Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

The value of audiovisual products – between cultural and economic revenue

O valor do produto audiovisual – entre o retorno cultural e o retorno financeiro

Angélica Coutinho

Universidade de Coimbra – CES/FEUC, Portugal
UniFacha, Brasil

Abstract

Brazilian Audiovisual production relies on a public resource called: Audiovisual Sector Fund. Created in 2006, the FSA (on portuguese) has been increasing each year. In 2024, the public policy appointed resources around US$ 165 millions (1 billion, brazilian currency) for investment, which means a huge budget for brazilian market. The main question is that this Fund, officially, expects a financial recoupment that rarely happens. At least, directly from the Box office. Because, indirectlly, there is a high impact for a range of suppliers as food and drink, for example, and also is capable of significant employment. The revenue´s concept strictly economic lays on the necessity of a excessive expenses control by public systems. However, we can notice that the law enforcement “changes” understanding according to the political moment. One of the most significant examples is called: ANCINE + Simples. Approved by President Dilma Rousseff in 2015 as a way to simplify the expenses control, it was working since 2018, when ANCINE – the public department that manages audiovisual investment – was informed that the system was “illegal”. This proposal intents to discuss about the ways that political motivation impacts on brazilian audiovisual market “spoiling” the economic and cultural development. One of our core concepts is, precisely, “spoiler” as it is defined by Stephen John Stedman (Stanford University) at his article “Spoiler problems in peace processes” in which he appoints how damaging is the action of groups who feel threated on their power and interests.

Keywords: Brazilian audiovisual, Public Policy, Media Economy, Economic Revenue, Soft Power.

Introdução

O Fundo Setorial do Audiovisual é o principal financiador da produção brasileira para cinema e TV. Criado em 2006 e regulamentado em 2007, o FSA previa, conforme registrado em seu primeiro relatório de gestão, contemplar a produção, a distribuição, a exibição e infra-estrutura de serviços através de investimentos, financiamentos, apoio e de equalização de encargos financeiros. Objetivava-se assim:

o incremento da cooperação entre os diversos agentes econômicos, a ampliação e diversificação da infraestrutura de serviços e de salas de exibição, o fortalecimento da pesquisa e da inovação, o crescimento sustentado da participação de mercado do conteúdo nacional e o desenvolvimento de novos meios de difusão da produção audiovisual brasileira. (FSA, Relatório de Gestão, 2008)

O mesmo documento esclarece ainda quais foram as orientações que pautaram os primeiros editais de investimento com recursos do Fundo: envolver as várias cadeias econômicas do audiovisual nas políticas de audiovisual nas políticas de Estado; ampliar a competitividade dos agentes econômicos; fortalecer a distribuição brasileira de obras brasileiras.

Dezessete anos após o lançamento dos primeiros editais, o mercado audiovisual brasileiro transformou-se profundamente e o quantitativo de recurso disponível para o FSA aumentou de maneira considerável após a aprovação da Lei da TV Paga (Lei 12.485/11).

Figura 1 - Relatório de Gestão do FSA 2020

Com a explosão de recursos financeiros a partir de 2012, houve também uma expansão significativa de linhas de investimento a partir do ano seguinte. Entende-se por investimento, o recurso aplicado na obra através do FSA e que implica, obrigatoriamente, em retorno financeiro, conforme definido nos contratos com o agente financeiro do Fundo, o BRDE - Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul.

Prazo de Retorno Financeiro: período em que o FSA terá direito a participação nas receitas decorrentes da exploração comercial da OBRA, suas marcas, imagens, elementos e obras derivadas, compreendido entre a data de assinatura do CONTRATO, observado o parágrafo único desta Cláusula, e até 7 (sete) anos após a data de Primeira Exibição Comercial da OBRA, excluindo-se da contagem o dia do começo e incluindo-se o do vencimento

Buscamos neste artigo apontar as questões que envolvem o investimento e os conceitos de retorno e como a conceituação exclusivamente econômica é ineficiente para alcançar os objetivos do FSA. A ineficiência também se traduz na visão exclusivamente econômica da aplicação dos recursos que pode ser politicamente motivada gerando insegurança jurídica no mercado e entre seus agentes.

Vamos, portanto, investigar brevemente a ideia de retorno financeiro e cultural e apontar um dos momentos em que motivações políticas causaram crise no mercado audiovisual brasileiro: a rejeição à metodologia simplificada de prestação de contas intitulada ANCINE+Simples.

Sobre retornos

O Regulamento Geral do PRODAV, documento que define as condições para aplicação dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, teve sua primeira versão publicada em 26 de dezembro de 2013. O documento define o conceito de retorno em um espectro mais amplo que apenas o financeiro na Seção VIII.

Temos, portanto, o conceito de retorno financeiro como uma vertente da ideia de retorno do investimento, sendo este mais amplo e que permitiria a aplicação de recursos do FSA na modalidade “apoio”.

A modalidade apoio está prevista na Lei 11.437/06 em seu Artigo 3o. nomeado como valores não-reembolsáveis “em casos específicos motivadamente definidos pelo Comitê Gestor”, define o Decreto 6.299, de 2007.

Em 2014, o Decreto 8.281 regulamenta a forma de aplicação de valores não-reembolsáveis.

Em dezembro de 2013, no processo de crescimento de recursos do FSA e de ampliação de linhas, foi lançada a Chamada Pública PRODAV 03 de financiamento à Núcleos Criativos de produtoras. O edital permitia a seleção de uma carteira de, no mínimo, cinco projetos para desenvolvimento com o investimento de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

O edital na modalidade apoio previa um compromisso de resultado: viabilizar a produção de, no mínimo, dois quintos dos projetos, o que também garantia a possibilidade de participação em editais futuros de desenvolvimento. A Chamada Pública de Núcleo Criativo do ano seguinte compartilhou das mesmas regras. No entanto, em 2015, foi inserida uma cláusula de retorno financeiro do investimento.

Notamos, portanto, a inserção de um compromisso de retorno financeiro modificando o conceito inicial de Núcleo Criativo como modalidade não reembolsável.

Por outro lado, o investimento em produção de obras audiovisuais, por exemplo, sempre foi na modalidade retornável. Como vimos anteriormente, o RG-PRODAV - vigente até 31 de dezembro de 2020, considerava retorno tangível e não tangível.

Concretamente, os investimentos na produção de obras cinematográficas ao longo de todos os anos de existência do FSA, em termos financeiros, tem um retorno bastante tímido.

Apenas o relatório de Gestão do FSA de 2017 é bastante detalhado nesta questão. Inclusive, utiliza uma nomenclatura diferente: recuperação do investimento. E aponta que desde o início dos editais do FSA até o dia 31 de dezembro de 2017, houve uma recuperação de 26,04% do valor investido.

Tipologia Projetos analisados Investimentos nos projetos Retorno Finaceiro (R$) Recuperação do investimento
Produção Cinema 88 82.259.078 28.698.596 34,89%
Produção para TV 67 73.666.602 12.356.813 16,77%
Comercialização 18 3.181.865 374.223 11,76%
Total 173 159.107.545 41.429.631 26,04%
Figura 2 - Relatório de Gestão do FSA 2017. Fonte FINEP/BRDE.

Entende-se, portanto, recuperação como um reembolso parcial de pouco mais de um quarto do valor investido.

Um dado interessante contado pelo relatório é que a maior parte dos projetos com melhor performance são os selecionados pela linha PRODECINE 02, cuja inscrição era feita pelas distribuidoras. Ou seja, havia uma seleção prévia desses agentes de mercado com, aparentemente, uma melhor visão sobre os projetos com comunicação com o público, conforme registra tabela do mesmo relatório.

Tipologia Projetos analisados Investimentos nos projetos Retorno Finaceiro (R$) Recuperação do investimento Participação no Retorno total
Arranjos Regionais 8 2.058.645 746.785 36,28% 2%
Prodav01 66 73.399.960 12.345.613 16,82% 30%
Prodecine 01 46 30.752.264 4.525.279 14,72% 11%
Prodecine 02 31 44.919.161 23.081.643 51,38% 56%
Prodecine 03 14 2.926.865 352.386 12,04% 1%
Prodecine 04 8 5.050.651 377.926 7,48% 1%
Total 173 159.107.545 41.429.631 26,04% 100%
Figura 3 - Recuperação do investimento por linha de ação. Relatório de Gestão 2017.

Entre a primeira Chamada Pública do FSA e o ano de 2017, eram apenas seis obras, a maioria selecionada no edital em que a proponente era uma distribuidora, que devolveram ao Fundo recursos superiores ao valor investido.

Título do projeto Chamada Pública Ano Chamada Agente Financeiro Investimento FSA Retorno Finaceiro (R$) Recuperação (%)
Minha Mãe é uma Peça - O Filme Prodecine 02 2010 FlNEP 2.500.000 4.791.188 191,65%
Loucas para casar Prodecine 02 2012 BRDE 3.000.000 4.709.511 156,98%
Até que a sorte nos separe
(ex- Casais inteligentes enriquecem juntos)
Prodecine 02 2009 FlNEP 2.000.000 2.565.096 128,25%
Vai que dá certo (ex-Apollo FuteboI Clube) Prodecine 01 2008 FlNEP 700.000 826.032 118,00%
Cilada.com Prodecine 02 2009 FlNEP 2.000.000 2.293.911 114,70%
De Pernas pro Ar (ex-Sexdelicia) Prodecine 02 2008 FlNEP 3.000.000 3.337.635 111,25%
Figura 4 - Relatório de Gestão 2017.

O resultado efetivo dos investimentos do FSA em obras audiovisuais, mesmo com a prevista participação ao longo de sete anos de comercialização da obra, não representa um percentual significativo na composição do FSA. Aliás, é um dos menores percentuais de composição da receita líquida do FSA, como podemos verificar no último relatório publicado de 2023.

Fonte Receita Líquida %
Condecine - lntra 1 2.514,66 0,00%
Condecine - Dívida Ativa 1.285.925,83 0,11%
Condecine - Remessa 2 3.103.868,08 0,26%
Condecine - Teles 750.351.446,96 62,15%
Condecine - Título 63.776.625,53 5,28%
FISTEL 40.281.640,16 3,34%
Não aplicação Lei Audiovisual 60.165.868,78 4,98%
Remuneração depósitos 246.969.577,66 20,46%
Restituição de Recursos de Fomento 4.766.385,49 0,39%
Retorno de Financiamento 22.756.302,16 1,88%
Retorno de Investimentos 13.848.232,06 1,15%
Total 1.207.308.387,37 100,00%
Figura 5 - Relatório de Gestão 2023.

Logo, podemos afirmar que a continuidade da operação do FSA significa o reconhecimento tanto do retorno financeiro quanto do retorno simbólico/cultural da obra audiovisual. No entanto, há outro fator que pressiona e prejudica o mercado audiovisual e, podemos até mesmo afirmar, o seu desenvolvimento como indústria no Brasil por conta da pouca previsibilidade das regras operacionais, jurídicas e financeiras.

Sobre ANCINE+Simples

Em 1o. de julho de 2014, com o Ministério da Cultura sob a gestão de Martha Suplicy, foi publicado o Decreto 8.281, assinado pela Presidente Dilma Rousseff, que institui uma nova metodologia para a prestação de contas dos projetos audiovisuais. A prestação de contas sempre foi uma área sensível, com vários regramentos e constante acúmulo de passivo de projetos para análise.

O novo sistema chamado ANCINE+Simples previa, conforme artigo 8o. do decreto, um método de controle por amostragem no qual seriam submetidos à análise detalhada 5% (cinco por cento) do número total de projetos em prestação de contas. O artigo 8o. previa, ainda, que a amostragem seria composta por projetos sorteados em sessão pública. Os demais projetos passariam por uma análise simplificada a princípio, o que não os eximia da análise detalhada em caso de identificação de irregularidade.

Em dezembro de 2015 foram publicadas a Instruções Normativas 124 e 125, da ANCINE, definindo os parâmetros para análise de contas na nova metodologia a ser iniciada no ano seguinte e parâmetros para execução financeira dos projetos.

Em apresentação publicada na Internet, a ANCINE explicava o processo de negociação política para definição do novo projeto que pretendia regularizar o passivo de prestação de contas.

Ou seja, houve uma ampla negociação com o governo e órgãos de controle para implantar um processo que pretendia agilizar processos internos em um momento em que o fomento ao audiovisual crescia exponencialmente. A previsão era que, com o ANCINE+Simples, o passivo fosse superado em quatro anos.

No entanto, dois anos depois, em 9 de janeiro de 2018, foi apresentado à Diretoria Colegiada um relatório da Superintendência de Fomento com balanço da operação sob a nova metodologia. Do documento obtido através da Lei de Acesso a informação destacamos:

Os dois primeiros lotes dos passivos encontram-se com 97% e 85% das análises concluídas pela Coordenação de Prestação de Contas respectivamente. Em outubro de 2017, o terceiro lote encontra-se com 38,6% das análises concluídas. Faltando três meses para o prazo previsto de entrega do quarto lote, apenas 3% de suas análises estão concluídas. (documento obtido através da Lei de Acesso à Informação)

O documento também registra um grande volume de projetos financiados exclusivamente por recursos do FSA que ainda não haviam chegado à coordenação de prestação de contas:

Estima-se em 1.706 o número de contratos assinados pelo FSA até o momento, envolvendo cerca de 1.604 obras. Dessas, 1.115 seriam obras que utilizam exclusivamente recursos do Fundo, sem captar recursos oriundos de incentivo fiscal.

As análises de prestação de contas e de formulários de acompanhamento parciais e finais dessas obras serão realizadas pela Coordenação de Prestação de Contas e pela Coordenação de Acompanhamento de Projetos. Espera-se, portanto, que nos próximos dezoito meses essa nova demanda se acrescente ao cenário apresentado.

Ou seja, o relatório apresentava para a nova diretoria em sua primeira reunião da gestão os problemas que haviam se acumulado: a metodologia ANCINE+Simples não estava funcionando com a eficiência esperada. Havia o risco de formação de um novo passivo de prestação de contas e, mais grave, “o não cumprimento dos prazos acordados para superação do passivo, descumprindo os acordos feitos com os órgãos de controle”.

É necessário parênteses neste ponto para informações sobre questões de gestão da Agência Nacional do Cinema, uma autarquia especial de regulação, fomento e fiscalização do mercado audiovisual brasileiro. Criada em 2001, a ANCINE é gerida por uma diretoria colegiada composta por quatro membros, um deles chamado diretor-presidente. Por três mandatos, a agência foi liderada por Manoel Rangel, egresso do PC do B, e com estreitos laços com o PT, que esteve na Presidência da República por quatro mandatos. Logo, havia um paralelismo de gestão que facilitava o trânsito político entre o governo central e a agência, apesar desta ser uma autarquia especial com autonomia. O fim do terceiro mandato de Manoel Rangel, em 2017, acontece em um momento tenso da história do país: a presidente Dilma Rousseff havia sofrido um impeachment, em 2016, e a transição da gestão na ANCINE se deu sob o governo Michel Temer. A diretora Débora Ivanov assumiu interinamente a presidência e esforçou-se politicamente para se tornar efetiva. No entanto, o presidente Temer indicou outro diretor que assumiu em janeiro de 2018: Christian de Castro que fazia parte da diretoria colegiada.

Neste contexto, na primeira semana da gestão Castro, a metodologia ANCINE+Simples aparece como um problema deixado pela gestão anterior. E muitos outros apareceriam.

Em maio de 2018, veio à tona uma auditoria realizada pela SECEX-RJ (Secretaria de Controle Externo do Estado do Rio de Janeiro), uma unidade do Tribunal de Contas da União, questionando a legalidade da metodologia por amostragem e o risco do lançamento de novos editais para o erário. Até porque como resume um dos relatórios do TCU:

Diversas irregularidades foram detectadas na aludida auditoria e são reportadas em seu relatório e sumarizadas adiante. Para o propósito desta representação, cujo objeto associa-se, particularmente, ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) como fonte de financiamento dos projetos audiovisuais em fase de seleção pela SAv/MinC, toma preocupante expressão o achado da auditoria consistente em que, frise-se, nenhum projeto audiovisual destinatário de recursos públicos daquela fonte teve prestação de contas apreciada, seja pelos agentes financeiros credenciados pelo Comitê Gestor do fundo e contratados pela Ancine, seja por esta própria autarquia reguladora e fiscalizadora do setor, que também possui a atribuição de secretaria-executiva do FSA. (Acordão 4835/2018)

Ou seja,a gestão anterior havia deixado não apenas o não cumprimento das metas do ANCINE+Simples como herança, mas também todos os processos de contratação do FSA, ao longo de sua história, sem qualquer análise.

A ANCINE administrou a crise apresentando uma plano de ação para análise do TCU de forma que o processo de lançamento de editais e contratação de novos projetos pudesse seguir seu curso e o setor não sofresse paralisação.

No entanto, a ação do TCU sobre a ANCINE tornou-se contínua. Em 29 de março de 2019, um novo acordão do Tribunal é enviado à agência com a seguinte cláusula:

As interpretações foram diversas, mas a primeira delas apontava para o risco de seguir com lançamento de editais e contratações até que houvesse esclarecimento do TCU. A repercussão na imprensa aponta para a preocupação de paralisação do setor.

Na tentativa de frear o processo de inviabilização da agência, várias entidades do setor estão mobilizadas desde o início da semana e tentam sensibilizar TCU, governo e Congresso Nacional. Na quarta-feira, 3, um desses grupos reuniu-se com o ministro-relator André Luís de Carvalho e arrancou dele a garantia de que a limitação de liberação de verbas só diz respeito aos contratos novos. Ou seja, todos os projetos em curso podem ser tocados normalmente. A questão é que os servidores da agência não se sentem seguros para seguir adiante sem um documento oficial do próprio TCU. O acordão e o relatório são, afinal de contas, bastante claros quanto às responsabilidades legais e, a despeito de enxergarem como erro coisas que são da natureza da atividade cinematográfica, apontam falhas que não podem ser simplesmente ignoradas. (Souza, Ana Paula, O Globo, 04/04/2019)

A crise era externa e interna à ANCINE. No entanto, não houve paralisação dos processos de contratação. A prova evidente é que os anos de 2018 e 2019 são os anos de maior número de contratações na série histórica do FSA até hoje.

Ano Recursos Contratados Desembolso Total Contratos
2009 6.261.740,00 4.500.000,00 5
2010 18.967.331,80 15.650.780,12 24
2011 48.539.782,35 29.347.929,12 54
2012 44.863.792,32 36.962.984,09 52
2013 86.457.397,95 59.693.474,10 89
2014 119.397.329,66 99.465.260,69 105
2015 267.095.901,18 232.426.117,07 400
2016 351.017.941,13 302.104.237,02 581
2017 386.948.555,55 477.508.072,72 612
2018 552.255.039,76 549.326.754,33 806
2019 510.673.450,08 542.411.132,15 687
2020 121.302.113,01 121.781.007,73 194
2021 350.340.196,05 313.496.583,57 478
2022 226.613.903,18 264.396.012,45 387
2023 434.779.020,91 416.291.504,45 345
Total 3.525.513.494,92 3.465.361.849,61 4819
Figura 7 - Fonte: Relatório de Gestão do FSA 2023.

Além das cobranças constantes dos órgãos de controle, em agosto de 2019, uma ação judicial obrigou o afastamento do diretor-presidente Christian de Castro e parte de sua equipe. Assumiu a presidência do diretor Alex Braga que segue no cargo até 2026.

O ano de 2019 foi no qual o Michel Temer foi substituído na presidência por Jair Bolsonaro, que desde os primeiros dias no cargo, ameaçou a ANCINE de fechamento, de controle de conteúdo das obras audiovisuais e de corte de verbas para o setor. Esta última ação se efetiva nos primeiros meses da gestão Braga que alega um situação de déficit no FSA.

Sob a justificativa de saneamento das contas, as contratações são paralisadas e editais deixam de ser lançados, conforme refletem os números de 2020 na tabela acima. O crescimento de contratações no ano posterior é reflexo de linhas de crédito emergenciais por conta da pandemia. Editais para produção audiovisual só passam a ser lançados no segundo semestre de 2022, após os diretores terem sido indiciados em um processo de improbidade administrativa pela paralisação do setor.

É, ainda, em final de 2022 que o TCU publica a Resolução 344 que determina o prazo da prescrição da pretensão de ressarcimento ou punição assim de 5 anos, a contar do vencimento do prazo para a apresentação da prestação de contas. Ato contínuo, a Diretoria Colegiada, em reunião de janeiro de 2023, solicita providências, inclusive citando procedimentos do extinto ANCINE+Simples.

Para efeito da desburocratização e da racionalização dos procedimentos de análise de prestação de contas, e considerando o Acórdão 2641/2022 - TCU - Plenário, que deu provimento parcial ao pedido de reexame interposto pela ANCINE, a Diretoria Colegiada decidiu pela adoção de providências para revisão da metodologia de análise do passivo de prestação de contas, adotando-se um modelo de gestão de riscos, a partir da aplicação do Decreto n.º 8.281/2014, especificamente no que se refere à aferição do cumprimento do objeto, de forma a tornar mais eficiente e efetiva a fiscalização dos recursos públicos.

Neste sentido, os Diretores determinaram a elaboração de um plano de ação pela Superintendência de Prestação de Contas (SPR), no prazo de 30 (trinta) dias, para evitar a ocorrência de prescrição no passivo de prestação de contas, a formação de novos passivos e atrasos na análise dos processos de prestação de contas. (Deliberação da Diretoria Colegiada no. 110-E, 2023 - grifo nosso)

Lembremos que em 2023, Luiz Inácio Lula da Silva assume a Presidência da República, indica novos membros para o Comitê Gestor do FSA e o debate em torno do audiovisual é retomado.

A questão da prestação de contas volta à pauta em dezembro de 2024 com a publicação da Portaria no. 655-E que institui o projeto Malha Fina em parceria com a Controladoria Geral da União, CGU, simplificando o processo de prestação de contas. Nem a Portaria, nem as reportagens sobre o tema são esclarecedores sobre o funcionamento da nova metodologia. Uma publicação no site da ANCINE informa:

Metodologia do Malha Fina ANCINE

O projeto é um novo modelo de análise e avaliação das prestações de contas de projetos audiovisuais.

O Malha Fina ANCINE é estruturado em 3 pilares fundamentais:

O mais interessante é que a nova metodologia foi anunciada ao mesmo tempo que os números do primeiros resultados.

A partir da aplicação do Malha Fina 3.627 prestações de contas foram analisadas, avaliadas, homologadas e arquivadas. O que significa uma redução do passivo de processos de 5.358 para 1.731.

Os 1.731 processos que continuam no escopo do Malha Fina ANCINE serão analisados a partir de diligências complementares. Até o momento, não houve conclusão por quaisquer irregularidades nos processos, que estão ainda em fase de análise.

Em termos de eficiência, os primeiros resultados significam uma ampliação de 150% na capacidade histórica de análise da ANCINE. Além disso, estima-se uma economia de R$ 665 milhões em custos operacionais, e uma redução no tempo de análise equivalente a 24 anos.

Não conseguimos identificar se nos 3.627 processos já arquivados encontram-se aqueles que já estariam prescritos de cobranças por estarem há mais de cinco anos aguardando a conclusão de análise na agência.

Conclusão

Retomamos na conclusão à questão fundamental que refere-se ao “valor” da obra audiovisual entre o econômico e o cultural. Neste último, há referência direta ao conceito de soft power, expressão usada na Teoria das Relações Internacionais, a partir da definição original de Joseph Nye no seu livro de 2004: Soft Power: The Means to Success in World Politics.

The basic concept of power is the ability to influence others to get them to do what you want. There are three major ways to do that: one is to threaten them with sticks; the second is to pay them with carrots; the third is to attract them or co-opt them, so that they want what you want. If you can get others to be attracted, to want what you want, it costs you much less in carrots and sticks. (Nye, 2004)

A cultura em todas as suas manifestações é uma dos mais poderosas “armas” do poder suave. O audiovisual, em particular. Grandes nações tem plena consciência disso. Os Estados Unidos sempre usaram seus filmes para vender seu way of life, assim como muitas nações europeias, como a Franca, por exemplo, lutam bravamente em defesa de suas produções dentro do seu próprio mercado com uma forma de defesa de sua identidade, palavra que voltou à moda.

Em contrapartida, não podemos negar o valor econômico, de mercado de uma obra. Não pelo que ela gera, mas pelo que ela é capaz de agregar em termos de formação e contratação de profissionais de diversas áreas - desde a específica até as periféricas, serviços de alimentação, transporte, hotelaria, turismo entre outros.

No entanto, é justamente no econômico que reside o maior risco. Principalmente quando é aliado ao fator político.

O econômico que nos referimos aqui diz respeito ao que financia a existência da obra e que no Brasil é, em sua grande maioria, dependente do Estado.

O problema é que o Estado não se apresenta de forma independente em sua política pública. E mesmo o órgão que regula, financia e fiscaliza o setor audiovisual que deveria ser independente, também navega ao sabor das ingerências políticas. Concretamente, quando deveríamos ter uma política de Estado, independente de mudanças de governo por termos uma agência reguladora com autonomia, identificamos ao longo da história de sua existência uma distorção de sua função original.

Em artigo sobre a independência das agências reguladoras, Alketa Peci e Alexandre Sérgio Alves Vieira definem:

A reforma regulatória dos anos 1990 introduziu uma importante inovação institucional no que diz respeito aos atores responsáveis pela formulação e implementação do processo regulatório: a agência reguladora independente (ARI).

Entre os vários fatores que motivaram a delegação das atividades regulatórias para uma agência independente, destacam-se: i) a necessidade de credibilidade e garantia de contratos de longo prazo, como é o caso de boa parte dos contratos na área de infraestrutura; ii) a transferência de responsabilidade (blame shifting) acerca de decisões politicamente sensíveis para órgãos de natureza técnica; iii) a expertise e o profissionalismo dos reguladores, que garantiriam o funcionamento mais neutro; e iv) os profissionais das agências, resistindo a pressões políticas (…). (Peci e Vieira, 2018, 539)

Concentrando-se apenas no relato das relações entre mudanças de governo e políticas do audiovisual, notamos que não há segurança jurídica que garanta o funcionamento do mercado audiovisual. Podemos até mesmo dizer que a falta de garantias - desde cumprimento de cronogramas para execução das políticas até previsibilidade de regras - prejudicando a pretensão do desenvolvimento de uma indústria do audiovisual brasileiro independente. Precisamos lembrar que a metodologia Malha Fina foi planejada junto à CGU mesmo órgão de controle que aprovou no passado do ANCINE+Simples. E mais: o nome “malha fina” é o mesmo que a Receita Federal usa em sua metodologia por amostragem para análise de declarações de imposto de renda. Mesmo que hoje esteja sendo utilizadas ferramentas tecnológicas, antes inexistentes, que agilizaram e deram maior segurança para o processo de prestação de contas, quais as efetivas garantias que qualquer mudança político-partidária não mudará o entendimento sobre o processo?

Aqui é útil refletir sobre o contexto com outro conceito da Teoria das Relações Internacionais: spoiler. No artigo “Spoiler problems in peace process”, Stephen John Stedman aponta para os problemas causados por líderes políticos e partidos quando se veem ameaçados por negociações que afetam seu poder, visão e mundo e interesses, ou seja, seu status quo. Tais agentes nomeados “spoilers” agem de maneira violenta criando insegurança e incertezas para a média dos cidadãos. O autor refere-se, particularmente, aos casos de negociações de paz entre países. No entanto, podemos aplicar o mesmo pensamento ao campo das políticas públicas de cultura quando seus representantes se sentem ameaçados em seus privilégios e/ou poderes políticos.

Afinal, não se pode ignorar que questões operacionais da ANCINE, acumuladas ao longo de anos, tenham se transformado em problemas que quase inviabilizaram a operação de fomento do mercado audiovisual em um momento político complexo: após um controverso impeachment da presidente e durante a gestão de um vice-presidente rejeitado pela maioria dos eleitores da chapa Dilma-Temer. Grande parte dos produtores de cultura reagiram fortemente contra o novo presidente e não sem razão, afinal, Temer nos primeiros dias de seu governo extinguiu o Ministério da Cultura, um patrimônio nacional criado nos anos 80. A violenta reação, inclusive com a ocupação de prédios públicos em várias cidades, fizeram com que o presidente recuasse e o Ministério passasse por uma sucessão de nomes em sua gestão - Marcelo Calero, Roberto Freire, João Batista de Andrade - até que Sérgio Sá Leitão assume em julho de 2017 sendo ministro até o final do mandato do presidente.

No entanto, estava cristalizada a rejeição ao governo Temer, chamado de golpista, adjetivo que se aplicava por extensão aos outros membros do governo. No entanto, no que diz respeito ao audiovisual, a ação de spoilers, rejeitando ou questionando as iniciativas de gestão da ANCINE, reverteram contra o próprio setor.

Afinal, é neste contexto fragilizado que os órgãos de controle passam a questionar procedimentos, anteriormente aceitos, não apenas na prestação de contas, mas também na forma de execução financeira dos projetos.

Pairou sobre a ANCINE entre 2018-2019 a constante ameaça de paralisação do fomento ao mercado audiovisual, o que só virá a acontecer quando o gestor indicado por Michel Temer, Christian de Castro é afastado no segundo semestre de 2019, já no governo Jair Bolsonaro.

Cumpre-se, a partir daí, a agenda política para o setor: sufocamento financeiro sob a alegação de falta de recursos do FSA.

Efetivamente, a ação dos spoilers criou condições políticas para a paralisação de investimento e gerou consequências negativas para o setor audiovisual. Com a premissa de maior controle no uso de recursos e acompanhamento da execução, as Instruções Normativas 124 e 125 deram lugar as Instrução Normativa 158 e 159 que são bastante restritivas e dificultam a gestão financeira dos projetos.

No entanto, a nova gestão da cultura, sob o governo Lula, desde 2023, tem demonstrado uma redução dos mecanismos de controle financeiro como a publicação, em setembro de 2024, da Instrução Normativa 17, do Ministério da Cultura, que estabelece parâmetros que dispensam alguns projetos - como aqueles que executaram recursos abaixo de 750 mil reais - da prestação de contas financeira, devendo apenas comprovar o cumprimento do objeto.

A IN 17 é derivada da Lei 14.903/2024, o novo marco regulatório da cultura que dialoga com a Resolução 344, do TCU, já citada, que determina o prazo da prescrição de 5 anos, período pelo qual a comprovação de execução financeira deve ser preservado.

Tais decisões não se estenderam com o mesmo desenho para o setor audiovisual que segue como campo de conflitos, tensões e insegurança jurídica.

Referências bibliográficas

Nye, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. Public affairs, US, 2004.

Peci, Alketa and Vieira, Alexandre Sérgio Alves. 2018. Agênciasreguladoras independentes? Análise das trajetórias de carreira dos reguladores federais brasileiros. In Desafios da nação. Organizado por João Augusto de Negri, Bruno César Araújo e Ricardo Bacelette, Volume 2, 539-557. Rio de Janeiro: Editora IPEA.

Stedman, Stephen John. 1997. Spoiler problems in peace processes. In: International Security. Volume 22. 5-53. Cambridge: The MIT Press.

Relatórios em linha

https://www.gov.br/ancine/pt-br/fsa/normas/Regulamento_Geral_do_PRODAV___versao_26.12.2013.pdf. Acedido em 2 de janeiro de 2023.

https://www.brde.com.br/relatorios-anuais/. Acedido em 2 de janeiro de 2024.