conta. O termo foi atualizado pelo presidente Jair Bolsonaro, ao criticar os manifestantes que foram às ruas do país no dia 15 de maio para protestar contra o contingenciamento de gastos na educação: diretamente do Texas, nos Estados Unidos, ele chamou os manifestantes de “idiotas úteis” em entrevista para diversos meios de comunicação.

O documentário trata as ditaduras comunistas como sanguinárias e genocidas, naturalizando a violência cometida pela União Soviética e sem apontar para o grande choque e divisão que aconteceu nas esquerdas com a descoberta dos crimes cometidos por Joseph Stalin. O escritor comunista Jorge Amado, por exemplo, descreve, em seus apontamentos de memória, a sensação que teve ao ouvir, ainda em 1951, em Budapeste, que a polícia soviética torturava seus presos: “Com febre e frio atravesso a primeira noite de dúvida, o coração transpassado, o estômago embrulhado, ânsia de vômito” (Amado 2012, 37). A descoberta foi fundamental para a reorganização dos partidos comunistas: o processo de desestalinização teve papel importante na divisão que levaria à formação de dois partidos comunistas no Brasil (o PCB, formado em 1922, manteve a antiga sigla e mudou o nome para Partido Comunista Brasileiro; em 1962, o Partido Comunista do Brasil, com a sigla PCdoB, foi criado, reivindicando a herança do Partidão de 1922).

O ataque às universidades prossegue no documentário (e no país de hoje): enquanto o narrador lê as frases abaixo, são mostradas imagens preto e branco de pessoas falando de forma exaltada, com dedo em riste, correria e fogo nas ruas, junto com uma trilha sonora de tom sinistro:

Aos poucos, a nova estratégia revolucionária se infiltrava através das universidades, especialmente em instituições como a União Nacional dos Estudantes. A cultura popular se disseminava. Inspirados pelos movimentos internacionais, a rebeldia tomou conta da juventude brasileira (Ferrugem 2019).

Se o texto poderia, por si, inspirar uma memória positiva de jovens canalizando sua rebeldia contra um regime de exceção, as imagens não o permitem. Universidade, juventude e rebeldia estão, para “1964”, num campo negativo de sentidos. Mas nem só de perigo eram feitos os “inocentes úteis”. Para o historiador Thomas Giulliano, ser de esquerda, promover e frequentar eventos culturais são atitudes coincidentes, parte de um modismo para a juventude se sentir inserida entre seus pares. Novamente, um texto que poderia exaltar a produção cultural e intelectual do período, trata-a com um misto de menosprezo e medo:

Nós vamos ter a disseminação de poemas, a disseminação de festivais, festivais acontecendo de fato dentro do próprio período, nós vamos ter a maior quantidade de filmes sendo feitos, nós vamos ter a forma como ser oposição ao regime militar passará a ser “cool”. Então, ou seja, a pessoa, ela, entendia, ainda que como um jovem alienado ou um adulto alienado, que comprar aquele material fazia dela um transgressor do próprio regime. Nós vamos ter essa popularidade (Thomas Giulliano in Ferrugem 2019).

A ideia da forte presença de esquerda nas universidades é contraditória com os relatos de perseguição cometida pela ditadura. Portanto, o jornalista Lucas Berlanza, considera que “essa ideia do terror, repressão, é muito exagerada” (Berlanza in Ferrugem 2019). Mais uma vez, tem-se aqui o apagamento das diferentes perseguições durante os diferentes momentos de mais de 20 anos de ditadura. Além disso, desconsideram-se questões objetivas de trabalho e condições subjetivas para fazê-lo quando se tratava de intelectuais de esquerda. O marxista Leandro Konder, autoexilado na Alemanha, fornece-nos um bom exemplo:

Antes de mais nada uma ressalva: não me sinto propriamente um exilado. Minha situação é substancialmente diversa da dos brasileiros que se veem obrigados a viver no exterior. Posso voltar para o Brasil quando quiser, e essa possibilidade me poupa os sentimentos depressivos que envolvem os sujeitos compulsoriamente “arrancados” a terra natal. É verdade que a minha saída do Brasil não foi o resultado de uma decisão espontaneamente amadurecida: a experiência de uma semana passada numa prisão, em dezembro de 1970, submetido a interrogatórios nos quais se recorria eventualmente à aplicação de choques elétricos, gerou em mim da noite para o dia a disposição de deixar o país por algum tempo e de passar uns anos num lugar onde eu pudesse estudar e trabalhar com um mínimo de tranquilidade (KONDER 1976, 303).

Depoimentos como o de Leandro Konder, que abrem frestas para a alteridade e permitem vislumbrar as subjetividades dos “perigosos” marxistas não cabem no documentário “1964”, por não corroborar com suas teses. Visto pela ótica do atual momento, além de reposicionar a memória (vitoriosa?) de esquerda sobre a ditadura militar, “1964, o Brasil entre armas e livros” é um panfleto antiintelectualismo e, especialmente, contra as universidade públicas.

Uma produtora independente?

Esse é o porquê de o Brasil Paralelo existir. As nossas produções já levaram informação para mais de 20 milhões de brasileiros, que agora carregam um pouco mais de Brasil dentro de si. O filme que você está prestes a assistir já é resultado do nosso esforço para enfrentar um dos períodos mais conturbados da nossa história. Dezenas de especialistas nos ajudaram a navegar sobre a bibliografia e a documentação, não só do Brasil, mas dos Estados Unidos, Polônia, Berlim e República Tcheca. Hoje é o dia que entregamos todo esse conteúdo para você assistir, compartilhar e criticar. Nunca esqueça: nós não recebemos dinheiro público. Você é quem financia esse projeto. A busca pela verdade depende do seu engajamento. No site do Brasil Paralelo você pode se tornar um membro assinante e ter acesso imediato a todo o conteúdo exclusivo que já produzimos. Você também fará parte do núcleo de formação, tendo acesso a todos os nossos cursos. É uma jornada pelas grandes ideias da humanidade. Fique agora com o filme “1964, o Brasil entre armas e livros” e até breve! (Filipe Valerim in Ferrugem 2019).

Esse é o texto dito por Filipe Valerim na abertura do documentário, logo após os depoimentos de estudantes impedidos de exibi-lo. Afirmar-se como um grupo que não aceita dinheiro público é fundamental para a defesa ideológica feita pelo Brasil Paralelo. O discurso que tem sido encampado pela direita do país no atual contexto ataca a Lei Rouanet, uma lei de incentivo à cultura por meio de dedução fiscal de empresas, considerando-a uma “mamata”. O termo significa que artistas “’mamam” recursos das “tetas” do governo.

As leis de incentivo (Lei do Audiovisual e Fundo Setorial do Audiovisual) são a principal maneira de financiamento da indústria audiovisual brasileira. Ao desprezá-las, como então o Brasil Paralelo financia suas produções? Segundo eles, são as doações voluntárias e os pagamentos de assinaturas que dão direito a cursos à distância e outros conteúdos educativos que dão sustentabilidade financeira à produtora.

Embora não se possa provar a existência de outros financiamentos (mas vale lembrar que os sócios do Brasil Paralelo negam veementemente o uso de dinheiro público, mas nada falam sobre dinheiro de empresas), é possível vislumbrar a existência de relações políticas entre eles e think tanks formados e sustentados pelo capital nacional e internacional. Parte dos especialistas ouvidos no documentário foram escolhidos entre os intelectuais dos grupos: Instituto Liberal, Instituto Millenium, Instituto Von Mises Brasil, Instituto Liberdade e Instituto Atlas8. Alguns destes institutos têm em seu quadro de colunistas e colaboradores figuras de centro ou centro-esquerda, mas todos defendem a pauta liberal e sua incorporação pelo Estado.

Parte dos entrevistados também são intelectuais com formação acadêmica, apesar do menosprezo da nova direita, em geral, pelas universidades. Porém, muitos dos especialistas ouvidos por “1964” não tem formação pós-universitária, define-se como pesquisador freelancer ou autodidata, autor de livros e ministrante de cursos de instituições da direita e sequer possuem dados (ou os possuem de forma escassa) na Plataforma Lattes, principal site que reúne informações de pesquisadores brasileiros. Mesmo que não seja uma obrigatoriedade, a plataforma é considerada fundamental para se prestar seleções públicas ou privadas para professor ou pesquisador, além de ser exigido por instituições de ensino que seus quadros atualizem os currículos através desta plataforma.

Outra ressalva deve ser feita em relação à própria nova direita: apesar de a narrativa de “1964” coadunar com as principais ideias do atual governo, este mesmo governo não é coeso e tem sofrido ataques e perdido apoiadores ao longo dos poucos meses de atuação. Além disso, disputas internas estão expostas à população, através de discussões, desentendimentos, acusações e desmentidos trocados entre integrantes do governo (entre si e com apoiadores, entre eles, vale destacar, o guru intelectual da nova direita e entrevistado do documentário Olavo de Carvalho).

Por fim, um dado importante para um documentário que se pretende “verdadeiro”: um dos entrevistados do filme, Laudelino Lima, é identificado apenas como “administrador do site Verdade Sufocada”. Uma visita ao site mostra que ele está atualizado com artigos, comentários e análises da direita sobre a política atual. Um banner permanente traz os seguintes dizeres:

“Estimo que A Verdade Sufocada tenha trazido ao leitor a real dimensão de certos fatos, mostrando as motivações que os provocaram e as consequências deles advindas para que a história recente deste país seja revista com imparcialidade” (Última frase escrita pelo autor). O coronel Carlos Brilhante Ustra faleceu em 15 de outubro de 2015. “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (João 8:32). BRASIL ACIMA DE TUDO; DEUS ACIMA DE TODOS!” (A Verdade Sufocada, 15 abr 2019).

Trata-se de um site com o mesmo nome do livro do torturador Carlos Brilhante Ustra, trazendo homenagens a militares, a famosa frase bíblica usada pelo atual governo e o próprio slogan do governo Bolsonaro: “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”. Um cruzamento de referências que mostra de que lado da História está a narrativa de “1964, o Brasil entre armas e livros”.

Considerações finais

A polêmica que envolve a verdadeira cor da carapuça de Exu, o andarilho, destrói a pretensão dos sábios em relação ao domínio da verdade. Ela expõe ainda a sofisticada e ancestral visão de Ifá – o corpo literário com os poemas iorubás da criação – sobre versão dos fatos, questionamento da verdade histórica e disputa pela narrativa; temas tão presentes nestes tempos em que todos parecem dispostos a matar e morrer por crenças e certezas (SIMAS, 2015).

Determinar a cor do capuz de Exu vendo-a apenas por um lado é ignorar os pontos de vista, o emaranhado das verdades e as nuances que pode haver entre o preto e o vermelho. Ao optar por fazer um revisionismo histórico, opondo-se, segundo eles mesmos, à narrativa vitoriosa sobre a memória da ditadura na imprensa e na academia, os diretores e produtores do documentário “1964, o Brasil entre armas e livros”, além de negarem o conhecimento científico produzido por historiadores do período, também se colocam apenas de um dos lados, o que os possibilita ver uma única cor de um tema tão complexo – mesmo que sob o verniz da diversidade e credibilidade de fontes.

A própria existência deste documentário, ao tentar “desmentir” os fatos conhecidos por um viés de esquerda, mostra que, no caso de ditadura militar brasileira, não se pode falar de memória enquadrante e memórias subterrâneas (Pollack 1989). As disputas cada vez mais intensas aproximam a ditadura de um passado indomável (unmastared past) (Rosenfeld 2009), repleto de contradições e longe de ser estabelecida uma versão vitoriosa ou dominante dos acontecimentos.

“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – João 8:32. A verdade do Brasil Paralelo só pode ser sustentada se desconsiderada a complexidade do contexto histórico dos eventos que o documentário aborda. Assim também parecem fazer os governantes que proferem as palavras bíblicas de João. Segundo o evangelista, a frase foi pronunciada por Jesus no conhecido episódio em que uma multidão tenta atacar Maria Madalena, por ser prostituta. Jesus, ao lembrar que todos são pecadores – atire a primeira pedra quem não – dissipa o aglomerado e segue sua pregação, quando profere a máxima sobre a verdade. Uma verdade como revelação divina, bem diferente das verdades gaiatas de Exu.

Uma verdade, porém, associada à empatia com outros seres humanos, à não violência e ao respeito à diversidade. Tudo aquilo contra o que tais governantes dizem e baseiam as políticas públicas que propõem. Tudo aquilo que o documentário “1964”, se não profere textualmente, corrobora com o discurso, com uma narrativa opaca que busca se legitimar através de especialistas e imagens de arquivo. Antiintelectualismo (mal) disfarçado, defesa pública do Estado mínimo (que ignora as relações entre os think tanks dos quais fazem parte alguns entrevistados) e moral conservadora: essas são as bases sobre as quais “1964, o Brasil entre armas e livros” constrói a memória da direita sobre a ditadura. É assim que articulam a memória de um passado traumático ao presente em que a visão de mundo retrógrada conquista adeptos para a “disputa de narrativas” – termo tão caro à esquerda e à academia, sequestrado em nome da verdade única da “nova” direita brasileira.

Notas Finais

1 Eleito em 2018, seu mandato se iniciou em janeiro de 2019.

2 Na semana em que termino de escrever este texto, o governo Bolonsaro enfrenta sua primeira greve geral, tendo como uma das principais pautas – além do combate à proposta de reforma da Previdência que tramita no Congresso – a defesa da educação pública e o fim do contingenciamento de 30% do orçamento das universidades e institutos federais.

3 Em entrevista à autora, o jornalista Sergio Cabral afirmou que o caso dessa censora foi uma exceção. Quanto a outras formas de perseguição, no próprio “O Pasquim, a subversão do humor”, o cartunista Ziraldo conta que os ataques a bomba em bancas de jornal foram um golpe fatal para O Pasquim.

4 1) Percival Puggina: colunista convidado do Instituto Millenium
2) Fernão Mesquita: jornalista brasileiro. É diretor do Grupo Estado, que publica o jornal O Estado de S. Paulo
3) Flávio Morgenstern: colunista do Instituto Liberal e especialista do Instituto Millenium
4) Hélio Beltrão: especialista do Instituto Millenium e fundador-presidente do Instituto Mises Brasil
5) Vladimir Petrilák: coautor de “1964: o elo perdido: o Brasil nos arquivos do serviço secreto comunista” e “La StB: el brazo de la KGB em Uruguay”. Colunista independente, tradutor e autor de vários textos para a imprensa. É membro da Associação Polonesa de Jornalistas, a SDP – Stowarzyszenie Dziennikarzy Polskich (https://stbnobrasil.com/pt/sobre-nos)
6) Rafael Nogueira: professor do Instituto Conservador e do Instituto Borborema. Não foi encontrado na Plataforma Lattes
7) William Waack: formado em jornalismo pela Universidade de São Paulo e em ciência política, sociologia e comunicação na Universidade de Mainz em 1974, na Alemanha. Fez mestrado em Relações Internacionais (segundo a Wikipedia). Foi jornalista da Globo, demitido por racismo.
8) Renor Filho: pesquisador do livro “1964: o elo perdido”. Não foi encontrado na Plataforma Lattes.
9) Petr Blazek: autor do livro “Half a century of persecution of the peasant estate”.
10) Luiz Felipe Pondé: filósofo e escritor brasileiro, doutor em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e com pós-doutorado pela Universidade de Tel Aviv, em Israel (de acordo com a Wikipedia). Atualmente é professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor titular da Fundação Armando Álvares Penteado e colunista do jornal Folha de S. Paulo, segundo informações fornecidas por ele na Plataforma Lattes.
11) Andrzej Wojtas: jornalista e escritor tcheco
12) Leszek Pawlikowicz: autor do livro “Aparat centralny 1 Zarzadu Glównego KGB jako instrument realizacji globalnej strategii Kremla 1954-1991”
13) Laudelino Lima: administrador do site “A verdade sufocada”
14) Mauro Abranches Kraenski: coautor de “1964: o elo perdido: o Brasil nos arquivos do serviço secreto comunista” e “La StB: el brazo de la KGB em Uruguay”. Tradutor, blogueiro, pesquisador independente. Trabalhou como pesquisador de temas para a televisão polonesa (https://stbnobrasil.com/pt/sobre-nos). Não foi encontrado na Plataforma Lattes
15) Olavo de Carvalho: Olavo Luiz Pimentel de Carvalho é um ensaísta e pensador brasileiro, tendo atuado no passado como jornalista e astrólogo, sendo considerado também um influenciador digital e ideólogo. Autodidata, estudou filosofia por conta própria, sendo um dos principais representantes do conservadorismo no Brasil (Wikipedia). Não foi encontrado na Plataforma Lattes
16) Svetlana Ptacniková: diretora do arquivo do Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários, em Praga
17) Alexandre Borges: colunista e diretor do Instituto Liberal
18) Lucas Berlanza: assessor de imprensa e colunista do Instituto Liberal
19) Silvio Grimaldo: cientista político
20) Thomas Giulliano: historiador formado pela PUC-RS. Segundo informações fornecidas por ele na Plataforma Lattes, atua como professor de cursos de extensão na ESPM, é contratado pelo Instituto Atlantos e trabalha como pesquisador freelancer. De acordo com o site do Instituto Atlantos, trata-se de “um think tank independente, sem fins lucrativos, sediado em Porto Alegre-RS, que leva ao público estudantil, principalmente, as ideias e valores oriundos da filosofia da liberdade e presentes nas sociedades mais prósperas ao redor do mundo, tais como os direitos individuais e a liberdade econômica” (Informações do site: https://www.sympla.com.br/institutoatlantos).
21) Aristóteles Drummond: jornalista. Escreveu o livro “Um caldeirão chamado 1964”
22) Luiz Ernani Caminha Giorgis: graduado em História pela PUC-RS. Vice-presidente do Instituto de História e Tradições / RS.
23) Luiz Philippe de Orléans e Bragança: de acordo com seu próprio site, formou-se em administração de empresas pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP em 1991, fez mestrado em ciência política 1993 pela Stanford University nos EUA e MBA pela INSEAD na França em 1997. Em agosto de 2014 iniciou suas atividades de ativista político e em fevereiro de 2015 foi co-fundador do Movimento Liberal Acorda Brasil (acordabrasil.org) (Informações de site pessoal: http://lpbraganca.com.br/). Atualmente é deputado federal por São Paulo, eleito pelo Partido Social Liberal (PSL), o mesmo do atual presidente Jair Bolsonaro.
24) Bernardo Kuster: ensaísta e jornalista.

5 Segundo afirma Olavo de Carvalho no documentário, referindo-se a João Goulart, Cuba e as Ligas Camponesas: “O presidente era obviamente cúmplice. Ele estava ajudando um país estrangeiro a fazer uma interferência armada no nosso país”.

6 O documentário ignora que o PCdoB teve seu Comitê Central assassinado enquanto se reunia, em 1976, em São Paulo, num episódio conhecido como Chacina da Lapa. Na ocasião, a Guerrilha já havia sido dizimada, o que inviabilizaria que o documentário sustentasse sua versão de que o terror de direita, embora condenável, foi uma reação à violência de esquerda.

7 Seriam três: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade de Brasília (UnB). Elas estão entre as 20 instituições do país com maior produção científica, segundo relatório da equipe de análises Clarivate Analytics. Poucos dias depois, no início de maio, a decisão se estendeu para todas as instituições de ensino federal.

8 A articulação entre a “nova direita” e estes think tanks merece um artigo à parte. Para saber mais sobre o assunto, o livro “A nova direita”, de Flávio Henrique Calheiros Casimiro é leitura fundamental.

Filmografia

FERRUGEM, Lucas. 1964, o Brasil entre armas e livros. Brasil, 2019. 2h7minutos.

STEFANELLI, Roberto. O Pasquim: a subversão do humor. Brasil, 2004. 44 minutos.

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Cinemark emite nota de esclarecimento após exibição de filme sobre 1964. Correio Braziliense, 2019. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/04/02/interna-brasil,746968/cinemark-emite-nota-de-esclarecimento-apos-exibicao-de-filme-sobre-196.shtml. Acedido em 10 de maio de 2019.

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