Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Contemporary Contributions of Lusophone Women Filmmakers: Mappings, Policies, and New Voices

A contribuição contemporânea das cineastas lusófonas: mapeamentos, políticas e novas vozes

Amanda Lopes Fernandes

Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Abstract

This paper focuses on the flourishing presence of Lusophone women filmmakers in contemporary cinema, particularly in Brazil, Portugal, and Portuguese-speaking African countries. While earlier studies highlighted the scarcity of women’s contributions, we now shift the lens to the remarkable advances in recent decades. Drawing on ongoing doctoral research, we analyze more recent publications — such as Karla Holanda’s Mulheres de Cinema (2019), Nina Rodrigues’s intersectional approaches, and Helena Ignez’s pioneering work — alongside data compiled on the “Mulheres Audiovisual” platform. We also incorporate insights from bell hooks, Lélia Gonzalez, and Beatriz Nascimento to underscore how race, gender, and identity dialogues shape today’s cinematic narratives. This open-access digital tool catalogs and publicizes the work of various women directors, including Black and Indigenous filmmakers whose voices are increasingly reshaping the audiovisual field. We explore new policy frameworks and funding programs, referencing Orlandi (2021) and Martins (2021) on strategies and challenges faced by contemporary women filmmakers. Rather than reiterating invisibility, this paper highlights collective networks, digital expansion, and social critique. Ultimately, we argue that Lusophone women now shape the cinematic sphere through artistic innovation and collaborative agency.

Keywords: Women Filmmakers, Lusophone Cinema, Contemporary Contributions, Feminist Film Studies, Audiovisual Policies.

INTRODUÇÃO

O cinema produzido nos países de língua portuguesa tem revelado, ao longo do último século, inúmeras contribuições artísticas e narrativas de cineastas mulheres. No entanto, essas contribuições frequentemente ficaram à margem da historiografia oficial do cinema, reflexo de estruturas sociais marcadas por desigualdades de gênero, raça e classe. A redescoberta de pioneiras esquecidas e a emergência de novas vozes femininas demandam uma análise crítica que situe essas cineastas em seus contextos históricos e culturais específicos, bem como no âmbito transnacional lusófono. Este artigo propõe mapear e discutir a atuação contemporânea das cineastas lusófonas – entendendo por lusófonas as realizadoras nos países cujo idioma oficial é o português – articulando três eixos centrais: (1) a análise interseccional de gênero, raça e classe na experiência dessas mulheres; (2) os mapeamentos recentes que evidenciam a presença (ou ausência) feminina nas indústrias audiovisuais de Brasil, Portugal e PALOP; e (3) as políticas públicas e iniciativas institucionais destinadas a promover maior equidade e inclusão nessas cinematografias.

A abordagem interseccional adotada aqui reconhece que as cineastas mulheres não formam um grupo homogêneo – suas trajetórias são moduladas também por fatores como cor/etnia, classe social, orientação sexual e contexto geopolítico. Essa perspectiva teórica, originada dos estudos feministas (notadamente a partir de Kimberlé Crenshaw, 1989), é fundamental para compreender por que certas vozes tiveram ainda mais dificuldade de se afirmar. Por exemplo, no caso do Brasil, embora mulheres tenham gradualmente conquistado espaço como diretoras, essa conquista concentrou-se majoritariamente em mulheres brancas de classes média e alta. Mulheres negras, indígenas ou de classes populares permaneceram e continuam sub-representadas, enfrentando uma dupla marginalização. Um estudo da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) sobre os filmes brasileiros lançados em 2016 ilustra bem essa disparidade: nenhum dos 142 longas metragens comerciais daquele ano foi dirigido ou roteirizado por uma mulher Negra. Enquanto 75,4% dos filmes tiveram direção de homens brancos, 19,7% foram dirigidos por mulheres brancas; homens negros dirigiram 2,1%, e mulheres negras 0% Tais números expõem a intersecção de gênero e raça na indústria cinematográfica brasileira, evidenciando que o acesso à direção permaneceu restrito a grupos com maior condição de acesso, ao menos até meados da década passada.

No campo internacional, a discussão sobre a baixa representatividade feminina atrás das câmeras ganhou força especial na virada dos anos 2010, impulsionada por movimentos como o MeToo e por estudos que revelaram os vieses de gênero nas indústrias criativas. No contexto lusófono, essa discussão assumiu contornos próprios, dada a diversidade interna dos países de língua portuguesa: de um lado, Brasil e Portugal com produções cinematográficas mais consolidadas e com agências de fomento estruturadas; de outro, países africanos lusófonos onde a produção audiovisual enfrenta desafios de infraestrutura e financiamento, mas onde também emergem iniciativas decoloniais e festivais voltados a dar visibilidade a cineastas locais. Em todos esses contextos, entretanto, observa-se um processo recente de mobilização e articulação das mulheres do setor audiovisual, seja através de coletivos, de redes de cineastas ou de eventos dedicados a filmes feitos por mulheres.

Este texto está estruturado de forma a atender às normas do congresso AVANCA | CINEMA. Após esta introdução, apresentamos na seção seguinte um panorama dos mapeamentos contemporâneos sobre mulheres no audiovisual lusófono e aprofundamos a análise interseccional pertinente. Em seguida, na terceira seção, destacamos três cineastas pioneiras – Bárbara Virgínia (Portugal/Brasil), Sarah Maldoror (Angola/França) e Adélia Sampaio (Brasil) – cujas trajetórias ilustram desafios históricos e aberturas de caminhos. A quarta seção discute as novas vozes e políticas públicas atuais nos respectivos países, incluindo ações afirmativas recentes e o papel de festivais como o Porto Femme. Apresenta-se também uma filmografia de destaque com obras relevantes citadas ao longo do texto. Por fim, nas considerações finais, sintetizam-se os avanços e obstáculos identificados, reforçando a importância de políticas de equidade e da preservação da memória dessas cineastas para um cinema verdadeiramente plural.

MAPEAMENTOS CONTEMPORÂ-NEOS E ABORDAGEM INTERSECCIONAL

Nas últimas décadas, tornaram-se disponíveis diversos estudos e levantamentos que buscam quantificar e qualificar a participação feminina no cinema e no audiovisual. No Brasil, por exemplo, a ANCINE passou a publicar, a partir de 2014, informes anuais sobre presença de mulheres nas principais funções criativas (direção, roteiro, produção executiva, direção de fotografia, etc.), incorporando também a dimensão racial a partir de 2016. Esses dados oficiais confirmaram empiricamente aquilo que muitos profissionais e pesquisadoras já denunciavam: o cinema brasileiro era (e em grande medida continua) dominado por homens brancos em posições de liderança. A constatação de que nenhuma mulher negra dirigiu longas comerciais em 2016 e de que mulheres (de qualquer raça) ocupavam menos de 20% das cadeiras de direção naquele ano serviu de catalisador para uma série de debates públicos, seminários e incitações a políticas de incentivo específicas. A análise interseccional desses números revela que a desigualdade de gênero está imbricada com hierarquias de raça e classe; afinal, no topo da cadeia produtiva encontravam-se homens brancos, seguidos de mulheres brancas, enquanto negros e especialmente mulheres negras quase não figuravam. Essa realidade motivou, no campo acadêmico, reflexões sustentadas em teorias feministas e de raça – como os estudos de Teresa de Lauretis, bell hooks, Patricia Hill Collins, entre outras – para compreender a invisibilização histórica das mulheres não brancas e de classes populares no cinema.

Paralelamente aos estudos quantitativos, emergiram mapeamentos qualitativos e organizacionais das mulheres no audiovisual. Um exemplo notável é a pesquisa conduzida pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2021-2023, por Danielle Parfentieff de Noronha sob supervisão de Karla Holanda, que se dedicou a mapear coletivos contemporâneos de mulheres e dissidências de gênero no cinema brasileiro. Esse estudo, intitulado “O coletivo é político: o papel dos coletivos contemporâneos de mulheres e dissidências de gênero na (re)configuração das imagens e sons do cinema e audiovisual brasileiros”, levantou dezenas de coletivos formados por mulheres cis, mulheres trans e pessoas não-binárias em todo o país. Por meio de questionários e entrevistas em profundidade, a pesquisadora traçou um panorama da pluralidade dessas iniciativas, que vão desde grupos de realizadoras negras ou indígenas até coletivos regionais que procuram descentralizar as produções para além dos grandes eixos (Rio-São Paulo). Os resultados parciais, apresentados em congressos em 2023, indicam que tais coletivos funcionam como redes de apoio e resistência, permitindo a troca de recursos, a formação de novas profissionais e a criação de espaços mais acolhedores e igualitários dentro de um setor historicamente sexista e excludente. Esse mapeamento contemporâneo reforça a ideia de que a organização coletiva é uma estratégia-chave empregada por mulheres para enfrentar tanto o machismo estrutural quanto as assimetrias regionais e socioeconômicas presentes no campo audiovisual.

Em Portugal, embora a indústria cinematográfica seja menor em do que a brasileira, também se verificam esforços de diagnóstico e ação quanto à disparidade de gênero. Um estudo encomendado pelo governo português por volta de 2018 analisou a participação de mulheres no cinema e TV em Portugal, concluindo que persistiam estereótipos e uma sub-representação feminina nas telas e atrás das câmeras. No que tange às funções de direção e roteiro, os dados portugueses apontam um número relativamente baixo de mulheres dirigindo filmes anualmente – situação que motivou debates e levou o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) a implementar medidas de majoração de pontuação ou orçamento para projetos liderados por mulheres. Por exemplo, em editais de apoio do ICA, passou-se a prever bonificação de 10% no valor concedido a projetos de longa metragem cuja direção seja feminina e que também tenham mulher em outra função-chave (produção, argumento ou direção de fotografia). Essa política, vigente em linhas de financiamento como a de Finalização de Obras Cinematográficas, sinaliza um reconhecimento institucional da necessidade de incentivar a presença feminina nas cadeiras de realização. Ainda que 10% possa parecer modesto, trata-se de um mecanismo afirmativo que busca equilibrar o jogo competitivo de seleção de projetos, historicamente desfavorável às mulheres. Além disso, discussões sobre paridade de gênero vêm ganhando espaço em eventos e festivais portugueses; instituições comprometidas com a causa, como a associação Mulheres do Cinema em Portugal, têm pressionado por jurados e comissões de seleção mais diversas, evidenciando que a equidade não deve ser buscada apenas na frente das câmeras, mas também nos espaços de poder decisório da cultura.

Nos países africanos lusófonos (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe), a questão de gênero no cinema está intrinsecamente ligada aos desafios mais amplos de se consolidar uma indústria audiovisual local. Durante muito tempo, as poucas produções que emergiram dessas nações tinham majoritariamente diretores homens, até porque o acesso à formação e aos equipamentos era extremamente limitado para qualquer pessoa, quanto mais para mulheres. Entretanto, é importante notar que a primeira mulher a dirigir um longa metragem na África o fez no contexto lusófono: trata-se de Sarah Maldoror, que em 1972 lançou Sambizanga, filme político sobre a luta anticolonial angolana. Embora Maldoror tenha nascido fora da África (na França) e sua carreira tenha se desenvolvido transnacionalmente, Sambizanga é considerado um marco do cinema africano e pan-africano, justamente por ter sido a estreia feminina em longa metragem no continente. Depois dela, poucas mulheres africanas de língua portuguesa lograram dirigir filmes de longa metragem nas décadas seguintes – podemos citar Maria João Ganga, angolana que realizou Na Cidade Vazia (2004), e Pocas Pascoal, também angolana, diretora de Por Aqui Tudo Bem (2011). Em Moçambique, nomes como Isabel Noronha e Yolanda Kokoly contribuíram no campo do documentário. Em Cabo Verde e Guiné-Bissau, a produção cinematográfica é ainda incipiente, mas há esforços de jovens cineastas mulheres despontando em curtas-metragens e projetos independentes. Esses contextos africanos requerem, portanto, análises interseccionais que levem em conta não apenas gênero e raça, mas também heranças coloniais e dinâmicas pós-coloniais que influenciam o fazer cinematográfico. A relativa escassez de recursos e formação, combinada a sociedades onde o patriarcado permanece fortemente enraizado, impõe obstáculos particulares às mulheres cineastas. Ainda assim, a existência de figuras precursoras como Maldoror, e a persistência de novas realizadoras africanas, mostram a importância de redes transnacionais de apoio (por exemplo, coproduções luso-africanas, workshops internacionais, programas como o New Dawn – iniciativa conjunta de institutos de cinema para apoiar produções de países sub-representados) para impulsionar filmes realizados por mulheres nesses países.

Em síntese, os mapeamentos contemporâneos evidenciam tanto desigualdades persistentes quanto sinais de mudança fomentados por ações coletivas. A análise interseccional nos permite compreender que iniciativas como coletivos de mulheres negras no Brasil ou associações de mulheres em Portugal não são elementos isolados, mas partes de um movimento global por maior diversidade na criação audiovisual. Essa perspectiva será fundamental para, na próxima seção, revisitarmos as trajetórias de algumas cineastas lusófonas pioneiras, relendo suas experiências à luz dessas categorias de gênero, raça e classe – assim como para entender o legado simbólico que deixaram para as gerações seguintes.

CINEASTAS PIONEIRAS: BÁRBARA VIRGÍNIA, SARAH MALDOROR E ADÉLIA SAMPAIO

A história do cinema lusófono registra o feito de algumas mulheres percursoras que desafiaram as convenções de suas épocas para realizar filmes, abrindo caminho – ainda que de forma isolada e com recursos escassos – para futuras cineastas. Nesta seção, focamos em três figuras emblemáticas, cujas trajetórias ilustram tanto a diversidade geográfica do cinema em língua portuguesa (Europa, África e América do Sul) quanto os diferentes aspectos interseccionais de opressão e agência.

Bárbara Virgínia (1923–2015) Em 1946, Bárbara Virgínia (então Maria do Carmo Barreto Levy) quebrou paradigmas ao dirigir Três Dias Sem Deus, o primeiro longa de ficção assinado por uma mulher em Portugal. A obra foi levada ao recém-criado Festival de Cannes — e, entre todos os diretores selecionados, ela foi a única cineasta mulher no programa oficial. Esse feito ganha ainda mais peso se considerarmos o Portugal do pós-guerra, sob a ditadura do Estado Novo, em que o cinema carecia de recursos e espaços de exibição. Infelizmente, apenas um excerto de 26 minutos sem som sobreviveu, e, sem apoio institucional, Bárbara não conseguiu dar continuidade à carreira como diretora. Em 1952, emigraria para o Brasil, onde se reinventou em rádio e televisão, distanciando-se pouco a pouco do universo cinematográfico.

Pesquisas recentes, como as de Sequeiros & Sequeira (2017), resgataram sua trajetória a partir de uma abordagem sócio-biográfica, revelando as barreiras de gênero e classe que ela enfrentou — desde o machismo de críticos e financiadores até as exigências elitistas do setor. Sua história pessoal, marcada pelo abandono da direção para assumir responsabilidades familiares no exílio, espelha o dilema vivido por muitas cineastas de sua geração. Durante décadas, Bárbara permaneceu um nome esquecido na memória luso-brasileira, até ser redescoberta nos anos 2010 por iniciativas como o documentário Quem é Bárbara Virgínia? (2017), de Luísa Sequeira. Hoje, ela simboliza tanto a coragem pioneira de ter sido a única mulher em Cannes quanto o apagamento que só uma perspectiva feminista e decolonial, décadas depois, pôde denunciar.

Sarah Maldoror (1929–2020) nasceu Sarah Durán, em Cannes, filha de pai guadalupense e mãe francesa. Inspirada pela literatura (adotou “Maldoror” como sobrenome artístico), engajou-se nos círculos da negritude em Paris, onde fundou uma companhia teatral negra nos anos 1950. Com bolsa de estudos, formou-se em cinema em Moscou no início dos anos 1960 e, de volta à Europa, trabalhou como assistente em A Batalha de Argel (1966).

Seu vínculo com o espaço lusófono se deu pelo relacionamento com o escritor angolano Mário Pinto de Andrade, cofundador do MPLA. Em 1969, dirigiu o curta Monangambée, baseado em conto de José Luandino Vieira, que já anunciava seu olhar militante. Mas foi em 1972, com o longa de ficção Sambizanga — filmado em Angola e no Congo, em língua portuguesa e com equipe multinacional — que se consolidou como pioneira do cinema africano de língua portuguesa. A obra, que acompanha a busca de uma jovem esposa por seu marido preso pelas forças colonialistas, faturou prêmios em festivais e tornou-se um clássico pan-africano.

Maldoror enfrentou severas barreiras de gênero e raça — num setor dominado por homens e por estruturas coloniais — e, após Sambizanga, passou a dedicar-se sobretudo a documentários e curtas culturais pela África e Caribe. Faleceu em Paris em 2020, vítima de Covid-19, pouco antes de completar 91 anos. Seu legado, resgatado em retrospectivas e restaurações (como o relançamento de Sambizanga em coleções internacionais), é hoje celebrado por ter aberto caminho para gerações de cineastas africanas e da diáspora, provando a urgência de incluir vozes negras e femininas em todas as etapas da produção cinematográfica.

Adélia Sampaio (n. 1944) representa o caso paradigmático do Brasil: mulher, negra, nascida em Minas Gerais e criada no Rio de Janeiro, ela se tornou a primeira cineasta negra brasileira a dirigir um longa metragem. Adélia iniciou sua carreira no cinema nos anos 1960 trabalhando como secretária de produção e continuísta, num período em que pouquíssimas mulheres, e virtualmente nenhuma mulher negra, tinham acesso aos sets. Perseverante, produziu curtas independentes na década de 1970 e finalmente, em 1984, lançou Amor Maldito, seu primeiro (e único) longa de ficção. O filme, ousado para a época, abordava um romance entre duas mulheres e teve lançamento comercial, embora sem grande apoio. Amor Maldito marcou história não apenas por Adélia ser uma diretora negra, mas também por trazer temática LGBTQIA+ em plena ditadura militar tardia. Adélia Sampaio enfrentou imensas dificuldades para viabilizar sua obra: a falta de financiamento, o racismo estrutural da indústria e o preconceito contra uma narrativa lésbica limitaram a circulação do filme e as oportunidades subsequentes da cineasta. Por décadas, seu nome permaneceu obscuro, conhecido apenas em pequenos círculos de cinéfilos e pesquisadoresFoi somente na década de 2010 que Adélia Sampaio passou a receber reconhecimento público, por meio de mostras retrospectivas, homenagens em festivais — como o Kikito de Honra ao Mérito no Festival de Gramado — e do resgate de sua trajetória em estudos acadêmicos (Bijotti 2024; Sthefani & Figueiró 2023; Penha de Souza 2013), os quais evidenciam seu duplo pioneirismo de género e raça no cinema brasileiro. A história de Adélia Sampaio destaca, de forma particularmente aguda, a importância da perspectiva interseccional: se para uma mulher branca já era difícil dirigir nos anos 1980 no Brasil, para uma mulher negra essa barreira era praticamente intransponível. Sua conquista isolada permaneceu sem continuidade: somente mais de 30 anos depois veríamos um número ligeiramente maior de cineastas negras emergindo no país, sinal de que a indústria não soube (ou não quis) aproveitar o precedente aberto por Adélia. Ainda assim, ela é frequentemente lembrada como símbolo de resistência e precursora – prova de que mesmo nos contextos mais adversos, indivíduos excepcionais podiam romper o cerco. Em entrevistas recentes, Adélia enfatiza que “o cinema sempre foi um ambiente de homens brancos; eu fui ocupando meu espaço como pude”, e defende que políticas afirmativas são necessárias para que outras não esperem décadas por uma chance. Seu caso emblemático reforça a tese de que representatividade importa: hoje, jovens realizadoras negras citam Adélia Sampaio como inspiração direta, conectando a luta de ontem com as conquistas de hoje.

Ao revisitar as vidas e obras de Bárbara Virgínia, Sarah Maldoror e Adélia Sampaio, podemos perceber que, apesar das diferenças de contexto (um regime autoritário europeu, uma luta anticolonial africana, uma ditadura latino-americana), há fios comuns que unem suas experiências. Todas elas encararam preconceitos de gênero, subestimação profissional e, nos casos de Maldoror e Sampaio, o racismo explícito ou velado. Todas trilharam caminhos sem ter antecessoras diretas em quem se espelhar, tornando-se elas próprias referências fundadoras para futuras cineastas. E em todos os casos, vemos um período de apagamento ou esquecimento, seguido de redescoberta tardia por parte da crítica e da academia – um padrão que evidencia como a memória do cinema também é influenciada por vieses de gênero e raça. Reconhecer essas pioneiras não é apenas fazer justiça histórica; é também compreender como seus legados pavimentaram, mesmo que discretamente, a estrada sobre a qual caminham as cineastas lusófonas contemporâneas. Na próxima seção, voltaremos o olhar para o presente e o futuro: quem são as novas vozes femininas do cinema lusófono e que políticas ou iniciativas estão em curso para apoiá-las?

NOVAS VOZES E POLÍTICAS PÚBLICAS NO AUDIOVISUAL LUSÓFONO

Entrando no século XXI, o panorama para as cineastas nos países lusófonos começou a mostrar sinais de mudança, ainda que de forma desigual conforme a realidade local. No Brasil, especialmente a partir dos anos 2000, assistiu-se a um crescimento significativo do número de diretoras em longas de ficção, impulsionado por políticas de fomento cultural mais robustas e por uma conscientização gradativa acerca da disparidade de gênero. Nomes como Anna Muylaert (Que Horas Ela Volta?, 2015), Laís Bodanzky (Bicho de Sete Cabeças, 2001), Tata Amaral (Um Céu de Estrelas, 1997), Daniela Thomas (Vazante, 2017) e Petra Costa (Democracia em Vertigem, 2019) emergiram com obras de destaque nacional e internacional. Essas cineastas conseguiram transitar tanto no circuito de festivais quanto, em alguns casos, no circuito comercial, provando a viabilidade artística e mercadológica de filmes dirigidos por mulheres. No entanto, embora houvesse mais mulheres atrás das câmeras, a maior parte delas ainda era branca e oriunda dos grandes centros. As cineastas negras brasileiras começaram a ganhar visibilidade de forma mais consistente apenas após 2015, com iniciativas de coletivos e eventos à produção desses artistas negros. Em 2017, por exemplo, ocorreu a primeira edição da Mostra de Cinemas Africanos e da Diáspora em São Paulo, que incluiu obras de diretoras afro-brasileiras; e organizações como a APAN (Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro) e a Rede de Mulheres Negras do Audiovisual passaram a articular ações para inserir diretoras negras e indígenas em projetos e editais. Exemplos de novas vozes negras incluem Viviane Ferreira (diretora de Um Dia com Jerusa, 2020, e ex-presidente da SPCINE), Glenda Nicácio (corealizadora de Café com Canela, 2017, e Ilha, 2018, filmes premiados co-dirigidos por uma dupla negra), e Sabrina Fidalgo (cujos curtas provocativos como Rainha ganharam prê-mios e atenção para questões raciais e de gênero). Essa efervescência criativa indica um princípio de mudança geracional, em que as mulheres – inclusive mulheres negras – já não são exceções tão isoladas como Adélia Sampaio fora em 1984.

As políticas públicas brasileiras influencia-ram esse quadro de forma oscilante. Entre 2013 e 2016, durante gestões gover-namentais mais comprometidas com a diversidade, a ANCINE e o Ministério da Cultura lançaram editais específicos visando inclusão de mulheres e minorias. Em 2018, chegou-se a discutir cotas de gênero nos financiamentos, mas mudanças políticas interromperam muitas dessas iniciativas. Somente em 2023-2024, com a reestruturação das políticas culturais, o tema voltou com força: em setembro de 2024, a Secretaria do Audiovisual anunciou uma medida histórica reservando 50% dos recursos de novos editais para projetos com paridade de gênero nas funções de direção, roteiro e produção executive. Esse compromisso – vinculado a um pacote de incentivos de mais de 1 bilhão de reais para o audiovisual – estabelece que, nos projetos contemplados, haja equilibração entre homens e mulheres nessas funções-chave, efetivamente implementando uma ação afirmativa de amplo alcance no cinema brasileiro. Além disso, 25% dos recursos foram reservados para empresas “vocacionadas” (especializadas em áreas como distribuição e exibição), muitas das quais de pequeno porte e frequentemente lideradas por mulheres ou jovens empreendedores, o que também pode beneficiar realizadoras independentes. A retomada dessa agenda igualitária pelo governo brasileiro aponta para um reconhecimento de que a diversidade não ocorre espontaneamente – é preciso induzi-la via políticas inclusivas. Vale citar que, já em 2017, o Ministério da Cultura havia sinalizado intenções similares de lançar editais com recorte para mulheres, negros e indígenas, mas o refluxo político de 2018 congelou tais planos. Agora, com o respaldo de movimentos sociais e da classe artística, a expectativa é de que a paridade de gênero nos editais se traduza em aumento real de filmes dirigidos por mulheres nos próximos anos, inclusive abrindo espaços para aquelas historicamente marginalizadas (negras, trans, periféricas).

Em Portugal, as novas vozes femininas também começam a se fazer notar, embora em número absoluto sejam menos (devido ao tamanho da indústria local). Na geração surgida nos anos 2010 destacam-se, por exemplo, Leonor Teles, que aos 22 anos ganhou um Urso de Ouro de curta-metragem em Berlim por Balada de um Batráquio (2016) – um documentário experimental sobre preconceito étnico; Cláudia Varejão, documentarista e cineasta de ficção (Ama-San, 2016); e Ana Rocha de Sousa, premiada em Veneza por Listen (2020). Há também realizadoras estabelecidas há mais tempo, como Teresa Villaverde e Margarida Cardoso, que continuam produzindo. Entretanto, a percepção geral é de que o cinema português ainda carece de paridade tanto na direção quanto em outras áreas técnicas. Em 2019, uma polêmica evidenciou essa questão quando a composição de júris de apoios públicos apresentou quase somente homens, levando o ICA a reconhecer a “falta de paridade de gênero” e a se comprometer com mudanças. Como resposta estruturante, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) incorporou, no Decreto-Lei n.º 25/2018 (atualizado), critérios de promoção de género que majoram em 10% a pontuação de candidaturas com equipas paritárias ou com mulheres em cargos de direção (ICA, 2024). O regulamento prevê ainda quotas mínimas de 40% de representação feminina nos júris de avaliação — meta que alcançou 44% em 2023 (ICA, 2024). No âmbito do Programa Novos Talentos e Primeiras Obras, exige-se que 50% dos projetos apoiados sejam liderados por diretoras ou produtoras mulheres (ICA, 2024). Portugal também aderiu ao compromisso 50/50 by 2020, promovido pelo movimento internacional de paridade de género no cinema, embora a meta não tenha sido plenamente atingida (Brasil, 2014). No campo da televisão, estudos apontam persistência de estereótipos e baixa pluralidade de representações femininas, o que motivou a elaboração de manuais de boas práticas e ações educativas (ANCINE, 2018). Outra iniciativa relevante em Portugal é a proliferação de festivais e mostras dedicadas a mulheres: além do Porto Femme, eventos como o Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival (Lisboa) e mostras regionais garantem espaço para filmes dirigidos por mulheres, ampliando sua visibilidade e fomentando discussões com o público.No contexto dos PALOP, os desafios institucionais tornam as políticas públicas específicas para mulheres ainda incipientes. A maioria desses países carece de editais regulares de fomento ao cinema – o financiamento costuma vir de parcerias internacionais (União Europeia, instituições francesas, portuguesas, etc.) e, mais raramente, de fundos nacionais esporádicos. Ainda assim, podemos identificar alguns sinais positivos: em Angola, por exemplo, a participação de mulheres em oficinas e programas de formação tem crescido, e coletivos como o Ondjango Feminista (de jovens feministas angolanas) já organizaram sessões cineclubistas com foco em filmes dirigidos por mulheres. Em Moçambique, o Festival Dockanema de documentários frequentemente exibe trabalhos de realizadoras moçambicanas e de outros países africanos, estimulando o intercâmbio. Cabo Verde, por sua vez, enviou em 2021 sua primeira mulher cineasta para o prestigiado programa Berlinale Talents (a diretora Samira Vera-Cruz), sinalizando um novo patamar de reconhecimento internacional. Além disso, a retomada da participação brasileira na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em matéria de audiovisual – mencionada numa fala da secretária do Audiovisual do Brasil, Joelma Gonzaga, em 2024 – indica a possibilidade de projetos de coprodução e intercâmbio envolvendo Portugal, Brasil e países africanos, o que pode beneficiar profissionalmente cineastas nesses países. Uma ideia citada foi a geração de conteúdo para TVs públicas de países como Portugal e Angola, o que pode abrir oportunidades a diretoras lusófonas nesses mercados cruzados.

Um capítulo à parte no fomento às novas vozes é representado pelos festivais de cinema de mulheres. Nesse aspecto, o Porto Femme – Festival Internacional de Cinema tornou-se um caso de sucesso e referência na lusofonia. Criado em 2018, em Portugal, o Porto Femme se propõe a “mostrar e divulgar o trabalho de pessoas que se identificam como mulheres”, celebrando o cinema no feminino e promovendo a igualdade de gênero. Logo em sua 1ª edição, em 2018, o festival revelou um apetite enorme: recebeu 393 filmes inscritos, oriundos de 42 países, dos quais 21 foram premiados em diferentes categorias. A programação abrangia curtas e longas, ficção, documentário, animação e experimental, com competições nacional e internacional, além de sessões temáticas sobre direitos das mulheres. Desde então, o Porto Femme realizou edições anuais (com adaptações durante a pandemia de 2020, quando combinou sessões virtuais e presenciais, consolidando-se como uma vitrine das criações femininas. Em 2019, o festival exibiu mais de 110 filmes de 32 países, incluindo uma mostra estudantil para incentivar jovens cineastas e até uma competição intitulada “XX Element” dedicada a filmes dirigidos por homens mas com equipes técnicas majoritariamente femininas – uma iniciativa curiosa para envolver aliados homens na causa da igualdade. O festival também presta homenagens a atrizes e diretoras veteranas: por exemplo, em 2019 homenageou a portuguesa Monique Rutler, destacada realizadora do pós-25 de Abril. Os catálogos Porto Femme (2018–2025) registram não apenas a programação, mas trazem artigos e entrevistas que refletem sobre a posição da mulher no cinema atual, funcionando como fontes importantes para pesquisadores. (Porto Femme, 2018) A existência e sucesso contínuo de um festival dedicado demostram a demanda por espaços de exibição para obras de mulheres, e igualmente apontam para o surgimento de um público interessado nessa perspectiva. De certa forma, eventos assim contribuem para legitimar as carreiras de diretoras – muitos filmes premiados no Porto Femme depois circulam por outros festivais, abrindo portas às suas criadoras. No panorama lusófono, Porto Femme atua ainda como um polo de conexão: filmes de realizadoras brasileiras, africanas e asiáticas encontram ali acolhida, estimulando trocas culturais. Iniciativas semelhantes, em menor escala, pipocam: no Brasil, houve edições do Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino (sobretudo nos anos 2000); em Moçambique, ocasionalmente são organizadas mostras dedicadas à mulher africana; e globalmente, o movimento de festivais de mulheres fortalece redes como a International Women’s Film Festival Network. Esses espaços complementam as políticas públicas ao darem visibilidade e ao premiarem talentos que o circuito mainstream às vezes ignora.

Finalmente, é crucial mencionar a importância de referenciais positivos e da preservação da memória para inspirar novas gerações. A realização do projeto “As Pioneiras do Cinema em Língua Portuguesa”, por Luísa Sequeira (um piloto de série documental produzido em 2023), é emblemática nesse sentido. Ao reconstruir narrativas das primeiras cineastas (como Bárbara Virgínia personificada na série, dialogando ficcionalmente com figuras como a francesa Alice Guy-Blaché), esse projeto educativo lança luz sobre modelos em que as jovens cineastas lusófonas podem se espelhar. Igualmente, esforços de cinematecas e arquivos em restaurar filmes feitos por mulheres – desde Três Dias Sem Deus (do qual parte foi recuperada) até Sambizanga (restaurado em 2021) – têm um impacto simbólico e prático: simbólico, por reinscrever as mulheres na história do cinema; prático, por permitir que tais obras integrem currículos, mostras e plataformas, influenciando criativamente quem as assiste.

Em suma, as novas vozes das cineastas lusófonas ecoam hoje mais forte do que nunca, mas não sem lutas e reivindicações. Nos três contextos examinados (Brasil, Portugal, PALOP), vemos que a presença feminina atrás das câmeras aumentou, porém ainda aquém da paridade; vemos que políticas públicas começaram a responder, porém de forma tardia ou insuficiente; vemos também uma consciência crítica maior da parte da sociedade e dos próprios realizadores sobre a necessidade de diversidade. O caminho para uma inclusão plena está em curso, demandando vigilância para que retrocessos não apaguem conquistas. No próximo item, apresentamos uma filmografia comentada com alguns dos filmes mais emblemáticos citados neste estudo, que ilustram a riqueza e variedade do cinema feito por mulheres no universo lusófono.

FILMOGRAFIA DE DESTAQUE

A seguir, relacionamos obras cinematográficas mencionadas ou analisadas ao longo do artigo, ressaltando sua relevância histórica ou estética no contexto do cinema lusófono feito por cineastas mulheres:

- Três Dias Sem Deus (1946) - Direção: Bárbara Virgínia. Primeiro longa de ficção dirigido por uma mulher em Portugal, selecionado para a edição inaugural do Festival de Cannes. Drama ambientado numa aldeia ao longo de três dias de intensos eventos religiosos e pessoais; hoje restam apenas 26 minutos sem som do original.

- Monangambée (1969) - Direção: Sarah Maldoror. Curta (Angola/Argélia) baseado em conto de José Luandino Vieira, que denuncia a opressão colonial portuguesa por meio de um incidente trágico.

- Sambizanga (1972) - Direção: Sarah Maldoror. Co-produção Angola/França; primeiro longa de ficção africano dirigido por uma mulher. Retrata a busca de uma esposa por notícias do marido preso pelas forças colonialistas, tornando-se marco do cinema militante pan-africano e premiado em Cartago e Berlim.

- Amor Maldito (1984) - Direção: Adélia Sampaio. Brasil. Primeiro longa de ficção dirigido por uma cineasta negra no Brasil. Aborda o romance entre duas mulheres e o julgamento criminal que se segue à morte de uma delas.

- Um Céu de Estrelas (1997) - Direção: Tata Amaral. Primeiro longa de ficção dirigido por uma mulher no Brasil pós-ditadura, que sinalizou a retomada de vozes femininas na produção cinematográfica nacional.

- Na Cidade Vazia (2004) - Direção: Maria João Ganga. Angola. Primeiro longa de ficção de uma cineasta angolana, acompanha um garoto perdido em Luanda após o fim da guerra civil.

- Por Aqui Tudo Bem (2011) - Direção: Pocas Pascoal. Angola/Portugal. Longa autobiográfico sobre duas irmãs refugiadas em Lisboa durante a guerra civil angolana; exibido e premiado em Roterdã.

- Que Horas Ela Volta? (2015) - Direção: Anna Muylaert. Brasil. Longa de ficção que discute relações de classe e gênero por meio da relação entre uma empregada doméstica e sua filha; premiado com o Prêmio do Público em Berlim.

- Café com Canela (2017) - Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa. Brasil. Drama ambientado no Recôncavo Baiano, focado em personagens negros; prêmio Urso de Ouro de Curta em Berlim.

- As Pioneiras do Cinema em Língua Portuguesa (2023) - Direção: Luísa Sequeira. Portugal. Curta documental (15 min) que resgata memórias de cineastas lusófonas pioneiras, incluindo Bárbara Virgínia, em formato híbrido de encenação e entrevista.

CONCLUSÃO

A trajetória das cineastas lusófonas, do século XX aos dias atuais, reflete simultaneamente padrões globais de desigualdade de gênero no cinema e especificidades locais ligadas à história social e política de cada país. Este artigo procurou evidenciar que, apesar de todo o apagamento histórico e dos obstáculos estruturais enfrentados, as mulheres de língua portuguesa vêm afirmando suas vozes no audiovisual de maneiras diversas – seja rompendo pioneiramente barreiras em contextos adversos, seja articulando-se em redes de solidariedade e luta por espaço, seja beneficiando-se (e frequentemente cobrando) políticas públicas que promovam a equidade.

A análise interseccional mostrou-se crucial para compreender a complexidade dessa jornada. Não se trata apenas de inserir mais mulheres em um campo dominado por homens, mas de considerar quais mulheres conseguem adentrar esse campo. Vimos que, durante muito tempo, apenas aquelas com determinadas vantagens (sociais, raciais, econômicas) tiveram chances; vimos também que as opressões de gênero se combinam a outras, como o racismo, para tornar praticamente invisíveis figuras como Adélia Sampaio até que a lente certa (feminista e antirracista) as traga ao foco. Reconhecer essas dinâmicas é passo fundamental para desenhar estratégias eficazes de inclusão. Por isso, políticas afirmativas como a reserva de 50% de vagas ou recursos para mulheres em editais brasileiros, ou as bonificações implementadas pelo ICA em Portugal, não são meros privilégios imerecidos, mas correções de rumos historicamente enviesados. São ações que atacam as desigualdades pela raiz, garantindo que talentos que antes seriam ignorados possam florescer.

Outra conclusão evidente é o poder transformador da ação coletiva e da visibilidade. Iniciativas como o Porto Femme Festival demonstram que, quando se cria uma plataforma dedicada, a produção feminina aparece em abundância e diversidade – desmentindo qualquer noção ultrapassada de que faltariam mulheres interessadas ou capacitadas. Os coletivos mapeados no Brasil evidenciam que há toda uma geração se organizando para produzir narrativas diferentes, reimaginar estruturas e apoiar umas às outras. Assim, a mudança não vem apenas de cima (das políticas governamentais), mas também de baixo, através do associativismo, do ativismo e da sororidade profissional. A confluência dessas duas frentes – pressão de base e abertura institucional – parece ser a chave para acelerar o passo rumo a um audiovisual mais justo.

Cabe salientar, contudo, que os desafios estão longe de superados. A cada crise (econômica, política, sanitária) existe o risco de retrocessos, seja pela redução de investimentos culturais que afeta principalmente minorias, seja pela ascensão de discursos conservadores que atacam pautas de gênero e diversidade. Exemplos recentes mostram essa fragilidade: a extinção temporária do Ministério da Cultura no Brasil em 2019 e a censura a conteúdos educativos de gênero em países lusófonos são lembretes de que as conquistas requerem constante vigilância e defesa. Nesse sentido, a academia, os festivais e a imprensa cultural têm papel de guardiões de memória e de críticos sociais, devendo continuar a valorizar as cineastas e a expor as disparidades remanescentes.

No âmbito artístico, é inegável que a maior presença feminina enriquece as cinematografias lusófonas. Histórias antes não contadas estão vindo à tona: seja uma perspectiva feminina sobre a guerra colonial, como trouxe Sambizanga, seja o olhar crítico sobre a relação patroa-empregada em Que Horas Ela Volta?, ou a visão de uma jovem cigana sobre sua cultura em Balada de um Batráquio. Essas narrativas ampliam o repertório cultural e desafiam públicos a vivenciar e compartilhar experiências diversas. Em outras palavras, promover mulheres diretoras não é uma simples questão de justiça corporativa, mas de diversidade narrativa – ganham as mulheres enquanto profissionais, e ganha o público com filmes mais plurais e inovadores.

Concluímos, portanto, enfatizando que a contribuição contemporânea das cineastas lusófonas está em plena construção e merece continuado apoio e estudo. Os casos mapeados neste trabalho – das precursoras às emergentes – ilustram um movimento de evolução: de uma solidão pioneira para uma sororidade coletiva; de uma exceção admirável para uma normalização desejável. Que nos próximos anos possamos testemunhar um contexto em que não seja mais notícia ou surpresa haver mulheres, de diferentes origens, comandando filmes em nossos países. Que Bárbara Virgínia, Sarah Maldoror e Adélia Sampaio sejam sempre lembradas não apenas como pioneiras corajosas, mas como parte de uma linhagem contínua de cineastas brilhantes que o mundo lusófono tem a oferecer.

BIBLIOGRAFIA

Amaral, Tata. 1997. Um Céu de Estrelas. Brasil: primeiro longa de ficção dirigido por uma mulher no Brasil pós-ditadura.

ANCINE – Agência Nacional do Cinema. 2018a. Edital Prodecine 2018: Diretrizes de Gênero (Seção 3.4). Rio de Janeiro: ANCINE. Disponível em: https://www.ancine.gov.br/edital/prodecine-2018.pdf. Acedido em 10 mar. 2025.

ANCINE – Agência Nacional do Cinema. 2018b. Informe: Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016. Rio de Janeiro: ANCINE/Observatório do Cinema e Audiovisual. Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/arquivos/informe-diversidade-2016.pdf. Acedido em 10 mar. 2025.

Bijotti, Catarina Silva. 2024. “A posição de Adélia Sampaio dentro do cinema brasileiro antes e depois de sua redescoberta.” História e Cultura 13 (1).

Bell hooks. 1989. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press.

Bell hooks. 2019. Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante.

Brasil. 2014. Lei n.º 13.014, de 2 de julho de 2014. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13014.htm. Acedido em 10 mar. 2025.

CFEMEA / Universidade Federal Fluminense. 2023. Conheça o projeto que mapeia coletivos formados por mulheres do audiovisual brasileiro. Brasília/Niterói: CFEMEA/UFF. Disponível em: https://www.uff.br/?q=noticias/21-09-2023/conheca-o-projeto-que-mapeia-coletivos-formados-por-mulheres-do-audiovisual. Acedido em 10 mar. 2025.

Gonzalez, Lélia. 1984. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Marco Zero.

Gonzalez, Lélia. 2017. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar.

Holanda, Karla, org. 2019. Mulheres de Cinema. Rio de Janeiro: Mombak.

ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual. 2024a. Regulamento de Apoio à Finalização de Obras Cinematográficas. Lisboa: ICA. Disponível em seção “Apoios 2024 – Finalização de Obras Cinematográficas” no site oficial. Acedido em 10 mar. 2025.

ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual. 2024b. Regulamento de Editais 2024: Critérios de avaliação (Art. 5.º, § 2.º). Lisboa: ICA. Disponível em: https://www.ica.gov.pt/docs/regulamento_editais_2024.pdf. Acedido em 10 mar. 2025.

ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual. 2025a. Publicações. Lisboa: ICA. Disponível em: https://www.ica-ip.pt/pt/downloads/publicacoes/. Acedido em 13 jun. 2025.

ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual. 2025b. Exibição e Distribuição. Lisboa: ICA. Disponível em: https://www.ica-ip.pt/pt/downloads/exibicao-e-distribuicao/. Acedido em 13 jun. 2025.

ICA / ANCINE. 2018. Protocolo de Cooperação ICA-ANCINE. Lisboa: ICA. Disponível em: https://www.ica-ip.pt/fotos/downloads/ancineprotocolo_de_cooperacao_ica-ancine_1804464941b4364334.pdf. Acedido em 13 jun. 2025.

Lauretis, Teresa de. 1984. Alice Doesn’t: Feminism, Semiotics, Cinema. Bloomington: Indiana University Press.

Madeira, Maria João. 2023. As Pioneiras do Cinema em Língua Portuguesa – nota de programa. Lisboa: Cinemateca Portuguesa. (Sessão “As Pioneiras do Cinema em Língua Portuguesa / L’Eden de La Ciotat”, 4 maio 2023).

Martins, Renata. 2021. Empoderadas: Narrativas Incontidas do Audiovisual Brasileiro. São Paulo: Rettec Artes.

Mulher no Cinema. 2020. “Sarah Maldoror, pioneira diretora de ‘Sambizanga’, morre aos 90 anos.” São Paulo: MulherNoCinema.com, 13 abr. Disponível em: https://mulhernocinema.com/noticias/sarah-maldoror-pioneira-diretora-de-sambizanga-morre-aos-90-anos-em-paris/. Acedido em 9 mar. 2025.

Nascimento, Beatriz. 2019. Quilombola e Intelectual: possibilidades nos dias de hoje. Rio de Janeiro: Filhos da África.

Orlandi, Ana Paula. 2021. “O Cinema Delas.” Revista Pesquisa FAPESP. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br. Acedido em 10 mar. 2025.

Penha de Souza, Edileuza. 2013. (Re)construindo memórias negras através do cinema: o caso de Adélia Sampaio. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista (UNESP).

PORTO FEMME. 2018–2025. Catálogos Porto Femme – International Film Festival (1.ª a 8.ª edições). Porto: XX Element.

Prodview. 2024. “18ª CineBH – Anúncio histórico da Secretaria do Audiovisual e retorno de incentivo à produção.” São Paulo: Prodview.com.br, 26 set. Disponível em: https://prodview.com.br/2024/09/26/18a-cinebh-anuncio-historico-da-secretaria-do-audiovisual-e-retorno-de-incentivo-a-producao/. Acedido em 9 mar. 2025.

Revista de Cinema. 2018. “ANCINE apresenta estudo sobre diversidade de gênero e raça no mercado audiovisual.” Redação Revista de Cinema, 25 jan. Disponível em: http://revistadecinema.com.br/2018/01/ancine-apresenta-estudo-sobre-diversidade-de-genero-e-raca-no-mercado-audiovisual/. Acedido em 8 mar. 2025.

Rich, B. Ruby. 1998. Chick Flicks: Theories and Memories of the Feminist Film Movement. Durham: Duke University Press.

Rodrigues, Nina. s.d. Pesquisas em Cinema e Feminismos Interseccionais. [S.l.: s.n.]. (Trabalho em desenvolvimento).

RTP / LUSA. 2019. “Porto Femme, o festival de cinema dedicado às mulheres, regressa hoje à Invicta.” Lisboa: RTP Notícias, 18 jun. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/porto-femme-o-festival-de-cinema-dedicado-as-mulheres-regressa-hoje-a-invicta_n1154643. Acedido em 9 mar. 2025.

Sequeiros, Paula; Sequeira, Luísa. 2017. “Esquecer Bárbara Virgínia? Uma cineasta precursora entre Portugal e o Brasil.” Comunicação e Sociedade 32: 331–352.