Abstract
In this essay, we set out to analyze the medium-feature Being Imperfect (Teko Haxy – Ser Imperfeita, Patrícia Ferreira Pará Yxapy and Sophia Pinheiro, 2018). We first identified it within the research Project “Speculum: Filming oneself and looking at oneself in the mirror: the use of self-writing by Portuguese-speaking documentary filmmakers”. The scientific production of the two directors, along with their artistic stances in the film, includes relevant topics of analysis focusing on discursive as well as narrative elements, which we complement from a perspective that merges Jacques Aumont “filmmakers’ theory”, namely as it has been understood by different Portuguese scholars.
Keywords: Women’s cinema, Documentary, Autobiographical cinema.
Introdução
Em diferentes fóruns, por estes dias, uma questão tem vindo a ser reproduzida, lançada como instigação ao pensamento (e a este possível ensaio), sob a forma de constatação, por parte de algumas pessoas que começam agora a discutir um dos temas mais centrais na Academia contemporânea. Distintas mas repetidas vozes têm vindo a proclamar: “O Cinema de Mulheres é um cinema do quotidiano.”
Já dedicamos atenção, pelo menos a uma parte significativa dessa produção, há mais anos do que os escassos que leva a tendência. À tendência, deixemos claro, não lançamos duras críticas: pelo contrário. É sempre bom que se constranjam poderes instituídos, alterem paradigmas, melhorem pedagogias. É sempre benéfico que nos possamos dedicar a uma pesquisa sem o desconforto do pioneirismo, a escassez de recursos humanos e bibliográficos, a ausência de pessoas capazes de o debater sem preconceitos vários. A originalidade que tanto solicitamos a quem se aventura na escrita de uma dissertação, convenhamos, é sempre o caminho mais penoso. Anos mais tarde, quando uma parte significativa do caminho já tiver sido traçada, o pioneirismo já terá sido esquecido.
A constatação partilhada com a certeza de um ponto final transforma-se, ao ser escutada por nós, numa pergunta.
Perante a segurança de quem escolhe a via afirmativa, ou mesmo exclamativa, desenhamos um ponto de interrogação. Desligamos a reunião online com colegas de outras universidades, fechamos o artigo que líamos ou o site do novo projeto dedicado ao tema e perguntamo-nos sobre o tanto que se terá alterado desde o início deste nosso interesse partilhado pelo Cinema de Mulheres, ainda em finais do século passado, e a conclusão deste primeiro quartil de anos do novo milénio. Como teremos passado da dificuldade em arguir a necessidade de um olhar não tanto feminino como de mulher por detrás das câmaras, para a aceitação generalizada de que este não só existe, deve ser estudado, incentivado, promovido, como é diferenciado?
O reposicionamento levanta novas questões: distinto de quê? Do cânone? Da vertente comercial? Da objetificação histórica? Do estereótipo preponderante? Do cinema dirigido por homens brancos, heterossexuais, confortavelmente posicionados em classes sociais muito favorecidas? Por que teremos nós necessidade de nos continuarmos a comparar? Para que a centralidade do referido cânone permaneça? Os motivos pelos quais um grupo social, esse sim, muito minoritário (o tal formado por homens brancos, hetero e abastados) se tornou dominante e central já se encontram muito e devidamente estudados em todas as sociedades.
Por isso, questionamos: continuar a considerar o Cinema de Mulheres como um objeto minoritário, distinto, sensível, exótico não fortalecerá uma estrutura que tem um centro e uma periferia há muito delineados? Não deveríamos antes olhar para este nosso cinema e focar-nos nele, pelas suas características únicas, pela multiplicidade e conjugação de visões, experiências e imagens construídas? E, nesse foco, não estaremos nós a atribuir centralidade ao periférico e desimportância ao repetidamente centralizado? Não estaremos nós a alterar paradigmas, a partilhar experiências e imagens inspiradoras, a instigar mais criações e a renovar pedagogias? A criar outras narrativas, a construir novas histórias e, com isso, novos futuros?
Partamos então desse princípio. Um Cinema de Mulheres não deverá ser adjetivado por conceitos que requeiram complemento: diferente de quê? Tampouco por gradações que funcionem da mesma forma: “menos explorador do corpo feminino”. Menos em relação a que tipo de cinema? Iniciemos o seu estudo, enquanto artistas, espectadoras, académicas (e não se sintam os artistas, os espectadores, os académicos aqui marginalizados: a contemplação é potencialmente universal), com essa curiosidade inicial. O que trará aquele objeto cultural, potencialmente artístico, de comunicador de uma experiência, revelador de um olhar, contador de uma narrativa?
Mas então, ouvimos já as vozes da contradição, “abolimos os géneros e, nesse caso, deixa de fazer sentido falar de um Cinema de Mulheres?” Na arte, o que importa é a criação, e não a origem, o contexto histórico, a nacionalidade, a classe social, a idade, o ser mulher? Na arte seremos todos anjos, sem sexo, sem experiência de vida e, digamos de passagem, sem sabor? Não. O objetivo é precisamente o contrário. O objetivo é atribuir centralidade ao que, sempre tendo existido, foi colocado na base, na periferia, e que sustentou, na invisibilidade e no esforço, o centro. O objetivo é desenvolver um olhar que busque menos a diferença do que a especificação, tendo em mente que cada mulher, cada artista, cada cineasta, é um universal concreto, um universal singular.
Homenageando uma imensa linhagem de criadoras que, ao longo da História, não se sentindo representadas, promoveram a autorrepresentação, o projeto Speculum: Filmar-se e ver-se ao espelho: o uso da escrita de si por documentaristas de língua portuguesa, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia entre os anos de 2021 e 2023, e agora recentemente distinguido com o Prémio Jovem Investigador/a em Artes UBI-CGD, buscou precisamente conhecer o carácter intimista e provocador de exercícios artísticos e autobiográficos, elaborados pela via cinematográfica. Encarando-os como uma forte tendência do final do século XX e início deste século, e procurando identificar casos de estudo de Portugal e do Brasil, centrámo-nos no exemplo de realizadoras como Margarida Leitão, Catarina Vasconcelos, Leonor Teles, Maria Clara Escobar, Melanie Pereira, Tila Chitunda, entre tantas outras contadoras de histórias que, na revisitação dos seus filmes de família, reescreveram as narrativas e imagens neles exibidas. Ademais, o SPECULUM propõe cumprir três importantes objetivos da Agenda 2030 das Organização das Nações Unidas, a saber: “Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e raparigas” (ODS 5); “Promover o crescimento económico inclusivo e sustentável, o emprego pleno e produtivo e o trabalho digno para todos” (ODS 8); e “Reduzir as desigualdades no interior dos países e entre países” (ODS 10).
Procuramos, desta forma, insistir na alteridade antropológica e fílmica, promovendo uma ressignificação do tradicional estatuto da mulher e das suas figuras textuais – tanto nos filmes, como na atenção que lhes dedicamos. Não obstante, buscar o distanciamento e a objetividade no exercício analítico nem sempre é possível, ou sequer desejável. Se da Academia se esperam raciocínios isentos, também a capacidade de observar uma obra pela sensação e pela empatia, sem a exasperação da produtividade curricular, deveria ser retomada.
Fixação de um objeto de estudo
O presente ensaio, sobre um dos filmes que integram o SPECULUM, constitui um encontro entre a proposta de análise poética desenhada por Wilson Gomes e a teoria dos cineastas, tal como foi formulada no início dos anos 2000 por Jacques Aumont. De acordo com Wilson Gomes (2004), analisar um filme corresponde a enumerar os efeitos causados pela experiência fílmica e, a partir dessa enumeração, compreender a estratégia do realizador: trata-se de um processo recetivo e reconstitutivo, inverso ao processo criativo. Quem analisa deverá desenvolver formas de atenção para reconhecer os vários meios e recursos expressivos operativos na obra fílmica, tanto materiais (escala de planos, fotografia, enquadramento, luz, movimentos de câmara, banda sonora, direção de atores, cenários e figurinos), como narrativos (argumento, composição da intriga, tempo e lugar, personagens).
Passível de ser aplicada a diversos tipos de obras de arte, esta análise poética tem como principal vantagem, no caso específico do cinema, identificar elementos preponderantes na composição fílmica. Poderão ser elementos essencialmente estéticos (o que acontece, por exemplo, no cinema experimental); comunicacionais (quando o filme tem por eixo principal a intriga do argumento, ou se sobretudo pretender transmitir determinada mensagem); ou poéticos (no caso de filmes com uma componente dramática centrada no efeito emocional). De acordo com Wilson Gomes:
A poética estaria, deste modo, orientada para a identificação e tematização dos artifícios que, no filme, solicitam uma ou outra reação, este ou aquele efeito no ânimo do espectador. Neste sentido, estaria capacitada a ajudar a entender porquê e como pode levar-se o apreciador a reagir desta ou daquela maneira diante de um filme. (2004, 43, tradução nossa)
Por outro lado, a nossa análise é complementada com a visão das próprias realizadoras sobre o processo criativo que concretizaram: refletimos, nesse sentido, sobre os testemunhos de ambas em artigos publicados acerca do filme, recorrendo à Teoria dos Cineastas, originalmente proposta por Jacques Aumont, e recentemente revisitada por pesquisadores/as como André Rui Graça, Eduardo Baggio e Manuela Penafria. A partir da obra homónima de Aumont (2004), a metodologia desenhada neste ensaio visa assim elaborar conceitos de cinema provenientes dos próprios filmes, da práxis e do discurso dos/as realizadores/as e demais profissionais da área. O nosso objetivo é, pois, analisar e aprofundar a conceção de um ato de criação com características específicas, como a correalização de um filme feito por duas mulheres, que assumem, por sua vez, todos estes traços, políticos e estéticos, no seu discurso.
Partamos então para um exercício analítico como o que descrevemos até aqui. Centremos a nossa atenção numa das obras que compõe o corpus fílmico do Speculum. Teko Haxy- Ser Imperfeita (Brasil, 2018, Goiás, 39 minutos) é um documentário de Patrícia Ferreira Pará Yxápy e Sophia Pinheiro que revela o encontro de duas mulheres e as suas histórias de vida: Patrícia, mulher indígena do povo Mbyá-Guarani, e Sophia, antropóloga que estuda a vida e os costumes dos povos indígenas. O filme encontra-se disponível online, no site da produtora Embaúba (https://embaubaplay.com/catalogo/teko-haxy-ser-imperfeita/).
A sinopse diz-nos que este é
um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. O documentário experimental é a relação de duas artistas, uma cineasta indígena e uma artista visual e antropóloga não-indígena. Diante da consciência da imperfeição do ser, entram em conflitos e se criam material e espiritualmente. Nesse processo, se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens. (Idem)
Em termos contextuais, sublinhe-se que a aldeia guarani Tekoá Koenju, onde a acção decorre, tem cerca de 236 hectares e que estes foram, em 2001, comprados pelo governo do estado do Rio Grande do Sul e novamente cedidos à comunidade guarani que havia fundado a comunidade. Situa-se no sul do Brasil, próximo do Paraguai, Argentina e Uruguai.
Do filme em questão, uma média-metragem lançada em 2018 e que tem a escrita de si compartilhada por e entre as suas realizadoras, sublinha-se a partilha dos espaços de convivência e de criação, sendo essa partilha crucial para o desenvolvimento da narrativa no documentário. As duas realizadoras, de facto, dividem o lugar principal dessa narrativa, o lugar de fala, assumindo-o em partes semelhantes, mesmo partindo de locais culturalmente distintos. A diferença entre os pontos de partida e os consequentes encontros entre as duas são, aliás, o eixo do filme, e isso mesmo é enunciado desde o título, que articula duas línguas diferentes, numa mesma linguagem verbal. Teko Haxy é criado enquanto partilha de um lugar-comum (o da busca pela aproximação cultural do não indígena em relação ao indígena), enquanto desenvolvimento simultâneo da narrativa cinematográfica e da transformação da individualidade das realizadoras.
De um ponto de vista teórico, Cecília Almeida Sales parece refletir sobre os tópicos enunciados quando defende o espaço de partilha como o local onde se materializa a obra, aquele que, a um mesmo tempo, expressa angústias subjetivas e sensíveis das realizadoras. Em Redes de Criação, a autora afirma que “[…] compreendemos os modos como o ambiente que envolve as criações é processado pelo artista e por suas obras, em outras palavras, observamos os espaços de manifestação da subjetividade transformadora” (2008, 159). No mesmo sentido, Vincent Colapietro (2023) defende igualmente, referindo-se ao processo de criação, que, uma vez que os seres humanos são essencialmente coletivos, não é possível determinar um locus da criatividade observando o sujeito sob uma perspetiva estritamente individual – a observação deve ser feita sobre as relações interpessoais, na sua existência de coletivo. Para o autor, as próprias obras de autoria individual constituem-se numa origem coletiva, já que todos os indivíduos são culturalmente demarcados. Ressalve-se, sobre este ponto, que a obra fílmica é coletiva por excelência, o que ajusta estas considerações à nossa análise. Entendemos, pois, que os processos da criação cinematográfica devem ser entendidos como loci, espaço de interações a partir das quais se materializam as práticas criativas. Para Colapietro, cada indivíduo carrega em si uma comunidade, elaborada e constituída histórica e socialmente e, como tal, enraizada em processos coletivos. O fulcro da criatividade não tem uma localização isolada no sujeito: desenvolve-se na materialidade das práticas em redes dinâmicas de constituição ininterrupta, plural, histórica e mutável.
No filme em questão, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro carregam com elas uma vivência social distinta. É isso que lhes permite, durante as interações e diálogos revelados no filme, materializar uma obra com uma potência relevante da fala num âmbito cultural, não apenas individual ou subjetivo. Os instantes iniciais demarcam esta relevância da procura do encontro. É Patrícia, distante de Sophia, quem se ouve e se vê no pré-genérico, primeiro num aeroporto do Québec, dirigindo-se a Sophia para testar a aproximação (“A gente está aqui... só para testar”), logo depois num pequeno bote a filmar uma imensa massa de água e a filmar-se a si mesma, num sorriso que se pode imaginar ter igualmente como destinatária direta a sua dupla, Sophia. Mas o avião (sugerido pelas imagens do aeroporto) e o barquinho são substituídos de imediato, no começo da narrativa, pelo automóvel (uma van que não se vê logo, mas de onde se veem imagens exteriores, na velocidade), onde ambas se encontram fisicamente. Do autorrádio, Belchior vai entoando “Fotografia 3 X 4”, canção que fala sobre alguém vindo do Norte do Brasil para viver na “grande cidade” de São Paulo, e que conclui que, apesar das diferenças entre a cultura que deixou e aquela em que agora se insere, é igual ao jovem paulistano: “Eu sou como você / Eu sou como você / Eu sou como você”.
Em Teko-Haxy as situações demonstram serem muitas vezes proposições de uma das realizadoras para a outra, como na cena de abertura quando Sophia tenta matar uma galinha e não consegue fazê-lo, ou Patrícia, apresentando a casa de sua mãe e a sua rotina. Destaca-se que ambas as cenas têm a natureza como de importância crucial para as ações envolvidas. A certa altura do filme, Sophia emociona-se ao refletir e questiona Patrícia se estava sendo desagradável ou problemática nas dinâmicas propostas no documentário, o que nos faz pensar que as situações apresentadas em plena natureza foram projetadas no seguinte esquema: pessoas num determinado ambiente e uma proposta sem grande densidade para se fazer emergir o real da experiência.
Esta mesma conversa, que inicia com autorreflexões em torno da realização do filme, torna-se cada vez mais densa e íntima. Intimidade esta elaborada entre elas e resultante do convívio estabelecido entre elas durante as gravações. O subtítulo do filme “Ser imperfeita” acaba por surgir desta conversa, na qual ambas compreendem que, apesar do abismo cultural entre as duas, os desafios em ser gente no mundo atual são constantes. As frustrações vivenciadas ao longo da vida aproximam-nas subjetivamente. A questão da imperfeição frente às dificuldades da vida é o resultado comum, e reconfortante para ambas, pela partilha estalecida de maneira cúmplice na correalização da obra.
No filme, os desafios enfrentados por Sophia Pinheiro no meio da natureza, com a qual Patrícia Ferreira tem maior familiaridade, são maiores e mais conflituosos, tanto subjetivamente, na realizadora em questão, quanto no desenrolar das cenas em que ela aparenta ter maior protagonismo. Por outro lado, a natureza e a vegetação densas não são apresentadas como um ambiente repleto de imprevisibilidades e potencialmente hostil. Ela é antes o elemento central para a cosmologia indígena da qual Patrícia Ferreira faz culturalmente parte, sentindo-a invadida desde a chegada dos homens brancos ao Brasil.
Como a obra nasce
Sobre o processo criativo de todo o filme, as cineastas revelam que todas as filmagens foram feitas ao longo de quase três anos, desde o primeiro encontro em 2015 até às últimas captações (a estreia decorreria em 2018). Sabemos, pela leitura imediata da sinopse, que Teko Haxy problematiza a coexistência de duas culturas, uma branca e uma indígena (não-branca), associando cada uma delas às mulheres que as representam e que as constituem. O filme desenrola-se em torno desta questão, intimamente desenvolvida durante a realização da obra, exibida enquanto fio narrativo. Não obstante, apesar de ser feito para o público alargado, jamais se perde em Teko Haxy o tom de conversa de uma mulher para a outra, e quem vê sente permanentemente que está a invadir a privacidade de um diálogo sobre aspectos tão íntimos como a relação com a morte nas duas culturas. As aproximações e os afastamentos entre Sophia e Patrícia podem ser analisados a partir das diferenças entre as duas mulheres, as bagagens culturais distintas e a busca idêntica, comum, de se compreenderem, no lugar de partilha que é a convivência (sobretudo a partir dos lugares materialmente relacionados com a cultura indígena de Patrícia) e, finalmente, a criação da obra fílmica.
Diante da câmera, criamos personagens, mas também colocamos nossos assuntos mais íntimos. Assumimos uma estética íntima — nosso diário relacional — um experimento visual feito por nós, duas mulheres de diferentes mundos que criaram um mundo dentro dessas diferenças. Nossa auto-mise-en-scène. Um deslocamento. Em deslocamento, deslocamos a câmera e o celular de uma mão para outra, deslocamos ser mulher de uma racialidade cultural para a outra. (2021, 399)
Ao longo dos quase quarenta minutos de obra fílmica, a questão das diferenças e da alteridade individual acaba por se fundir, esbatendo-se as fronteiras entre as duas, que assumem as semelhanças, apesar de diferenças marcadas (simbolizadas na dificuldade de Sophia, branca e urbana, perante a preparação de uma galinha no contexto menos urbano de Patrícia). Se Patrícia tem o privilégio das falas e das imagens iniciais, o uso da língua não indígena ao longo de todo o filme contrabalança esse domínio; cada uma delas detém, à vez, privilégios na situação comunicacional, e ambas são intermutáveis nos seus papéis dentro do conjunto. Sendo o cinema – e a tecnologia a ele associada – uma forma de expressão eminentemente capitalista, conotada com os privilégios de determinadas classes, raças, géneros e geografias, poderia pressupor-se que o filme seria uma iniciativa de Sophia Pinheiro, a antropóloga estudiosa que se desloca para o terreno e que observa a comunidade Mbyá-Guarani. Não obstante, o deslocamento da câmara, a fragilidade da mulher branca por oposição à crença segura da mulher indígena exibidas em vários momentos, sugerem questionamentos sucessivos sobre quem é quem e quem é o outro neste filme.
O que sobra e transparece é a figura dupla de vários eus que se fundem, numa distinta imperfeição, tal como é enunciada no título. O processo é comum à realização de um filme, no testemunho que passa, e a esta análise, agora escrita a seis mãos. Nesse sentido, se o cinema (símbolo da sociedade predominantemente branca, ocidental e capitalista) for entendido como ciência e a cultura indígena como arte, tome-se como certa uma das formulações de Vilém Flusser, ao afirmar que “não há diferença entre criação em ciência e em arte. Os cientistas sempre se têm aberto para vivências não-articuladas, e os artistas, para conhecimentos não-articulados. Toda criação científica é ‘obra de arte’, toda criação artística é ‘articulação de conhecimento’” (1998, 175).
No filme, a questão elabora-se como o descrevem as realizadoras:
Em nosso processo, nos compreendemos um pouco mais, respeitamos a outra nos pontos divergentes, criamos um novo estado do que pode ser a diferença dentro do humano. Assim, o que de mais verdadeiro podemos oferecer é a justeza das nossas imagens, o pessoal que é político. Nos filmamos marcando nosso espaço como mulheres, como um mergulho espiritual no ser mulher, ser imperfeita.
É nesse lugar entre eu e a outra (e quem nessa relação é a outra?), entre observar o real e inventar o real, entre fazer e esperar acontecer, e, entre as incertezas, é aqui que nossa relação se estreita e gera – como duas mulheres que podem, se quiserem, gerar a vida – possibilidades estéticas e políticas por meio das nossas conversas através das imagens em Teko Haxy. Uma conversa junto à câmera que era uma amiga ali presente, nos filmávamos e conversávamos. É nesse lugar que localizamos nosso filme, como uma dobra no tempo, de passado, presente e futuro. Um tempo que ambas aprendemos a ter. (2021, 400).
A primeira parte da descrição, curiosamente, consiste na pluralização de um anterior enunciado ensaístico, em que, por momentos, Sophia assume a voz – o que indica que não apenas na criação artística de ambas, mas igualmente na sua produção científica, as vozes se misturam:
Em nosso processo, me compreendi um pouco mais, respeitei e compreendi a outra nos pontos divergentes e convergentes, criei um novo estado dentro do humano. O que de mais verdadeiro nossa obra pode oferecer é a justeza das nossas imagens. (2020, 271-272)
Neste ponto, é particularmente tocante ver o modo como os conceitos de beleza e perfeição divergem, sendo que para Patrícia Ferreira estes se relacionam mais com a natureza e a comunidade, aceitando ela o que uma entidade divina lhe possa predestinar, enquanto para Sophia Pinheiro estes foram sempre ideais solipsistas, reflexos de uma sociedade que exige da mulher a perfeição estética (e produtiva, e familiar, e social) inatingível. O belo é o coletivo e o natural para a primeira; o singular e o artificial para a segunda. O encontro de ambas potencia-lhes descobertas nestes sentidos: nem todos os brancos serão invasores e desrespeitadores de uma cultura ancestral; nem todos os nossos traços humanos são singulares e melhoráveis. As duas mulheres encontram-se nestes desígnios e filmam uma obra também ela esteticamente desafiadora, experimental, a preto e branco e a cores, com o som diegético a permear cada momento – a potenciar uma ideia de improviso, de genuinidade, não regravável mas antes em contacto com tudo à volta.
Desta partilha de experiências no feminino surgem, para além da obra fílmica, autodescobertas fundamentais para ambas, que nos remetem para os atualmente debatidos conceitos de sororidade e empatia fortemente incentivados pelos coletivos feministas. O encontro remete-nos ainda para as considerações da filósofa e cientista política, Iris Young, defensora da ideia de que a negação da existência de um coletivo social mulheres tem como consequência o reforço dos privilégios “daqueles que mais beneficiam mantendo as mulheres divididas” (Young, 2004, 118-119). Na sua opinião, a consciencialização é fundamental para que as próprias mulheres deixem de percecionar os seus problemas e sofrimentos como pessoais e intransmissíveis, devendo entender-se a opressão como um processo sistemático, estrutural e institucional.
Para concretização destes objetivos, a autora propõe que deixem de se empregar os termos “grupo” ou “coletivo” na referência a mulheres, e se use antes o conceito de “serialidade”, desenvolvido por Sartre em Crítica da razão dialéctica (de 1960). Conceptualizar o género como uma série social –um tipo específico de coletividade que o filósofo distingue dos grupos– terá como principal vantagem a não exigência de similitude de atributos, interesses, objetivos, contexto ou identidade. Numa serialidade, defende Young, “a pessoa sente não apenas os outros, mas também a si própria como um Outro, isto é, como alguém anónimo. Todos são o mesmo que o outro na medida em que cada um é Outro além de si próprio” (2004, 125), tal como na mencionada partilha de experiências entre as personagens e documentaristas de Ser Imperfeita.
Concretizando a sua tese, Iris Young sublinha não existirem condições específicas para se fazer parte de uma série: os membros não são necessariamente idênticos, pelo que podem chegar a trocar de posições entre si. Na definição sartriana, a unidade da série é amorfa e volátil, sendo o estatuto de membro definido pela vivência em torno das mesmas estruturas prático-inertes do dia-a-dia. Mulher será, deste modo, e segundo Young, “o nome de uma relação estrutural com objetos materiais tal como foram produzidos e organizados por uma história anterior, que conserva necessidades materiais de práticas passadas.” (2004, 129). Mulheres são, em conclusão, os seres humanos posicionados como femininos por determinadas atividades, entre as quais inevitavelmente se encontram as associadas ao corpo feminino (gravidez, parto e/ou amamentação), a par de outras menos óbvias (como o uso de certas representações visuais e verbais, roupas, cosméticos e o próprio design de determinadas peças de mobiliário).
Nesta perspetiva, a experiência serializada de pertença a um género deixa de implicar o reconhecimento mútuo e a identificação positiva de cada elemento enquanto parte de um grupo. Assumir “eu sou mulher” é, de acordo com Young, um facto anónimo que não me define na minha individualidade coletiva, mas que me possibilita trocar de lugar com outras mulheres da série. A autora exemplifica:
Li no jornal sobre uma mulher que foi violada e empatizei com ela porque reconheço que na minha experiência serializada eu sou violável, sou um objecto potencial de apropriação masculina. Mas esta consciência despersonaliza-me, constrói-me como Outra para ela e como Outra para mim própria numa troca serial, em vez de definir o meu sentido de identidade. (2004, 131)
As estruturas de género, tal como as estruturas de raça, classe ou religião, não nomeiam, portanto, quaisquer atributos dos sujeitos (nem tão pouco constituem uma identidade), mas antes determinam necessidades prático-inertes, que condicionam as suas vidas e com as quais terão de lidar. A forma como o decidem fazer varia em função do contexto ou da personalidade de cada um/a, podendo chegar ao ponto da ocultação de características num processo de autodefinição. Dizer que uma pessoa é uma mulher pode prever algo sobre os constrangimentos e expetativas gerais com que terá de lidar, mas não antecipa, como relembra Young, qualquer visão sobre os seus valores, atitudes e posicionamento social. Em conclusão, gostaríamos de sublinhar que a recuperação do conceito “serialidade” operada por Iris Young reflete dois princípios fundamentais que dissolvem, no nosso entender, as eternas acusações de homogeneização e etnocentrismo apontadas às propostas feministas, nomeadamente: a existência de inúmeras mulheres que não consideram o facto de serem mulheres como parte essencial da sua identidade; e as inúmeras variações identitárias entre as que se assumem como tal.
O tal Cinema de Mulheres
Entendido numa perspetiva global no âmbito do processo de criação artística, Cecilia Sales refere que o espaço no qual uma obra se produz provoca “questões relativas à memória, perceção, procedimentos artísticos e modos de conexão das redes do pensamento em criação” (2008, 159). Neste sentido, Teko Haxy, realizado a partir da captura do tempo presente das ações das realizadoras, sejam elas encadeadas ou ações dentro de ações, materializa-se numa espécie de “realismo revelatório”, para tomar a expressão de André Bazin (citado em Xavier, 2005), quando fala de planos-sequência de situações que põem em questão modos de existência humana a partir do conflito ou de partilha com o outro, inseridos em um espaço igualmente estimulante e que, através do seu contexto, permite fazer emergir diferentes formas de ser e de estar.
Sophia Pinheiro acrescenta, acerca do processo de filmagens:
Combinávamos alguns vídeos, mas outros surgiam de maneira espontânea. Embora tivéssemos nossos temas guiando as filmagens, nossa experiência e a espontaneidade das coisas foram, na verdade, nosso roteiro. A cada início de filmagem, a performance diante da câmera era fabulada, como uma câmera-diário, uma escrita compartilhada feita da nossa relação. O extracampo (tudo que envolve a cosmologia Mbyá) está sempre presente nas ações de Patrícia como ser. Seu “modo de ser” (o nhande reko guarani) está presente cotidianamente em qualquer atividade que ela faça. Nas coisas simples como escolher qual parte da galinha cortar, quando vai tomar banho de rio, quando me ensina sobre os cuidados sexuais e a produção do corpo entre meninas e meninos... Aprendi de dentro para fora (da casa para o mundo) a cultura Mbyá. E assim, o movimento de dentro para fora e de fora para dentro manteve-se constante entre mim e Patrícia. Deslocamento que ela faz constantemente entre sua etnia e os juruá kuery (não indígenas). (2021, 402)
A riqueza e a complexidade do processo de criação, tal como é materializado em Teko Haxy, corresponde ao que Cecília Sales sugere a propósito da generalidade da criação artística:
Os artistas – sujeitos constituídos e situados – agem em meio à multiplicidade de interações e diálogos e encontram modos de manifestação em brechas que seus filtros mediadores conquistam. O próprio sujeito tem a forma de uma comunidade; a multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento do sujeito e o locus da criatividade não é a imaginação de um indivíduo (2008, 163)
Para a autora, seria impossível distinguir o artista da obra, pois esta estaria totalmente imbricada nas demandas subjetivas do seu criador. Seria precisamente nestas demandas subjetivas, ao mesmo tempo coletivas e culturais, como o pensou Colapietro, que a obra se materializaria, num lugar único e consideravelmente produtivo.
Por seu lado, Edgar Morin (2000) defende o espaço que permite interações no âmbito macro da cultura, dando destaque à dialogia nas esferas cultural e intelectual, o que proporciona uma variedade de pontos de vista como propício ao intercâmbio de ideias e, consequentemente, enfraquece os dogmas e o senso comum. Desse modo, uma ampla variedade de perspetivas a serem exploradas daria relevo a uma mudança, a uma evolução nas formas humanas de existir a partir do novo, a partir daquilo que a arte constitui.
A este propósito, Sophia Pinheiro prossegue:
Trazemos à tona uma questão pouco enfatizada na antropologia, nas artes visuais e no audiovisual que são “as questões das mulheres”: a casa, a maternidade, a mulher e suas relações afetivas, a sexualidade, o corpo, as dores, as somatizações disso tudo. Principalmente, como todos esses temas comuns, do dia-a-dia, estão diretamente imbricados em nossa vida política, social e cultural. Confrontando assim, a desvalorização universal do domínio doméstico. O mais bonito disso tudo é como as camadas das nossas personalidades e como vemos o mundo a partir das nossas experiências cotidianas, vão se tencionando e deixando nossas contradições expostas. Patrícia quando diz para os brancos: “acho que vocês queriam que a gente não existisse” no limite, ela também destina a mim. Mas, ainda sim, somos nós, Patrícia e Sophia, vulgo “mulher indígena” e “mulher branca”, criando uma obra artística juntas e isso sim pode ser uma arma pra rasgar o peito de todo olhar com viés etnocêntrico, etnocida, preconceituoso e machista. Nos filmamos marcando nosso tempo como mulheres. É como um laboratório do nosso feminino. Um mergulho em ser imperfeita. (2021, 402)
Talvez o Cinema de Mulheres possa, também, entre muitas outras coisas, ser um cinema do quotidiano – não sempre, mas de um modo particularmente familiar. Um cinema que não se limita a repetir e a mimetizar um conjunto de gestos diários, tão habituais ao mundo tradicionalmente representado do feminino, relacionado (de modo enganoso) com a consecução de tarefas pouco valorizadas intelectual e socialmente – porém, um cinema que busca a politização e a interseccionalidade do que é, daquilo que sempre foi, ser mulher. Sobre este ponto, as autoras citam Deepika Bahri (2013, 683) e a sua conceptualização de uma “lógica da adjacência”, que tão bem dialoga com o conceito de serialidade de Iris Young: “leríamos, então, as mulheres no mundo não como iguais, mas como vizinhas, como ‘moradoras próximas’ cuja adjacência pode tornar-se mais significativa […] leríamos o mundo não como único (no sentido de já estar unido), mas como um conjunto” (2020, 402).
Bibliografia
Aumont, Jacques. 2004. As Teorias dos Cineastas. Campinas: Papirus.
Colapietro, Vincent. 1989. Peirce’s Approach to the Self: A semiotic perspective on human subjectivity. New York: State University of New York.
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Filmografia
Teko-Haxy – Ser Imperfeita. 2018. Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro. Brasil. Arquivo Digital.
Referência musical
Belchior. “Fotografia 3 X 4.” Lado B, faixa 4 de Alucinaçao. PolyGram, 1976, álbum em vinil.