Abstract
In 1932, filmmaker Aleksandr Medvedkin, accompanied by teams of specialized technicians, travelled the vast geography of the Soviet Union on a train whose carriages were equipped with filming materials, a development laboratory, an editing room and a projection room. This experiment, which took place for over 294 days, was labelled cine-train.
The programmatic motto “Today we shoot, tomorrow we screen!”, coined by Medvedkin in anticipation of this project, indicates an indissociability between the moments of production and exhibition of images. This hypothesis of cinematographic praxis, therefore, founds a chain of communication with singular characteristics, postulating a moment of projection that is always constituted in accordance with the context of filming.
This essay aims to frame the 1932 cine-train experiment from the constitutive relationship between its mobility and the conditions and practices of exhibition and reception, as well as the construction of a common territory with cinema as a resource.
Keywords: Cine-train, Aleksandr Medvedkin, Exhibition, Mobile cinema, Soviet cinema.
Cinema does something, rather than simply represent or be something. It is aimed […] less at the object it films than at the subject it causes to see something. Most important, cinema transforms both subject and object, putting them both through a process that intends more than simple reproduction.
Tom Gunning (2014: 44)
Em 1932, ano final do primeiro plano económico quinquenal implementado por Josef Stalin na U.R.S.S., Aleksandr Medvedkin, cineasta soviético, acompanhado por equipas de realizadores, operadores de câmara, montadores e projeccionistas, percorreu, em diversas expedições, o vasto território do país, num comboio transformado cujas carruagens foram equipadas com materiais de filmagem, um laboratório de revelação, uma sala de montagem e outra de projecção. O objectivo deste empreendimento, levado a cabo ao longo de 294 dias e financiado pelo departamento de propaganda do estado soviético1, passava por filmar a modernização industrial e agrícola em curso e exibir as imagens filmadas aos trabalhadores de todo o território, como forma de implementar novas práticas, corrigir falhas e acelerar o processo. O mote programático cunhado por Medvedkin para o que baptizou de cine-comboio, “Hoje filmamos, amanhã exibimos!” (2016: 27), é revelador de uma urgência de produtividade em tudo correspondente ao contexto do plano quinquenal por cumprir, mas igualmente de uma equivalência na relevância atribuída aos momentos da filmagem e da exibição: para interferir no real era tão necessário filmar quanto mostrar.
Embora a experiência do cine-comboio seja indissociável do seu contexto histórico específico, bem como das condições materiais que a formaram, importa através deste trabalho fixar a sua relevância para um estudo do vínculo entre uma itinerância constitutiva, uma “errância ontológica do cinema” (Comolli, 2008: 92) e práticas de exibição não-convencionais. O objectivo passará por isolar elementos da prática levada a cabo por Medvedkin e pela sua equipa e estudá-los sob o ponto de vista (ainda por explorar2) de uma relação entre o movimento do comboio sobre os carris e uma transitividade cinematográfica entre práticas e contextos de produção e de exibição de imagens.
Mais do que analisar objectos fílmicos produzidos pela equipa do cine-comboio (foram mais de 70, só em 1932), pretende-se deslocar esta prática de um ângulo de análise produtivista, centrada nos filmes, para a fixar enquanto vestígio e hipótese de um cinema em que o momento de exibição precede conceptualmente as filmagens e transcende os próprios objectos criados. A relação entre os espaços filmados e os espaços de exibição, o recurso ao cinema enquanto ferramenta de identificação e de construção de um território comum a partir de um movimento transitivo e de transporte serão, dessa forma, os eixos desta abordagem.
Mobilização e produtividade
Desde os anos que se seguiram à revolução de 1917 que o poder soviético recorreu a uma articulação entre o desenvolvimento dos caminhos de ferro e do meio cinematográfico como forma de agitação das massas, bem como de propaganda3. O desígnio leninista de electrificação do vasto território da U.R.S.S., com o propósito de reduzir as distâncias, facilitar as comunicações e unificar culturalmente os diferentes povos possibilitou um recurso abundante ao cinema itinerante como forma de difusão do centro (realce-se nesse sentido a prática de Dziga Vertov, no início da década de 1920). No seu trabalho sobre a obra e vida do realizador4, John MacKay problematiza uma suposta romantização do cinema itinerante na U.R.S.S. pós-revolução de 1917 e integra estas práticas num contexto histórico mais abrangente:
[T]here is something romantic about itinerant or mobile cinema: it suggests both the thrill of pioneering - bringing cinema to places it had never been, before its banalization as a fixture of everyday commodified existence - and an exploratory jettisoning of familiar norms of exhibition, by moving cinematic experience out of theaters and onto trains, boats, under the open sky - into “life,” in short. Yet both the novelty and the liberating “experimentalism” of the Soviet trains are easy to exaggerate as well. […] [C]ertainly the agit-trains can be seen as part of a much larger, indeed global history of mobile moving exhibitions associated with traveling fairs, lectures, educational projects and much else. (2018: 236).
Este cepticismo de MacKay relativamente a um “experimentalismo libertador” associado ao cinema itinerante dos agit-props do período leninista é facilmente transponível para a experiência de Medvedkin, pouco mais de uma década mais tarde. No entanto, importa assinalar e explorar nuances que considero relevantes para o entendimento do projecto do cine-comboio e que diferenciam decisivamente esta prática das dos seus precursores. A diferença central do projecto iniciado em 1932 para os veículos agit-prop do período pós-revolução de 1917 reside no facto de, ao contrário destes últimos, a experiência comandada por Medvedkin pressupor na sua génese uma conjugação entre a produção das imagens a sua exibição5, ou seja, a necessidade de filmar (de produzir, e não simplesmente de transportar) o que se dá a ver, e de o fazer especificamente para quem se dá a ver.
Esta inovação concebida e aplicada por Medvedkin definiu necessariamente uma relação intrínseca entre filmar e exibir: a câmara e o projector surgem aqui enquanto elementos indissociáveis e constituintes de uma cadeia de comunicação que começava previamente, no movimento dos vagões que os albergavam sobre os carris. A montagem de cada filme respondia, assim, a características de cada local visitado que eram primeiramente registadas no momento das filmagens e previstas para o momento da projecção. Conforme aponta Gal Kirn: “[t]he central idea of kinopoezd 6 would be to move from distribution to production on the way.” (2015:40).
Ora, este alargamento do âmbito do cine-comboio “da distribuição para a produção” contém implicações fundas: a primeira das quais prende-se, desde logo, com uma alteração no movimento estabelecido em relação a um centro (político, social, económico) de onde vinha e que representava. Na década de 1920 os comboios agit-prop visavam, através da difusão de discursos, conectar as populações distantes a uma ideia comum, centralizada e unidirecional. Conforme aponta MacKay:
[U]pon their arrival, the trains became the immediate vortices of an immense amount of activity, ranging from agitation (pasting up posters), propaganda (explaining the murals and “the goals of the train”) […]. They were displays of power as well as sources of diversion and information and provided occasions for local party and Army authorities both to appear before the local citizenry and to assert their connection to the “center”. (2018: 257).
Esta ideia de propagação do centro é necessariamente diferente da importância que uma dimensão local adquire no cine-comboio, a partir da já mencionada especificidade de cada projecção e dos moldes em que ocorria o encontro (ou o confronto) de quem era filmado com a sua própria imagem7. Ainda assim, segundo Emma Widdis, autora especializada na obra de Medvedkin, esta identificação local não existe desligada do nacional, de um “sovietismo” enquanto fim último dessa construção. O movimento ultrapassa a mera propagação do centro, mas nem por isso se torna centrífugo:
The process of representing local communities to themselves constituted a fundamental stage in the construction of local identities within the Soviet space. The local was a more valuable category than the national in the Film Train films. Although organized from the centre, the train in practice symbolically elided that centre, envisaging regional networks and encouraging local self-identification, embedding localness within the “symbolic realm” of Sovietness. The Film Train represented the local to the localized and gave the periphery a voice, as the community recognized itself on-screen. (Widdis, 2003: 45).
A identificação individual na tela correspondeu a um ponto central para a construção de uma identidade comum a partir do indivíduo trabalhador (camponês, operário ou mineiro) mas, sobretudo, para o objectivo principal de modernização do país a partir do trabalho da sua força produtiva. Conforme aponta o próprio Medvedkin: “To see your friends on-screen, your own workplace, your own street, is incredibly interesting for anybody! And we did not just show your workplace and friends! We usually showed an unjustifiable, intolerable failure in your workplace, your life, and the lives of people close to you.” (2016: 51).
Esta citação deixa antever um ponto-chave do método de produção do cine-comboio: a tela, elemento final da cadeia de comunicação anteriormente apresentada, era então transformada num espaço analítico de confluência de boas e más práticas de trabalho, colocadas em comparação como forma de alavancar melhorias no processo e de fomentar a competitividade entre trabalhadores. Além disto, o que era apresentado servia também como prova, como documentação das falhas. Esta prática, assumida por Medvedkin, representou também uma viragem do ponto que norteava cada expedição do cine-comboio em relação a experiências anteriores: mais do que agitação ou propaganda, o propósito aqui passava sobretudo pela pedagogia.
Esse propósito é indissociável do passado de Medvedkin, sobretudo do seu período no exército durante a Guerra Civil. Relativamente a este período, em que realizou produções teatrais satíricas, refere Medvedkin, em entrevista a Richard Taylor e Ian Christie: “I had my own methods of educating these people. I thought that for a teacher words were very costly. So I declared war immediately on verbosity, repetition and everything that was wasteful. I felt that using words to educate someone like this was very expensive.” (1991: 164). Analogamente, mais do que filmes, o cine-comboio construiu manuais filmados, práticos e concisos.
A pedagogia é também facilmente relacionável com um lado interrogativo da prática do cine-comboio. Um dos objectos mais analisados entre os produzidos em 1932, “Como vai a vida, Camarada Mineiro? 8”, realizado por Nikolai Karamazinsky, na expedição à região ucraniana de Krivoi Rog, é disso exemplificativo. O filme coloca as questões aos mineiros que filma através de intertítulos, de modo a encontrar respostas e soluções (transformações) no momento da exibição. É o próprio Medvedkin que aborda a prática interrogativa nos objectos produzidos no seio do cine-comboio, explicitando como os filmes incorporavam problemas e questões, sobretudo em intertítulos, para serem resolvidos pelos espectadores nas discussões após as projecções. Fossem mais ou menos retóricas, as perguntas exigiam respostas e uma recepção activa, sendo centrais para o funcionamento do método: as filmagens identificavam o problema, a projecção procurava resolvê-lo. O historiador Nikita Lary destaca esse engajamento requerido em todo o processo:
The film screenings of the Kino-Train took place outside the established distribution networks, with the films being shown, in the first instance, on location to audiences who had participated in their making. These audiences’ viewing experience was no ordinary one; there were public discussions after each screening in order to uncover the films bearing on the viewers’ own roles in the workplace and in society, and, correspondingly, the actions they could take to remove production obstacles and deadlocks. These viewers were engaged as participants and agents before, during, and after the making of the film. (Lary, 2016: vii).
Se a câmara e o projector serviam para ensinar9, mostrando, importa não descurar as suas funções também enquanto formas de controlo e de denúncia, expondo (e impondo) boas práticas com o objectivo último de aumentar a produtividade. Este recurso ao cinema enquanto meio para atingir uma finalidade concreta, bem como cumprir um efeito prático específico, adequa-se ao conceito de “cinema útil”, trabalhado por Charles R. Acland e Haidee Wasson, num volume com o mesmo título editado em 2011: “[C]ameras, films, and projectors have been taken up and deployed variously -beyond questions of art and entertainment - in order to satisfy organizational demands and objectives, that is, to do something in particular.” (2011: 3).
Além desta necessidade de responder a objectivos externos, “fazendo algo” (o que remete novamente para a epígrafe de Tom Gunning com que se inicia este texto), o objectivo da intervenção do cine-comboio encontrava-se para lá da esfera do cinema, ou até de um paradigma artístico, algo também característico destas práticas: “useful cinema has as much to do with the maintenance and longevity of institutions seemingly unrelated to cinema as it does with cinema per se.” (Acland & Wasson, 2011: 4). A questão da utilidade é, desse modo, em tudo relacionável com os contextos, práticas e espaços de exibição que o cine-comboio de Medvedkin criou e ocupou, sempre numa antecipação do modo de recepção dos espectadores e tendo sempre em vista a resolução de problemas e a implementação de transformações concretas nos espaços filmados:
In the Kino-Train project, filmmaking and viewing now had even more direct practical consequences: the screenings would turn into production meetings. The films found further use in other locations where industrial workers, collective farmers, and miners faced analogous problems.” (Lary, 2016: viii).
Efemeridade e exposição
A definição do cine-comboio enquanto fábrica de produção cinematográfica sobre carris foi postulada pelo próprio Medvedkin - note-se, nesse sentido, como é diversas vezes assinalada pelo próprio nos seus escritos o número de metros de película filmados em cada expedição10. No entanto, a essa “fábrica móvel”, coerente com as metas de produtividade a alcançar e com números específicos de filmagens e projecções por cumprir, pode somar-se a ideia de um laboratório sobre rodas, assente na impossibilidade de previsão exacta, acentuada pela urgência da montagem, do que poderia resultar em cada projecção.
A transformação de cada sessão num encontro, reunião ou discussão de trabalho levou o próprio Medvedkin a manifestar consciência da necessidade de encontrar uma “forma de exibição” própria para as características do projecto em curso:
We very quickly understood that our films were not going to have a practical effect if they were screened in clubs, after work, to the accompaniment of music… We had to find our own form of screening. As a rule, a film was shown without music, as if it was a challenging lecturer at a workers’ general meeting or a production conference. (2016: 51).
Esta citação é reveladora de uma consciência quanto à importância do momento de exibição: não só relativamente aos espaços que poderiam potenciar ou prejudicar a utilidade das imagens, como relativamente a práticas de exibição (a retirada do acompanhamento musical e a assunção de sessões mudas como forma de contrariar uma expectativa de espectáculo facilmente associada a uma sessão cinematográfica).
A ocupação dos espaços em que os filmes produzidos no cine-comboio eram exibidos (fábricas, estações de comboios, quartéis, etc.), ajustada à natureza transitiva e passageira deste projecto, mas também à fragilidade de todo o processo e dos objectos produzidos (cuja visibilidade esteve condicionada ao longo de várias décadas), aponta para uma coerência entre a prática e o seu dispositivo. No entanto, esta não é tanto uma opção artística ou estética quanto um imperativo nascente da realidade concreta: tratava-se, simplesmente, de uma deslocação do cinema até aos lugares específicos onde era necessária a sua intervenção.
Para Maria Vélez-Serna, a exibição cinematográfica em “espaços efémeros”, não convencionais, corresponde a “uma utilização temporária de um espaço permanente polivalente ou a uma utilização a tempo inteiro ou parcial de uma estrutura temporária” (2020: 48). A exibição cinematográfica em espaços efémeros pressupõe a inexistência de uma modelação permanente do espaço em função do cinema; ao invés, é o dispositivo cinematográfico que, pela sua mutabilidade, se adapta às possibilidades e às condições disponíveis. Importa mencionar que este conceito é aplicado pela autora a um contexto marcadamente contemporâneo, mas não deixa de ser historicizado ao longo da sua investigação, reclamando a importância destes espaços para a difusão e implementação pública do cinema desde as suas primeiras décadas. Esta importância é transportável para a prática do cine-comboio pela ocupação temporária de espaços onde o cinema não havia ainda penetrado. “It was […] cinema’s ability to occupy other public spaces that brought it into contact with a mass audience, in the cities as in the smaller towns and villages.” (Vélez-Serna, 2020: 53).
É pertinente, nesse sentido, convocar uma passagem do segundo filme que Chris Marker dedicou a Medvedkin11, Le Tombeau d’Alexandre (1992), em que o cineasta francês afirma que Medevdkin, “mais do que filmes, deu cinema” ao povo soviético. Esta distinção apontada por Marker é nevrálgica para a definição do cine-comboio enquanto projecto experimental mais do que meramente produtivista. Além da hipótese de ir ao encontro das populações através de uma circulação adequada a espaços em transição, as já exploradas inovações relativas aos contextos e práticas de exibição implicam uma concepção abrangente do cinema enquanto prática que apenas se consumava a jusante da produção fílmica. Se a fábrica móvel residia na filmagem (produção de imagens), o laboratório móvel residia na projecção (onde se testavam ideias e conceitos com base em previsões).
Ora, esta prática não era isenta de riscos a partir do momento em que as imagens eram expostas e devolvidas a quem as constituía: ao munir os espectadores de conhecimento e consciência de boas práticas, Medvedkin arriscava também munir qualquer um deles da possibilidade de um posicionamento contrário. O cine-comboio não expunha só aqueles que filmava: expunha-se a si próprio, ao seu processo e, no limite, expunha o próprio estalinismo, abrindo-o a um momento imponderável e improgramável pela performatividade inerente a cada projecção, mesmo que esse fosse um risco menor.
A ambivalência da figura de Medvedkin e das transformações do seu lugar na história do cinema soviético, bem como a sinuosidade da sua relação com o estalinismo, poderão não ser alheias a uma consciência mútua relativamente ao poder da exibição. Widdis especula que, para o regime soviético, tão importante como mostrar numa primeira fase era não voltar a mostrar:
Few of the films were put on national release - perhaps because of the dismal reality of the state of Soviet industry and agriculture that Medvedkin was so concerned to improve. His images of real people, in real places, in real time, were - whether he liked it or not - too dangerous for the regime, and risked destabilising the propaganda project of which he was supposedly a part. This was the fundamental ambivalence that characterised Medvedkin’s project […] Inadvertently or not, but these honest images nevertheless revealed the flaws of the very world Medvedkin promoted.
(Widdis, 2005: 34).
Paradoxalmente, então, foi o sucesso no cumprimento da proposta que vetou Medvedkin a uma posição histórica singular: um esquecimento programado a que se seguiu uma recuperação quase mitológica que ainda hoje paira em torno da sua figura.
Considerações finais
O paralelismo entre o dispositivo cinematográfico e os caminhos de ferro, amplamente explorado nos estudos cinematográficos, ganhou em 1932 um contributo significativo e talvez inescapável. Mais do que reforçar a proximidade entre cinema e comboio a partir do paradigma partilhado de redução das distâncias, ou de difusão de imagens e discursos contribuintes para a edificação de um novo território, entendo que esta experiência veio complexificar uma relação, já de si complexa, com a noção de desvio – que poderá ser uma relevante pista para a continuidade aprofundada deste estudo.
Film is moved through cameras and projectors by mechanisms that convert the rotation of a motor or crank into the reciprocating movement of a pin or claw […]. In a steam locomotive, the reciprocating movement of the pistons is converted into the rotation of the wheels, and hence into linear movement.” (Keiller, 2013: 162).
O “movimento recíproco”, aqui apontado por Patrick Keiller como elo entre as tecnologias do cinema e do comboio, constitui uma tipologia de movimento, estudada nas áreas da mecânica e da fisiologia, que é produzido a partir dos movimentos em direcções alternadas de dois elementos integrantes de um mesmo sistema: é essa reciprocidade que transforma o movimento linear em rotativo e vice-versa.
Se colocar um comboio em movimento representava uma forma de fazer mover o processo ‘revolucionário’, transformar o interior das suas carruagens implicava testar algo de novo em toda a sua imprevisibilidade. É justamente nesse ponto potencial de transformação que reside a possibilidade de constituição de um desvio: não somente no movimento linear da carga sobre os carris ou no rotativo da película no interior das câmaras de filmar e/ou de projectar, mas na reciprocidade passível de gerar entre ambos.
A consubstancialidade histórica entre a câmara de filmar e o projector, aqui articulados através de um mesmo veículo, encontra elementos comuns naquela entre os vagões e os carris: ambos os elementos são concebidos numa pressuposição da existência do outro. Medvedkin concebeu a experiência do cine-comboio em função dessa mesma relação prevista entre a filmagem e a exibição: uma relação potencialmente geradora de movimento. A um comboio colocado em marcha corresponde tanto um projecto quanto uma projecção: os carris são programados (planificados), mas o material circulante (conjunto de equipamentos ferroviários que se movem sobre a via) é efémero e existe para ser ocupado e transformado.
Notas Finais
1Conforme assinala Emma Widdis: “The train was directly financed by the political, rather than the cinematographic, administration during its first year of operation in 1932, and subject to the command of the Propaganda Section of the Party.” (2005: 23).
2O estudo do cine-comboio implica desafios historiográficos, desde logo devidos ao facto de parte significativa dos arquivos disponíveis corresponderem a textos do próprio Medvedkin, alguns deles escritos retrospectivamente, até à década de 1970. Ainda assim, os trabalhos de Widdis (2005), Heftberger (2015) e Kirn (2015) apontam novos caminhos na investigação sobre este momento.
3O termo agit-prop, originário deste período histórico, categoriza formas artísticas e/ou comunicacionais de agitação e propaganda junto das massas.
4“Dziga Vertov: Life and Work” (2018), com enfoque no sub-capítulo Vertov’s Theatrical Origins: The Agit-Trains.
5Esta prática diferencia-se do contexto do início da década de 1920, conforme revela MacKay: “Interestingly, the three main forms of mobile cinema - agittrains and barges, film-carts, and automobiles equipped with film projection equipment [avto-kino] - were apparently associated with the production workshops rather than directly with the distribution unit, at least around 1921–22 […]. This was possibly because the mobile cinema units usually had cameramen associated with them as well and thus were considered arms of production rather than (or at least as much as) distribution and exhibition. […] Nor have I seen proof that the film presenters exhibited any film that had been freshly shot by agit-train cameramen during the course of a given journey.” (2018: 276).
6Cine-comboio (Кинопоезд, no alfabeto círilico).
7Ainda assim, importa ressalvar, novamente com Widdis, que a prática do cine-comboio contemplava também a criação um arquivo próprio cumulativo: “Films made in one community - or on one expedition - were added to the film-train’s permanent repertoire, for showing to other communities during other trips.” (2005: 32).
8Tradução do ucraniano: “Kak zhivesh’, tovarishch gorniak?”
9“The Film Train had the explicit mission of propaganda, teaching - or more importantly, showing - correct Soviet socialist construction and contrasting it with the reality of bad practice.” (Widdis, 2003: 41).
10A título exemplificativo: “We spent two months in Krivoi Rog. And we made twenty-one films - in all, twenty-four reels, amounting to 6,320 meters of usable footage.” (Medvedkin, 2016: 45); “In the forty-five days of the kolkhoz sortie the Kino-Train shot and screened eleven films (twelve reels), totaling 3,659 usable meters.” (Medvedkin, 2016: 64), ou “Apart from the four film digests of operations at the Voronovitsa maneuvers, we shot eight films, amounting to twenty parts or 5,385 usable meters.” (Medvedkin, 2016: 67).
11O primeiro, Le Train en Marche, filmado em França, em 1971, conta com uma entrevista ao próprio Medvedkin que constitui um valioso, embora mitográfico, documento histórico sobre a experiência do cine-comboio.
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