Abstract
O estudo do processo criativo do figurino em Portugal carece de aprofundamentos. Com recurso a uma entrevista a uma figurinista, este artigo propõe desmistificar alguns dos processos envolventes. No foco da reconstrução histórica do figurino cinematográfico e teatral do século XX, Miss Suzie explica quais as suas fontes de pesquisa e inspiração. Ao acentuar a dependência do figurino à narrativa onde se insere e aos traços de cada personagem, é procurado compreender como o expor através de vestuário de época. Dentro de bibliotecas pessoais, Suzie, alberga revistas de moda e livros de fotografia documental para reforçar o realismo necessário. Nesta conversa semiestruturada é também demonstrado a atenção à cor e às suas simbologias, tal como ao conhecimento têxtil e de design funcional.
Keywords: Creative Process, Costume, Portuguese Cinema, Interview.
Introdução
Com o objetivo de aproximar o trabalho dos profissionais cineastas portugueses, em concreto do departamento de figurinos, ao mundo académico, o presente artigo explora, através de uma entrevista semiestruturada as potenciais ligações entre cinema, design/desígnio e comunicação. Tanto a entrevista, quanto os seus objetivos, são componentes da uma parte empírica da investigação de doutoramento da autora, sobre o vestuário do cinema português no século XX que promove a criação de mais meios de reconhecimento do figurino e dos seus criadores, sobre a previsão científica do coautor.
É examinada a condição do figurinista enquanto profissional criativo, e a sua representatividade em Portugal, pelos meios de destaque e reconhecimento como a creditação e a premiação. Tal como, com apoio ao Terceiro Sentido de Roland Barthes, a noção da criação de significâncias que os figurinistas elaboram amiúde na criação ou cocriação dos figurinos. No presente estudo, refere-se à profissão de figurinista no masculino, “o figurinista”, por convenção da língua portuguesa, corresponde tanto ao sexo masculino quanto ao feminino. Assim, o termo é representante do e da Figurinista.
Além da componente de contextualização teórica, este artigo apresenta uma contextualização biográfica da figurinista escolhida, Suzie Peterson, e análise das respostas às questões previamente selecionadas sobre a sua carreira, processo criativo do desenvolvimento de um figurino e as limitações que o departamento enfrenta.
O Figurino e o Figurinista
O figurino não se limita a uma simples vestimenta; constitui uma camada simbólica que ajuda a entender o contexto psicológico e histórico da personagem agregada à narrativa. Esta noção torna-se essencial para a compreensão e a elevação do trabalho do figurinista e do respetivo departamento responsável pelo guarda-roupa fílmico e teatral.
O figurinista, como um dos codificadores plásticos dos signos e significado, é aqui associado às palavras de Barthes sobre o terceiro sentido. O autor, em análise aos fotogramas do filme “Ivan – O terrível” de Serguei Eisenstein distingue três níveis de sentido. O informativo (denotação), o simbólico (conotação) e o obtuso (nível sensível, poético ou inexplicável). O nível informativo e/ou de comunicação “onde se acumula todo o conhecimento onde me fornecem o cenário, os trajes, as personagens, e as suas relações, a sua inserção num episódio que eu conheço” (Barthes, 1970, p.47). Procede com a distinção do segundo nível como o simbólico onde considera o simbolismo referencial, onde é assumida a ação e o simbolismo histórico, que assume os elementos na cenografia como o conjunto da significação. Em terceira instância, surge o sentido obtuso, que produz um impacto sensível e refletivo no espectador. Neste artigo compreende-se que o figurinista é um dos criadores essenciais para traduzir estes níveis de significância cinematográfica, onde Barthes inclui o traje/o figurino. Em termos profissionais, tanto o realizador, em contexto cinematográfico, como o encenador, em contexto performativo e/ou teatral, são frequentemente consultados pelo figurinista acerca das escolhas ou decisões de design. Esta consultoria também acontece junto da direção de arte relativamente aos outros componentes da mise-en-scène.
Este profissional criativo - figurinista, revela pouca entoação no cinema português principalmente no século XX. Desde a creditação às premiações, é visível um desapego ao mérito dos mesmos. Não só grandes obras fílmicas históricas nacionais desaparecem com os créditos do responsável pelo vestuário, como transparecem essa tendência para os estudos de cinema. Exemplificando com um filme de saliência no novo cinema português “O cerco” (1970) de António Cunha Telles, que apesar das indumentárias bastante contemporâneas (à sua época), e arrojadas para uma obra censurada, não existem quaisquer dados escritos, incluindo nas “folhas de sala” da Cinemateca Portuguesa, Batalha Centro de Cinema, Imdb, etc..., de quem poderá ter sido o figurinista. A perplexidade da temática é também ela própria refletida pela Academia Portuguesa de Cinema através dos Prémios Sophia. Dentro do departamento de figurinos, o figurinista e o seu assistente, elaboram tarefas diferentes do chefe de guarda-roupa e o restante da equipa. Como denunciado anteriormente, o figurinista é o criador/designer, e a função de guarda-roupa providencia o armazenamento, conservação do vestuário, entre outras. A Associação Portuguesa de Técnicos de Audiovisual providencia, em linha, uma tabela (p.61, 2021) de profissões agregadas à indústria onde caracteriza a função “figurinista/costume designer”: “Cria um conceito estético que caracterize as personagens através do vestuário.” E a função do chefe de guarda-roupa/wardrobe supervisor como “a ponte entre a parte criativa e a parte técnica”. A tabela (p.62) d’A Associação Portuguesa de Técnicos de Audiovisual, também refere outros profissionais do departamento, que muito mais dificilmente dispõe de creditação, como mestre costureiro/a e técnico de patines. No entanto, a categoria que faz uma alegoria aos melhores figurinos anuais do cinema português desde 2012, chama-se “Melhor Guarda-Roupa”. É de felicitar a entrega em 2021 do Prémio Bárbara Virgínia, criado pela Academia Portuguesa de Cinema para o reconhecimento das mulheres no cinema português, à figurinista Maria Gonzaga pela sua extensa carreira.
O figurino, tanto no teatro como no cinema, é o único componente da mise-en-scène têxtil e vestível que está em contacto com a pele do ator, produzido, quando necessário em colaboração, com outros departamentos, com o derradeiro objetivo de comunicar uma narrativa.
Entrevista com Miss Suzie- Estudo Caso
Com o objetivo de criar mais documentação acerca de figurinos e figurinistas em Portugal, com recurso a entrevista, foi realizada uma seleção entre os vários profissionais. Os anos de carreira, a diversidade de projetos, e a familiaridade com processos criativos principalmente os que englobam reconstrução do século XX, foram priorizados enquanto critérios para a escolha da seguinte figurinista:
Suzie Peterson, mais conhecida no meio como Miss Suzie, é uma figurinista portuguesa que como menciona o Arquivo Municipal de Lisboa “tem atravessado um vasto percurso artístico”. Em palco/plateau ou nos bastidores, Suzie apresenta uma carreira dedicada às artes cinematográficas, teatrais e musicais desde 1988. A sua experiência e repertório são valiosos para esta investigação, considerando a sua acreditação enquanto figurinista em projetos cinematográficos com narrativas de época, associadas ao século XX. Filmes como “Terra Nova” (2019) de Artur Ribeiro, que retratam um Portugal piscatório no início do século passado, sobretudo na década de 30, levam Suzie a ser nomeada para os Prémios Sophia 2022 pela categoria de “Melhor Guarda-Roupa”. Já a criação dos figurinos para três telefilmes do projeto “Contado por Mulheres” produzidos pela RTP e a Ukbar Filmes, demonstrou a sua mestria no vestuário utilizado em Portugal desde os anos 50 aos 70. Se por um lado “A Traição do Padre Martinho” (2022) realizado por Ana Cunha Numa, retrata “uma pequena aldeia portuguesa, no final dos anos 60” (RTP), “Armários Vazios” por Cristina Carvalhal, baseado no romance de Maria Judite de Carvalho, contempla a década de 70. Os telefilmes também permitiram a Suzie inspirar-se nos anos 50 e às suas silhuetas mais marcantes para elaborar o mundo fantasioso do guarda-roupa de “Há-de Haver uma Lei” (2023) de Anabela Moreira, onde para além de figurinista também interpretou a personagem “D. Ercília”. É de salientar que, um dos objetivos destes telefilmes foi “tornar o cinema mais seguro para as mulheres em Portugal” (Cardoso, 2023), como referido no jornal Público sobre a apresentação dos mesmos. A sua sensibilidade para o figurino de época, mantém-se fidedigna na contextualização histórica portuguesa, não só como figurinista, mas também como criadora no seu atelier em parceria com outras profissionais da área. Como o caso dos figurinos vestidos pelas atrizes principais no filme e série biográfica da banda portuguesa Doce, chamado “Bem-Bom” (2021). Rita Lameiras, figurinista responsável do projeto, admite à revista Nit que os fatos faraónicos vestidos na cena que replicam o Festival de Canção de 1981, sobre o tema musical “Ali Bábá” foram feitos pelo Atelier Miss Suzie e que “ela costurou aquilo à mão impecavelmente” (Lameiras & Salgueiro, 2021).
Pelas razões acima apresentadas, a Miss Suzie foi entrevistada para a presente investigação, onde se procurou conhecer o seu processo de criação e recriação de figurino.
Metodologia – Entrevista
O distanciamento entre o meio académico e o plateau, poderá ser uma das consequências da carência de dados no estudo dos figurinos e figurinistas em Portugal, que entre outros enigmas, devem ser debatidos com os profissionais da área. A necessidade de procurar novas elucidações, incentiva a elaboração de entrevistas semiestruturadas no sentido de procurar recolher informações, estudar e entender os processos adjacentes à criação de figurinos, e, com isso, contribuir para registar a atividade dos figurinistas no contexto nacional dada a demanda de originar nova bibliografia.
Nesta abordagem qualitativa, são pretendidas, como propõe Burgess “conversas com propósito” (Burgess, 1984). A intenção de guiar estas entrevistas, que permitam perguntas de resposta aberta, é bastante relevante para esta pesquisa. Já que estas tipologias de entrevistas garantem que as mesmas áreas gerais de informação sejam recolhidas de cada entrevistado, proporcionando um maior foco e ainda permite um maior grau de liberdade e adaptabilidade na obtenção de informações (MacNamara, 2009).
A entrevista delineada por um guião presente na tabela 1., compila questões sobre a experiência profissional da figurinista, as suas visões sobre a indústria cinematográfica portuguesa e a relação com o departamento de figurinos ao longo dos anos. Também há perguntas sobre a comunicação do figurino, a sua relação com a mise-en-scène, e o seu processo criativo. Ademais várias questões foram preparadas para entender as suas inspirações, quais as atrizes, filmes e figurinos do cinema português que a entrevistada achava inspiradoras.
Tabela 1. Guião entrevista à Suzie Peterson
| Objetivos | Questões | Referências |
|---|---|---|
| Apresentação do participante e da sua profissão | Como é que descreve a sua experiência como figurinista e como começou a trabalhar na área? | Biografia do participante: IMDb (Internet Movie Data base) “Miss Suzie” |
| Identificar os desafios da indústria | Sente que departamento de figurinos na indústria cinematográfica em Portugal enfrenta desafios? | “A Difícil Visibilidade do Cinema Português. Um Inventário Crítico” de Luís Nogueira |
| Como é que considera que o departamento dos figurinos tem evoluído no cinema português? | ||
| Reconhecer as falhas de creditação | Em contexto histórico, qual é a sua opinião sobre a creditação dada ao departamento de figurinos no cinema português? | Materialidades do Cinema: a mulher figurinista em Portugal de Caterina Cucinotta, p.63 |
| Declarar os formatos de comunicação de um figurino | De que maneira é que o figurino comunica? | Costume and Identity de Hilda Kuper |
| Adquirir processos de análise de figurinos cinematográficos | Quando vê um filme, o que chama mais a atenção em relação ao figurino? A ambiência, as cores, a narrativa? Etc | Undressing Cinema de Stella Bruzzi |
| Compreender que projetos influenciaram os estudos do participante relativos ao século XX | Que trabalhos como figurinista gostaria de destacar para este estudo do figurino no século XX? | IMDb (Internet Movie Data base) “Mia Lourenço” e “Miss Suzie” |
| Averiguar quais as décadas que a figurinista se sente mais confortável e descontável a representar | Qual é a década do século passado que prefere representar através do seu trabalho e qual é a mais desafiadora? | A Moda e o Cinema no Século XX: simbiose no figurino de Carolina Fadigas |
| Assimilar a importância da moda para o figurino de época | No processo de construção dos figurinos de época, recorre a livros e revistas de moda para se inspirar? | A Moda e o Cinema no Século XX: simbiose no figurino de Carolina Fadigas |
| Introduzir a temática da mulher do cinema em Portugal | Qual é a sua opinião sobre a importância de projetos cinematográficos nacionais como “Contado por Mulheres” para promover o trabalho das mulheres na indústria do cinema? | “Os “telefilmes” que querem tornar o cinema mais seguro para as mulheres em Portugal” (2023) de Joana Amaral Cardoso in Público |
| Compreensão do papel da mulher na sociedade e cinema | Considera que o departamento dos figurinos é maioritariamente feminino? | Materialidades do Cinema: a mulher figurinista em Portugal de Caterina Cucinotta, p.63 |
| Alcançar nome de atrizes portuguesas que se destacaram pelo uso de figurinos | Ao longo do século XX houve atrizes portuguesas que se destacaram pelos seus figurinos fílmicos, quais a marcaram mais? | “A representação as mulheres Invicta e através dos seus figurinos” de Carolina Fadigas |
| Identificar figurinos populares nacionais | Que figurino considera o mais emblemático da história do cinema português? | Atriz e obra exemplar: “Nos cornos da vida” de Beatriz Costa |
A entrevista à figurinista foi projetada para decorrer num espaço familiar como no seu respetivo atelier. A escolha de localização permite beneficiar o conforto das participantes e o seu envolvimento na entrevista (Adams, 2015, p.427). Apesar da previsão da entrevista ser de uma hora e meia, foi admitida a possibilidade da prolongação da mesma dada a necessidade de recolha de dados essenciais e subjetivos. A entrevista foi filmada com as devidas permissões e a sua análise documentada na próxima secção – Entrevista e Análise de Resultados.
Entrevista e Análise de Resultados
Dentro dos objetivos criados para a entrevista com Suzie Peterson, tal como se pode ler na coluna da esquerda da tabela 1., a casualidade e a boa disposição geraram informações muito importantes sobre os seguintes tópicos: a sua experiência como figurinista, as suas inspirações e influências no processo criativo, a importância do figurino, o desenvolvimento da indústria em Portugal tal como o seu reconhecimento e formação. Abaixo apresentam-se as ideias-chave recolhidas da análise da entrevista e os respetivos momentos (minutos). Uma vez que essa documentação relativa à entrevista na sua integra ainda não foi publicada, por questões relacionadas com o decurso da investigação, a entrevista não surge listada nas referências.
A experiência de Suzie como figurinista é vasta, mas o seu percurso até à presente atividade inclui um abastado e diversificado número de áreas das artes visuais, plásticas, musicais a circenses. O figurino surge na sua vida com naturalidade das junções das aprendizagens escolares e profissionais. Acentua o Carnaval da Mealhada e o trabalho com outra figurinista de renome, Maria Gonzaga, como momentos de aprendizagem. “Eu faço aquilo que eu gosto. (…) Tenho um ateliê, estou aqui na minha toca, trabalho para toda a gente, para teatro, para cinema, para publicidade, para os mortais dos comuns, para todas.” (00:01:48 Suzie Peterson).
Para Suzie Peterson, o figurino é extremamente importante para o trabalho do ator pois é a primeira camada física que este sente na preparação para a interpretação de uma personagem. Suzie acredita que o figurino promove um apoio único ao ator, que o consegue transformar e a dar vida à sua personagem, contribuindo para a veracidade da interpretação. Enfatiza também que a roupa que o ator veste é fundamental para que ele se sinta conectado à sua personagem, o que, por sua vez, melhorará a performance.
Ao longo da entrevista, o processo de criativo de Suzie é convocado de diversas formas: na leitura da personagem, compreensão dos materiais têxteis e na colaboração entre departamentos.
Para Suzie Peterson, a criação de figurinos constitui um processo rigoroso, articulado e profundamente colaborativo. A figurinista sublinha que, independentemente do meio, seja teatro, cinema ou publicidade, o seu trabalho visa sempre uma articulação coerente entre os trajes e a conceção estética e narrativa do projeto. O seu objetivo primordial consiste em conferir autenticidade e verosimilhança às personagens, reforçando tanto a sua dimensão psicológica quanto a sua inserção no universo ficcional em que se encontram.
O ponto de partida deste processo reside numa compreensão minuciosa da personagem e do contexto histórico, cultural e emocional que a envolve. A investigação da figurinista assume, assim, um papel central, implicando a recolha de referências visuais, sociais e estilísticas que possam informar as decisões de design. Esta fase preparatória é acompanhada por um diálogo com os diversos elementos da equipa criativa. Pode também envolver a opinião dos atores, cujas interpretações e perceções da personagem são valorizadas como contributos relevantes para a construção de um figurino funcional, expressivo e adequado às exigências performativas, Suzie destaca que o ator deve ser valorizado porque “O que é que está à frente da câmara? É o ator, que é que é que vai fazer? Quem é que vai dar alma depois?” (00:23:18 Suzie Peterson).
A operacionalização do projeto inclui, entre outros aspetos, a seleção criteriosa de materiais, paletas cromáticas, silhuetas, cortes e acessórios, tendo sempre em vista a coerência com o tom geral da obra e com as especificidades dramáticas da personagem em causa. A indumentária deve refletir, de forma inequívoca, a personalidade, o estatuto social e o estado emocional da personagem, contribuindo para a sua credibilização junto do público e para o fortalecimento da narrativa visual.
Suzie Peterson destaca ainda que este processo é necessariamente dinâmico e sujeito a contínuos reajustes. A experimentação prática, as provas de vestuário e a abertura à revisão são consideradas etapas fundamentais para alcançar um resultado que seja simultaneamente esteticamente eficaz e narrativamente funcional.
Um aspeto que Peterson considera essencial é o diálogo estreito com o realizador/encenador, que se inicia logo nas fases preliminares da criação. A figurinista refere que, habitualmente, apresenta as suas propostas iniciais “dispostas em cabides” ao realizador, acompanhadas de explicações detalhadas acerca da lógica conceptual de cada escolha. Essa apresentação é acompanhada pela discussão de cenas específicas, permitindo aferir a coerência do figurino com a evolução dramática das personagens e com a linguagem visual da obra. Suzie considera que se “o realizador sente a cena, o espectador vai sentir também” (00:24:30 Suzie Peterson).
Esta comunicação prévia tem como principal finalidade assegurar uma visão partilhada entre todos os intervenientes no processo criativo, promovendo a confiança estética e funcional do realizador e dos atores em relação às escolhas de figurino. Assim, Suzie Peterson reforça a ideia de que o figurino não é um elemento isolado, mas sim uma componente integrada da mise-en-scène, cuja eficácia depende de uma articulação permanente com os demais elementos da realização cinematográfica e/ou teatral.
O destaque de Suzie para atriz e figurino de referência do cinema português do século XX, vai para Beatriz Costa. “Alice”, a personagem interpretada por Beatriz Costa em “A Canção de Lisboa” (1933) de José Cottinelli Telmo é “toda a junção: a figura pequenina, o vestidinho e a franjinha (…) é um ícone” (00:52:25 Suzie Peterson). Salienta a memória cultural e nacional, “alguma vez alguém se esquece do vestido da costureirinha?” (00:52:17), referindo-se à cena comédia e musical “A agulha e o dedal”.
Uma das apreensões dadas à logística da criação de cinema português é a faceta orçamental. Suzie comenta a frequente demanda para reduzir a sua equipa de trabalho, apesar de essencial para o departamento. “Tens a figurinista, tens o chefe de guarda-roupa, e tens assistentes (…) se tu anulas um do departamento, então como é que fazes para estar em 2 lugares ao mesmo tempo?” (00:20:04 Suzie Peterson). Suzie exemplifica que o trabalho a ser feito em platô, a conferência de raccord e harmonização do figurino, não pode ser concretizado pela mesma pessoa que está na base do guarda-roupa a preparar os figurinos. Além de serem funções diferentes, ocorrem ao mesmo tempo em sítios diferentes.
Discussão de Resultados & Conclusão
A presente investigação faz parte de um estudo onde o objeto de estudo são os figurinos portugueses; nesta componente, procura-se compreender o trabalho do figurinista no contexto do cinema e do teatro português, com especial enfoque na reconstrução histórica do figurino do século XX. Através da entrevista à figurinista Miss Suzie, foi possível explorar com profundidade um processo criativo real e consolidado, alinhando-o com os fundamentos teóricos apresentados.
Tal como defendido por diversos autores referidos na presente investigação, o figurino não é apenas uma peça de vestuário, mas sim uma linguagem visual que comunica múltiplos sentidos: o informativo, o simbólico e o obtuso. Esta dimensão semiótica do figurino é reconhecida e aplicada por Miss Suzie de forma intuitiva e prática. Ao referir que o figurino é a “primeira camada física” que o ator veste, Suzie confirma a importância do vestuário na construção identitária da personagem, atribuindo-lhe uma função transformadora e sensorial, em clara consonância com o “terceiro sentido” de Barthes.
A teoria destaca também a colaboração entre o figurinista e os outros componentes da mise-en-scène, cenografia, iluminação, maquilhagem e cabelo. Assim como a aceitação do realizador/encenador. Miss Suzie reforça esta ideia ao descrever o seu processo como “colaborativo e contínuo”, realçando que o figurino é moldado não apenas por uma visão autoral, mas por um diálogo constante com atores e outros profissionais criativos. Esse processo de cocriação é, muitas vezes, apagado em termos de consideração, o que reflete a crítica presente na literatura à escassa valorização do figurinista, quer em termos de creditação, quer de premiação. A própria experiência de Suzie confirma esta lacuna, especialmente no que toca à limitação orçamental que frequentemente compromete o número de profissionais disponíveis para garantir a qualidade e consistência do figurino ao longo de todo o processo. A literatura distingue o figurinista como criador/conceituador estético, enquanto o chefe de guarda-roupa atua como elo técnico entre a criação e a execução. Esta distinção é reafirmada por Suzie, que denuncia a sobreposição forçada de funções devido a cortes de equipa, evidenciando como tal realidade compromete a integridade do processo criativo e logístico.
No que diz respeito à reconstrução histórica, um dos principais focos deste artigo, Miss Suzie apresenta uma metodologia de trabalho que privilegia a investigação rigorosa e o recurso a fontes como revistas de moda, livros de fotografia e arquivos visuais. Esta prática reitera o papel do figurinista como investigador cultural e historiador visual, e legitima o figurino como ferramenta de reconstrução da memória coletiva.
Assim, os resultados da entrevista permitem validar e enriquecer o referencial teórico inicialmente proposto. As práticas da figurinista Miss Suzie ilustram de forma concreta o que a teoria delineia: o figurino enquanto elemento narrativo, simbólico, colaborativo e historicamente significativo. A sua experiência profissional, marcada pela versatilidade, resistência e paixão, é uma prova viva da importância do figurinista no ecossistema das artes performativas.
Esta parte empírica da investigação contribui significativamente para a tese em desenvolvimento, não só ao nível da sistematização de práticas, mas também ao propor uma reflexão crítica sobre os obstáculos estruturais e culturais enfrentados pela profissão em Portugal. Ao documentar a voz de uma figurinista ativa e respeitada, este estudo ajuda a construir o corpo teórico e histórico necessário para o reconhecimento pleno do figurino como arte e do figurinista como autor.
Referências bibliográficas
Livros
Livros com um autor
Barthes, Roland. (1990). O Terceiro Sentido. In O Óbvio e o Obtuso, 45–61. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Burgess, Robert G. (1984). In the Field: An Introduction to Field Research. London: Unwin Hyman.
Livros com indicação do editor, organizador ou tradutor
Adams, W. C. (2015). “Conducting Semi-Structured Interviews.” In J. S. Wholey, H. P. Hatry, & K. E. Newcomer (Eds.), Handbook of Practical Program Evaluation (pp. 492–505). Hoboken, NJ: Wiley. https://doi.org/10.1002/9781119171386.ch19
Artigos em revistas
Murcho, André. (2020). “O Cinema Veste.” Vogue Portugal, fevereiro, pp. 24–27.
Cucinotta, Clara. (2023). “Figurinos e Figurinistas no Cinema em Portugal: Conceitos para Novas Materialidades.” 12catorzebold, no. 66.
Livro eletrónico e textos em linha
APTA – Associação Portuguesa de Técnicos de Audiovisual – Cinema e Publicidade. (2020). Equipa Técnica – Funções e Definições. Lisboa: APTA. https://www.apta-audiovisual.pt
Cardoso, Joana A. (2015). “O Cinema É Arte Popular Mais Potente, Mas Ainda Lhe Faltam Mulheres.” Público, 10 de março. https://www.publico.pt
Cardoso, Joana A. (2023a). “Os Telefilmes Que Querem ‘Tornar o Cinema Mais Seguro para as Mulheres em Portugal.’” Público. https://www.publico.pt
Suzie, Miss. (2014). “A Vida a Brincar.” https://misssuzie.pt/a-vida-a-brincar/
Lameiras, Rita, & Marta Salgueiro. (2021). Figurinista de ‘Bem Bom’ Preparou o Guarda-Roupa da Série em Apenas um Mês. NiT – New in Town. https://www.nit.pt (Nota: esse é artigo online, mas aparece com dois autores. Incluído aqui conforme classificação solicitada; ver também seção de textos em linha).
MacNamara, Carter. (2009). “General Guidelines for Conducting Interviews.” Free Management Library. http://managementhelp.org/evaluatn/intrview.htm
Conferência, Comunicação apresentada em Congresso
Quintela, Helena F. (2011). “A Segunda Pele: A Linguagem das Roupas, Seus Signos e a Configuração da Identidade Social Através do Vestuário.” Anais do Seminário Nacional da Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFES, 1(1). (Nota: Este parece ser um artigo publicado em anais, mas dependendo do contexto institucional pode ser interpretado como trabalho de pós-graduação.)