Abstract
In 1939, Adolf Hitler justified the atrocities of the Second World War by recalling one of the early 20th century’s greatest humanitarian crises: “Who, after all, speaks today of the annihilation of the Armenians?”. Beneath this statement lies the ongoing denial and historical revisionism of the Armenian Genocide (1915–1923), a reality that persists today. This erasure urged Armenian director Inna Sahakyan to harness cinema’s power as a synthesis of all arts to revive the testimony of Aurora Mardiganian, a genocide survivor whose story embodies both witnessed horrors and untold traumas.
The essay “‘Films Are Slow Weapons’: The Resistance of Memory Through Art in Aurora’s Sunrise (2022)” analyzes Sahakyan’s documentary “Aurora’s Sunrise”, marked by an innovative blend of animation and live action. Besides combining archival footage, interviews, and segments from the partially lost film “Ravished Armenia” (1919), starring Mardiganian, the protagonist’s world is portrayed through storybook animation, a stylistic choice that contrasts with the collective trauma behind her experience.
Structured in two parts and framed by insights from an interview with Sahakyan, the essay first contextualizes the sociopolitical conditions that enabled the genocide and Mardiganian’s erasure, linking these to broader tendencies in European dictatorships. The second part explores the cinematic language of “Aurora’s Sunrise” as an act of resistance to memory erasure. It concludes by reflecting on how art, and especially animated cinema, can bring silenced testimonies to light and confront ongoing historical denial.
Keywords: Aurora’s Sunrise, Armenian Genocide, Animation, Live action, Memory.
Introdução
Em 1919, a história de Aurora Mardiganian (1901-1994) corria o mundo à boleia do cinema. Como tantos outros refugiados que escapavam do Genocídio1 Arménio (1915-1923), perpetuado pelo Império Otomano, Mardiganian fixou-se nos Estados Unidos da América com apenas 16 anos, determinada a dar a conhecer a tragédia que o seu povo atravessava. O sucesso do livro autobiográfico Ravished Armenia: The Story of Aurora Mardiganian, The Christian Girl Who Survived the Great Massacres (1918) deu origem à adaptação cinematográfica Ravished Armenia (1919), protagonizada pela própria, obra que a Near East Foundation (NEF), ainda hoje, considera essencial à angariação de cerca de 30 milhões de dólares para as vítimas do Genocídio (Near East Foundation 2015). Até meados dos anos 20, Ravished Armenia continuou a ser apresentado nos Estados Unidos e na Europa, convertendo Aurora Mardiganian numa das mais conhecidas porta-vozes dos milhões de arménios afetados pelo massacre.
Porém, quase um século mais tarde, quando Inna Sahakyan se preparava para filmar uma série de curtas-metragens sobre os sobreviventes do Genocídio, a realizadora arménia deparou-se com o testemunho de Aurora Mardiganian, praticamente desconhecido no seu país e no resto do mundo. “O testemunho foi a fonte motivadora para reformular o documentário. Ela, a sua personalidade, a sua forma de contar histórias, os pormenores da sua história, a sua coragem, tudo isto esteve no cerne da decisão de fazer o filme”, afirma Sahakyan 2, que, até então, ignorava a existência de Ravished Armenia, durante anos considerado um filme perdido, até à recuperação de 18 minutos das suas bobinas, em 1994.
Questionada sobre o porquê de um depoimento, nas suas palavras, “totalmente diferente dos testemunhos de outras vítimas” ter caído no esquecimento, Inna Sahakyan reflete sobre um Genocídio ainda negado pela Turquia, negligenciado pelas grandes potências envolvidas na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), reprimido na República Socialista Soviética da Arménia e parcialmente ensombrado, na Arménia independente, por conflitos com o Azerbaijão. Entre o fim precoce da vida pública de Aurora Mardiganian e conspirações sobre a eliminação de Ravished Armenia por razões políticas, a cineasta viu-se a braços com a tarefa de colmatar lacunas arquivísticas, servindo-se de uma combinação de entrevistas, imagens da época, fragmentos do filme de 1919 e técnicas de animação para concretizar o documentário animado Aurora’s Sunrise (2022), a sua homenagem ao legado de Aurora Mardiganian.
Pensar a trajetória de Aurora Mardiganian é, parafraseando Inna Sahakyan, pensar os filmes - e, por hipótese, as restantes expressões artísticas - como “armas lentas”. Se o termo “armas” alude à apropriação política e à mobilização popular que as obras de arte, muitas vezes, despertam, a referência à lentidão remete para a forma como estas, ao serem revisitadas, reverberam e introduzem mudanças graduais em diversas épocas. O presente ensaio segue tais coordenadas, dividindo-se em dois blocos principais, pontualmente atravessados pelas impressões de Inna Sahakyan. O primeiro diz respeito ao horizonte sociopolítico que, no início do século XX, permitiu o Genocídio Arménio e contribuiu para a exposição e subsequente esquecimento de Aurora Mardiganian. Relaciona-se, assim, as políticas genocidas do Império Otomano, não só com outras ditaduras europeias do período entre guerras que adotaram estratégias semelhantes, mas também com as diferentes respostas internacionais ao Genocídio que, embora tomem partidos opostos, convergem sob o rótulo de “propaganda 3”.
De seguida, dá-se um salto rumo ao presente, explorando a linguagem cinematográfica de Aurora’s Sunrise, a par de outros gestos de processamento artístico de experiências traumáticas. A complementaridade estabelecida entre a animação e arquivos históricos é, neste âmbito, encarada como uma ferramenta de resistência singular face às tentativas de apagamento da memória ainda prevalecentes. Por último, perspetivam-se caminhos para as reparações históricas no grande ecrã, retomando a pergunta de partida do ensaio: “Como é que a arte, especialmente o cinema de animação, pode reativar testemunhos silenciados pela história e resistir, ainda hoje, às forças de apagamento que moldaram o século XX?”.
1. Desenterrar silêncios
Uma semana antes da invasão da Polónia pela Alemanha, em 1939, o ditador Nazi, Adolf Hitler, justificava “enviar para a morte, sem misericórdia e compaixão, mulheres, homens e crianças de origem e língua polaca” com a questão, “quem, afinal, fala hoje da aniquilação dos arménios?” (Lochner 1943, 2). Nas entrelinhas, constam o revisionismo histórico e a negação que precedem o Genocídio Arménio, uma das maiores crises humanitárias do século XX. Entende-se por Genocídio Arménio a destruição sistemática de “cerca de 1.5 milhões de arménios, mais de metade da população arménia que vivia na sua terra natal histórica, [...] por ordem dos líderes turcos do Império Otomano”, entre 1915 e 1923, recorrendo a “execuções, marchas da morte, afogamentos, queimaduras e outros meios” (The Genocide Education Project s. d.). Entende-se igualmente que tal massacre não ocorreu de forma isolada, tendo influenciado e sido influenciado por uma Europa confrontada com “o colapso da velha ordem” enquanto “pré-condição para movimentos que eram antidemocráticos” (Lee 2016, 5).
Na primeira metade do século XX, o colapso do Império Otomano foi acelerado pela ascensão de sentimentos nacionalistas - responsáveis, na Europa Ocidental, por uma “crescente unidade patriótica” e, na Europa Central e Oriental, pela “ameaça de desmembramento dos Estados existentes” (Paxton e Hessler 2012, 25) -, que abriram caminho a significativas perdas territoriais, agravadas pelas derrotas do Império nas guerras Ítalo-Turca (1911-1912) e dos Balcãs (1912-1913). Em resposta ao fim iminente da “velha ordem”, surge a radicalização política, consumada, em 1913, com o início da ditadura do Comité de União e Progresso (CUP), que delegou o poder à fação mais autoritária dos revolucionários “Jovens Turcos”. Após a entrada otomana na Primeira Guerra Mundial ao lado das Potências Centrais, o novo regime reforçou a “necessidade militar” de “punir os arménios coletivamente por alegadas ou potenciais colaborações com as forças russas, durante a Primeira Guerra Mundial” (De Waal 2015, 19). Contudo, por detrás da deportação forçada das comunidades arménias para o deserto sírio em condições desumanas, residiam hostilidades antigas. Milhares de arménios tinham sido eliminados, poucos anos antes, nos Massacres Hamidianos (1894-1897) e nos Massacres de Adana (1909), em parte, motivados pela sua posição como minoria cristã, prosperidade económica em algumas regiões do Império e progressiva reivindicação de direitos civis. Encarados como uma ameaça ao estado turco homogéneo, preconizado pela ideologia panturquista dos “Jovens Turcos”, o Genocídio dos arménios constituiu o culminar de várias demonstrações de “nacionalismo radical, assimilação e homogeneização”, implementadas “muito antes de os regimes fascistas terem chegado ao poder na Europa e noutros locais” (Ter-Matevosyan 2015). Os massacres não só de arménios, mas também de outras minorias cristãs como gregos e assírios, continuaram até à proclamação da República da Turquia, em 1923.
Enquanto no Império Otomano a deportação dos arménios era feita à revelia da população turca, pois “aqueles que ouvissem falar [dos massacres] e se atrevessem a criticá-los eram ameaçados e perseguidos” (Köroglu 2007, 75), no exterior, a condenação das ações otomanas crescia. Em 1915, a Rússia pressionou a Grã-Bretanha e a França, seus aliados, a denunciarem publicamente os “crimes contra a humanidade”, perpetuados pelo governo otomano, numa declaração que se converteu na primeira a usar termos próximos de “genocídio” para se referir à tragédia (Suny 2015, 308). Marcados pela Primeira Guerra Mundial - em que a “intervenção da propaganda passa a ser permanente e multiforme: imprensa, rádio, jornais, brochuras, anúncios, cinema, e todos os alvos são visados: os combatentes, os civis, as famílias e mesmo as crianças” (Salgado 2005, 83) -, os Aliados do conflito empenharam-se na consciencialização para o sofrimento arménio, quer apostando em reportagens exaustivas nos seus respetivos órgãos de comunicação, quer através de cartazes com ilustrações e apelos emotivos, por norma, destinados à divulgação de fundos humanitários, como o britânico Armenian Refugees’ Lord Mayor’s Fund.
Neste sentido, destaca-se o apoio sem precedentes dos Estados Unidos da América. Os relatos vívidos da tragédia, partilhados pelo Embaixador dos Estados Unidos no Império Otomano, Henry Morgenthau, motivaram a fundação do American Committee for Armenian and Syrian Relief (ACASR) - mais tarde rebatizado, Near East Foundation (NEF) -, comprometido com um projeto humanitário de grande escala, em resposta aos genocídios arménio, grego e assírio. De igual modo, a chegada de refugiados arménios ao país levou não só à sensibilização da população local, mas também à proliferação de testemunhos de sobreviventes, alguns posteriormente reconfigurados em obras de arte. Estima-se que, antes da Primeira Guerra Mundial, 60 mil arménios viviam nos Estados Unidos, contrariamente aos valores de 1924, que apontam para uma população entre os 120 e 125 mil (Office of the High Commissioner for Diaspora Affairs s. d.). Entre os arménios da diáspora, contavam-se, por exemplo, Arshile Gorky (1904-1948), pintor que influenciou a ascensão do expressionismo abstrato, durante os anos 50, nos Estados Unidos; Leon Surmelian (1905-1995), autor que, além de imortalizar tradições orais e contos arménios em inglês, publicou as suas recordações do Genocídio, no volume I Ask You, Ladies and Gentlemen (1945); e Arshaluys Mardigian - nome adaptado para a versão americanizada “Aurora Mardiganian” - escritora e atriz que, ao contrário da maioria dos seus compatriotas, partilhou de imediato a sua experiência com o público norte-americano, informando o mundo sobre uma tragédia em curso.
Ao converter a história da sobrevivente em animação, em 2014, Inna Sahakyan preferiu manter alguma distância do livro Ravished Armenia, escrito por Harvey Gates, a partir das memórias ditadas por Aurora Mardiganian e, em seguida, traduzidas informalmente. “Não foi [um livro] escrito por ela na totalidade. Tinha a sua própria agenda de propaganda, de priorizar o que precisava de ser dito naquele tempo e espaço [...]. É uma história que precisava de ser contada, mas não uma história que me interessasse, porque o foco encontrava-se na dor em si e não na superação da dor pela Aurora”, afirma. A narrativa detalhada e sensacionalista é, de facto, uma das marcas distintivas de Ravished Armenia, intensificada pela sua publicação seriada nos jornais The New York American e The Los Angeles Examiner, antes de se converter em livro. Em vez de mitigar tal abordagem, a adaptação cinematográfica de Oscar Apfel - conhecida por Ravished Armenia ou pelo título alternativo Auction of Souls - perpetuou a exploração de Aurora Mardiganian, obrigando-a a reabrir feridas recentes enquanto protagonista da longa-metragem, a troco de uma remuneração residual.
Além das filmagens física e psicologicamente exigentes, seguidas de uma digressão com a presença da atriz, o filme alimentou-se do interesse da sociedade do início do século XX pelo orientalismo, monopolizando estratégias narrativas e estéticas, de modo a “dominar, reestruturar e exercer autoridade sobre o Oriente” (Said 2004, 3). Cenas explícitas em haréns e mercados de escravos aludem ao exotismo e à espetacularização da tragédia, comuns nos primórdios de Hollywood. Sendo os perseguidos “a ‘raça branca’ cristã”, são também escolhidas “caricaturas bestiais no marketing mediático e gesticulações estereotipadas de vilões malignos em filmes mudos” (Marsoobian 2017, 76) para retratar os soldados e outras personagens de origem otomana (Figura 1).
Apesar da sua génese problemática, que, em última instância, fez com que Mardiganian se afastasse dos holofotes até ao fim da sua vida, Ravished Armenia encontrou sucesso além-fronteiras e beneficiou bastante a causa arménia, permanecendo na história como o primeiro filme a retratar os horrores de um genocídio.
Perante tamanha atenção mediática, parece quase inverosímil imaginar o progressivo apagamento de Aurora Mardiganian e do Genocídio Arménio do panorama histórico internacional. Por um lado, um dos primeiros retrocessos surgiu da parte da Alemanha, antecipando uma tendência que viria a generalizar-se na chamada “Europa das Ditaduras” do período entre guerras. Entre 1919 e 1920, o debate sobre o Genocídio Arménio inflamou a imprensa alemã, levando à atribuição do crime aos “Jovens Turcos” e ao debate sobre a culpa do país enquanto aliado de guerra do Império Otomano. Porém, pouco tempo depois, “vários jornais nacionalistas aceitaram a acusação de genocídio contra os turcos e justificaram-na ao mesmo tempo”, invocando as “características raciais dos Arménios”, de forma semelhante à propaganda antissemítica moderna (Ihrig 2016, 293). Assistia-se, assim, à disseminação da retórica que, anos mais tarde, iria potenciar o Holocausto (1941-1945) - “se a culpa por males geralmente reconhecidos pode ser atribuída a um grupo particular mais ou menos identificável, a maioria sente-se exonerada de toda a responsabilidade por esses males” (Hinz 1995, 330).
Posto isto, é importante considerar as parecenças do regime dos “Jovens Turcos” e do regime kemalista que lhe sucedeu, liderado por Mustafa Kemal Atatürk, com as ideologias autoritárias que se espalhavam pela Europa, popularizando as ações otomanas como um modelo a seguir, no contexto da nova reconfiguração sociopolítica. Johann Von Leers, autor de uma das principais biografias de Hitler publicadas durante o regime Nazi, identificou estes paralelismos, argumentando que o nazismo, o kemalismo e o fascismo italiano constituíam diferentes expressões do mesmo movimento völkisch (Ihrig 2016, 327), defensor de um nacionalismo étnico. De modo análogo ao Império Otomano, também as ditaduras europeias do período entre guerras tomaram parte em “políticas de memória” mais ou menos subtis, referentes à “forma como uma sociedade interpreta e se apropria do seu passado, numa tentativa contínua de moldar o seu futuro” (De Brito, González-Enríquez e Aguilar 2001, 37). À justificação alemã do Genocídio Arménio, seguiu-se o extermínio dos judeus e de outros grupos considerados indesejáveis pela ideologia Nazi, condição apresentada como essencial para instaurar um “modelo utópico semelhante a um passado heroico” (Schmid 2005, 139), apenas existente em obras de arte. Na Itália, o ditador Benito Mussolini - que alegadamente desejava “conduzir um massacre como os turcos fizeram” (Petacci 2009, 423) - elogiava, em 1934, a reestruturação urbanística da cidade de Roma, na sequência de um “empreendimento épico” em solo africano (Benton 1995, 122), branqueando a implicação do governo na matança e deportação de milhares de civis, durante o Genocídio Líbio (1929-1934). A partir desta confluência discursiva, compreende-se o esquecimento do Genocídio Arménio, não como consequência de um silenciamento explícito, mas como produto de sistemas de poder, cuja coerência ideológica dependia de mecanismos que sustentam políticas genocidas, como o ódio contra minorias e o revisionismo histórico.
Por outro lado, o peso diplomático da recém-proclamada República da Turquia alienava os maiores aliados do povo arménio. Enquanto a Grã-Bretanha censurava segmentos de Ravished Armenia para não colocar em risco “as negociações de paz com o governo turco otomano sucessor” e a “riqueza petrolífera recentemente adquirida, [...] que residia nas terras árabes muçulmanas do conquistado Império Otomano” (Marsoobian 2017, 77), em 1920, o Congresso dos Estados Unidos chumbava o mandato sobre a Arménia, proposto pelo presidente Woodrow Wilson, ciente de que “quanto mais depressa os EUA abandonassem o seu apoio à Arménia para melhorar as suas relações com a Turquia, melhor, de modo a ganhar acesso aos campos petrolíferos otomanos” (Avedian 2019, 72). Por sua vez, a Rússia, a partir de 1922, tornou-se o centro da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), na qual estava inserida a República Socialista Soviética da Arménia. Num esforço de aproximação ao regime de Mustafa Kemal Atatürk e de promoção da “doutrina soviética de esquecer o passado para forjar um futuro socialista” (De Waal 2015, 109), a “Questão Arménia” - referente ao conjunto de problemas políticos, sociais e territoriais que marcaram as relações turco-arménias entre 1877 e 1914 - foi posta de lado e inclusive dada como “resolvida com finalidade” pelo ditador Joseph Stalin (Dekmejian 1968, 511). Na “representação revolucionária da realidade” (1999, 411) - pedida pelo propagandista Andrei Zhdanov, em 1934, aquando da instauração do Realismo Socialista como corrente artística oficial da URSS -, não havia lugar para o gesto revolucionário de lembrar o Genocídio Arménio, privando gerações de conhecer “o que se havia realmente passado com os seus concidadãos no país vizinho havia apenas duas décadas” (Neves e Pereira 2018, 130). Os protestos na cidade de Yerevan a favor do reconhecimento oficial do Genocídio pela União Soviética, em 1965, constituíram um passo crucial para a discussão dos massacres nas décadas seguintes. “E depois a Arménia tornou-se independente em 1991 e sempre teve toda esta guerra atual e traumas pesados. Assim, muitas histórias foram basicamente deixadas para trás”, conclui Inna Sahakyan, referindo-se ao conflito na região do Nagorno-Karabakh, que opõe arménios e azerbaijanos até hoje.
Apesar de todos os anos, no dia 24 de abril, milhares de arménios se dirigirem ao memorial de Tsitsernakaberd, em Yerevan, para prestar homenagem às vítimas do Genocídio, associadas à miosótis (flor coloquialmente conhecida como “não-me-esqueças”), a negação dos massacres por parte da Turquia persiste. Com o intuito de impedir o reconhecimento do Genocídio Arménio a nível internacional, apenas oficializado em 34 países, a Turquia tem-se servido das suas alianças económicas, militares e geopolíticas para interferir em conferências, decretos oficiais e currículos educativos. Recordar a história de Aurora Mardiganian ainda é uma missão de risco, que levou Inna Sahakyan a lidar com tentativas de corte de “financiamentos europeus”, “e-mails ameaçadores” e “campanhas para baixar as classificações do filme online”. Ainda assim, a realizadora sublinha a exibição recente de Aurora’s Sunrise “num pequeno festival de direitos humanos na Turquia”, onde “foi muito bem recebido”. “Se não acreditarmos que os filmes vão mudar alguma coisa, não vale a pena fazê-los. [...] Nós fazemos filmes para ter impacto nas audiências, nas políticas, na história, na aceitação. Não há outra maneira”, observa Sahakyan, crente na possibilidade de o cinema devolver a Aurora Mardiganian e ao povo arménio a visibilidade de outrora.
2. (Re)animar memórias
Numa sala repleta de bricabraques coloridos, uma mulher anónima desenrola um antigo póster de cinema. Os intervenientes retratados que “saíam do deserto em busca de água” são identificados com precisão. “E esta sou eu, Aurora”, conclui Aurora Mardiganian, levando as figuras desenhadas no papel a abandonarem a divisão em live action e a reaparecerem animadas numa publicitada estreia de Hollywood, em 1919. Eis a primeira sequência de Aurora’s Sunrise, capaz de estabelecer, em menos de um minuto, a declaração de intenções da longa-metragem - navegar um espaço híbrido entre o cinema de animação e live action, entre memórias afetivas e históricas, para reclamar um testemunho tão explorado no seu tempo, quanto esquecido no contemporâneo. “Reclamar” converte-se, assim, na palavra de ordem da longa-metragem, interessada, sobretudo, em dar voz ao lado de Mardiganian que “precisava de ser conhecido”, de acordo com Inna Sahakyan. “Ela nunca tentou esquecer e viver a sua vida. Ela basicamente usou a sua dor para ajudar e informar o mundo sobre o que estava a acontecer. […] Na maioria das outras histórias [sobre o Genocídio], as pessoas aceitavam o papel de vítima e ela nunca o fez. Isso foi único”, afirma.
Traduzir a singularidade do percurso de Mardiganian no grande ecrã trouxe a Sahakyan um duplo desafio: lidar com a falta de informação, causada por décadas de propaganda negacionista, e transcender objetos que, apesar de favoráveis à causa arménia, se encontravam igualmente comprometidos pelo seu enquadramento propagandístico. Ver além da propaganda, quer positiva, quer negativa, exigia o cruzamento de fontes, opção que, longe de comprometer a confiança no depoimento de Mardiganian, ajudou a legitimá-lo. “Segui o seu testemunho, porque confio nela. Não tenho o direito de não confiar nela. Estou a fazer um documentário sobre uma pessoa, logo todas as decisões vinham do seu testemunho, sempre complementado com registos históricos e memória coletiva”, reforça a cineasta. Desde o início, o trabalho de investigação priorizou a análise de três conversas, concedidas por Mardiganian - já em idade avançada, nos anos 70 e 80 - ao Zoryan Institute e à Armenian Film Foundation. Padrões e eventuais inconsistências tornavam-se, então, no ponto de partida para o confronto de versões, recorrendo a pareceres de outros sobreviventes e registos históricos. Ao longo deste processo, foram consultados académicos arménios e turcos, não com o intuito de legitimar qualquer forma de negacionismo, mas de sobrepor subjetividades, compreendendo as múltiplas camadas históricas e políticas que moldaram o testemunho em estudo. Importa sublinhar que fazer justiça à memória de Mardiganian foi uma missão partilhada com uma equipa turca que, de forma anónima, captou os lugares pelos quais a jovem passou como refugiada em território atualmente pertencente à Turquia. As filmagens “da aldeia exata, da caverna exata e do rio exato”, recebidas por Sahakyan, fazem parte de um esforço tangível entre países com relações ainda delicadas para produzir um retrato que elimina as hostilidades da propaganda e se esforça por transcender a exploração do trauma de Mardiganian.
Em resposta à pluralidade de referências, Aurora’s Sunrise conta com a participação de três “Auroras”, que assumem à vez o controlo da narrativa: a Aurora-testemunha, pertencente às entrevistas recolhidas por Sahakyan e distinta das demais por comunicar a sua experiência na primeira pessoa; a Aurora-atriz de Ravished Armenia, muda e indissociável das suas provações; e a Aurora-animada, dobrada por Anzhelika Hakobyan, que dá vida à infância alegre, à adolescência roubada pelos massacres e às dificuldades de refazer a vida nos Estados Unidos. Apesar de Sahakyan estabelecer que “enquanto realizadora documental, a coisa mais importante ser o que [Mardiganian] diz nas três entrevistas”, a longa-metragem define um regime que desestabiliza a autoridade entre as diferentes “Auroras”, favorecendo a sua complementaridade. Perante uma Aurora-animada que reúne toda a sua coragem para fugir de um harém turco, a Aurora-testemunha revela o medo paralisante de ser apanhada. Por detrás da Aurora-atriz que se interpreta habilmente a si própria, em Ravished Armenia, a Aurora-animada expõe o sofrimento oculto pela performance, desde a paranoia às lesões que teve de superar, durante as filmagens. Quando a Aurora-animada é confrontada por jornalistas com a questão “o que doeu mais, ver o assassinato da sua família ou assistir à matança da sua nação?”, a Aurora-testemunha prontamente responde: “o meu povo é a minha nação. Se a minha nação desaparecer, os arménios deixam de existir. [A morte dos] meus pais magoou-me tanto como [a do] meu povo”.
O entrelaçar de formatos permite também que Aurora’s Sunrise se torne mais do que uma mera reconstituição das experiências pessoais de Mardiganian, conferindo à protagonista autonomia para pensar sobre o seu percurso e sobre os acontecimentos históricos dos quais fez parte. A introdução pontual de imagens de arquivo dá lugar a momentos de reflexão, ausentes no livro e no filme Ravished Armenia, demasiado próximos dos acontecimentos para oferecerem a distância crítica necessária. Assistir a Aurora’s Sunrise é também perspetivar as condições sociopolíticas do início do século XX, aos olhos de uma mulher que sentiu as suas consequências na pele, escolha significativa, já que, após a execução imediata da maioria dos homens, as mulheres e crianças arménias foram obrigadas a lidar sozinhas com os efeitos desestruturantes do Genocídio. Tal posição de comentadora torna-se particularmente evidente na forma como Mardiganian encara aqueles que, por norma, são enquadrados como os seus salvadores - os Estados Unidos - e os seus inimigos - o Império Otomano.
Quando Mardiganian chega a Nova Iorque, as imagens de arquivo começam por estabelecer a nação como uma espécie de terra prometida, onde a Estátua da Liberdade recebe calorosamente os refugiados arménios, assírios e gregos. Tais segmentos são trocados por planos de fitas rapidamente produzidas em Hollywood e pelos semblantes do presidente Woodrow Wilson, do líder bolchevique Vladimir Lenin e do fundador da Turquia Mustafa Kemal Atatürk, em disputa pelo território arménio. Se, no livro Ravished Armenia, Mardiganian limita-se a expressar a sua admiração pelos “americanos generosos que me tornaram tão feliz quanto posso ser” (2020, 199), a Aurora-animada toma consciência da sua exploração enquanto estrela de cinema, além de se mostrar desiludida perante o facto, cada vez mais aparente, de que “o sistema político [dos Estados Unidos] [...] não tinha qualquer interesse na Arménia, principalmente à luz do emergente movimento kemalista na Turquia” (Avedian 2019, 72). Por sua vez, as imagens de época das vítimas exaustas em marchas no deserto ou em pilhas incontáveis de cadáveres ilustram a extensão da violência, perpetuada pelo Império Otomano. Porém, na entrevista que fecha o documentário, a Aurora-testemunha apenas lamenta a falta de responsabilização que, porventura, teria prevenido o Holocausto, em referência ao desfecho desolador do Genocídio - “foram detidos mais de 100 suspeitos, muitos deles antigos oficiais. Em fevereiro de 1919, foram agendados quatro julgamentos. No final, só um foi ouvido na íntegra” (De Waal 2015, 79). Em última análise, Mardiganian limita-se a desejar justiça para os seus “inimigos”, longe da tortura bárbara que experienciou. “Mesmo agora, não quero ver os turcos mortos por armas de fogo ou espadas. Os turcos devem ser moralmente levados [a tribunal]. É esse o caminho, não por armas de fogo ou espadas. Não acredito nisso”, conclui.
Perante um esforço tão significativo de criar impressões sobre o real, não deixa de ser interessante a predominância da animação, um meio com “reputação para a artificialidade” (Ehrlich 2021, 4), em Aurora’s Sunrise. Apesar de Sahakyan não apresentar qualquer experiência prévia no ramo da animação, nunca foram sequer contemplados outros formatos. “Quando se lida com a memória, quando se lida com eventos horríveis, mas, ao mesmo tempo, com memórias muito alegres, a animação é uma ferramenta única para recontar uma história”, refere. Ainda que grande parte da vida de Aurora Mardiganian tenha sido marcada pela dor, a sua infância foi passada entre uma família numerosa e próspera, na localidade de Chmshgatsak (atual Çemişgezek, na Turquia). As escassas fotografias da época não faziam justiça aos momentos de felicidade descritos em entrevistas, levando a equipa de Aurora’s Sunrise a criar um dispositivo, com o intuito de sintetizar tais recordações: um teatro caseiro onde Mardiganian, juntamente com a mãe e os irmãos, encenam uma peça sob o olhar atento do pai e do irmão mais velho. A partir do momento em que os soldados otomanos expulsam a família de casa, dando início a sucessivas perdas de entes queridos, a longa-metragem retorna várias vezes ao palco improvisado, cada vez mais vazio e repleto de casulos vermelhos, em alusão ao ofício do pai enquanto fabricante de seda (Figura 2). “A memória mais brilhante, coberta pelos casulos vermelhos, pode ter muito mais peso do que ver a irmã ser morta ou a cena do assassinato da mãe ou o rosto [de Mardiganian] a expressar essa emoção. Deixo ao público a tarefa de sentir e compreender. Essa é a beleza do cinema”, explica Sahakyan, trocando a suposta “artificialidade” da animação pela sua capacidade de destacar “a criatividade, a personificação e o subjetivo, que são fundamentais à memória” (Walden 2019, 88).
Seguindo, mais uma vez, a essência fluida e alegórica da memória, Aurora’s Sunrise não almeja uma cronologia linear, apresentando não só avanços e recuos no tempo, mas também cortes entre registos live action e experiências animadas. A flexibilidade da animação e o estabelecimento de raccords por via da montagem, do som e da continuidade visual ajudam a suavizar as transições entre mundos, assumindo as áreas cinzentas do trauma, sem tornar a narrativa ilegível. No deserto, o contacto com outros arménios, forçados a abandonar as suas terras, leva Mardiganian a aperceber-se das semelhanças entre diferentes histórias, recordando os primeiros dias em que, com falsas promessas e violência, a sua família foi obrigada a deixar tudo o que conhecia para trás. Os flashbacks, neste caso, representados por cenas de Ravished Armenia, encontram-se articulados com o momento presente, através do foco em pequenos detalhes - um movimento no deserto, um ramo ao vento, um plano da natureza aparentemente neutro - que funcionam como pontos de transição. É a partir desses elementos subtis que a animação retoma o fio da narrativa, permitindo a passagem entre tempos e formatos. Tal capacidade de transformar a perceção sensorial em coerência formal encontra-se, para Sahakyan, no próprio cerne da animação, na sua opinião, “o único médium que poderia realmente tocar, poderia realmente transferir cores e não apenas cores, mas emoções e cheiros”.
Outro exemplo expressivo da fusão entre linguagens cinematográficas ocorre durante a cena em que Mardiganian escapa de um homem que a adquire como escrava. Ravished Armenia reproduz o incidente, tão extraordinário que parece inventado para a tela de cinema, não fosse a protagonista ter confirmado por diversas vezes a sua veracidade. De repente, a Aurora-atriz corre em direção a uma ravina e mergulha. No instante em que o corpo desaparece sob a superfície da água, a animação substitui a imagem real, prolongando gestos e sensações. A transição aposta na coesão atmosférica - a banda sonora continua, a densidade líquida invade o cenário e as braçadas lentas da protagonista estendem a experiência para lá do visível. Deste modo, a animação não só retoma a ação, como amplia a carga simbólica do mergulho, transformando-o numa manifestação da força interior de Mardiganian, também descrita na narração de Anzhelika Hakobyan: “talvez ele pensasse que eu ia só obedecer, que eu já estava demasiado quebrada. Mas eu não estava”. À semelhança dos planos da natureza, os detalhes permitem uma transição orgânica, reforçando a ideia de que é no sensível que se constrói a verdadeira unidade da longa-metragem.
Ainda assim, a decisão de animar não se cinge à sua utilidade técnica. Para Sahakyan, a animação converte-se, de igual modo, num compasso ético, ao consciencializar a cineasta para a importância de estabelecer uma cocriação honesta com Mardiganian. Afinal, o testemunho da sobrevivente já tinha sofrido manipulações no passado, colocando uma responsabilidade acrescida em Aurora’s Sunrise para não cometer os mesmos erros. “A forma como posicionas a câmara, a forma como escolhes editar uma cena... já é uma interpretação artística do realizador. Portanto, [no caso da animação], é muito mais. E tive problemas éticos e de precisão histórica, [mas] encontrei um equilíbrio que me deixa feliz e relaxada”, explica a cineasta. Tal equilíbrio assentou em dois pressupostos: “é no preenchimento de lacunas que entra a liberdade artística” e “qualquer decisão artística está enraizada na realidade”. Por um lado, Sahakyan recorda o episódio da morte da mãe de Mardiganian como um dos mais difíceis de integrar na narrativa. Numa das entrevistas, a sobrevivente referencia que chegou a encontrar o corpo da mãe, apesar de não ter assistido à sua morte. Aurora’s Sunrise resolve a ambiguidade ao animar Mardiganian a deparar-se com o corpo no deserto, num momento incerto da sua jornada. Se a protagonista não especificou em vida como e quando o encontro ocorreu, o filme prefere evitar respostas unívocas, retratando o evento sem deturpar as suas palavras.
Por outro lado, as decisões artísticas de Sahakyan não só partem do real, como contribuem para uma visão mais completa do real, sobretudo nos momentos em que estas dão a conhecer o impacto dos esforços humanitários de Mardiganian. Ao entrar na sede da NEF, a Aurora-animada é acompanhada pelas melodias expressivas de violinos, à medida que observa um escritório. Reproduções de cartazes de propaganda misturam-se com imagens reais de milhares de órfãos arménios a serem alimentados e a brincarem, como se, graças à ajuda da protagonista, o seu mundo sarasse aos poucos. É impossível saber se Mardiganian viu esses mesmos cartazes ou imagens. É também impossível saber se - ao chegar a Ellis Island, em 1920, para esperar a vinda da sua irmã Arusyak - Mardiganian evocou a memória de ambas a correrem pelos campos arménios, imagem presente no início e no fim do filme, sugerindo que, aos poucos, o mundo da protagonista começava também a sarar. Entre floreados, as cenas catárticas servem para demonstrar que Aurora Mardiganian ajudou a cumprir a missão premonitória que lhe fora confiada pelo general Andranik Ozanian - uma das figuras mais proeminentes da resistência arménia, durante o Genocídio -, antes de partir para os Estados Unidos: “quando chegares a essa amada terra, diz ao seu povo que a Arménia está prostrada, dilacerada e a sangrar, mas que voltará a erguer-se” (Mardiganian 2020, 197).
No fim de contas, Aurora’s Sunrise parte sempre desta mesma Arménia, ferida, mas resiliente. Tal vínculo reflete-se inclusive na forma como o seu estilo de animação referencia uma tradição vasta da preservação da identidade arménia pela arte. O filme opta por uma “animação de livro de contos” (Torchin 2023, 5), ao combinar paisagens pinceladas com animação de recortes. Embora sirvam de palco a diversas tragédias, os exteriores da longa-metragem, em especial as paisagens arménias, transmitem serenidade, servindo-se de tons, em simultâneo, suaves e vibrantes. Verifica-se uma semelhança palpável com o trabalho do pintor arménio Martiros Saryan (1880-1972), cujas “paisagens são invariavelmente alegres, mesmo nos casos em que o motivo retratado é rigoroso” (Drambian 1961, 10). Saryan também conheceu de perto os horrores do Genocídio, tendo prestado auxílio a refugiados, em 1915, na cidade de Etchmiadzin (Vagharshapat), na Arménia. Ainda assim, as suas telas, inspiradas por princípios impressionistas, continuaram a exaltar a força inabalável da natureza arménia. Obras como View of Mount Ararat from Yerevan (1923) e Lalvar (1952) reverberam profundamente em Aurora’s Sunrise pela sua intensidade cromática e quietude emocional, fazendo com que a paisagem ultrapasse o mero cenário para se tornar num gesto de afirmação de identidade. Por sua vez, as personagens recortadas e representadas frontalmente, em Aurora’s Sunrise, parecem aludir a uma das obras mais subtis e impactantes sobre o Genocídio Arménio - The Artist and His Mother (1926-1936) de Arshile Gorky. Conterrâneo de Mardiganian, Gorky perdeu a mãe em 1919, vítima de inanição, depois de escapar ao Genocídio Arménio. Na pintura, mãe e filho surgem retratados. O avental branco da figura materna destaca-se pela sua nitidez, enquanto outras zonas da tela permanecem deliberadamente inacabadas, evidenciando o cariz fugaz da memória. Os rostos expressivos, os olhos fixos e a postura digna são reproduzidos em Aurora’s Sunrise, como se as suas personagens esperassem um retrato de família que já não volta a repetir-se (Figuras 3 e 4). Ao sugerir influências da arte arménia, o filme transforma a animação num espaço de afirmação identitária, tornando-se, segundo Sahakyan, numa “fonte única para as próximas gerações de arménios, para os ligar à sua história e identidade”.
Embora considerado um caso raro no cinema arménio, Aurora’s Sunrise faz parte de um grupo em crescimento de cineastas, a nível internacional, que assumem a tarefa de reconfigurar experiências traumáticas, através da animação. Persepolis (2007) de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud - citado por Inna Sahakyan como uma das suas maiores referências -, Waltz with Bashir (2008) de Ari Folman e Flee (2021) de Jonas Poher Rasmussen constituem apenas algumas das propostas animadas que “interrogam a questão difícil da memória e enfatizam o trauma e a qualidade surreal dos acontecimentos” (Ehrlich 2021, 4). Apesar de assumirem, respetivamente, perspetivas tão díspares como a de uma mulher, durante a Revolução Iraniana (1978-1979), a de um soldado na Guerra do Líbano (1982) e a de um refugiado da Guerra Civil do Afeganistão (1978-presente), as obras encaram a animação como um meio privilegiado para revelar o que os registos oficiais omitem e gerar empatia junto do público mediante testemunhos individuais. A dedicatória de Aurora’s Sunrise - “a todas as vítimas de genocídio, ao longo da história. Nunca esquecer” - converte-se, então, num compromisso coletivo que, cada vez mais, a animação está disposta a assumir.
Conclusão
As reparações históricas são definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) como parte de um processo de “reparar violações dos direitos humanos, proporcionando uma série de benefícios materiais e simbólicos às vítimas ou às suas famílias, bem como às comunidades afetadas” (Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights s. d.). Quando os perpetuadores de tais violações se recusam a reconhecer os danos causados, minando o seu registo em arquivos históricos, a arte converte-se num dos veículos centrais para o grupo lesado processar a dor, muitas vezes, passada de geração em geração. Considerada uma linguagem emergente neste âmbito, a animação constata, através das suas camadas complexas de análise e abstração, que “não nos lembramos simplesmente por nós próprios; pelo contrário, as nossas relações com o passado são moldadas por encontros com pessoas, coisas, lugares e ideias” (Walden 2019, 88).
O encontro de Inna Sahakyan com o testemunho silenciado de Aurora Mardiganian e o encontro de inúmeros espetadores com Aurora’s Sunrise atestam precisamente os contágios da memória. “[Aurora’s Sunrise] é uma continuação do trabalho [de Mardiganian]. Não quero parecer ambiciosa, mas ela tentou informar o mundo, o seu testemunho foi esquecido e eu espero que o filme permaneça e informe o mundo sobre o que aconteceu e sobre a história dela para sempre”, refere a cineasta. É através desta permanência que a arte resiste às forças de apagamento, que em muito ultrapassam o século XX. Enquanto existir alguém que se lembre e faça lembrar, as “armas lentas” - da pintura à escultura, da música à dança, da literatura ao cinema - continuarão a prevalecer. Existem cerca de 7 milhões de arménios espalhados pelo mundo (Office of the High Commissioner for Diaspora Affairs s. d.), uma diáspora que supera os quase 3 milhões que vivem na Arménia (World Population Review 2025), em parte, devido à dispersão da população, após o Genocídio. Mais de um século depois dos massacres, restam poucos sobreviventes para contar a história, mas milhões de arménios para lembrá-la. Seguindo o exemplo de Aurora Mardiganian, Sahakyan procurou alcançar o mundo:
Eu vou ser direta: eu não fiz o filme para o público arménio. Eu sei que os arménios odeiam quando eu digo isto, por isso, não o digo muitas vezes. É claro que são uma parte importante da audiência e eu tenho isso em mente, mas a razão que me motivou a contar esta história foi contá-la ao mundo, porque todos conhecemos a história do nosso genocídio. É a nossa história, todas as famílias estão ligadas a ela. Então sim, é importante conhecer mais uma história, é importante ouvir uma mulher, visto que quase ninguém ouve as suas perspetivas. Mas eu queria que o filme tivesse impacto numa audiência internacional e foi bem-sucedido 4.
Notas finais
1Segundo o Artigo II da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio da Organização das Nações Unidas (ONU), é considerado genocídio “qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal: (a) matar membros do grupo; (b) causar danos graves à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) sujeitar deliberadamente o grupo a condições de vida destinadas a provocar a sua destruição física, total ou parcial; (d) impor medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; (e) transferir à força crianças do grupo para outro grupo” (UN General Assembly 1948, 277).
2Todas as citações da realizadora Inna Sahakyan, presentes neste artigo, resultam de uma entrevista conduzida pela autora, no dia 9 de abril de 2025.
3No âmbito do presente ensaio, o termo “propaganda” obtém um duplo significado, abrangendo não só as campanhas internacionais de apoio às vítimas do Genocídio Arménio, mas também a negação ou justificação massificada da tragédia. Posto isto, segue-se a definição de “propaganda” que consta no Dictionary of Media and Communication (2020) da Universidade de Oxford, devido à sua atualidade e versatilidade. Esta refere-se, primeiramente, à “comunicação de massas persuasiva que filtra e enquadra as questões do dia de uma forma que favorece fortemente interesses particulares”, acrescentando ainda uma noção alternativa, que alerta para a “manipulação intencional da opinião pública através de mentiras, de meias-verdades e do recontar seletivo da história” (Chandler & Munday 2020).
4Aurora’s Sunrise teve receitas de bilheteira na ordem dos 30 milhões de dólares a nível mundial, face a um orçamento estimado de 809 mil dólares (IMDB s.d.). Foi o candidato arménio ao Óscar de Melhor Filme Internacional, em 2023. Passou por mais de 70 festivais de cinema internacionais, onde arrecadou 16 prémios, incluindo o Grand Prix do International Film Festival and Forum on Human Rights (FIFDH), em Genebra. Encontra-se atualmente disponível em streaming nas plataformas Amazon Prime e PBS, nos Estados Unidos.
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Filmografia
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Ravished Armenia. 1919. De Oscar Apfel. Estados Unidos: First National Pictures. Cópia digital restaurada.