Walter White/Heisenberg: construção da personagem em Breaking Bad

Luciana de Almeida Pereira Jordão

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Abstract

The present work seeks to analyze the construction of Walter White / Heisenberg in Breaking Bad (2008-2013) created by Vince Gilligan. The premise is that the character presented in the first episode transforms radically and in a unique way, losing its original characteristics.
Unlike other contemporary series, in which a character evolves, matures or adds new attributes to his composition, it can be said that Walter White, an honest and humble family father and chemistry’s teacher, becomes a Heisenberg, a producer of methamphetamine and international trafficker. His values and goals are being changed so significantly that the codename used by him to difficult for the police his recognition, ends up naming a kind of new character.
This transformation is one of the main narrative arcs of the series, which confers a rare feature to Breaking Bad. The majority of audiovisual works end up creating protagonists with great emotional complexity, but with fixed and immutable constructive characteristics. This option allows turning points, false leads and other strategies, precisely by rescuing the character’s original attributes.
The elements to be analyzed are:
• The presentation of the character in the first episodes - its role in attribution to fixation of original attributes;
• Physical attributes and their evolution;
• Emotional attributes, personality and values and their evolution;
• Actions that determine the character’s construction.
Still, other series will be cited to demonstrate the difference between Walter White / Heisenberg and other protagonists.

Keywords: Construção de Personagem, Narrativa Serida, Séries de TV, Breaking Bad

Introdução

Uma das protagonistas de séries de TV mais emblemáticas do Séc. XXI foi Walter White de Breaking Bad, interpretada por Bryan Cranston e criada por Vince Gilligan. E não somente pelo seu desempenho na crítica especializada mundial, que conferiu à obra o registro no Guiness 2014, como a série mais aclamada até então, ao atingir 99% de aprovação no Metacritic1. O melhor de White é seu desenvolvimento quase único, que o transforma radicalmente ao longo de suas cinco temporadas.

Essa espécie de metamorfose é um dos principais arcos narrativos da série, o que confere uma característica rara a Breaking Bad. A grande maioria das obras audiovisuais acaba por criar personagens com grande complexidade emocional, mas com os principais atributos construtivos fixos. Elas evoluem dentro de um espectro determinado por sua apresentação e atitudes iniciais. Mesmo nas situações mais surpreendentes, aquilo que é inesperado inicialmente mostra-se bem característico, após uma reflexão mais atenta. Tal estratégia permite pontos de virada através de pistas falsas, justamente ao revelar ao espectador que foi enganado por estar distraído, já que a personagem é, e sempre será, a mesma pessoa.

Percebe-se de forma clara o uso desta estratégia na personagem Floki da série Vikings, homem genial, criador e construtor dos barcos que permitiram aos nórdicos chegar à Inglaterra em 793DC. Estas características vêm acompanhadas de alguns distúrbios emocionais e dificuldades relacionamento. A única pessoa que tem acesso livre a ele em seus momentos de isolamento é Ragnar Lothbrok, protagonista que lidera as primeiras expedições vikings e a quem dedica uma fidelidade inquestionável. Pelo menos na primeira temporada.

É na segunda, entretanto, que tomado pelo ciúme, característica condizente com sua construção mental, acaba unindo-se a antagonistas de Ragnar. Por diversos episódios o espectador acompanha o conflito decorrente de suas atitudes. Porém, mais tarde é revelado que as ações de Floki foram arquitetadas por Lothbrok, que infiltra o amigo na cúpula de decisões de seus oponentes. (T02E09)2 Caso a personagem não fosse fixa e tivesse realmente traído o amigo, a narrativa chegaria a um impasse, já que a conciliação entre as tribos nórdicas se tornaria impossível. Anos de guerra decorreriam disso e os vikings não poderiam continuar sua expansão pela Europa.

Voltando a Breaking Bad, ressalta-se que o próprio título já indica a transformação da personagem e promete acompanhar a jornada de alguém que se tornará mal. De forma geral, os bons e maus são separados nas narrativas clássicas e o antagonismo entre protagonista e vilão se fundamenta na imutabilidade de suas naturezas específicas. Walter White no entanto, representa mais do que a singular transformação de um mocinho em vilão. Walt, um homem bom, trabalhador e honesto, além de pai que dedica toda a sua vida à família, metamorfoseia-se em Heisenberg, um homem frio, cruel, egoísta e implacável, capaz de destruir tudo e todos que se interpuserem em seu caminho. Uma única personagem, duas pessoas.

A particularidade de Breaking Bad (...) não se encontra em suas margens, mas na construção deste centro móvel e particionado que é Walter White. Sua evolução consegue combinar tanto uma tensão interna quanto uma direção vertical absolutamente homogênea. (Burdeau, 2014. p. 138).

Para melhor desenvolver essa dupla personagem, será realizada uma análise e posterior decomposição de seus aspectos formais. Suas características físicas, emocionais e psicológicas, além de suas ações serão analisadas paralelamente à atuação e opções da direção e do departamento de arte, quando pertinente. Espera-se assim, comprovar que Heisenberg deixa de ser um simples codinome e se transforma numa personagem transmutada de Walter White.

O primeiro contato com a protagonista, logo na abertura do piloto de Breaking Bad (T01E01), dá-se através de uma sequência de ação, na qual ele veste apenas uma cueca e uma máscara de gás, dirigindo um trailer velozmente, chacoalhando, por uma estrada de terra. Ao seu lado um homem desmaiado, completamente vestido, e também usando o equipamento de segurança. Materiais de um laboratório de química caem e quebram o tempo todo e vários produtos químicos são esparramados pelo veículo. Entre os destroços, dois homens sem máscara e de origem latina, parecem estar mortos. Tudo o que se pode deduzir da personagem seminua é que aparenta ter uns cinquenta anos e que está extremamente nervoso.

Depois de alguns minutos de uma montagem frenética, o trailer perde o controle e bate em uma depressão no acostamento. Somente o motorista desce e tira a máscara. Agora as expressões faciais deste homem podem ser percebidas. Nitidamente transtornado, volta ao veículo, pega um revólver das mãos de um dos cadáveres e também uma câmera de vídeo no porta-luvas. Aponta esta última para o próprio rosto e grava um depoimento destinado à sua esposa e a seu filho. Diz que em breve a família descobrirá algumas coisas (o texto é realmente indefinido), mas que não devem se esquecer do amor que sente por eles. A fala, através da sua entonação, revela um homem muito nervoso e emocionado, e seu gestual e postura corporal demonstram que ele não possui muito contato com a arma, reforçando sua caraterística de homem comum.

As sequências seguintes ajudam a construir White de forma imediata, formando a base que sustenta a evolução da personagem ao longo da série inteira. O ponto mais enfatizado é que ele não é um homem bem-sucedido, o que é reforçado pela sua atuação e pelos seguintes aspectos do roteiro:

  1. A simplicidade da casa em que mora, pelos padrões estadunidenses, além da fala do filho que reclama que o aquecedor do chuveiro deveria ser trocado há tempos, mas para o qual não há orçamento;
  2. Acorda às cinco da manhã e faz exercícios em casa, e não em uma academia, devido a problemas financeiros;
  3. Dá aulas de química em uma escola pública de ensino médio, sendo ignorado pelos alunos, mesmo tendo recebido um Nobel. A decadência de White é reforçada pela cena em que ele faz ginástica em um quarto escuro enquanto observa a placa metálica na parede, que reconhece a participação de Walter H. White como contribuinte de uma pesquisa premiada pela Real Academia Sueca de Ciências;
  4. Possui dois empregos, sendo o segundo em um lava a jato, onde é duplamente humilhado: primeiramente pelo patrão e depois por um aluno, que debocha de sua condição, postando em seguida a imagem do professor lavando o pneu de seu carro nas mídias sociais;

A interpretação de Bryan Cranston torna-se fundamental para a narrativa à medida em que as pressões em sua vida vão sendo somadas: acaba de fazer 50 anos (a), tem um filho adolescente com paralisia cerebral (b) e um bebê a caminho (c), não é reconhecido profissionalmente (d), é muito limitado financeiramente (e). Finalmente, no dia em que faz 50 anos, desmaia no segundo emprego e descobre, no hospital, estar com um câncer incurável no pulmão(f). A personagem vai sendo moldada por este conjunto de ações, imagens e situações, muito mais que através de diálogos. O excesso de pressões e problemas acaba também por criar uma justificativa para a decisão de usar seus talentos desperdiçados para produzir drogas e, desta forma, deixar a família numa situação confortável, pelo menos materialmente, após a sua morte.

Breaking Bad é uma das séries que leva para a TV um estilo narrativo próprio do cinema, apostando em pausas longas, planos abertos, longos e lentos, como num filme de Sérgio Leone. Sua montagem sonora, assim como em Era uma Vez no Oeste, destaca a imensidão silenciosa do deserto e as imagens, enfatizam a insignificância do ser humano perante a paisagem árida e infinita. As séries do século XXI apresentam novas possibilidades narrativas para a televisão, a partir da chamada smart tv, que permitiu trazer para o âmbito doméstico, as grandes telas e a qualidade digital de som e imagem da experiência cinematográfica.

Essa semelhança com a estética de Leone empresta muitas características às personagens de Breaking Bad. Notadamente em Walter White, o embate entre ele e a paisagem, começa reforçando sua impotência e fragilidade e depois passa a enfatizar seu poder e fortaleza. Ambiente inicialmente estranho a ele, passa a ser um território dominado por sua atividade criminosa.

Figura 1 – Era Uma Vez No Oeste. Fonte: imdb.com

Figura 2 – Breaking Bad – T01E07 Fonte: imdb.com

Na primeira temporada acompanha-se esse homem comum, o que não pode ser criado apenas no plano da ação. Bryan Cranston constrói uma personagem que não encara as pessoas olho-no-olho (expressões faciais complementam), caminha com um ar de desânimo (gestual) e responde evasivamente ou de forma indecisa a seus interlocutores (voz e entonação), conferindo uma certa passividade a Walter White.

Figura 3 – Walter White -T01E01 Fonte: imdb.com

No final do primeiro episódio, cuja a função dramática é fundamentar a construção de White, a sequência de abertura é retomada. Todos os aspectos que ficaram indefinidos são esclarecidos, tais como quem são os homens caídos no chão do veículo (Emílio e Krazy-8) e como foram parar ali (levados por Jesse), e como ele conseguiu se livrar dos bandidos (fósforo vermelho e água). O carro sai em disparada e é repetida a montagem sonora, formada pela música Apocalypshit da banda Molotov e efeitos sonoros em primeiro plano (rodas, motor, material se quebrando dentro do veículo), além da montagem imagética acelerada, com muitos cortes e movimento de câmera, até segundos antes do acidente. O som continua sobre a tela preta.

Tem-se um corte para um close up de Walter White com uma pistola em punho apontando em direção ao espectador, fazendo com que a quebra da 4a parede possa conferir-lhe uma certa bravura. A partir daí, a sequência segue mais lenta e silenciosa, destacando-se o som de sirenes ao longe. Seu corpo continua por muito tempo na mesma posição, apesar da mudança de planos. Sua expressão facial, no entanto, transmite grande movimentação, já que diversos sentimentos vão se alternando em sua face. É como se ele estivesse num histérico diálogo interno. De repente leva o cano da arma para debaixo do queixo e sua respiração acelera. Para surpresa do espectador, a protagonista dispara. Porém, só se ouve o som do gatilho e as sirenes ininterruptas que acompanham toda a sequência. Walter solta alguns ruídos, mas mesmo neste pico dramático, é contido na fala e no corpo, que mais comprime, enrijecendo os músculos, que se expande numa explosão emocional.

White confere então, a trava da pistola, que ao ser liberada, faz com que a arma solte o projétil que ricocheteia no chão de terra batida. Ele realmente tinha a intenção de se matar, indicando que a protagonista prefere morrer a causar problemas e sofrimento a sua família. Ser preso por produção de metanfetamina, além de ter matado dois homens não é uma opção. Preservar seu núcleo familiar ainda é um anseio superior a qualquer outro.

Aos poucos, o pacato professor de química, sempre educado, que evita confrontos e não faz questão de dar a última palavra, dá vazão a um novo comportamento. Ainda no piloto (T01E01), agride um rapaz que humilha seu filho deficiente em uma loja, derrubando-o e pisando em sua perna, deixando-o impossibilitado de se levantar: “Algo de errado, chefe? Algum problema para caminhar?”

A família olha para Walter com surpresa e Walter Jr até sorri discretamente, mostrando que a atitude é inesperada, fora do padrão da personagem, mas que gostou de ver o pai defendê-lo daquela maneira. Aparentemente, trata-se de uma reação à sentença de morte, que faz com que a protagonista se revolte por situações que antes aceitava passivamente.

Da mesma forma, ele surpreende numa sequência em que estaciona o carro em um posto de gasolina devido a uma crise de tosse (T01E04). Consternado, desvia o olhar do sangue que cuspiu nas mãos e observa um homem em um veículo conversível placa KEN WINS (Ken vence) entrando no posto e xingando uma velhinha por demorar a atravessar seu caminho. Sua arrogância já havia sido observada por White em uma sequência no banco, na qual descobre quão pouco dinheiro conseguiu com a vida de professor, enquanto o tal homem se vangloria da riqueza. No posto, Walter aproveita a ausência do motorista e coloca um rodo de espuma encharcado nos circuitos do carro importado do playboy arrogante, causando um curto que incendeia o veículo.

Outro sinal de sua crise pode ser observado na sequência da ultrassonografia de seu bebê. Depois do exame, após a saída da médica, Skyler pergunta quem é Jesse Pinkman. Esse é um momento revelador, pois o jeito com que trata a esposa permite entrever, por uma pequena fresta, o Heisenberg que está por vir.

De emocionado e carinhoso, Walter passa a surpreso com o questionamento. Depois tenta desconversar, mente, finge não estar acontecendo nada. Quando percebe que Sky não irá recuar, sua voz adquire um tom passivo-agressivo e ele arqueia as sobrancelhas, franzindo a testa. Com grande cinismo, voz enfática e feições de raiva ele dispara: “agora, o que eu preciso é que você saia do meu pé!” É importante ressaltar que o texto original, em inglês, é mais agressivo: “get out of my ass!”. Nada na fala de White encontra paralelo nas sequências que mostram anteriormente o relacionamento do casal. Nestas, são cordiais, pacientes e atenciosos um com o outro, além de demonstrarem ter um casamento no qual a amizade e o diálogo são uma constante.

A contribuição da direção de arte na construção da personagem tem como exemplo mais emblemático a incorporação do chapéu preto, modelo porkpie3, e óculos escuros ao figurino. Tal caracterização, por um lado, esconde o olhar calmo e bondoso do pai de família, e por outro faz com que a polícia se concentre nos adereços, ao procurar pelo produtor de metanfetamina. Por um tempo, enquanto Walter não se transforma realmente, o figurino cumpre um papel fundamental em distinguir White de Heisenberg.

Figura 4 – Walter White -T01E07 Fonte: imdb.com

Ao longo da segunda temporada percebe-se que o uso do figurino é abandonado, deixando para Cranston toda a responsabilidade de construir essa transformação. O estilo de interpretação é o ponto focal. Por isso, à medida em que White muda seu gestual, voz e expressões faciais, os adereços se tornam dispensáveis. Longe do excesso de palavras, gestos e trejeitos, aponta para um viés stanislavskiano:

Quando se representa, nenhum gesto deve ser executado por ele mesmo. Seus movimentos devem ter sempre um objetivo, devem estar sempre ligados ao conteúdo do seu papel. Se sua ação dramática está orientada em direção a um fim preciso, produtivo, podem estar certos de que vocês fugirão à afetação, à pose e a outros perigos do gênero. (Stanislavski, 1989. p. 63)

Primeiramente, a voz da personagem promove esta evolução. Da fala mansa e reticente, Walter passa a ser firme e decidido, demonstrando uma força inabalável, capaz de garantir o respeito dos criminosos mais perigosos. Em seguida, esse caráter de força é percebido tanto no rosto quanto na movimentação corporal da personagem. Walter tem um olhar perdido, anda lentamente e de cabeça baixa, e Heisenberg é o completo oposto. Como afirma Roubine,

O desenvolvimento da representação psicologizante favoreceu, no gestual de acompanhamento, uma articulação ‘defasada’ do discurso que permite, por exemplo, a simultaneidade de uma expressão voluntária (o discurso) e de uma expressão involuntária (o gesto). (...) O gestual complementar constitui um prolongamento significativo do discurso. Ele introduz sentido onde a palavra, por impotência, deixa uma lacuna. (2002. p.39)

Uma das transformações na personagem que causa estranhamento em Skyler é sua mudança no apetite e comportamento sexual. A primeira sequência em que o casal pode ser observado neste aspecto tem-se Skyler masturbando o marido com uma mão, enquanto faz um leilão no ebay, no laptop, com a outra (T01E01). Depois de começar a produção com Jesse, matar Emílio e deixar Krazy-8 no porão, Walter chega em casa aliviado, seca à máquina o dinheiro encharcado por produtos químicos e vai se deitar. Skyler está chateada pelo sumiço e por perceber que o marido está escondendo algo. Porém acabam fazendo sexo de uma forma diferente, o que pode ser notado pelas expressões de surpresa de Sky. (T01E01 e T01E02). Walter está revigorado pela experiência. Deixa de sentir-se um sujeito qualquer, para encontrar um poder desconhecido dentro de si. Tornar-se um assassino, ao invés de causar-lhe remorso ou depressão, trouxe-lhe um novo ímpeto sexual.

Walter White está com os dias contados e Heisenberg, ao assumir a personagem, carrega consigo uma violência nunca antes percebida. Na primeira vez em que Skyler encontra Walter de chapéu (T02E01), ele está catatônico, olhar fixo na TV, recuperando-se de todos os acontecimentos que levaram à morte de Tuco, ao mesmo tempo em que assiste à cobertura da imprensa sobre um acidente aéreo causado indiretamente por ele próprio. O fato de ter sido sequestrado na porta de casa soa o alerta do quanto o perigo está chegando próximo a sua família. Não bastasse isso, quase foi preso pelo cunhado do departamento de drogas da polícia federal.

Não obstante a essa tempestade mental e ao detalhe de que Skyler veste um roupão de banho e tem o rosto coberto por uma máscara facial verde, Walter avança sobre a esposa e tenta fazer sexo com ela na cozinha. Não adianta o aviso de que seu filho está prestes a chegar. Nada o faz parar. Parece que nem mesmo a voz de Skyler lhe chega aos ouvidos.

A violência da situação só se revela no momento em que Sky escorrega e bate o rosto na geladeira, acompanhado de sons de pancada. Ela se desvencilha dos braços do marido, muito nervosa e sai: “Pare, pare! Eu sei que você está assustado, com raiva e frustrado. E eu sei que não é justo. Mas você não pode descontar em mim!”

As mudanças na encenação de Cranston e sua caracterização física, nada significariam sem a ação que concretiza, no plano narrativo, sua transformação.

A tragédia é essencialmente uma imitação, não de pessoas, mas de ações, da vida, da felicidade e da miséria. Toda felicidade ou miséria humana toma a forma de ação; o fim para o qual vivemos é um certo tipo de atividade, não uma qualidade. O caráter nos dá qualidades, mas é em nossas ações - o que fazemos - que somos felizes ou o contrário. Em uma peça, eles não agem para retratar as personagens; as personagens são incluídas por causa da ação. De modo que é a ação, ou seja, sua fábula ou trama, que é o fim e o propósito da tragédia; e a finalidade é, em toda parte, o que mais importa. (Aristóteles, 1920. Posições: 298-302)

Antes mesmo de criar o pseudônimo Heisenberg e adotar o chapéu e óculos, Walter dá o primeiro e irreversível passo em sua direção ao matar Emílio e Krazy-8. Sua intenção era a defesa pessoal, já que se vê ameaçado pela dupla. Usa seus conhecimentos de química para tal, ao misturar água e fósforo vermelho dentro do trailer, protegendo a si e a Jesse com máscaras de gás. Emílio morre imediatamente, enquanto Krazy-8, líder no tráfico, sobrevive. White trancafia o rapaz no porão da casa de Jesse por dias, violando os mais básicos direitos humanos. Debilitado pelo fósforo, com uma trava de motocicleta prendendo o pescoço a uma pilastra, sem folga nem para ir ao banheiro, tem seu sofrimento prolongado justamente pela dificuldade Walter White em matá-lo.

Tal conflito de valores é tão patente que o professor apela para a racionalidade. Elabora uma lista de razões para deixa-lo viver (T01E03):

Em seguida, aponta uma única motivação para executá-lo: “ele irá matar sua família inteira se você deixá-lo ir”. Seria uma razão forte o suficiente para a tomada de decisão, mas a trama em que se vê envolvido o conduz a mais confusão, pois a razão dá lugar às suas emoções.

A sequência de acontecimentos, elencada a seguir, mostra as pressões que White sofre nos dois sentidos: permanecer sendo o homem que sempre foi ou se transformar num assassino.

  1. Ao preparar um sanduíche para o prisioneiro, liga para Skyler para justificar sua longa ausência. Ele está desde o início do dia tentando “resolver o problema”, sem coragem. Diz à esposa que está fazendo hora extra no lava a jato, mas ela rebate, afirmando que já sabia de sua demissão e pedindo que ele nem volte para casa aquela noite. O problema em casa ainda é menor, já que seus misteriosos sumiços podem ser justificados pelo diagnóstico de câncer, ainda não partilhado com a família.
  2. Ao descer as escadas do porão para entregar o sanduíche a Krazy-8, tem uma crise de tosse e desmaia. O prato cai e quebra. Um fade out traz indeterminação sobre o tempo em que ficou inconsciente. O ocorrido reforça sua enfermidade, assim como sua gravidade, pressionando Walter no sentido de manter o plano de produção de metanfetamina para amparar os seus.
  3. Ao retornar ao porão com um novo prato, Walt, pede ao cativo um motivo pra não matá-lo: “sell me!” O rapaz responde, sendo pouco estratégico, que qualquer um na situação dele prometeria qualquer coisa. A conversa se desenrola como se os dois fossem bons amigos, chegando à informação de que o pai de Krazy-8 é dono da loja móveis na qual o berço Walter Jr. foi comprado. “Se foi depois da aula eu estaria lá. Posso até ter atendido você”. O tom pessoal do diálogo torna as coisas cada vez mais difíceis, já que o bandido passa a ser visto em seu lado mais humano. Falam sobre o câncer e K8 então compreende tudo: “Tá cozinhando pra deixar dinheiro pra sua família! Se for isso e você me soltar, posso passar um cheque agora”.
  4. White decide soltá-lo e vai pegar a chave. Só então resolve remontar o prato quebrado, percebendo que falta um considerável pedaço. A descoberta mostra que não há saída, afastando a possibilidade, ingênua, de sair da situação sem cometer um homicídio.
  5. Volta ao porão com a chave na mão e pergunta a Krazy-8 se não estaria furioso e o rapaz apenas responde: “Viva e deixe viver” e, notando resistência por parte de White, implora para que este o solte. Ao se aproximar, fingindo soltá-lo, percebe que K8 leva a mão à cintura para pegar o caco escondido: “Quando eu te deixar ir você vai me furar com aquele pedaço de prato?” Nesse momento, os dois começam uma luta para ver quem sairá vivo dali. Walter puxa a trava até asfixiá-lo, enquanto Krazy-8 desfere apunhaladas no ar, tentando se defender. Agachado e choroso, com o rosto transformado pela tristeza, permanece um bom tempo imóvel, com as mãos ainda presas ao objeto que sufocou o rapaz. Finalmente, diz para o cadáver: “Eu sinto muito”.

Até então, Walter sofre por suas ações que nasceram de atos desesperados de autopreservação, mas a partir daí a coisa muda, mesmo que gradativamente. Sem nenhum dilema, usará seus conhecimentos, em duas ocasiões, para proteger a si e a seu empreendimento dos atos violentos de Tuco, traficante procurado por Jesse para distribuir a droga produzida.

Na primeira (T01E06), explode o escritório de Tuco com fulminato de mercúrio. A ação serve para vingar a surra recebida por Jesse e ainda sair incólume do local, com um bom acordo de distribuição de metanfetamina. Esta é a sequência em que Walter se apresenta pela primeira vez como Heisenberg.

Num segundo momento (T02E01), coloca a ricina extraída de grãos de mamona num pequeno pacote de metanfetamina que oferecerão a Tuco. Seu potencial de letalidade é atestado pela protagonista:

“A KGB modificou a ponta de um guarda-chuva para injetar uma bolinha minúscula na perna do homem. E estamos falando de uma quantidade não maior do que a cabeça de um alfinete”.

É importante salientar que os planos de White ainda representam um início de sua escalada para o mal. Isto porque se dirigem a traficantes e assassinos notórios. A sequência em que Tuco espanca até a morte seu aliado No-doze retira qualquer possibilidade de dúvida em assassiná-lo (T01E07).

O passo seguinte demonstra que Heisenberg está aos poucos assumindo o controle de tudo ao exigir que Jesse mate dois usuários de droga que roubaram um de seus “representantes comerciais”. Este fato dá origem a um dos episódios mais cruéis de Breaking Bad (T02E06). O título remete a uma brincadeira de criança (Peekaboo) e mostra que é impossível fomentar o vício por metanfetamina e permanecer íntegro.

Ao invadir a casa de Spooge, Jesse se depara com uma criança suja e maltrapilha, com fome e sem amparo dos pais em meio a uma casa extremamente desorganizada. A destruição causada pela droga encontra em uma vítima inocente seu representante máximo. Mesmo voltando atrás, já é tarde demais. A esposa, em meio a uma viagem de metanfetamina, mata Spooge por uma briga à toa, esmagando sua cabeça com um caixa eletrônico que haviam roubado. A criança é afastada do local e deixada para que o conselho tutelar possa afastá-la de tudo isso, mas o horror que permeia o universo ao qual Walter White resolve pertencer, se mostra incontornável.

Desenvolver um personagem com profundidade genuína requer um foco não apenas no desejo, mas em como o personagem lida com a frustração de seus desejos, assim como suas vulnerabilidades, seus segredos e especialmente suas contradições. (Corbett, 2013. Posições: 352-354)

Mudar de ideia, mesmo que tardiamente, faz com que se deduza que Walter ainda se encontra em transição. Ele só assume o comando quando, impassível, assiste à morte de Jane sufocada pelo próprio vômito (T2E12). A vida da garota é destruída pelo relacionamento com Jesse, já que, ao conhece-lo, interrompe um longo período de abstinência e volta a consumir heroína ao lado do namorado. Sua morte leva seu pai ao desespero, causando um grave acidente aéreo, já que ele é um controlador de vôo. Os destroços caem sobre a casa dos White, numa espécie de alegoria às consequências da opção de Walter. Curioso é que, justamente no momento em que ele assiste chocado às notícias sobre a queda do avião, Skyler se depara pela primeira vez com o novo chapéu do marido.

Após a morte de Jane, Heisenberg não tem mais limites. Pede ajuda a funcionários da lavanderia para limpar seu laboratório e em troca, os denuncia à imigração para esconder rastros (T04E06), mata Mike pelo simples fato de ter sido desrespeitado (T05E07) e coordena uma chacina simultânea em três presídios, para evitar que seus comparsas presos pudessem denunciá-lo (T05E08), entre outras atrocidades.

Ao longo do desenvolvimento de Heisenberg, algumas sequências mostram que havia saída para Walter, como no diálogo em que Jesse tenta convencê-lo a entregar Gus aos federais e entrar para o programa de proteção à testemunha (T03E13). Sabe-se que os US$737 mil estimados por ele para deixar a família confortável, no início da segunda temporada, já foram conquistados, mas Heisenberg não quer parar por aí.

Figura 5 – Walter White -T05E01 Fonte: imdb.com

Evocando o código tão reiterado pelo cinema no qual, em nenhuma hipótese, um bandido deve ajudar a polícia, rejeita a sugestão. Mesmo utilizando desculpas para tornar seus atos aceitáveis, sabe que já não é o mocinho da história. Heisenberg é um papel completamente assumido por White, o que é reforçado pelo prosseguimento da cena. Ao contrário das expectativas de Jesse, que esperava que o Sr. White tomasse o caminho honesto, recebe o pedido para que mate Gale, químico que os tornará dispensáveis após aprender a cozinhar com perfeição. Jesse recusa diversas vezes, apesar dos fortes argumentos.

O rapaz sobreviveu até então, sem matar ninguém, graças à equivocada fama de ter eliminado Spooge. Ao final, acaba por aceitar ajudar na execução, mas apenas seguindo Gale para descobrir seu endereço e dizer se ele está sendo vigiado. Porém, ao descobrir que Walter fora sequestrado e seria morto em instantes, se vê obrigado a atirar à queima roupa contra o aliado de Fringe, mesmo estando em lágrimas.

Após cometer inúmeros crimes e deixar de se importar por eles, Walter White segue para seu trágico final. Afinal, na narrativa clássica, um vilão não escapa impunemente, nem mesmo se ele for o herói da história. A tragédia não é sua morte, já que a personagem recebe o diagnóstico de um câncer muito agressivo e qualquer tempo vivido acima de seis meses, seria uma vitória. Walter começa a série no seu aniversário de 50 anos. Heisenberg a termina com 52.

O desprezo que sua família passa a ter por ele, o torna ainda mais amargo e frio. E não há nem mesmo o consolo de vê-los numa boa vida, emocional, social ou financeiramente. Seu filho não quer dele nem o nome, já que decide passar a ser chamado por Flynn (T02E04), depois que o pai começa a se comportar de maneira bizarra e a desaparecer de vez em quando. Ao descobrir a vida criminosa do progenitor, sua necessidade de distinção se torna ainda maior. Nem mesmo a fortuna feita por White é aceita por ele ou Skyler, mostrando que com Heisenberg eles não terão qualquer relação.

Se a justificativa inicial era morrer tranquilo, deixando Skyler, Walter Jr. e Holy com segurança financeira, sua jornada de nada valeu. O máximo que consegue é ameaçar seus ex-sócios, dando a entender que, se não custearem os estudos de seus filhos, serão mortos por seus parceiros. O plano pode funcionar, mas nada é garantido, pois ele não estará vivo para ter certeza. Walter morre odiado por todos, mas o mito de Heisenberg continuará vivo e potente na história do DEA e das ruas do estado do Novo México.

Como personagem que encarna em si todos os propósitos da narrativa, só se torna completa após o último respirar. Walter White e Heisenberg são duas facetas de uma personagem que, de tão complexa, pode ser vista como um duplo de si. Personagens tão conectadas como se fossem siamesas. São dois seres atuantes em um único herói, que ao se transformar em vilão, parte-se ao meio, tornando quase impossível entrever qualquer parte de sua essência, ou melhor, reconhecer traços de Walter White em Heisenberg, passando a ser um e outro.

Walter White que foi tão grande um dia, agraciado com um Prêmio Nobel e dono de uma empresa milionária, abdica de tudo para ficar com Skyler. Seu amor e dedicação perduraram por anos e os flashbacks de sua vida pregressa não apresentam qualquer exceção. Seus sonhos esfacelados demonstram que essa é a realidade do american dream. A “terra das oportunidades” não oferecerá qualquer chance a um químico talentoso sem o capital e as conexões sociais e políticas da família de Gretchen Schwartz, sua ex-sócia e ex-namorada. Ao ser desestabilizado completamente ao receber o funesto diagnóstico, atolado em problemas financeiros que só aumentarão com a chegada de Holy, sua filha, toma algumas decisões que tornam ainda mais impossível que a justiça seja feita e que ele possa ser finalmente, reconhecido. Não há chance de redenção, nem pela lógica da narrativa clássica, que pune seus vilões exemplarmente, nem pela lógica da sociedade à qual critica e questiona.

Figura 6 – Walter White -T02E12 Fonte: imdb.com

Notas finais

1 Lançado em janeiro de 2001, o Metacritic passou a sumarizar grande parte dos mais respeitados veículos de crítica de cinema e jogos eletrônicos, tanto impressos quanto virtuais. Além disso, passou a sintetizar a média das notas dadas a cada obra ou produto através do Metascore

2 Em T02E09 a letra T indica a temporada, no caso, a segunda, e a letra E indica o episódio, no caso, o nono. O padrão será utilizado ao longo de todo o texto.

3 De acordo com a figurinista Kathleen Detoro, foi pela insistência de Bryan Cranston, que passou a sentir frio na cabeça, que o chapéu foi incorporado ao figurino. Gilligan era contra. Cabe ressaltar, que mesmo sem a intenção inicial do departamento de arte ou direção, o acessório só passou a ser utilizado por se adequar ao figurino desenhado para “cimentar a transformação de Walter White em Heisenberg”.(citado por Kathleen Detoro em <http://www.pastfactory.com/2018/04/10/i-am-the-danger-behind-the-scenes-of-breaking-bad/?view-all&firefox=1>).

Bibliografia

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