Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Black Saints in Brazilian Cinema: Representation, Spirituality, and Cultural Identity

Santos Negros no Cinema Brasileiro: Representação, Espiritualidade e Identidade Cultural

Selma Pereira

CICANT, ISMAT-Ensino Lusófona, Portugal

Ricardo Alexino Ferreira

Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, Brasil

Adérito Fernandes-Marcos

CIAC-Centro de Investigação em Artes e Comunicação, INESC-TEC/LE@D Universidade de São José, Macau, China / Portugal

Abstract

Black saints hold significant historical and symbolic relevance, serving as resistance, spirituality, and identity figures for Afro-descendant communities. Their visual representation, particularly in cinema, has played a crucial role in cultural reinterpretation and the construction of narratives that challenge Eurocentric paradigms. This presentation examines how Brazilian cinema has portrayed black saints, exploring how these representations engage with collective memory, Afro-descendant spirituality, and dynamics of religious syncretism. The study addresses the importance of these figures in shaping a sense of belonging and resistance, as well as the challenges surrounding their appropriation and depiction in cinematic contexts.
Through analysing two representative films, we investigate how cinematic language shapes perceptions of black saints and their connections to popular religiosity, highlighting tensions between faith, identity, and cultural heritage. This research reflects on the impact of these representations on the social imagination, emphasising the role of cinema in the appreciation and preservation of Afro-descendant traditions. By discussing the significance of black saints’ imagery in cinema, this presentation aims to contribute to a deeper understanding of the role of black spirituality in shaping cultural identity and affirming religious diversity in the cinematic space.

Keywords: Black saints, Religious syncretism, Brazilian cinema, Afro-descendant spirituality, Cultural representation.

Introdução

A presença de santos negros nas tradições visuais, culturais e religiosas do mundo atlântico constitui um fenómeno denso e complexo, que atravessa geografias coloniais e pós-coloniais com implicações simbólicas profundas. No Brasil e em Portugal, as figuras de santos racializados — sejam eles canonizados pela Igreja Católica ou emergentes de devoções populares afrodescendentes — articulam memórias, resistências e espiritualidades sincréticas. Estas figuras, particularmente no contexto afro-luso-brasileiro, não apenas traduzem a resiliência espiritual dos povos africanos e seus descendentes, como também desafiam os sistemas de exclusão simbólica impostos por estruturas coloniais e racistas.

O presente artigo propõe-se investigar as formas de representação dos santos negros, com ênfase particular na sua presença nas artes visuais e sobretudo no cinema brasileiro contemporâneo. Partimos do pressuposto de que estas imagens, longe de serem meramente decorativas ou ilustrativas, operam como dispositivos de agência cultural e de reinscrição identitária no espaço público.

Através da análise de fontes visuais, obras cinematográficas e documentação histórica, examinamos os modos como a espiritualidade negra se manifesta, se adapta e se afirma, em especial por meio do sincretismo religioso que marca profundamente a experiência afro-brasileira.

Com especial atenção ao cruzamento entre orixás e santos católicos, refletimos sobre como o cinema brasileiro tem contribuído para reinscrever estas figuras no imaginário coletivo, atribuindo-lhes centralidade estética e política. O estudo parte da hipótese de que os santos negros — enquanto imagens, narrativas e entidades espirituais — constituem uma gramática visual da resistência, particularmente relevante na atualidade, num contexto de crescente valorização das epistemologias negras e de questionamento das narrativas eurocêntricas.

1. Enquadramento histórico da veneração dos santos negros: génese, difusão e significado cultural

No século XVIII, as representações de santos negros — que atualmente são muitas vezes ignoradas ou marginalizadas — foram instrumentalizadas como estandartes da aculturação evangelizadora, servindo como elementos de integração cultural nas confrarias negras que surgiam tanto em Portugal como em outros territórios colonizados, com especial destaque para o Brasil. Através da veneração destes santos negros, a quem eram atribuídos poderes curativos e milagrosos, a Igreja Católica promoveu uma forma de inclusão religiosa e social das populações negras, estabelecendo vínculos de pertença espiritual e de identidade comunitária no seio do catolicismo.

A representação de figuras de santos negros possui raízes profundas no imaginário religioso europeu e americano, mas também um pouco por todo o mundo, sendo fundamental para compreender as dinâmicas de apropriação, resistência e transformação cultural que moldaram o cristianismo popular entre as populações negras no contexto da diáspora. Na Europa, encontramos santos negros na Alemanha, com a figura de São Maurício (St. Mauritius), datada no século XII, na Catedral de Magdeburgo (Kaplan, 2023), na França, a virgem negra de Le Puy-en-Velay e outras Madonas Negras foram objeto de veneração ao longo da Idade Média (Landman, 2013; Scheer, 2002); na Extremadura espanhola, a Virgem de Guadalupe (Peterson, 2014); na Sicília, a Virgem Negra de Tindari (Heng, 2011).

Na América Latina, no Brasil, a veneração dos santos negros foi profundamente enraizada na religiosidade popular, sobretudo de cariz cultural, com especial destaque para São Benedito e Santa Efigénia (Rowen, 2019), no Peru, a Santa Efigénia também teve devotos entre as comunidades afrodescendentes (Sánchez, 2012). Na América do Norte, apesar do culto aos santos negros não ter grande expressão no protestantismo, encontramos a figura da Santa Sara Kali, associada aos povos Romani e às tradições sincréticas (Hall, 1995)

Embora o cristianismo africano tenha sido frequentemente considerado como um produto da missão europeia, várias regiões do continente apresentam venerações próprias a santos negros: na Etiópia e Eritreia, a figura de São Moisés é venerada como símbolo de ascetismo, resistência e santidade, e a Virgem Maria é amplamente representada com traços africanos na arte etíope (Kapan, 2009). No Egipto, a presença de santos do deserto como Antão, Pacómio e São Moisés influenciou profundamente o cristianismo monástico copta (Meinardus, 2002).

Embora menos difundida, a veneração dos santos negros chegou ao continente asiático com a missão jesuíta e franciscana, sobretudo nos países colonizados por Portugal e Espanha: em Goa, na Índia, a figura de São Benedito foi introduzida nas práticas devocionais locais e nas Filipinas coloniais espanholas foi difundida a imagem da Virgem de Guadalupe e de santos afro-ibéricos, embora não tenha atingido expressão nacional (Camacho, 2019). A presença de santos negros na Oceania é mais simbólica e contemporânea (Obasi, 2020).

Na historiografia da arte sacra e das práticas de religiosidade popular, destaca-se a emergência das chamadas Madonas Negras, esculturas medievais da Virgem Maria com tez escura, que proliferaram sobretudo entre os séculos XII e XIII em santuários como Montserrat (Catalunha) (ver figura 1), Guadalupe (Extremadura), Tindari (Sicília) e Le Puy (França). A origem da sua negritude foi alvo de debate entre historiadores da arte e teólogos: se por um lado há quem acredite numa pigmentação simbólica intencional, associada ao sofrimento e à fertilidade (Peterson, 2014), outros sustentam que o escurecimento das imagens terá resultado da ação do tempo, da fuligem das velas ou da oxidação dos materiais (Scheer, 2002). Em ambos os casos, o mais relevante é a forma como tais imagens foram ressignificadas pelas comunidades devotas a cor negra passou a ser associada ao sofrimento redentor, à fertilidade, ao mistério e à transcendência espiritual, valorizando a humildade, a compaixão ou a capacidade de interceder junto dos marginalizados (Landman, 2013).

Durante a Idade Média, estas figuras tornaram-se não apenas ícones de santidade, mas símbolos de resistência cultural e espiritual. Em muitos casos, foram apropriadas para legitimar campanhas cruzadistas e, posteriormente, no contexto da expansão ibérica, adaptadas às necessidades evangelizadoras nos territórios colonizados. A Virgem de Guadalupe, por exemplo, sofreu um processo de hibridização que a transformou num emblema identitário dos povos indígenas e mestiços da Nova Espanha (Redd, 1980).

Entre os santos negros com maior projeção no cristianismo europeu, destaca-se São Maurício, comandante da Legião Tebana, venerado a partir do século X e representado como africano subsaariano em diversas iconografias do século XIII, nomeadamente na Catedral de Magdeburgo. A instrumentalização da sua imagem por imperadores como Frederico II evidencia a complexa intersecção entre religião, imperialismo e racialização no Sacro Império Romano-Germânico (Clemens, 2020).

Também a figura de São Moisés, o Etíope, ganhou notoriedade enquanto monge asceta e mártir, reforçando a idealização da Etiópia como berço de uma cristandade pura e anterior ao catolicismo romano. Esta idealização, muito presente nos discursos teológicos da Idade Moderna, refletia-se também na arte sacra, onde as feições negras eram preservadas como marca de autenticidade e santidade (Beresford, 2013).

Outro caso relevante é o de Santa Efigénia, figura hagiográfica forjada no contexto europeu carolíngio, cujo culto foi mais tarde reconfigurado para se alinhar com os esforços missionários da expansão portuguesa. Representada com traços africanos e frequentemente associada à ordem carmelita, Santa Efigénia tornou-se símbolo de proteção, pureza e resistência espiritual entre as populações afrodescendentes no Brasil e em Portugal (Sánchez, 2012).

Com o advento da expansão ultramarina portuguesa, os santos negros passaram a desempenhar um papel crucial nos processos de aculturação e evangelização das populações africanas escravizadas. As confrarias negras constituíram-se como estruturas religiosas e sociais que não apenas facilitavam a assimilação dos dogmas católicos, mas também preservavam elementos essenciais das cosmologias africanas, operando como espaços de mediação cultural e resistência simbólica (Walker, 2013). Como observa Rowen (2019), as figuras dos santos negros, especialmente nas colónias, cumpriam uma função pedagógica e política, representando a possibilidade de salvação, honra e santidade para um grupo social sistematicamente marginalizado. A espiritualidade negra, neste sentido, emerge como uma hagiografia de luta e sobrevivência, reinventando os símbolos da fé para responder às violências da escravidão e ao silenciamento das culturas africanas.

Contudo esta incorporação não foi isenta de conflito. A Reforma Protestante, ao condenar a veneração de imagens e santos, impôs um apagamento sistemático destas representações nas regiões sob influência reformada. No entanto, nas regiões católicas, a devoção a figuras negras intensificou-se como forma de resistência teológica e cultural. Durante o Renascimento, este culto foi reinterpretado à luz de uma estética mais humanista, ainda que as conotações simbólicas da negritude enquanto expressão de sofrimento redentor e pureza espiritual tenham persistido (Heng, 2011).

A presença dos santos negros, e em particular a sua representação imagética, constitui um poderoso indicador da forma como a Igreja Católica, as populações africanas e os regimes coloniais negociaram os contornos da identidade espiritual na diáspora negra. Esta negociação complexa e por vezes ambivalente está na base de muitos dos processos de sincretismo religioso que mais tarde se manifestariam nas Américas, particularmente no Brasil, onde estas figuras foram reapropriadas no contexto das religiões afro-brasileiras e no imaginário cinematográfico contemporâneo (Mulvey, 1979).

Como argumenta Berndt (2011), estes santos são “figuras-limite” que operam nos interstícios entre o canónico e o periférico, entre o sagrado oficial e o popular subalterno. A sua presença, revela as falhas e os excessos do sistema iconográfico cristão europeu, permitindo que os sujeitos racializados encontrassem nele possibilidades de agência e afirmação.

Do ponto de vista do imaginário, os santos negros ocuparam um papel semelhante ao das Madonas Negras: eram imagens que, enquanto conferiam poder espiritual, desafiavam as normas estéticas e teológicas da branquitude hegemónica. No caso das comunidades afrodescendentes no Brasil, a repetição ritual destas imagens — em procissões, festas religiosas e práticas devocionais — permitiu a criação de uma memória coletiva que resgatava a dignidade negra e reivindicava a sua centralidade na história da salvação cristã. A espiritualidade negra, neste contexto, não é apenas o reflexo de um sincretismo funcional, mas a construção ativa de uma epistemologia visual da resistência (Prudente, 2019).

A iconografia dos santos negros é também um campo de disputa contemporâneo. A sua recuperação por artistas, cineastas e ativistas negros nos séculos XX e XXI demonstra que estas figuras continuam a desempenhar um papel essencial na articulação entre fé, identidade e justiça social. A permanência dos santos negros no imaginário religioso e cultural do Brasil, de Portugal, e de outras geografias da diáspora africana é um testemunho da sua força simbólica e da sua capacidade de mobilizar afetos, memórias e projetos de emancipação coletiva.

2. A representação visual dos santos negros nas artes

Desde os primeiros séculos da colonização até à contemporaneidade, as imagens dos santos negros ocuparam um espaço ambíguo entre a devoção e o silêncio simbólico, entre o reconhecimento e a marginalização. Particularmente no Brasil e em Portugal, a produção artística sobre santos negros reflete os processos de aculturação religiosa, mas também as tensões inerentes à presença africana nas margens do catolicismo europeu.

No Brasil, as representações visuais de santos negros como São Benedito e Santa Efigénia floresceram no seio das irmandades religiosas constituídas por pessoas negras livres, libertas ou mesmo escravizadas. Estas confrarias, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, desempenharam um papel crucial na preservação da espiritualidade africana, adaptada ao contexto católico imposto pelo colonialismo. Através de práticas devocionais, festas religiosas e comissões de obras artísticas — sobretudo esculturas, painéis pintados e elementos decorativos de igrejas — estas comunidades produziram imagens que consolidavam a sua fé, mas também a sua agência simbólica. As imagens de São Benedito, em particular, multiplicaram-se nas igrejas do século XVIII, retratado como um frade franciscano de pele negra, geralmente com um semblante calmo e mãos entrelaçadas em oração ou segurando um menino branco nos braços (Mulvey, 1979).

Ao mesmo tempo, a arte sacra produzida no Brasil não escapava às hierarquias sociais e raciais que estruturavam a sociedade colonial. As imagens de santos negros, embora aceites no espaço litúrgico, eram frequentemente relegadas a capelas laterais ou a espaços periféricos dos templos. No entanto, mesmo nessas margens, a imagem do santo negro operava como uma forma de reconhecimento da dignidade espiritual dos africanos e seus descendentes, oferecendo-lhes um modelo de santidade que lhes era próximo tanto em termos fenotípicos como históricos (Rowen, 2019).

Em Portugal, a representação visual de santos negros não atingiu o mesmo grau de difusão, mas também encontrou espaços de expressão, sobretudo em cidades com forte presença de africanos, como Lisboa ou Porto (Igreja de Santa Clara do Porto, ver figura 1). Em museus como o Museu Nacional de Arte Antiga ou o Museu de São Roque é possível identificar imagens de santos de pele escura, entre os quais se destacam algumas representações de São Benedito e de Balthasar, um dos reis magos (Kaplan, 2023).

Figura 1 – (esq). Madona Negra de Montserrat; (dir) Representação da Santa Efigênia. Igreja Santa Clara do Porto, Portugal.

A escultura religiosa adotou representações de santos negros, ainda que estas nem sempre fossem reconhecidas como tal. Muitas vezes, a coloração escura da pele podia ser interpretada como um sinal de sofrimento ou ascese, e não necessariamente de identidade étnica (Walker, 2013).

2.1. Representação visual dos santos negros na contemporaneidade

Nas últimas décadas, o campo artístico contemporâneo tem-se debruçado com intensidade renovada sobre a iconografia dos santos negros, tanto em Portugal como no Brasil. Este movimento revisita a herança barroca e colonial destas representações, propondo uma crítica à persistência da invisibilidade negra nos acervos e narrativas hegemónicas da história da arte. Em particular, artistas afrodescendentes têm desempenhado um papel crucial na revitalização estética e política destas imagens (Araújo, 2004).

No Brasil, o Museu Afro Brasil tornou-se um espaço emblemático para a preservação e valorização da arte sacra afro-brasileira. Neste museu, imagens de São Benedito e Santa Efigénia ocupam lugar de destaque, não apenas como peças religiosas, mas como manifestações artísticas dotadas de densidade histórica e afetiva.

Artistas como Rosana Paulino, Ayrson Heráclito e Jaime Lauriano incorporam a memória religiosa negra nos seus trabalhos como forma de denúncia do racismo estrutural e de evocação de uma espiritualidade insurgente (Paulino, 2012; Heráclito, 2010). Embora nem sempre representem diretamente santos negros, os seus trabalhos frequentemente evocam a religiosidade sincrética afro-brasileira.

Em Portugal, a presença destas imagens nas artes contemporâneas é mais recente, mas encontra expressão em exposições como ‘Europa Oxalá’, realizadas na Fundação Caloste gulbenkian Gulbenkian, em Lisboa (Gulbenkian, 2022) (ver figura 2), ou em eventos dedicados à crítica pós-colonial e à memória afro-europeia. Nesses espaços, os santos negros surgem descontextualizados do seu uso litúrgico e reinscritos em discursos de denúncia, reparação e valorização simbólica.

Além do campo das artes visuais institucionais, há também iniciativas comunitárias como as festas em honra de São Benedito, que mobilizam fiéis tanto em cidades do Brasil e de Portugal. Estas práticas mantêm vivas as representações dos santos negros enquanto património religioso e cultural.

A crítica decolonial tem contribuído para repensar o lugar destes santos na arte, não apenas como objetos de culto, mas como formas de agência simbólica que articulam pertença, poder e subalternidade (Mignolo, 2011).

Figura 2 - Capa do Catálogo e imagem do Europa Oxalá (Gulbenkian, 2022).

A sua representação continua a oscilar entre o sagrado e o folclórico, entre o respeito devocional e o exotismo estético. Ainda hoje, os santos negros são frequentemente representados, mas raramente representados por artistas negros.

2.2. Os Santos Negros no cinema brasileiro

No contexto do cinema brasileiro, a evocação de figuras religiosas negras — canonizadas ou não — constitui uma expressão significativa da complexidade espiritual e cultural que caracteriza o imaginário afro-brasileiro. A representação cinematográfica decorre da confluência entre a herança católica, as cosmovisões de matriz africana e os processos históricos de mestiçagem religiosa que moldaram a espiritualidade no Brasil. Ainda que nem sempre centradas em santos reconhecidos pela Igreja Católica, muitas produções abordam entidades espirituais ligadas a tradições afrodescendentes, revelando a plasticidade simbólica com que esses sistemas de crença se entrelaçam no tecido social e artístico do país.

A presença de práticas rituais, entidades ancestrais e expressões de fé vinculadas ao Candomblé, à Umbanda e a outros cultos afro-brasileiros são um elemento recorrente em diversos filmes e documentários. Estas obras retratam o sincretismo enquanto fenómeno religioso, e sobretudo como mecanismo de resistência identitária e reconversão simbólica das práticas coloniais impostas. A coexistência e a interpenetração entre o catolicismo e as religiões de matriz africana traduzem-se numa espiritualidade plural e dinâmica, que o cinema procura captar, interpretar e, por vezes, reivindicar.

A fusão simbólica, como a sobreposição entre orixás e santos católicos, tem sido abordada cada vez mais no cinema nacional. A representação do sagrado negro visa dar visibilidade ao património espiritual anteriormente pouco reconhecido e serve também para a reconfiguração da memória coletiva e da identidade afrodescendente no Brasil contemporâneo.

Neste sentido lato, a presença de santos negros ou de entidades espiritualizadas com origem africana no ecrã constitui uma dimensão em expansão do cinema brasileiro. A sua crescente valorização reflete uma mudança na consciência cultural e política do país, que passa a reconhecer e afirmar as contribuições negras para o imaginário religioso nacional. Estas narrativas audiovisuais tornam-se instrumentos de valorização simbólica e de luta por reconhecimento histórico, contribuindo para a preservação da memória coletiva e para o aprofundamento da compreensão pública acerca da diversidade religiosa que compõe a identidade brasileira.

2.2.1. Santos orixás e sincretismo religioso no cinema brasileiro: espiritualidade negra entre herança e resistência

A representação dos santos negros e dos orixás no cinema brasileiro contemporâneo constitui um campo simbólico de afirmação e resistência, onde convergem dimensões históricas, religiosas, estéticas e políticas. Trata-se de um fenómeno enraizado numa longa tradição de sincretismo religioso, cuja genealogia remonta à violência colonial que impôs o cristianismo europeu às populações africanas escravizadas, mas que, simultaneamente, deu origem a sistemas espirituais híbridos e resilientes. Esta complexidade manifesta-se de forma cada vez mais expressiva no campo cinematográfico, revelando não só a persistência das cosmologias afro-brasileiras, mas também o modo como estas religiosidades reconfiguram a memória coletiva e a identidade cultural no Brasil.

O sincretismo religioso no Brasil, tal como interpretado por Verger (1997), Lamas (2019) e Romão (2019), não deve ser entendido como simples sobreposição ou fusão entre doutrinas distintas, mas antes como um processo ativo de negociação simbólica e sobrevivência espiritual. A imposição do catolicismo durante o período colonial obrigou os africanos a reinterpretar as suas divindades ancestrais sob a forma de santos cristãos. Assim, entidades como Xangô, Oxalá, Iemanjá ou Ogum passaram a ser associadas a figuras como São Jerónimo, Jesus Cristo, Nossa Senhora da Conceição ou São Jorge. Esta associação não resultou de uma afinidade doutrinal, mas da identificação de atributos, funções simbólicas e arquétipos (Prandi, 2010; Campbell, 1990; Jung, 2008), constituindo o que hoje se reconhece como religiosidade afro-brasileira (ver figura 3).

Figura 3 - Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, em Pelotas, São Lourenço do Sul (Brasil).

O cinema tem sido um veículo privilegiado para a visibilização destas práticas e crenças, não apenas como expressão de fé, mas enquanto mecanismos de resistência cultural. Ao tematizar a espiritualidade negra, as obras cinematográficas tornam-se espaço de reconfiguração do sagrado e da memória, deslocando os referenciais eurocêntricos da narrativa fílmica brasileira e afirmando uma estética negra, enraizada no corpo, no rito e na ancestralidade (Prudente, 2019).

Um dos exemplos paradigmáticos deste processo é o filme Cafundó (2005), de Paulo Betti e Clóvis Bueno, que narra a trajetória de João de Camargo, um ex-escravo que se torna líder espiritual e é posteriormente venerado como santo popular. O filme inscreve-se num universo marcado pelo cruzamento entre o catolicismo, o espiritismo kardecista e o Candomblé, revelando a permeabilidade das fronteiras religiosas e a construção de uma espiritualidade mestiça. A personagem de João encarna o “preto velho”, uma entidade típica da Umbanda, cuja sabedoria, humildade e poder curativo a tornam central na cosmologia afro-brasileira. A ausência de canonização institucional não impede que esta figura seja tratada como santa pela sua comunidade, o que evidencia a agência popular na definição do sagrado.

O sincretismo manifesta-se também na estética do filme: os rituais, a música, os gestos e os símbolos incorporam elementos das religiões africanas em diálogo com a liturgia cristã. A conversão de João dá-se através de uma visão da Virgem Maria — elemento católico —, mas o seu percurso espiritual é moldado por experiências e práticas que remetem à cosmologia dos orixás. Neste caso, a sobreposição simbólica entre santos católicos e orixás não é explicada racionalmente, mas evocada através da poética visual e sonora do filme, reafirmando a dimensão sensível da experiência religiosa.

Outro exemplo relevante é o documentário Chico Rei Entre Nós (2020), de Joyce Prado, que articula a história mítica de Chico Rei com a espiritualidade contemporânea das comunidades negras de Minas Gerais. Chico, rei congolês escravizado e levado para Vila Rica (atual Ouro Preto), é apresentado como figura fundadora de uma linhagem espiritual e cultural que atravessa gerações. A sua trajetória é reconstruída por meio da oralidade, das práticas rituais e da celebração da Congada, uma festa popular que combina elementos católicos e africanos. O documentário recorre a imagens de santos negros como São Benedito, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Santa Efigénia, enfatizando o papel destas figuras na legitimação espiritual das comunidades afrodescendentes.

Nestas obras, a representação dos santos orixás não se limita à ilustração ou à reconstituição histórica. Pelo contrário, ela opera como gesto político e epistémico, que desafia o monopólio do catolicismo branco na definição da espiritualidade nacional. Como observam Fernandes-Marcos, Ferreira e Pereira (2024), o cinema negro brasileiro vem assumindo um papel pedagógico ao reposicionar a imagem do santo negro e do orixá como centro de uma espiritualidade de resistência e pertença.

A interseccionalidade entre santos católicos e orixás no Brasil não se dá apenas no campo litúrgico ou devocional; estrutura imaginários, organiza práticas sociais e, sobretudo, inscreve-se de forma profunda na produção estética. No cinema, essa interpenetração adquire contornos ainda mais evidentes quando observamos os modos como a linguagem fílmica mobiliza o corpo, o som, a cor e a gestualidade como dispositivos de evocação do sagrado. A presença de atabaques, oferendas, danças circulares e cânticos em iorubá não é apenas cenográfica: ela convoca uma experiência sensorial que restitui aos orixás e aos santos negros a sua agência simbólica e espiritual.

Nos filmes analisados por Adérito Fernandes-Marcos, Ricardo Alexino Ferreira e Selma Pereira (2024), como O Pagador de Promessas (1962), Besouro (2009) e Aparecida: O Milagre (2010), observam-se estratégias narrativas que evidenciam a coexistência e a tensão entre a matriz católica e as cosmologias afro-brasileiras. Em O Pagador de Promessas, o protagonista Zé do Burro faz uma promessa a Santa Bárbara num terreiro de Candomblé, mas encontra resistência da Igreja Católica ao tentar cumprir o ritual em espaço institucional cristão. Esta oposição dramatiza o conflito entre ortodoxia e fé popular, ao mesmo tempo que revela a potência simbólica do sincretismo: Iansã e Santa Bárbara fundem-se no imaginário do devoto, operando como figura única, embora oriunda de tradições distintas.

Essa fusão é arquetípica. Como apontam Jung (2008) e Campbell (1990), os arquétipos religiosos operam como estruturas da psique coletiva, ultrapassando barreiras culturais ou dogmáticas. Os santos orixás são, nesse sentido, projeções de forças ancestrais que, ao se corporificarem em figuras híbridas, traduzem a memória viva de uma espiritualidade negra ressignificada. O mesmo se verifica no filme Besouro, onde o protagonista — capoeirista lendário da Bahia dos anos 1920 — é constantemente protegido pelos orixás, num universo que combina realismo mágico com cosmologia afro-atlântica. A narrativa fílmica inscreve os orixás como agentes da justiça e da resistência, operando como forma de reequilíbrio social frente à opressão.

Outro aspeto relevante na abordagem cinematográfica dos santos orixás é o modo como os filmes tensionam os códigos da branquitude institucionalizada. Em muitas destas obras, há uma clara oposição entre o sagrado popular negro e o aparato institucional branco: Igreja, Estado, Polícia, Mídia. O Candomblé e a Umbanda são frequentemente associados a espaços periféricos, sonoridades intensas, cores vibrantes, gestos expansivos — enquanto o catolicismo é encenado de forma austera, silenciosa, hierarquizada. Esta dicotomia, embora por vezes estereotipada, serve para enfatizar a disputa simbólica pelo espaço público e pela legitimidade espiritual (Zarattini, 2022).

O sincretismo não é apenas uma estratégia de adaptação; é também um modo de resistência cultural. Quando a espiritualidade negra se apresenta no cinema como herança viva — não como folclore, mas como epistemologia —, ela desafia o silenciamento histórico e convoca um espectador implicado. O cinema torna-se assim um campo de tradução simbólica onde os santos negros e os orixás ganham centralidade, não como alegorias, mas como sujeitos de uma história ainda em disputa.

De particular relevância é o documentário São Benedito de Poços de Caldas: A Fé e a Devoção de seus Congos e Caiapós (2021), que revela a continuidade das práticas devocionais a São Benedito em comunidades que articulam fé, cultura e ancestralidade. A celebração do santo negro não é apenas uma manifestação religiosa, mas também uma performance comunitária de afirmação cultural. A Congada, que reúne música, dança, canto e dramatização histórica, constitui um ritual sincrético em que se evocam simultaneamente o catolicismo, os orixás e a memória da escravidão (ver figura 4).

Figura 4 – Cena do documentário “São Benedito de Poços de Caldas: A Fé e a Devoção de seus Congos e Caiapós” (2021)

Neste contexto, os santos negros e os santos orixás não devem ser lidos como figuras passivas do imaginário religioso, mas como operadores simbólicos de resistência e de reconfiguração identitária. A sua presença nos filmes, como defende Prudente (2019), serve como ato pedagógico e reparador: um cinema que não apenas representa, mas reconstitui narrativas invisibilizadas pela história oficial.

Mais do que personagens ou ícones, os santos negros e orixás no cinema brasileiro revelam-se enquanto forças estruturantes de uma outra espiritualidade — uma espiritualidade de reexistência, em que corpo, fé e arte se fundem para afirmar a dignidade negra.

A emergência de uma estética do sagrado negro no cinema brasileiro revela não apenas a vitalidade do sincretismo religioso enquanto fenómeno cultural, mas sobretudo a centralidade das epistemologias afro-brasileiras na construção simbólica da nação. Os santos negros e os orixás, representados no ecrã, operam como testemunhos vivos da espiritualidade forjada na diáspora, marcada pela dor, pela resistência e pela reconfiguração contínua de sentidos.

Ao mobilizar essas imagens, o cinema não apenas documenta práticas religiosas e tradições culturais, mas inscreve-se num gesto político de visibilidade e reivindicação. Num país em que a história oficial ainda se constrói maioritariamente a partir de narrativas brancas e eurocentradas, estas representações devolvem agência às comunidades afrodescendentes, reafirmando a importância dos seus mitos, símbolos e crenças. A espiritualidade negra, neste contexto, não é decorativa nem subsidiária, mas um eixo estruturante da identidade coletiva.

O diálogo entre santos católicos e orixás, visível nas intersecções sincréticas de inúmeras produções cinematográficas, aponta para uma espiritualidade plural, dinâmica e enraizada na experiência concreta das populações negras. Esta fusão simbólica — tantas vezes percebida como contradição — é, na verdade, uma forma de transcendência política e cultural. Ao reconverter as imagens do colonizador em suporte para os seus próprios deuses, as comunidades negras transformaram a fé num campo de resistência estética e ontológica.

A presença dos santos orixás no cinema brasileiro é, portanto, muito mais do que uma representação religiosa: é uma reconfiguração da história através da linguagem fílmica. Através da música, da dança, da memória oral e das imagens do sagrado, os filmes constroem narrativas onde o espiritual e o político se encontram, permitindo a emergência de uma espiritualidade insurgente, que resiste à invisibilidade e afirma o direito ao sagrado negro.

3. Estudo de caso: A presença dos santos negros nos filmes O Pagador de Promessas (1962) e O Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício (2000)

O cinema brasileiro tem sido um espaço privilegiado para a representação simbólica das tensões entre diferentes matrizes religiosas e culturais. Nesse contexto, destacam-se obras como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, e O Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício (2000), de Geraldo Santos Pereira, pelas suas abordagens sobre a espiritualidade afro-brasileira e os santos negros enquanto expressão de fé, resistência e identidade cultural (Fernandes-Marcos, Ferreira & Pereira, 2024).

3.1 O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte

O filme O Pagador de Promessas, dirigido por Anselmo Duarte, é uma adaptação da peça homônima de Dias Gomes. O filme narra a história de Zé do Burro, um homem humilde que faz uma promessa a Santa Bárbara em um terreiro de Candomblé para salvar seu burro doente. Após a recuperação do animal, Zé tenta cumprir sua promessa carregando uma cruz até uma igreja católica, enfrentando a resistência do padre local e gerando um conflito entre diferentes crenças religiosas.

A figura de Santa Bárbara é central na narrativa, representando o sincretismo religioso brasileiro, onde a santa católica é associada à orixá Iansã no Candomblé. Essa associação é evidente na fé de Zé do Burro, que não distingue entre as duas figuras, demonstrando a fusão das crenças afro-brasileiras com o catolicismo popular.

A estética do filme é marcada pelo uso do preto e branco, que acentua o contraste entre o sagrado e o profano, e pela fotografia que destaca a arquitetura colonial de Salvador, Bahia. A direção de Anselmo Duarte utiliza planos longos e enquadramentos que enfatizam a jornada de Zé e a opressão que ele enfrenta. A trilha sonora de Gabriel Migliori complementa a atmosfera dramática da narrativa.

Trata-se de um filme que constitui uma representação poderosa do sincretismo religioso no Brasil e das tensões entre diferentes tradições espirituais. Além dos aspetos cinematográficos destacados, a narrativa expõe um tema recorrente no cinema brasileiro: o embate entre a religiosidade popular e as instituições oficiais.

O sincretismo religioso, presente na figura de Santa Bárbara e sua associação com Iansã, reforça a complexa fusão entre as crenças africanas e o catolicismo. Esse fenômeno é resultado da imposição do cristianismo sobre os povos africanos escravizados, que encontraram formas de preservar suas tradições por meio da assimilação de santos católicos às divindades do Candomblé e da Umbanda. A fé de Zé do Burro, que não vê contradição entre Santa Bárbara e Iansã, exemplifica essa visão integradora, contrastando com a rigidez da instituição eclesiástica representada pelo padre.

O filme também pode ser comparado a outras produções que abordam a religiosidade afro-brasileira e o sincretismo, como Barravento (1962), de Glauber Rocha, que explora os conflitos entre o Candomblé e a modernização social, e Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, que apresenta personagens cujas identidades e crenças dialogam com elementos da espiritualidade negra. Diferente de O Pagador de Promessas, que foca na rejeição institucional à fé sincrética de Zé do Burro, Barravento debate o papel das religiões de matriz africana na luta por transformação social.

Além da questão espiritual, O Pagador de Promessas evidencia a marginalização dos pobres e sua luta por dignidade. Zé do Burro, ao tentar cumprir sua promessa, desafia a hierarquia religiosa e as normas impostas pela igreja, tornando-se uma figura de resistência e tragédia. Seu sofrimento e sua determinação fazem dele um personagem que transcende o aspeto religioso e se torna um símbolo do conflito entre tradição, fé e poder. Dessa forma, o filme não apenas marcou o cinema brasileiro, mas também contribuiu para a reflexão sobre como a espiritualidade negra e o sincretismo são percebidos e vivenciados no país.

O filme Pagador de Promessas é considerado, assim, um marco do cinema brasileiro, foi o primeiro filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962, além de ter sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.

Figura 5 – Cena do filme “O pagador de promessas” (1962).

3.2 O Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício (2000), de Geraldo Santos Pereira

Este filme biográfico retrata a vida de Antônio Francisco Lisboa, conhecido como Aleijadinho, reconhecido como um dos maiores artistas do Brasil colonial. Dirigido por Geraldo Santos Pereira, o filme destaca testemunha a obra artística de Aleijadinho, mas também sua origem mestiça e a influência afro-brasileira.

Na narrativa do filme são abordados temas como a devoção a santos negros, com especial foco em São Benedito, a religiosidade da época e a presença africana na cultura brasileira. A espiritualidade negra no filme se manifesta principalmente na relação dos personagens com a fé e na representação da religiosidade popular. O Brasil colonial foi marcado por uma intensa fusão entre o catolicismo europeu e as crenças africanas trazidas pelos escravizados. Essa influência pode ser percebida na forma como a devoção aos santos negros, como São Benedito, é retratada no contexto da obra de Aleijadinho. Suas esculturas, especialmente aquelas presentes nos Passos da Paixão de Cristo e nos Doze Profetas, carregam traços que remetem à estética e à religiosidade afrodescendente

A estética do filme pretende recriar o ambiente do século XVIII, com cenários que destacam a arquitetura barroca e as obras de Aleijadinho. A direção de arte e os figurinos contribuem para a imersão na época retratada. A narrativa é estruturada a partir das memórias de Joana Lopes, nora de Aleijadinho, tornando-se numa abordagem subjetiva e emocional da história do artista.

Apesar de algumas críticas à sua estrutura narrativa e à abordagem didática, o filme é uma importante contribuição para a valorização da herança cultural afro-brasileira e para a discussão sobre a presença dos santos negros na história e na arte do Brasil. Trata-se de um filme que provoca reflexões sobre a condição dos negros na sociedade colonial e sua relação com a fé como forma de resistência. A presença de personagens negros reforça essa dimensão, evidenciando a importância da espiritualidade como elemento de identidade e força diante da opressão. A religiosidade negra, muitas vezes marginalizada, aparece como um fator de resiliência e conexão com o sagrado, mesmo em um ambiente dominado pelo catolicismo tradicional.

O Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício destaca não apenas a genialidade do artista barroco Antônio Francisco Lisboa, mas também a influência da cultura afro-brasileira na sua obra e na sociedade colonial. Ao abordar a devoção a santos negros, como São Benedito, e a fusão entre o catolicismo europeu e as crenças africanas, o filme se insere em uma tradição cinematográfica que explora a religiosidade negra e seu impacto na identidade brasileira.

Essa temática pode ser comparada a outras produções brasileiras que também destacam a presença da espiritualidade afrodescendente no contexto da fé e resistência. Um exemplo marcante é Besouro (2009), dirigido por João Daniel Tikhomiroff, que explora a cultura afro-brasileira por meio da capoeira e da proteção espiritual dos orixás. Diferente de O Aleijadinho, que enfatiza a arte sacra barroca e os santos negros no catolicismo popular, Besouro aprofunda a relação entre a identidade negra, a mitologia dos orixás e a luta contra a opressão.

Á semelhança do filme O Pagador de Promessas (1962), também em O Aleijadinho, se revela o conflito entre tradições religiosas e instituições que tentam controlar as manifestações populares de fé.

Além disso, Jardim das Folhas Sagradas (2011), de Pola Ribeiro, apresenta um olhar contemporâneo sobre a espiritualidade negra, acompanhando a jornada de um protagonista que descobre sua conexão com o candomblé e enfrenta desafios ao tentar criar um terreiro na cidade. Se O Aleijadinho examina a presença africana no Brasil colonial e sua influência na arte barroca, Jardim das Folhas Sagradas aborda as barreiras e preconceitos enfrentados pela religiosidade negra na atualidade.

Ao analisar O Aleijadinho em diálogo com essas e outras produções cinematográficas, torna-se evidente que o cinema brasileiro tem contribuído significativamente para a valorização da herança cultural afro-brasileira e para a reflexão sobre a influência das religiões de matriz africana na identidade nacional. Esses filmes não apenas documentam o impacto histórico da religiosidade negra, mas também ressaltam sua permanência como força de resistência e conexão espiritual ao longo dos séculos.

Figura 6 – Cena do filme “Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício” (2000).

Considerações Finais

A representação dos santos negros e dos orixás no contexto artístico e cinematográfico brasileiro constitui uma chave de leitura fundamental para compreender a complexa articulação entre espiritualidade, identidade e resistência cultural no espaço afro-luso-brasileiro. As imagens destes santos, marcadas por uma estética própria e por um profundo enraizamento nas cosmologias africanas, não apenas desafiam os cânones religiosos eurocêntricos, como reconfiguram os lugares do sagrado a partir de uma epistemologia negra e popular.

Ao longo deste artigo, procurámos demonstrar como estas figuras operam enquanto dispositivos simbólicos de pertença, reconstrução da memória e reapropriação de narrativas históricas silenciadas. A sua presença nas artes e no cinema não se limita à evocação do passado, mas projeta um futuro no qual as espiritualidades negras ocupam um lugar central na produção de saber, de sentido e de justiça simbólica.

O sincretismo religioso, longe de representar uma perda de identidade, surge aqui como potência criadora — como forma de adaptação, resistência e ressignificação das práticas espirituais negras em contextos de opressão. O cinema brasileiro, ao incorporar essas camadas simbólicas, afirma-se como um campo de luta estética e política, onde a fé, a ancestralidade e a arte se entrecruzam para reivindicar a dignidade dos corpos e das histórias afrodescendentes.

Este artigo pretende, assim, contribuir para o reconhecimento do sagrado negro como parte indissociável do património cultural brasileiro e da herança comum da diáspora africana, propondo uma leitura crítica e plural da espiritualidade no espaço das imagens. Ao recentrar os santos negros e os orixás no campo do visível, abrimos caminho para uma arte mais justa, mais inclusiva e mais profundamente conectada com as raízes da sua própria gente.

Agradecimentos e Notas finais

Os autores expressam sua gratidão à Fundação Macau pelos projetos Conta.ME: A narrativa biográfica como instrumento de afirmação social e da diversidade cultural no contexto do desenvolvimento humano sustentável de Macau (MF/2023/ACA/16) e Radio.Me: Narrativa Autobiográfica na Comunicação Radiofónica Académica como Ferramenta de Coesão Cultural Transdisciplinar de Macau para o Mundo Lusófono (MF/2024/ACA/07); e também à Associação ARTECH-International, cujo apoio financeiro contribuiu parcialmente para esta pesquisa. As ferramentas de inteligência artificial Copilot e o ChatGPT foram utilizadas na preparação deste artigo.

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