Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Between Images and Memories: Memory and Identity in I’m Still Here

Entre Imagens e Lembranças: Memória e Identidade em Ainda Estou Aqui

Francisco Malta

UNESA, IBMEC, PUC-RJ, Brasil

Pedro Losch

UNESA, Brasil

Zeca Pedroso

UNESA, Brasil

Abstract

This article analyzes the film Ainda Estou Aqui (2024), directed by Walter Salles, through the lens of memory as a narrative and poetic element. Adapted from the eponymous novel by Marcelo Rubens Paiva, the feature film intertwines individual and collective experiences to reconstruct the effects of the military dictatorship in Brazil, focusing on the life and legacy of Eunice Paiva. Winner of the Best Screenplay award at the Venice Film Festival and recipient of the Academy Award for Best International Feature Film, the work marks a milestone in Brazilian cinema by offering a sensitive and politically engaged portrayal of the country’s recent history.
Drawing on the theoretical frameworks of Linda Hutcheon and Robert Stam regarding literary adaptation, the article examines the processes involved in translating the narrative from page to screen, emphasizing the audiovisual strategies that evoke and challenge memory. The analysis further explores how the filmic construction contributes to the formation of collective identity by bringing silenced voices to the forefront and proposing an ethics of remembrance in the face of historical erasure.
The guiding research question — “How does Ainda Estou Aqui construct a narrative of recovery and (re)construction of individual and collective memory?” — informs the examination of the film’s formal and discursive elements. The study concludes that the film functions not only as historical testimony but also as a cultural act of resistance, reaffirming the role of cinema in preserving democratic memory and revalorizing emblematic figures in the struggle for human rights in Brazil.

Keywords: Cinema, Memory, History, Adaptation, Narrative.

Introdução

Em 2024, Walter Salles retornou ao cinema brasileiro com Ainda Estou Aqui, longa-metragem que marca a primeira produção original da Globoplay, em coprodução com a Vídeo Filmes, Sony Pictures e Rodrigo Teixeira. O filme teve estreia internacional no Festival de Veneza e rapidamente passou a figurar entre os principais concorrentes da temporada de premiações, consolidando-se como o primeiro longa brasileiro a conquistar o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme constrói sua narrativa a partir do ponto de vista de Eunice, interpretada por Fernanda Torres — mãe do autor e esposa de Rubens Paiva, ex-deputado desaparecido durante a ditadura militar. A produção articula momentos íntimos e históricos por meio de recursos que evocam a memória como força estruturante do enredo. Imagens em Super 8, trechos de arquivo e transições temporais marcam a direção de Salles e ampliam a experiência sensorial do espectador, beneficiando-se da fotografia naturalista de Adrian Tejido e da evocativa trilha sonora de Warren Ellis.

Ambientado em cenários que transitam entre a Zona Sul do Rio de Janeiro e o litoral do Leblon, o filme estabelece a memória como eixo narrativo e poético, mesclando imagens em Super 8, flashbacks e material de arquivo familiar para tecer uma experiência sensorial de resgate afetivo. A montagem paralela e o design de som integram vozes e ruídos do passado, convidando o espectador a recompor fragmentos de uma história de exílio doméstico e trauma coletivo.

O presente artigo propõe-se a analisar os mecanismos fílmicos por meio dos quais Ainda Estou Aqui evoca a memória — seja pela alternância temporal, pelo tratamento estético da imagem ou pela articulação sonora — e a forma como essas estratégias impactam a recepção do público. A pesquisa apoia-se na análise de sequências-chave, em depoimentos da equipe criativa e em críticas especializadas, buscando compreender como o filme constrói uma narrativa de resgate e (re)construção da memória individual e coletiva. Orienta-nos a seguinte questão de investigação: “De que forma Ainda Estou Aqui articula recursos visuais e sonoros para resgatar lembranças pessoais e reconstituir traumas da memória social?” A reflexão aqui desenvolvida pretende demonstrar o papel do cinema como arquivo dinâmico, capaz de reinventar e preservar memórias vivas por meio da linguagem audiovisual.

Do romance para as telas

A adaptação cinematográfica de Ainda Estou Aqui, dirigida por Walter Salles, é fruto de um processo criativo cuidadoso e prolongado, que envolveu a colaboração direta entre o diretor e os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega. Baseado no livro de memórias homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o filme transpõe para as telas uma narrativa profundamente pessoal, que revisita o trauma familiar decorrente do desaparecimento de Rubens Paiva, deputado cassado e preso político durante o regime militar brasileiro. A escolha por transformar essa obra literária em cinema não apenas resgata uma história individual emblemática, mas também amplia seu alcance simbólico ao integrar memória pessoal e memória coletiva.

Adaptar uma obra literária para a linguagem audiovisual implica, segundo Marcel Martin (2007: 24), “uma percepção subjetiva, a do diretor”. A vertente exposta faz com que seja repensada a questão da fidelidade ao texto-matriz — fidelidade que foi, principalmente até a década de 1980, uma das principais características discutidas por público e críticos de cinema. Há algum tempo, a busca pela fidelidade cedeu à valorização da criação artística e da intertextualidade. Para Robert Stam (2008: 234), as discussões mais recentes acerca das “adaptações cinematográficas de romances passaram de um discurso moralista sobre fidelidade ou tradição para um discurso menos valorativo sobre intertextualidade”. Stam acrescenta que as adaptações localizam-se, por definição, “em meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem”. Tal perspectiva ressalta a fluidez e a multiplicidade de influências no cenário adaptativo.

Hutcheon (2011) lembra que o lançamento da versão cinematográfica possibilita às editoras uma nova publicação da obra adaptada no mesmo período de lançamento do filme, na maioria das vezes, com fotos dos atores na capa, o que desperta a curiosidade e o interesse de leitores. Escrever um roteiro baseado em um grande romance é, sobretudo, um trabalho de ampliação. Para Hutcheon (2011: 21), pode-se muito bem dizer que, enquanto “o filme é capaz de expressar uma diversidade de informações através das imagens, as palavras podem somente buscar uma aproximação”. Contudo, na visão da pesquisadora, essa aproximação possui um valor inerente, uma vez que carrega a marca distintiva do autor.

A transposição do livro para o roteiro exigiu escolhas narrativas significativas. Enquanto a obra original se organiza como uma colagem de lembranças do autor, reconstituindo sua infância, a perda do pai e a trajetória de sua mãe, Eunice, o filme assume uma perspectiva mais concentrada: a partir do olhar de Eunice, acompanhamos os impactos da repressão sobre o núcleo familiar. Tal mudança de ponto de vista foi estratégica para o cinema. Ao priorizar a subjetividade da personagem interpretada por Fernanda Torres, a adaptação enfatiza o papel da mulher diante do autoritarismo e do silêncio forçado, além de estabelecer uma nova camada de escuta sobre os anos de chumbo.

Murilo Hauser, conhecido pelo roteiro de A Vida Invisível, e Heitor Lorega, estreando em projetos de grande alcance, optaram por uma estrutura que mescla tempos distintos: a década de 1970, período da prisão e desaparecimento de Rubens Paiva, e os anos 2000, em que uma Eunice mais velha — vivida por Fernanda Montenegro — revisita lembranças e documentos que compõem os fragmentos de sua história. Essa escolha permite à narrativa alternar entre presente e passado sem perder o fio condutor da emoção, estabelecendo o tempo como elemento fluido e sensível, em consonância com a proposta estética do filme.

O roteiro não se restringe a fatos históricos. Ele se apropria de elementos simbólicos e poéticos, como as imagens em Super 8 e os silêncios que invadem os diálogos, para traduzir o apagamento institucional da verdade e a permanência do luto. A adaptação buscou fidelidade ao espírito do livro, sem se limitar à reprodução literal dos eventos. A montagem alternada, os cortes secos entre lembrança e realidade, e a presença constante de sons externos (como helicópteros militares ou notícias de rádio e televisão) operam como recursos cinematográficos que reafirmam o caráter de memória em disputa.

A consagração da qualidade do roteiro foi reconhecida internacionalmente: Ainda Estou Aqui venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza de 2024, reforçando não apenas a força do texto adaptado, mas também a relevância universal da história contada. A premiação destaca a habilidade dos roteiristas em converter um relato pessoal brasileiro em uma narrativa acessível e tocante para audiências de diferentes culturas e contextos políticos.

A adaptação do romance de Marcelo Rubens Paiva para o cinema é, portanto, um exemplo notável de como a literatura pode ganhar novas dimensões na linguagem audiovisual. O processo revelou o potencial dramático contido nas memórias familiares, ressignificando-as como denúncia histórica, reconstrução subjetiva e resistência. Ao articular palavra, imagem e tempo com tanta sensibilidade, o roteiro de Ainda Estou Aqui transformou uma história singular em um gesto coletivo de rememoração, contribuindo de maneira decisiva para o êxito do filme como obra artística e documento político.

A adaptação de Ainda Estou Aqui pode ser compreendida à luz dos estudos de Linda Hutcheon e Robert Stam, dois dos principais teóricos da adaptação literária. Em sua obra A Theory of Adaptation (2006), Hutcheon argumenta que a adaptação não deve ser vista como uma simples transposição ou cópia da obra original, mas como uma recriação autônoma que dialoga com seu modelo de origem em novas linguagens e contextos. No caso do filme de Walter Salles, a obra de Marcelo Rubens Paiva é menos um ponto de chegada do roteiro e mais um ponto de partida. O filme reorganiza a experiência subjetiva da memória, deslocando o foco da narrativa do filho para a mãe, o que, segundo Hutcheon, evidencia a natureza interpretativa e transformadora da adaptação.

Memória e identidade

Robert Stam, por sua vez, em textos como Literature and Film: A Guide to the Theory and Practice of Film Adaptation, propõe uma abordagem intertextual da adaptação. Para Stam, adaptações cinematográficas não se limitam a estabelecer uma equivalência entre texto e imagem, mas constroem sentidos a partir de múltiplas fontes e códigos: o literário, o fílmico, o histórico, o cultural. Em Ainda Estou Aqui, é evidente esse jogo de intertextualidades — o livro de memórias, os documentos oficiais da ditadura, os arquivos audiovisuais e até as ausências (como as lacunas nos relatos e no corpo do pai desaparecido) são integrados ao filme como material textual a ser relido, ressignificado e tensionado. Assim, a adaptação se estabelece como um processo de palimpsesto, no qual diferentes camadas de memória são sobrepostas e reelaboradas.

Segundo Rabiger “os aspectos visuais e comportamentais do filme são universalmente acessíveis porque os seres humanos de qualquer lugar do mundo possuem processos de percepção e emoção comuns”. (RABIGER, 2007. p.31). Essa assertiva vai ao encontro da concepção desta narrativa. Hutcheon também destaca o papel do público na experiência da adaptação, apontando que o espectador traz consigo tanto o conhecimento da obra original quanto suas expectativas em relação ao novo formato. A recepção de Ainda Estou Aqui, nesse sentido, é moldada não só pelo impacto do livro no imaginário nacional, mas também pelo contexto político atual, em que o debate sobre a memória da ditadura voltou à cena pública brasileira. O filme, ao adaptar o romance com sensibilidade estética e política, amplia sua capacidade de reverberar emocionalmente, convocando o espectador a participar ativamente da reconstrução da narrativa e do resgate histórico. A memória, portanto, deixa de ser uma recordação estática e passa a ser performance coletiva, como propõem os estudos de memória cultural.

Stam ainda propõe que a adaptação pode operar por transposição, comentário ou analogia. Ainda Estou Aqui se insere de forma híbrida entre essas categorias. Há transposição ao manter os principais eventos e personagens do livro, há comentário na forma como o roteiro expande o papel de Eunice e insinua paralelos entre passado e presente, e há analogia na construção visual e sonora que transforma o trauma íntimo em metáfora da história nacional. Esse entrelaçamento de estratégias faz do filme uma obra que não busca fidelidade literal, mas verdade emocional e política — o que, segundo os teóricos, é uma das marcas mais bem-sucedidas da adaptação artística.

Por fim, a adaptação proposta por Walter Salles e seus roteiristas pode ser compreendida como um gesto ético e estético. Ético, porque se compromete com a denúncia da violência do Estado e com a escuta das vozes silenciadas; estético, porque explora ao máximo os recursos do cinema para evocar sensações e estados de lembrança. Para Hutcheon e Stam, o bom adaptador não é aquele que copia, mas aquele que compreende a essência do original e a traduz com liberdade e invenção em uma nova linguagem. É exatamente esse o caminho que Ainda Estou Aqui percorre, consolidando-se como uma adaptação potente, politicamente necessária e cinematograficamente sofisticada.

Em tal segmento, a perceptiva de Hutcheon dialoga com a de Robert Stam (2008).Conforme indicado por Hutcheon (2011), a investigação das adaptações, assim como sua recepção, tem sido permeada pela concepção de “fidelidade” à obra “original”, sendo recorrentemente utilizados termos como “traição”, “violação”, “profanação” e “infidelidade” para a depreciação desse tipo específico de expressão artística. Devido a essa perspectiva, a “crítica da fidelidade” dominou por muito tempo os Estudos da Adaptação.

Memória e identidade

A condecoração trazida com o Oscar apenas confirmou, de forma definitiva, a qualidade já tão facilmente constatada de Ainda Estou Aqui. Porém, além de toda a excelência cinematográfica que a obra carrega, há ainda um fator mais relevante no tratamento do filme enquanto produto de comunicação social: seu papel no resgate e na preservação de um dos momentos mais sombrios e terríveis da nossa história — a ditadura militar.

Distante do sensacionalismo ou das fórmulas fáceis que tantas vezes dramatizam o regime, o filme de Walter Salles aborda de forma concreta, precisa e sem exageros o drama real vivido por todos aqueles que sentiram o peso da opressão e da subjugação impostas pelo governo militar. Ao retratar a trajetória de Eunice Paiva, o filme constrói não apenas a história de uma mulher, mas a memória de um país inteiro — e talvez aí resida sua maior potência.

De forma sutil e muito bem direcionada, Salles se utiliza da história da família Paiva para contar a história de tantas outras. Como dito por elenco, críticos e por quem assistiu ao filme com atenção, Eunice Paiva personifica a luta e a tragédia de milhares de famílias brasileiras. E o faz sem recorrer aos recursos já desgastados da tortura como espetáculo ou da romantização dos heróis. É justamente por isso que o filme brilha: por retratar pessoas reais, em lutas reais, com dores que geram identificação imediata.

Todos nós, se buscarmos um pouco, conheceremos alguma história próxima de alguém desaparecido ou perseguido durante a ditadura. Pode ter sido um parente, um vizinho ou até mesmo alguém de quem só ouvimos falar. E essas histórias não vêm apenas da elite política. Elas atravessam camadas sociais: de líderes influentes a trabalhadores comuns que, por qualquer motivo, foram arrastados pelas garras do regime.

A memória de Eunice — marcada pela ausência brutal de Rubens e por sua luta incansável por justiça — torna-se espelho de uma memória coletiva que, por muito tempo, foi silenciada. E é nesse espelho que nos vemos. Na dor e na dignidade de Eunice, reconhecemos uma nação que, mesmo ferida, não se curva. Desde a icônica cena em que ela pede que todos sorriam para a foto até sua entrevista celebrando a “primeira vitória” pela memória do marido, a personagem é construída como símbolo da resiliência de um povo que, mesmo diante da violência do apagamento, insiste em existir, resistir e contar sua própria história.

Durante toda a narrativa, o vazio da perda é sentido, mas nunca maior do que a força que habita aquela mulher — e, por extensão, aquela família que tantas outras representam. Ainda Estou Aqui é mais do que um filme. É uma peça de memória. Uma peça viva. Um registro histórico que, justamente por não ser neutro, nos obriga a pensar.

Mesmo narrando fatos ocorridos há mais de três décadas, o filme se mostra tão atual quanto teria sido nas décadas passadas. Porque, embora não vivamos sob um regime ditatorial tão nefasto quanto o daquele período, os ecos daquele regime ainda ressoam. E mais do que isso: voltam a seduzir parte da sociedade sob narrativas distorcidas, alimentadas por oportunismo e ignorância. É justamente para que esse ciclo não se repita que o filme se faz tão necessário — não apenas como resgate histórico de uma memória quase esquecida, mas como lembrete urgente de que nossa democracia é frágil, e que o autoritarismo espreita — sempre espreita — por trás da porta da nossa distração.

Mais do que a identificação com a jornada da personagem, o que Ainda Estou Aqui nos oferece é um território de luta simbólica. Um chamado à consciência. Um alerta para os perigos do esquecimento. Quando o Oscar veio, ele não premiou apenas a qualidade técnica e artística do nosso cinema — que, aliás, há muito já é reconhecida mundo afora. O Oscar foi, acima de tudo, um reconhecimento da nossa memória histórica. Um lembrete — a nós e aos inimigos da democracia — de que Eunice Paiva vive. Em memória e em povo. E, enquanto histórias como a dela forem contadas, haverá sempre um referencial de luta, de dignidade e de coragem para que nunca desistamos de ser o país que ainda estamos tentando ser.

É justamente essa tentativa permanente de nos tornarmos uma nação digna da própria história que faz de obras como Ainda Estou Aqui fundamentais. Não basta apenas lembrar; é preciso interpretar e reinterpretar nossas memórias para que elas sirvam não só de testemunho, mas também de alerta constante. É nesse sentido que o filme cumpre, acima de tudo, um papel ético. Ele não apenas documenta o passado; ele nos provoca a refletir sobre o presente e a projetar o futuro que queremos — um futuro livre de toda forma de autoritarismo. Afinal, enquanto discutimos cinema, memória e história, o que está em jogo é a própria sobrevivência da democracia brasileira. Não se trata apenas de um debate acadêmico ou estético, mas de uma responsabilidade coletiva de mantermos vivas as histórias daqueles que resistiram e lutaram. Histórias como a de Eunice Paiva são o combustível de um país que insiste em não esquecer — e que, justamente por isso, resiste. E é exatamente por isso que seguimos falando, escrevendo, filmando e lembrando. Porque, enquanto houver memória, haverá resistência. Enquanto houver resistência, haverá esperança.

A memória não é apenas um depósito do passado; ela é constitutiva da nossa identidade coletiva. Ao lembrar, reinterpretamos o que fomos para entender o que somos e imaginar o que ainda podemos ser. Ainda Estou Aqui não se limita a evocar lembranças de um tempo sombrio — ele nos obriga a confrontar o modo como esse passado ainda estrutura o presente. A história de Eunice Paiva, com sua dor, sua busca por justiça e sua dignidade, inscreve-se como um marco identitário para uma sociedade que ainda tenta se entender após décadas de silenciamento.

Na ausência de mecanismos oficiais de reparação ou de memória institucionalizada, são as narrativas pessoais — como a de Eunice — que assumem o papel de guardiãs da identidade nacional. Ao retratar uma mulher comum em luta contra uma estrutura monstruosa, o filme contribui para deslocar o eixo da história oficial, centrada nos generais e nas forças armadas, para o cotidiano dos cidadãos e cidadãs afetados diretamente pelo arbítrio. Nesse gesto, reside a força política do cinema: ele reinscreve sujeitos apagados nas linhas da história, devolvendo-lhes voz e dignidade.

A memória, nesse sentido, não é neutra. Como afirma Michael Pollak, ela é atravessada por disputas, esquecimentos seletivos e silêncios impostos. Relembrar, portanto, é um gesto de resistência — sobretudo quando a lembrança desafia narrativas hegemônicas que tentam justificar ou relativizar a violência de um regime autoritário. Ainda Estou Aqui escolhe claramente de que lado da história deseja estar: ao lado das vítimas, dos sobreviventes, dos que resistiram. E, ao fazer isso, convida o espectador a tomar posição.

A identidade coletiva de um povo é moldada tanto pelos seus triunfos quanto pelos seus traumas. No caso do Brasil, a ditadura militar permanece como uma ferida aberta, em parte porque não foi plenamente enfrentada ou debatida em todas as suas implicações. O filme de Walter Salles atua como um contra-discurso ao esquecimento. Ele inscreve, na linguagem cinematográfica, a presença daqueles que foram desaparecidos, perseguidos e silenciados. E nos lembra que a construção de uma identidade democrática passa necessariamente pelo enfrentamento crítico da nossa própria história.

Por fim, vale lembrar que a memória não é estática — ela se transforma à medida que novas gerações se apropriam do passado. Obras como Ainda Estou Aqui têm o poder de atualizar essas memórias, ressignificá-las à luz dos dilemas do presente e transmiti-las adiante. A história de Eunice Paiva, antes restrita a círculos políticos e jurídicos, passa agora a habitar também o imaginário audiovisual do país. E é nesse gesto de circulação — da história pessoal à memória coletiva — que o filme realiza sua maior façanha: ele transforma a lembrança em identidade, e a identidade em compromisso com a democracia.

Conclusão

A análise de Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, revela como o cinema pode operar não apenas como expressão estética, mas como dispositivo fundamental de resgate e reconstrução da memória histórica. A partir da adaptação do romance de Marcelo Rubens Paiva, a obra fílmica articula elementos narrativos, performáticos e visuais para dar forma a uma experiência sensível que religa o passado ao presente, tornando-o politicamente relevante. O filme propõe uma leitura da ditadura militar a partir de uma perspectiva íntima, evitando abordagens panfletárias e promovendo uma identificação empática com a trajetória de Eunice Paiva.

Neste sentido, o trabalho de adaptação literária assume um papel central, ao reconfigurar os sentidos originais do livro para um novo meio expressivo e para um público ampliado. A atuação dos roteiristas, em diálogo com o diretor, evidencia um esforço de fidelidade não apenas factual, mas ética e afetiva com relação à história vivida. Premiado em festivais internacionais como Veneza e reconhecido com o Oscar, o roteiro demonstra a potência do cinema em articular o pessoal e o coletivo, o emocional e o político, o documento e a ficção, constituindo-se em um objeto complexo e multifacetado de análise.

A construção da narrativa filmada reforça a importância da memória como elemento estruturante da identidade coletiva. Conforme argumentam autores como Linda Hutcheon e Robert Stam, o processo adaptativo pode ser visto como uma forma de reinterpretação cultural e discursiva. Ainda Estou Aqui exemplifica esse movimento ao transformar um testemunho individual em narrativa pública, convocando o espectador a assumir também a posição de testemunha e a participar ativamente do debate sobre o passado autoritário brasileiro e suas implicações no presente.

Ademais, o filme contribui para uma pedagogia da memória, funcionando como veículo de conscientização política e histórica em uma época marcada por tentativas de revisionismo e apagamento. O resgate da figura de Eunice Paiva como símbolo da resistência democrática opera não apenas como justiça histórica, mas como afirmação de valores essenciais à cidadania. Assim, o filme não apenas documenta o passado, mas performa um gesto de resistência simbólica, convidando o público a reconhecer o valor da memória como ferramenta de luta democrática.

Em suma, Ainda Estou Aqui confirma a capacidade do cinema de produzir sentidos políticos e históricos a partir da articulação entre forma, conteúdo e recepção. Sua contribuição vai além do campo artístico: ela se inscreve no campo ético e social como um instrumento de preservação da memória e de reinvenção da identidade nacional. Ao iluminar a história de Eunice Paiva e de tantos outros silenciados, o filme reafirma que a memória é uma forma de resistência — e que lembrar é, em si, um ato político fundamental para a sustentação da democracia.

Bibliografia

HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Santa Catarina: Editora UFSC, 2011.

MARTIM, M. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2007.

MCKEE, R. Story. Curitiba: Arte e Letra, 2006.

STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2008.

RABIGER, Michael. Direção de cinema, técnicas e estética. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

XAVIER, I. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: Pellegrini, Tânia. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac; Instituto Itaú Cultural, 2003.

Filmografia

Ainda estou aqui. 2024. De Walter Salles. Brasil