Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

The Erasure and Inscription of Existences in the Series El secreto del río: Tensions in Heteronormativity, Indigestible Imaginaries, and Educational Foundations

O apagar e o escrever de existências na série “El secreto del río”: tensões na heteronormatividade, imaginários indigestos e fundamentos educativos

Isac Chateauneuf 1

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - FEUSP, Brasil

Abstract

For a long time, it has been said that the dominant belief system in our society should dictate both the life and the legacy of others’ existences—even after death. The prevailing heteronormative system, which permeates religion, politics, education, culture, and art, has been gradually fragmenting in the face of resistance led by marginalized populations. These groups fight to assert their significance by breaking away from centuries-old norms, often finding in filmic art a powerful educational ally in the deconstruction of castrating ideals of existence and indigestible imaginaries. In light of this context, the present article aims to discuss the Mexican series El secreto del río, available on Netflix, exploring issues related to gender identity and sexual orientation that intersect various social spheres—including religious austerity—and which deeply affect the life of Manuel, who dies in order to be reborn as Sicarú. The methodology employed is an audiovisual analysis of the series, focusing on its imagery, soundscapes, and narrative structure as a whole, along with a bibliographic approach grounded mainly in Rogério de Almeida’s (2024) concept of ‘pedagogical pressure,’ which examines what a film ‘forces’ us to learn, and in the educational foundations of cinema. As preliminary considerations, it is understood that gender performance is a social construct that, as depicted in the series, faces one of its greatest challenges in the fundamentalist interpretations embedded within Judeo-Christian religious traditions, which tend to rigidly assign each individual’s role from birth onward.

Keywords: Gender Identity, Muxes, Heteronormativity, Cinema, Education.

Introdução

Até que ponto a crença do outro define e decide a existência do meu corpo, inclusive após a morte? Delicado, doloroso e assustador. As inúmeras imposições colocadas dentro de sistemas sociais ao longo dos anos manipularam e moldaram as existências dos corpos de indivíduos: crianças, mulheres, pessoas com deficiência, pessoas trans e gays, especialmente negras e indígenas, foram os que mais sofreram pressões para se conformarem e serem controlados segundo os ideais alheios.

Hoje, em diversos países, face às lutas e conquistas, o cenário mudou consideravelmente em relação a alguns séculos atrás. Contudo, embora muitas vitórias tenham sido alcançadas, o estado dos corpos que lutam ainda exige vigilância. Não é tempo de se acomodar na sombra da palmeira para descansar, como diriam alguns poetas ou, talvez, um “homem cis, branco, hétero, classe média-alta”. É necessário manter-se atento e acordado diante de sistemas como o bolsonarismo e tantos outros que, de alguma forma, construíram e validaram imaginários inumanos, castradores, reacionários e indigestos. Essas construções de imaginários foram alimentadas, infelizmente, por um moralismo conservador, sustentado por um “pseudocristianismo” distorcido, em nome de uma pátria e de uma família idealizada, que existe apenas no campo alienado de algumas ideias.

Como uma pressão pedagógica (Almeida, 2024) sensível e reflexiva, estruturada nos fundamentos educativos do cinema, a série El secreto del río, criada por Alberto Barrera e lançada internacionalmente em 2024 pela Netflix, aborda sob o olhar da cultura mexicana algumas dessas questões emergentes, entrelaçando questões de identidade de gênero das muxes, acolhimento social e autoaceitação. Ela coloca o espectador para imergir nas polêmicas, se distanciar dos fundamentalismos e enxergar o mundo pelos olhos dos oprimidos. O quanto a existência massacrada do outro lhe provoca e lhe faz refletir sobre sua própria existência? Talvez, essa pergunta que povoa o audiovisual direcione a construção de um imaginário que, forçosamente (no bom sentido), é direcionado a se desconstruir para reaprender.

Historicamente, diversas culturas ao redor do mundo reconhecem identidades de gênero que transcendem o binarismo ocidental masculino-feminino. Um exemplo significativo é a tradição das muxes na comunidade zapoteca, em Oaxaca, México. As muxes representam um terceiro gênero, que mistura traços considerados femininos e masculinos, rompendo as fronteiras rígidas de gênero. Da mesma forma que as pessoas trans, em diferentes partes do mundo, lutam contra a imposição heteronormativa que restringe suas existências, no entanto, as muxes tomam uma certa localização e conceituação diferente quando comparadas (Botton, 2017).

Em sua pesquisa, Botton (2017) observa que as muxes ocupam um papel importante na economia local, devem falar o zapoteco, são consideradas um terceiro gênero e possuem uma identidade cultural indígena específica. Podem ou não adotar o papel feminino por toda a vida e, muitas vezes, lhes é atribuído esse papel por serem o último filho de uma mãe, de forma que possam assisti-la na velhice.

No México, esse contexto se entrelaça com dinâmicas culturais, religiosas e sociais que continuam a tentar delimitar e controlar as identidades que fogem ao padrão binário, tanto em vida quanto após a morte. Enquanto alguns reconhecem essas identidades, outros as rechaçam, relegando-as a um lugar de não privilégio social.

A série El secreto del río, disponível na Netflix, coloca essas tensões em evidência, explorando histórias que desafiam o sistema heteronormativo dominante, especialmente no âmbito religioso. A personagem de Solange, cuja morte é cercada pela tentativa da sociedade de definir sua identidade de gênero postumamente, exemplifica a violência simbólica e real que pessoas como ela enfrentam. Em paralelo, a série também apresenta Sicarú, uma das personagens principais que, como as muxes, simboliza a resistência e a sobrevivência em um ambiente hostil, repressivo, dolorido. Com isso, ao abordar questões de identidade de gênero, a série destaca a luta contemporânea pela aceitação e visibilidade das pessoas trans e de outras identidades de gênero não conformes.

Neste artigo, ao mencionar ‘transição de gênero’ ou outras ideias a ela atreladas, referimo-nos ao processo pelo qual uma pessoa ajusta sua identidade, expressão e/ou aparência para refletir seu verdadeiro gênero. Esse processo pode incluir mudanças no nome, vestimenta e outros aspectos da vida social e pessoal. Assim, Sicarú, que anteriormente era conhecida como Manuel, representa, ao longo da série, essa descoberta e esse renascer para a sociedade na qual vive.

Diante dessas representações e da complexidade das identidades apresentadas na série, este artigo tem como objetivo explorar as tensões entre a identidade de gênero e as normas sociais e religiosas na série El secreto del río, analisando como as/os muxes simbolizam a resistência às estruturas opressivas. Além disso, o artigo busca conectar o conceito de muxes com a luta contemporânea das pessoas trans e travestis, observando como essas identidades são percebidas e combatidas em um contexto cultural que se estende além do México, mas que carrega especificidades locais.

A metodologia adotada neste estudo inclui uma análise audiovisual da série escolhida, focando em seus aspectos visuais, sonoros e narrativos. Além disso, é utilizada uma abordagem bibliográfica, baseada em estudos de gênero e sexualidade, bem como em conceitos como a “pressão pedagógica” proposta por Rogério de Almeida (2024), que examina o que as obras fílmicas nos ‘obrigam’ a aprender e quais são os fundamentos educativos do cinema. A análise do filme será cruzada com as tradições de identidades de gênero não binárias enquanto narrativas de resistências.

A hipótese central deste artigo é que a série sugere que a tentativa de definir a identidade de gênero reflete uma luta contínua pelo controle e supressão das identidades trans e não conformes, desafiando os limites impostos pelo sistema heteronormativo e oferecendo uma visão de esperança e resistência.

Para tal exploração, o artigo se divide em três grandes partes, a saber: a primeira aborda o conceito de fundamento existencial, explorando como a série e as teorias associadas refletem sobre a luta pela definição da própria existência, especialmente das pessoas trans. Na segunda parte, é analisada a morte da personagem Solange e o aparecimento de Sicarú, como dois momentos simbólicos que revelam a tensão entre a performance de gênero em vida e as tentativas de controle social, inclusive após a morte, destacando a persistência da violência simbólica. Por fim, a terceira parte explora as existências de gêneros que transcendem as regras impostas, revelando como essas identidades se manifestam como formas de resistência combativa e incessante dentro do universo religioso e social, à revelia de discursos que se dizem tudo em nome de deus.

É importante salientar que o presente artigo se direciona, sobretudo, ao contexto evangélico cristão brasileiro, dado que é a partir dele que o pesquisador articula sua análise e experiência. E mais! Vale destacar que muitos dos comentários entre aspas ao longo deste artigo refletem discursos e ideias ácidas angariadas ao longo de anos de convivência em igrejas e grupos religiosos, representando falas comuns que revelam preconceitos enraizados e tensões dentro desses espaços que, infelizmente conformam imaginários sociais indigestos desde a mais tenra idade.

De forma geral, este artigo parte de uma escuta atenta e sensível da série El secreto del río, em que a análise não se baseia exclusivamente em um aparato teórico extenso, mas na experiência reflexiva que emergiu do encontro com a obra. Mais do que recorrer a múltiplos autores, buscou-se aqui construir um olhar atravessado pela vivência, pelo afeto e pelas tensões que a própria narrativa desperta. Trata-se, portanto, de uma escrita que se permite pensar com a série, reconhecendo-a como potência educativa e estética para reelaborar imaginários, mesmo que essa escolha desvie dos caminhos mais tradicionais da escrita acadêmica.

1- Fundamentos educativos do cinema: um recorte para o fundamento existencial

Segundo Almeida (2024), o cinema não é apenas entretenimento; ele emerge como uma linguagem capaz de educar, narrar e imergir o espectador em experiências profundas. O autor define sete pilares educativos que ampliam a força formativa do cinema, cada um abordando uma dimensão específica da experiência do assistir.

Primeiro, o fundamento cognitivo: o cinema enriquece a percepção e incentiva o pensamento crítico do espectador, oferecendo tramas multifacetadas que frequentemente rompem com a linearidade, o que exige uma interpretação ativa e analítica, instigando a percepção de maneira mais profunda.

No fundamento filosófico, o cinema torna-se uma ferramenta para questionar a existência e refletir sobre o sentido da vida. Esse pilar se destaca especialmente em filmes que exploram temas complexos de forma abstrata ou surreal, como nas obras de David Lynch, que convidam o espectador a mergulhar em uma jornada filosófica e reflexiva.

O fundamento estético é visível nas escolhas visuais e sonoras que criam uma experiência sensorial e imersiva. A estética do cinema vai além da imagem; ela provoca uma resposta emocional e amplia a sensibilidade artística do espectador, instigando-o a apreciar formas e estilos inovadores.

Já o fundamento mítico e o fundamento existencial (principal fundamento escolhido para a reflexão do presente artigo) têm seus focos voltados para as questões da condição humana. No aspecto mítico, o cinema explora arquétipos e temas atemporais que remetem aos mitos e lendas ancestrais, ajudando o espectador a conectar-se a histórias universais. O existencial, por outro lado, leva o indivíduo a questionar sua própria existência e a buscar sentido no mundo contemporâneo, provocando uma reflexão sobre o que significa ser humano em um universo repleto de possibilidades e incertezas.

O fundamento antropológico aborda a diversidade cultural, permitindo ao espectador conhecer diferentes costumes, valores e modos de vida que enriquecem seu entendimento da humanidade. Essa perspectiva antropológica ajuda o cinema a funcionar como um portal para novas culturas e realidades, desafiando preconceitos e promovendo a empatia.

Por fim, o fundamento poético celebra a expressão artística e a beleza. A poesia do cinema está em suas imagens, metáforas e na sutileza das emoções que transmite. Ao tocar o espectador com sua dimensão poética, o cinema não apenas entretém ou apenas deve fazê-lo, mas também inspira, educa, estimulando a criatividade e o apreço pela arte em todas as suas formas. E mais! De uma arte que não é somente aparência, mas que tem sua base nas questões humanas, combativas, sensíveis.

Alinhando as propostas do autor com a experiência de assistir a série aqui escolhida, percebemos que esses fundamentos não apenas estão presentes na obra em si, mas também envolvem o espectador diretamente. Através de sua estética e narrativa, na forma como apresenta, principalmente as imagens, os ângulos, posições da câmera e enquadramentos, ela coloca o público em contato com a existência e a poesia que flui entre os minutos dos episódios, revelando-as no audiovisual, tanto no plano diegético quanto no extra-diegético. Assim, ao analisa-la com o suporte de algumas teorias, compreende-se que sua arte transcende o entretenimento e carrega consigo um vasto potencial formativo.

O conceito de fundamento existencial, trazido por Rogério de Almeida em seu livro de 2024, de maneira mais detida, explora como o cinema atua como um espelho para o espectador, permitindo uma reflexão profunda sobre a própria existência a partir da experiência cinematográfica, sendo, tão depressa, de algum jeito forçado a aprender algo: aprender sobre si, sobre o outro, sobre o “todes”/todos. Esse fundamento pode ser compreendido como um ponto de interseção entre o psicológico e o reflexivo, pois “se relaciona ao movimento de olharmos para nós mesmos a partir da experiência cinematográfica” (Almeida, 2024, p. 89).

O processo de projeção-identificação, tal como descrito por Edgar Morin e entremeado ao conceito de fundamento existencial, é central para essa dinâmica: o espectador projeta-se nas narrativas ou identifica-se com uma personagem, o que provoca um momento de autodescoberta e reflexão. Descobre o fundamento de suas crenças, se descobre enquanto mulher, homem, não binário, negro, indígena, fazedor e/ou admirador da arte. Nesse momento, as vezes epifânico, o indivíduo se descobre, nasce ou, como a fênix, morre para renascer.

Esse conceito pode ser comparado ao faz-de-conta infantil, quando a criança assume o papel de uma boneca ou personagem e, por meio desse jogo simbólico, experimenta e descobre diferentes perspectivas de si mesma e do que a circunda. No entanto, nos adultos, o processo é mais complexo e profundo, pois envolve uma conscientização da própria existência, visto que o diálogo que passa a estabelecer se fundamenta nos olhares que construiu ao longo de sua vida com as vivências e experiências.

Rogério de Almeida explora esse momento de reconhecimento da existência como um evento que vai além do puramente cognitivo, pois envolve aspectos filosóficos, estéticos e míticos. Segundo o autor, “a irrupção da existência é um evento a um só tempo cognitivo, filosófico, estético e mítico, pois aprendemos a pensar sobre o que somos a partir das sensações e dos relatos” (Almeida, 2024, p. 89). No próprio fundamento existencial do cinema trazido pelo autor, há outros elementos interligados, o que evidencia sua profundidade e seu entrelaçamento com diversas questões, propondo, assim, uma aprendizagem multimodal.

O fundamento existencial é, assim, um retorno ao indivíduo que se percebe como parte de um todo, reconhecendo tanto a si quanto ao outro: a si mesmo dentro de um espaço-tempo e o outro, também carente e possuidor de uma existência em dado local, localizado na história, de um dado período.

O cinema, ao apresentar realidades distintas e simbólicas, não apenas espelha a cultura, mas também nos obriga a nos confrontar com nossa própria percepção do mundo. Esse processo de reflexão conduz a uma ampliação do repertório do que significa existir, nos oferecendo novas formas de compreensão do outro e de nós mesmos.

Ao mesmo tempo em que nos aproxima da nossa própria consciência, o cinema também nos faz reconhecer a diversidade da existência alheia, criando uma tensão entre o “eu” e o “outro”. É esse deslocamento entre o reconhecimento de si e do outro que estabelece o cinema como uma experiência existencial única, desafiando-nos a repensar nossas próprias identidades e existências em relação ao que vemos e vivemos. Em muitos momentos, a arte do cinema, não necessariamente esse feito para ser exibido apenas nas salas escuras, mas em qualquer plataforma possível, coloca-se em xeque o que somos, acreditamos, fazemos, defendemos. Ele vem, mais uma vez, para transgredir, desestabilizar e, quem sabe, colocar algumas coisas em suspenso.

O conceito de fundamento existencial proposto por Almeida (2024), portanto, sugere que o cinema não apenas narra histórias, mas também cria um espaço onde podemos ensaiar diferentes modos de ser, em um diálogo incessante, traçando paralelos entre a busca de uma existência do personagem e a nossa própria caminhada. Ele nos coloca em contato com uma multiplicidade de existências, nos forçando a reconhecer que elas não são estáticas, mas um processo contínuo de reflexão e confronto com as diversas formas de vida e experiências humanas. Assim, o cinema nos proporciona a oportunidade de “existir” através das narrativas, imagens e sensações que apresenta, oferecendo um espaço simbólico para o exercício da consciência de si e do outro.

Ele pode, com grande potência, possibilitar a muitos, quem sabe, a finalmente existir de fato, a viver plenamente enquanto pessoa e ser. O que estava morto ou apenas aguardava sua morte simbólica e iminente, agora renasce, sai do coma e nasce para viver e confrontar a própria realidade.

2- El secreto del rio: ainda, tensões contemporâneas

A série O Segredo do Rio (El Secreto del Río), lançada na Netflix e dirigida por Ernesto Contreras, Alba Gil e Alejandro Zuno, mergulha profundamente nos segredos e conflitos que permeiam uma pequena comunidade no istmo de Tehuantepec, no México. Com uma narrativa introspectiva e repleta de silêncio, a série revela, aos poucos, a complexidade das relações humanas e as marcas deixadas por segredos que atravessam gerações. Protagonizada por Diego Calva e Trinidad González, a produção explora temas como culpa, redenção e a busca pela verdadeira identidade. Esse silêncio, por vezes, é dos sons e, outrora das imagens. Mas, ainda que eles coexistam em diferentes momentos da trama, eles nos dão pistas, educam, tensionam as reflexões para narrativas faladas e narrativas imagéticas.

A trama gira em torno de Sicarú (inicialmente chamado de Manuel) e Erik, duas crianças cuja amizade surge em meio a um evento trágico, unindo-os de maneira potente no decurso da história da série. A partir desse momento devastador, um pacto não verbal é selado entre os dois, criando uma ligação inquebrável.

Quando a história avança para a vida adulta dos personagens, eles precisam encarar as consequências desse segredo. Manuel, agora vivendo como Sicarú, e Erik são confrontados pelo passado que moldou suas vidas, forçando-os a lidar com as sombras que nunca foram reveladas.

Além do mais, Erik tem a dificuldade de compreender e aceitar Sicarú, essa nova pessoa que, carrega a essência do seu amigo Manuel, esse que teve que morrer, enquanto nome e performance de gênero, para que ela vivesse.

O cenário rural de Tehuantepec 2, com seu tempo próprio e atmosfera de mistério, serve como um pano de fundo crucial para a série, refletindo o isolamento e o peso do não-dito. A beleza da paisagem contrasta com a opressão emocional que paira sobre a comunidade, criando uma tensão constante entre o que é visível e o que permanece oculto. A fotografia de César Gutiérrez Miranda captura essa dualidade de forma magistral, contribuindo para a sensação de claustrofobia, mesmo em vastos espaços abertos.

Imagem: Sicarú sozinha antes da tentativa de abuso. Fonte: Netflix

Essa sensação, porém, vai além do ambiente físico: trata-se de uma fobia que não está em um local fechado, como um quarto escuro ou um elevador, mas reside no próprio corpo, na própria essência, na verdade que carrega. É um ser que, frente aos embates sociais, cristaliza-se pouco a pouco dentro de si, performando e sustentando um constructo que não lhe pertence. Diriam alguns, constantemente nesse embate, segundo De Oliveira Gomes e Dos Reis Miranda (2024), premidos pelo sofrimento de ser o que não é em uma sociedade heteronormativa: Eu, mais uma vez, “venho tentando melhorar a minha fala”, né? “acredito que pela fala eu posso sofrer um pouco de preconceito”.

O Segredo do Rio 3 é uma narrativa que se constrói lentamente, meticulosamente, revelando suas camadas aos poucos, enquanto o espectador é convidado a desvendar os mistérios que permeiam a vida dos protagonistas. A transição de Manuel em Sicarú é um dos elementos centrais da trama, e a interpretação de Trinidad González — a primeira atriz trans mexicana a protagonizar uma série na Netflix — oferece uma performance marcante, equilibrando vulnerabilidade, força, resistência que desafia e se impõe diante de normas e condutas. A série aborda a questão da identidade de gênero de forma sutil e natural, enriquecendo a história sem torná-la o foco central, educando, suavemente e, não atrelando a sexualidade e as questões de gênero o único fator de importância e questionador.

As temáticas vão se cruzando a elas, tornando-as naturais como assim deveriam ser em uma sociedade que, deve caminhar para a evolução humana.

Embora o ritmo lento da série reflita a vida na comunidade rural, os silêncios podem ser percebidos como arrastados para alguns espectadores. A trama se desenrola de forma gradual, revelando o peso do segredo que une os personagens com parcimônia, o que pode frustrar aqueles que preferem um desenvolvimento mais rápido. Contudo, essa abordagem cuidadosa é justamente o que fortalece a atmosfera enigmática e envolvente da série, pois à ela se conecta a arte da montagem feita pelos produtores da série.

2.1- Eu não te matei em vida, mas, agora, o farei na sua morte: o simbolismo na morte de Solange

“Eu não consegui definir sua performance de gênero em vida, mas a definirei após sua morte” — assim ecoa o imaginário social, construído sobre uma base que distorce a fé, deprecia existências e que, paulatinamente corrói as estruturas de humanidades em nome de um “deus”.

Solange, enquanto uma muxe, feliz, viva e altiva, ainda que tenha passado por alguns processos até ser o que é realmente, se mantém sempre vigilante, mulher, sagaz. Dizeres e comentários depreciativos, principalmente os advindos do pai de Erik, não lhe desanimam ou lhe impedem de ser ela mesma. Ela é, de fato, a própria existência de seu ser, tanto para si quanto para a sociedade onde vive.

Contudo, após sua morte (episódio 5), mais uma vez, o efeito do fundamentalismo religioso, da sandice de uma crença que era dos outros e não de si, lhe impõe sua “verdade”. “Da mesma forma que vieste ao mundo, voltarás”, dizem alguns ao lhe desnudarem de toda sua essência enquanto mulher, transformando-a em um homem, a performance de gênero que diziam ser a correta.

Afinando o entendimento sobre formas de controle dos corpos que, permeiam diferentes contexturas sociais, Foucault, filósofo homossexual francês traz interessantes e potentes concepções. Ao aprofundar as reflexões do autor sobre o controle exercido sobre o corpo, já não vemos esse domínio explícito como nos casos de suplícios medievais ou no martírio relatado em tradições judaico-cristãs. O poder, ao longo do tempo, assume formas menos visíveis e se expressa por meio do que ele descreve como uma “tecnologia política do corpo”, operando de maneira “multiforme”. Essa tecnologia atua, segundo ele, como “(...) uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças” (FOUCAULT, 2014, p. 30).

Da mesma forma que viemos ao mundo voltaremos? Se essa afirmação fosse verdade, não envelheceríamos, não teríamos rugas, não teríamos nossos membros alongados, nossa voz mudada. Nossos pensamentos sobre nós mesmos, o outro e o mundo seriam da mesma forma.

Esse trecho, ainda que dolorido, pesado, pressiona-nos pedagogicamente para pensarmos sobre a dimensão do que de fato somos e o que o outro tem a ver ou quer que sejamos, que nos desenvolvamos. Há um clamor incessante de alguns crentes: não profanem as imagens de nossos santos em nossos cultos religiosos, não nos xinguem por nossas roupas conservadoras, não nos tirem o direito de culto a que nós acreditamos. E referente a possibilidade do outro de ser, o que dizem e o que fazem sobre isso alguns religiosos? O manifesto que clama entre choros, espantos, imagens e sons do presente episódio é muito claro: “não profanem a minha identidade de gênero, ainda que eu esteja morta!”.

Até que ponto o outro tem direito de impor sobre como se deve conformar meu próprio corpo?

Imagem: Solange enquanto muxe, à esquerda, e destransicionada, à direita. Fonte: Netflix

Após a notícia da morte de Solange, Sicarú (Manoel) aparece pela primeira vez já em sua identidade transicionada.

Imagem: Aparição de Sicarú e seu reencontro com Erik. Fonte: Netflix

Este episódio é enfático: enquanto Sicarú se afirma como mulher, sendo ela mesma, autêntica e livre de dogmas sociais, os minutos que se seguem fazem um paralelo com o desnudamento de Solange, destransicionada para atender a um ideal religioso. Há uma dicotomia de devires: imponente nasce e aparece Sicarú, no auge de sua vida; sem forças, sem vida, morre Solange, tanto em carne quanto em identidade, pessoa, essência. Essa última, morre não porque ela ou suas amigas quisessem, no entanto, como o fundamentalismo reinante quisera.

Sicarú, passa a escrever sua existência em vida: Solange, após sua morte, enquanto mulher, muxe, tem sua existência negada, apagada.

Talvez, esse apagamento, não seja feito hoje socialmente, em sociedade brasileiras conforme mostrado na série, no entanto, não indica que ele não acontece de outra forma, também brutal. Para De Oliveira Gomes e Dos Reis Miranda (2024), “Vivemos em um espaço social marcado pela heteronormatividade. Embora tenhamos avanços importantes e dignos de serem celebrados”, corpos fora dos padrões heteronormativos:

(...) ainda são afligidos por discursos que visam silenciá-los e segregá-los do espaço público. A escola não está isenta dessas questões, configurando-se como um ambiente muito difícil para que alguém se afirme como não-heterossexual
(DE OLIVEIRA GOMES: DOS REIS MIRANDA, 2024, p.4).

3- Existências de gênero: discursos fundamentalistas religiosos que constroem imaginários indigestos

“Amar, às vezes, também é morrer:
por vezes, morrer para si; em outras, para os outros.
Morrer para outros, não porque sejamos ruins, mas porque necessitamos ainda viver para nós, um tantinho mais...”
Isac Chateauneuf, 2024

Mesmo que “Manuel” tentasse performar uma postura mais “masculina”, mais socialmente aceita, sua essência era real, forte, combativa: havia uma verdade latente que lutava por existir na fisicalidade de seu corpo. Seu ser, em sociedade, clamava por nascer, ainda que isso lhe custasse o preconceito, as perseguições, as machucaduras de um contexto escolar hostil no qual estava. Ainda que nesse nascer tivesse que morrer para os outros. Sim! Precisava viver mais um tantinho de vida: mas agora, como Sicarú, sua verdadeira identidade.

Imagem: Sicarú utilizando os adornos de Paulina e, à direita, correndo dos meninos que o maltratavam na escola. Fonte: Netflix

É diante dessas tensões que a série aborda, tanto da vida de Sicarú, quanto de suas amigas muxes que a possibilidade crítica de se fazer paralelos com a realidade brasileira se coloca. Fundamentalistas em busca de um “ideal” de família, orientação e gênero como o pastor André Valadão (NETO, 2024), com discursos perigosos e destrutivos intentam por consolidar e até mesmo expandir imaginários preconceituosos, que, dizem muito mais do ódio de uma parcela extremista de religiosos do que propriamente dito da população humana.

Nelson Mandela já dizia: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião”. Com essa afirmação potente, que também se aplica à diversidade de orientação e gênero, sua mensagem é clara, real e direta. Se imaginários massacrantes de preconceitos ainda persistem, é porque existem, infelizmente, pessoas que, como Valadão, em nome de um “deus” que acreditam defender, incitam seus fiéis a reagirem contra toda forma de humanidade — tudo em nome de um “deus”, reitero.

Considerando as crenças religiosas cristãs e, particularmente, a perspectiva de um pesquisador que fala a partir de uma vivência evangélica, experimentada desde a infância e juventude, parece difícil — impossível — encontrar qualquer discurso de Jesus, filho de Deus, que se alinhe a pregações contra a humanidade.

Diante do discurso de ódio proferido pelo pastor, surge uma contradição evidente em relação àquilo que tanto Mandela quanto o próprio Jesus, a quem Valadão diz seguir, pregaram. Enquanto Jesus pregava o amor e o perdão, agora, Valadão, um pastor entre inúmeros outros, em nome de Deus, contrariam a pregação. Logo, entendemos que qualquer discurso que “deslegitimam a existência de corpos transexuais” entre os demais da comunidade LGBTQIAPN+, “que impeçam a melhoria de determinados grupos, figura discurso de ódio” (NETO, 2024, p.9).

Imagem: Erik e Sicarú (Manuel) conversando com Solange. Fonte: Netflix

Sicarú, ainda criança e então chamado de Manuel, pergunta à sua avó:

–Vó, vão me punir se eu me vestir como mulher?
– Eu não vou punir – responde a avó, preocupada com a criança.
– E Deus? Ele vai me punir? – pergunta “Manuel”, triste e receoso, forçado pelo contexto social a acreditar que a divindade lhe traria punição.

Imagem: à esquerda, enquanto Manuel: à direita, Sicarú, 20 anos após sua transição. Fonte: Netflix

A série prolonga sua potência existencial que, por sua vez conversa com a nossa própria existência através do presente que, dialoga com o passado constantemente. O hoje que sou diz muito do que vivi quando criança!

O episódio citado nos traz essa forma de o produtor narrar e nos apresentar a história de Sicarú: enquanto olha pela janela, para o outro lado, o quintal onde penteava os cabelos de sua avó quando criança, aquela cena, pregressa e tensa, se materializa diante de seus olhos e dos do espectador. São simultaneidades de narrativas que dialogam e propõem questões: quais eram os receios de outrora e quais são os de agora?

Para Deus, como frequentemente se prega, o importante é o coração, o íntimo que Ele conhece mais profundamente do que a própria pessoa. “Deus conhece o coração e seus intentos, maldades e bondades” — esse é o bordão que ressoa em cultos evangélicos em congregações brasileiras. Concomitantemente, surgem alguns questionamentos: a performance de gênero, expressa em modos e vestes, é algo construído socialmente, historicamente datado, modificado e até transgredido ao longo dos séculos. Então, por que se impõe um ideal performático, se os costumes de dois mil anos atrás não são os mesmos de hoje? E, se Deus conhece e se preocupa com o interior, por que tantas religiões, principalmente as evangélicas, focam tanto na maneira como o outro se veste, age e se relaciona?

Em denominações como a Batista, Congregação Cristã no Brasil, Assembleia de Deus, Testemunhas de Jeová e Adventista, por exemplo, ouve-se que para ir ao culto, pregar ou tocar, o homem deve usar terno. Cabelo “como o mundo” não pode, mulher de brinco ou calça é sinônimo de vaidade. Mas, afinal, o que não seria vaidade em um contexto social no qual quase tudo é feito em prol de uma boa aparência, da saúde física e mental? A verdade é que, no mundo contemporâneo, tudo é vaidade. Eis aí mais uma contradição no discurso extremista e fundamentalista de certos cristãos evangélicos, que possivelmente a série tensiona.

Retomando Foucault (2014), durante a época clássica houve:

(...) uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, modela-se, treina-se, que obedece, responde, torna-se hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT, 2014, p.134).

Ao pensar nessas formas de poder, manipulação e iminente destruição dos corpos e das existências humanas, será que elas não estariam sendo repetidas de outra maneira hoje, dentro de crenças religiosas?

Durante séculos a igreja católica matou corpos; hoje, alguns fundamentalistas evangélicos matam a alma/espírito/essência/identidade.

Outro ponto recorrente é o argumento de que “ninguém é obrigado a servir a Deus” ou “a igreja é para quem quer”. Aparentemente, dizem isso para justificar a ideia de que sua crença pode definir a as ações de existência do outro. “Se quer ter a minha fé, entrar no céu para onde vou, servir ao Deus que sirvo, então deve seguir o meu modelo de família, pensamento, orientação e gênero”, ecoa a fala do fundamentalista.

Ecoa entre as paredes, as ruas, as escolas, as igrejas, as casas. Ecoam-se falas que, mais uma vez tornam o diferente acuado, assustado, confuso...

Esse discurso extremista ecoa diretamente na vida dos indivíduos, como se vê na série, onde personagens como Sicarú enfrentam os impactos dessas crenças em sua luta por viver sua verdade. Retornando à cidade que morava, em um relance, olhando às ruas que caminhara, ela se vê diante de seu passado, dos xingamentos que ouvia e das torturas que passava. Ela revive a angústia que era correr para não ser maltratada pelos que, sob orientações estruturais, condicionados para isso, praticavam o preconceito.

Imagem: à esquerda, Sicarú correndo das crianças para não ser agredida: à direita, Sicarú revendo sua infância dolorosa. Fonte: Netflix

Assim, enquanto Deus se preocupa com o coração e a essência, o discurso de certos grupos cristãos parece se preocupar mais com sua roupa, sua barba, seu gênero, sua orientação, a carne que come, se não pecou, porque não vem mais aos sábados à igreja, o café que toma, o sangue que doa, a saia que veste, o cabelo que corta, os brinquedos de suas crianças, as cores de suas roupas, a irmã que se divorciou, o sábado que trabalha, o corpo estuprado que aborta, o partido que vota, se assiste televisão ou vai ao cinema... e a lista segue.

É diante dessas questões e algumas outras que essas emergências discursivas tomam rumos e se espargem para outros campos, como o político, levando, por exemplo, muitos evangélicos em direção às ideologias de direita e extrema-direita no Brasil. Neto (2024) vai dizer que:

Tendo suas ações justificadas na tradição, esses grupos religiosos não aceitam que esta tradição mude; reivindicam sua eternidade e sua imutabilidade, e qualquer tentativa de transformação é vista como um desrespeito e uma ameaça. E os indivíduos, como forma de resistência a mudanças, tendem a se unir e formar um grupo cada vez mais crescente e com discursos cada vez mais violentos (NETO, 2024, p.10).

Tendo em mente essa resistência a mudanças e o reforço de normas tradicionais descritos por Neto, vemos como essa postura pode se manifestar em relações interpessoais e familiares, permeando, incessantemente, para espaços micros e macros, fazendo um percurso de vai e vem. E, embora o sofrimento maior recaia sobre quem não é aceito socialmente por estar fora dos padrões exigidos, essa dor também afeta aqueles ao seu redor, leva mais alguns para a fornalha. Andar, falar ou brincar com alguém que é excluído, como no caso das duas crianças principais mostradas na série, também se torna inaceitável.

Pai de Erik, por exemplo, ao notar a possível identidade de gênero de Manuel (Sicarú), faz inúmeras tentativas para que seu filho e ele não mantenham nenhum tipo de amizade, sejam interferências físicas e/ou até mesmo simbólicas, como a investida frustrada de tirar o brinquedo que ganhara de Manuel (Sicarú) (episódio 6). Esse último, por sua vez, marca enfaticamente uma ruptura com as escolhas dos brinquedos e os gêneros, pois ao invés de pegar a bola quando atinge o alvo em um jogo no parque de diversão, escolhe o ursinho (episódio 3).

Imagem: à esquerda, Sicarú ganhando a bola como prêmio, à direita, o prêmio que ele escolheu nas mãos de Erik. Fonte: Netflix

O pai de Erik, insistentemente, mais uma vez, lhe clamava dizendo que Sicarú não retornaria mais, mas seu filho, pelo amor e carinho que nutria pela amiga, acredita e reiterava a sua mãe: “ele retornará, eu sei!”

Outra questão que merece destaque, tanto em paralelo com a realidade social quanto com a série, está atrelada a desumanização que fazem com indivíduos que fogem aos padrões heteronormativos. O foco do julgamento desses extremismos está na forma que se vestem, com quem se relacionam, cotejando aos imaginários, lentamente, a ideia de objetos sexuais unicamente ao invés de seres humanos. “Ele é até bom, não faz mal a ninguém; no entanto, está no pecado da homossexualidade”, diria um dos discursos menos ácidos proferidos por alguns evangélicos. Os discursos automatizam os imaginários, fazendo com que qualquer coisa que se fale ou se refira à homossexuais, trans e lésbicas, por exemplo, esteja imbricado às desnaturalizações, imoralidades, inumanidades.

Como exemplo, novamente trazendo as falas de André Valadão, Neto (2024) argumenta que, segundo o pastor, grupos da comunidade LGBTQIAPN+ como, por exemplo o das Drags;

(...) estaria adentrando em espaços que estariam sendo negados aos religiosos. Essa perseguição relatada pelo evangélico fica evidente em uma de suas falas onde afirma que “Drag queens podem entrar nas escolas e doutrinar crianças. Pastores e missionários não podem”. Aqui, mais uma vez, a imagem da Drag é utilizada para mobilizar medo e disseminar ataques (...) o evangélico critica não só a ação do Estado, que estaria permitindo a entrada de pessoas drags em escolas, assim como negativa a imagem das pessoas drags, associando-a a toda forma de permissividade e moralmente perigosas, já que põem em cheque a moral dominante (NETO, 2024, p.20).

Remetendo às três Marias e Jesus, a imagem abaixo encontrada nos cinco primeiros minutos do episódio 7, surge combativa, contestadora, insubmissa. Não são as três Marias que carregam o corpo do filho de Deus para, possivelmente salvá-lo de um dessabor futuro ou, para ungi-lo como desejaram após sua morte na história bíblica: são três mulheres (muxes) que, sem medo e insubservientes às trapaças de alguns homens, salvam o menino das torturas de quem o sequestrara.

Imagem: Sicarú e suas duas amigas salvando um garoto que sofria torturas pelo seu falso irmão. Fonte: Netflix

Judith Butler vai dizer que a ideia dos discursos de ódio são sempre tornar tais pessoas como menos humanos “[...], e essa forma de conhecimento qualificado não conduz a uma vida vivível. Algumas sequer são reconhecidas como humanas [...]” (Butler, 2022, p. 13). Reiterando: discursos de ódio destroem, constroem e reconstroem imaginários racistas, preconceituosos, misóginos e classistas. Séries, filmes e animações, por meio de seus fundamentos educativos, também exercem esse poder, mas na contramão das inumanidades.

Não há mais nada de humano do que salvar seres humanos, indefesos principalmente, daqueles que se dizem humanos.

Segundo Gagnon (2006), o passado é um “recurso” passível de edição e reescrita, ao mesmo tempo em que se constitui como processos de aprendizagens mediados, consolidados e orientados pelas questões culturais, sociais e históricas. Nesse sentido, o autor propõe conceitualmente que a sexualidade humana, enquanto ação e nomeação, não é resultado apenas de instintos ou da biologia, mas sim uma prática socialmente aprendida, organizada por normas, expectativas, negociações e contextos culturais, orientada por “roteiros” que direcionam desejos, prazeres e relações afetivas e sexuais. Roteiros esses que maltratam, reconfiguram, tolhem ou, em último caso, matam.

Em uma breve historicização, o sexo, há alguns séculos, foi reduzido ao nível da linguagem, dando lugar a uma explosão discursiva e se consolidando enquanto regras de decência, conforme aponta Foucault (1988). Diante dessas questões, cabe indagar: contemporaneamente, os discursos oriundos de movimentos de igrejas evangélicas, outrora proferidos pelo catolicismo, estariam adentrando de maneira crescente os nichos familiares e se difundindo nos ambientes educacionais? Estariam os “recursos” das aprendizagens do passado e os “roteiros do sexo” sendo novamente remodelados, em larga escala, por essas forças religiosas?

Produções como essa série, a partir de seus fundamentos educativos, devem ser cada vez mais valorizadas como instrumentos para a reelaboração de imaginários que, por séculos, foram construídos de maneira indigesta. Elas caminham na contramão dos discursos apocalípticos pregados por determinadas igrejas que, de forma insidiosa e reacionária, buscam preservar — e até expandir — um constructo de pensamento social baseado na mutilação simbólica (e por vezes, físicas) daquilo que não se encaixa em seus moldes normativos: orientação sexual, identidade de gênero, sexo.

Conclusão

Há muito tempo, as religiões judaico-cristãs pregaram e ainda pregam a chegada do anticristo, promovendo o medo e a conformação de um pensamento distópico e apocalíptico. Sustenta-se a ideia de que toda criatura deve crer e ser batizada para, como recompensa após a morte, alcançar o galardão dos céus. No entanto, é nesse mesmo percurso — que poderíamos talvez chamar de uma contramão ou um discurso paradoxal — que parte desse grupo fundamentalista afasta ainda mais os indivíduos da comunidade LGBTQIAP+ da fé, ao rotulá-los como pecadores, julgados pelos próprios membros das igrejas. Ironicamente, aqueles que mais falam, pregam sobre a fé são os mesmos que mais contribuem para que muitos a percam.

Alguns pastores aconselham: “se você acha que é gay, não sente atração por mulheres, não se case, não a faça sofrer. Escolha o celibato, irmão!” Agora, ele mesmo, o pastor/cooperador/bispo/diácono, não escolheu o celibato, mas tão logo se casou quando teve a oportunidade. É como se dissessem simbolicamente: “eu sou digno de constituir família, ser feliz e viver minha identidade de gênero ou sexualidade. Você, não!”

Há, de fato, uma contradição gritante: aqueles que pregam a necessidade de ser verdadeiro consigo mesmo e com Deus, afirmando que “a verdade os libertará”, são os mesmos que assumem uma postura totalmente anti-cristã ao julgar, apontar e lançar os indivíduos, repetidamente, em dois universos metafísicos do inferno, em diferentes períodos da vida: o primeiro, o da mente; e o segundo, o da carne e da alma, no último dia do julgamento final.

É como se fosse, fazendo uma alusão sobre o nada de Nietzsche (1998, p.87-88 apud Almeida, 2024, p.145), preferível “querer o nada a nada querer”. É preferível nós, enquanto “cristãos”, não querer alguém que fuja aos princípios heteronormativos do que querer uma pessoa fora das regras que se configuraria também como um quase ‘nada”, visto que estaria em pecado.

Pode ser doloroso, no entanto, é uma realidade que perpassa, principalmente, muitas comunidades evangélicas, e que de alguma forma a série traz em sua minúcia, pela ótica da cultura mexicana, muito se assemelhando à configuração moralista que se sofre constantemente na atualidade, a partir do contexto aqui discutido. Eis aí alguns dos fundamentos educativos sobre as existências tensionados na série!

A análise da série aponta que o controle sobre as identidades de gênero transcende a vida física e atinge até a memória e o legado de uma pessoa, como demonstrado pela tentativa de apagamento ao definir postumamente a identidade de Solange. No entanto, a série também evidencia que a performance de gênero é e deve ser fluida, resistindo às tentativas de imposição e controle, como se observa na trajetória de Sicarú. Assim como as muxes, essas identidades revelam que a luta pela aceitação de gênero é incessante e combativa, confrontando as estruturas sociais e religiosas que insistem em uma visão rígida e limitada do que significa existir.

“Eu não aceito, mas eu respeito” — encerro as considerações com mais um bordão estruturado no preconceito.

Notas Finais

1Isac dos Santos Pereira, conhecido profissional e artisticamente como Isac Chateauneuf, é doutorando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Possui Doutorado (2025) e Mestrado (2020) em Comunicação Audiovisual, com uma pesquisa focada na utilização da animação Naruto em sala de aula pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM). É também especialista em Arte/Educação: Teoria e Prática (2015) pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e graduado em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes (FPA, 2013). Atua como arte-educador na Prefeitura de São Paulo, trabalhando com crianças e jovens do Ensino Fundamental I e II desde 2014.

2Tehuantepec é uma cidade e município no sudeste do estado mexicano de Oaxaca. Ela faz parte do Distrito de Tehuantepec, a oeste da Região do Istmo. A área foi importante no período pré-hispânico como parte de uma rota comercial que conectava a América Central com o que hoje é o centro do México. Mais tarde, tornou-se uma capital secundária do domínio zapoteca, antes de ser conquistada pelos espanhóis no início do século XVI. A cidade ainda é o centro da cultura zapoteca no Istmo de Tehuantepec e é a segunda maior da região. É conhecida por suas mulheres e seus trajes tradicionais, adotados por Frida Kahlo. Tehuantepec tem a reputação de ser uma “sociedade matriarcal”. As mulheres dominam os mercados locais e são conhecidas por provocar os homens. No entanto, o poder político ainda é domínio dos homens. Disponível em <https://artsandculture.google.com/entity/tehuantepec/m037qkx?hl=en> Acesso em 11/2024.

3Disponível em: Costa Rosa, G. (2024). O Segredo do Rio: o peso do silêncio e dos segredos inconfessáveis. Flixlândia. Disponível em: <https://flixlandia.com.br/o-segredo-do-rio-critica-da-serie-netflix-2024/>. Acesso em outubro de 2024.

Bibliografia

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BOTTON, Viviane Bagiotto. Muxes: gênero e subjetivação, entre a tradição e as novidades. Revista Ecopolítica, São Paulo, n. 17, jan-abr,, 2017.

BUTLER, Judith. Desfazendo gênero. São Paulo: Unesp, 2022.

DE OLIVEIRA GOMES, J.; DOS REIS MIRANDA, J. “Eu venho tentando melhorar a minha fala. Acredito que pela fala eu posso sofrer um pouco de preconceito”: é preciso falar “como homem” para ser professor?. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S. l.], v. 7, n. 22, 2024.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhante. 42ªed. Petrópolis, rio de Janeiro, 2014.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

GAGNON, John. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. (p. 111-209 e 403-24)

NETO, Edival. Eu quero Jesus mais que minha sexualidade: André Valadão e seu discurso conservador perante a sexualidade. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, [S. l.], v. 7, n. 22, 2024.

Filmografia

El Secreto del Río. Direção: Ernesto Contreras, Alba Gil, Alejandro Zuno. México: Netflix, 2024. Disponível em: Netflix. Acesso em: 1 nov. 2024.