Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Between Gesture and Memory: Cut-Out and Lost Matrix in the Exploration of Time

Entre Gesto e Memória: Cut-Out e Matriz Perdida na exploração do tempo

Maíra Ortins

Universidade de Aveiro, Departamento de Comunicação e Arte, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

Universidade de Aveiro, Departamento de Comunicação e Arte, Portugal

Abstract

This paper discusses the creative process of the videos A Menina do Rio and Self, made in 2023, using cut-out techniques (animation) and lost matrix (engraving technique). Based on the animators Quirino Cristiani and Berthold Bartosc, and the variations of the cut-out technique developed by them, the authors of the paper sought to situate the work on two technical planes: engraving and animation, which allowed greater freedom in the assembly of the videos. The manual nature given to the works, through the incisions on the photographs used in the videos, brings them tension and reinforces the tactile character, which corroborates the relationship between technique and thought. Interested in Ricoeur’s conception of time as a narrative expression and driven by the interest in exploring themes such as time, memory and forgetting, herein the authors also sought means and forms that would enhance these questions, allowing them to unfold. To this end, the temporal experience was reconfigured through a visual narrative, based on a set of personal photographs of various dimensions, on which inscriptions were inserted.

Keywords: Time, Narrative, Memory, Forgetting, Videoart.

1 Introdução

O presente artigo aborda o processo de concepção e desenvolvimento dos vídeos A Menina do Rio e Self, realizados em 2023. Esses vídeos, de caráter autorreferencial, foram produzidos utilizando duas técnicas distintas: cut-out, uma técnica de animação de recortes onde personagens articulados são movidos quadro a quadro para simular movimento (Grossinho, 2023); e matriz perdida, técnica de gravura que consiste em talhar progressivamente uma única matriz para imprimir diferentes camadas de cor (Costella,1987). Movidos pelo interesse em explorar temas como tempo, memória e esquecimento, buscou-se meios e formas que potencializassem essas questões, permitindo desdobrá-las, somando a estas imagens uma latência subjetiva. Para isso, reconfigurou-se a experiência temporal por meio de uma narrativa fragmentada combinada com sonoplastia e fotografias pessoais de variadas dimensões, sobre as quais foram inseridas inscrições.

A partir desse princípio, as técnicas escolhidas foram aplicadas não apenas como meios formais, mas como operadores conceituais que orientaram a estruturação do processo. O cut-out, por exemplo, possibilitou organizar um plano-sequência das intervenções sobre a imagem, enquanto a matriz perdida ofereceu um modelo técnico que dispensava a repetição de impressões da mesma fotografia a cada novo estágio de inscrição. Esse procedimento sintetizou o processo de transformação da imagem ao longo do tempo. Diferentemente de uma variação tradicional do cut-out — em que os recortes de cada movimento são previamente elaborados e preservados —, nesta adaptação resta apenas uma única imagem final, que condensa todo o conjunto de ações e gestos, fazendo com que as etapas físicas se percam. Essas etapas, no entanto, permanecem acessíveis por meio da sucessão de registros fotográficos.

Vale ressaltar que as duas técnicas possuem aproximações e distâncias que foram levadas em consideração durante o desenvolvimento dos vídeos. Enquanto, na técnica de matriz perdida, o suporte varia entre uma peça de linóleo ou um taco de madeira plana, no cut-out a superfície de inscrição se limita, em geral, ao papel. Em ambas, o ato de cortar e remover está presente; porém, na técnica específica da gravura, o método de elaboração da imagem está diretamente ligado à subtração da matéria. Já no cut-out, há também a possibilidade de trabalhar com adição, colagem e composição modular. Basicamente, o cut-out preserva suas matrizes — os recortes podem ser manipulados diversas vezes —, enquanto, na matriz perdida, o suporte desaparece quase completamente ao longo do processo. Essa distinção foi de grande importância para o desenvolvimento dos vídeos.

Na elaboração da imagem por matriz perdida, a sequência implica uma narrativa acumulativa, pois cada gesto de corte ou subtração exige uma impressão manual e mecânica. O gesto está irremediavelmente atrelado à sua consequência impressa e ao tempo presente da ação. No cut-out, por sua vez, o foco recai na composição formal e visual dos elementos entre si. A intenção narrativa, nesse caso, pode emergir a posteriori, ou seja, depois da produção dos recortes que irão compor o vídeo.

Tomando as considerações acima, observamos que a aplicação parcial das duas técnicas na construção dos vídeos demonstrou que o cut-out, como técnica isolada, é espacial e compositiva, mas quando inserida em um sistema de registro sequencial (animação), ela adquire temporalidade. Inserida nesse processo também há a performance de um corpo ausente e, ao mesmo tempo, ativamente presente, perceptível apenas por ações. O corpo performático, embora invisível, se faz presente no ato: ele age sobre a imagem, a transforma, a fere, a costura. Não é captado diretamente, mas se impõe como rastro. Sua existência é confirmada não pela forma visível, mas pela inscrição material que deixa — gesto após gesto, marca após marca. O resultado desses gestos pode ser verificado na figura 1, onde a manualidade, ainda que atravessada por softwares de edição, carrega em seu próprio fazer uma latência orgânica, reforçada pelas imperfeições dos movimentos e pelas linhas sulcadas sobre as fotografias — efeitos diretos dessa performance do corpo sobre a imagem.

Figura 1- A Menina do Rio, 2023.Duração: 5:47 min.
Link: https://mairaortins.com/a-menina-do-rio-3/ - Fonte: Acervo da autora.

Interessados nas variações possíveis dentro dos processos de animação realizados por meio da técnica do cut-out, buscamos investigar como diferentes artistas desenvolveram suas obras audiovisuais experimentais. Nosso objetivo foi identificar variantes da técnica empregada, ampliando, assim, o repertório técnico e conceitual relacionado às questões do tempo, da memória, do movimento e da integração desses elementos no próprio fazer artístico.

Nesse contexto, chamou-nos a atenção o processo criativo do artista argentino Quirino Cristiani, que, entre os anos de 1917 e 1918, produziu El Apóstol, considerado o primeiro longa-metragem realizado com a técnica de cut-out. Embora grande parte dos materiais originais tenham se perdido, sabe-se que a obra foi cuidadosamente construída com elementos recortados quadro a quadro, compondo a animação por meio da montagem sequencial de partes físicas. Esse procedimento exigia a produção individual de cada componente visual, que posteriormente era articulado com precisão para simular o movimento.

Em contraste com o método adotado por Cristiani, optamos por adotar diversas técnicas para gerar uma sequência de imagens com sugestão de movimento a partir de gestos incididos sobre uma única matriz fotográfica. Essa abordagem nos permitiu explorar uma dimensão mais performática e direta da imagem, na qual o registro fotográfico não apenas documenta a ação, mas se torna o próprio campo de transformação visual. Isso nos levou a fotografar, em seguida, cada ação aplicada sobre essa fotografia. Trata-se de uma proposta metalinguística, na medida em que a fotografia opera simultaneamente como objeto de manipulação e como imagem resultante desse processo. Ao registrar cada gesto aplicado sobre a própria imagem, o trabalho reflete criticamente sobre o meio fotográfico, evidenciando seus limites, materialidade e potencial expressivo.

Esse interesse por abordagens que integram matéria, gesto e pensamento visual encontra ressonância em outras experiências artísticas, como a do artista tcheco Berthold Bartosch. Em L’Idée (1932) Bartosch também se vale da técnica de recortes — neste caso, combinada com sombras, sobreposições e iluminação especial — para criar uma expressão poética capaz de dar conta da densidade simbólica da narrativa. A animação é baseada na novela ilustrada homônima de Frans Masereel, publicada em 1920, que narra a trajetória de uma “ideia revolucionária” — aqui representada por uma mulher nua — como alegoria da luta contra as diversas formas de opressão social. Essa representação também pode ser lida como uma convocação à reflexão sobre os direitos das mulheres e sua emancipação. Bartosch conseguiu unir magistralmente o fazer material à carga subjetiva e dramática do tema abordado. Nesse sentido, L’Idée aproxima-se dos conceitos trabalhados nos vídeos desta investigação, especialmente na maneira como utilizamos fotografias de álbuns de família para representar discursos de opressão contra a mulher, evidenciados nos gestos e nas ações aplicadas sobre essas imagens.

Por essa razão, a mediação entre a mão e o pensamento revela-se essencial na produção dessas obras. A esse respeito, aponta P. B. Bastos (2010) que a técnica, por estar intrinsecamente associada ao conhecimento prático, desempenha um papel fundamental nessa mediação. Isso reforça a ideia de que as expressões artísticas estão inevitavelmente ligadas ao desenvolvimento técnico, o qual, por sua vez, reflete o espírito de uma época. Assim, os recursos técnicos utilizados — tanto nesta pesquisa quanto nas obras dos artistas mencionados — foram cruciais para a formulação das imagens e dos sentidos que delas emergem. O que se evidencia, portanto, é a estreita relação entre técnica e pensamento, que se fundem na realização da obra artística.

No caso específico de Self e A Menina do Rio, o que predomina é um caráter tátil, que reforça tanto a manualidade do processo, quanto suas subjetividades intrínsecas. A subjetividade se insere, de igual modo, através da técnica e da performance do corpo que interfere nas imagens. Particularmente em Self, (ver figura 2) constam fotografias que evocam um ambiente doméstico, marcado pelo registro de convívio entre mãe e filho(a). No vídeo A Menina do Rio, o retrato utilizado origina-se de um antigo documento de identificação da avó materna do primeiro autor. Os retratos nos vídeos, tornam-se, portanto, peça-chave de um diálogo visual-afetivo, porque se apresentam carregados de subjetividades conferidas pelo gesto dos cortes, costuras e apagamento das imagens ali impressas e, porque provêm de arquivo pessoal, acumulam histórias que são agregadas ao enredo inscrito na ação de cada gesto, impregnados de uma experiência afetiva.

Figura 2 - Self, 2023. Duração: 2:33 min.
Link: https://mairaortins.com – Fonte: Acervo da autora.

1.1 Do Retrato à Narrativa: A Experiência Vivida como Produção de Sentido

A história, mais do que um simples registro do passado, constitui-se como um esforço de dar forma àquilo que já não pode ser plenamente experienciado. Para Giorgio Agamben (2008), ela não é a experiência vivida em si, mas uma resposta à sua perda — uma tentativa de reconstruir, por meio da linguagem e da memória, aquilo que se esvaiu. Nesse sentido, a experiência vivida no presente pode se converter em memória e, esta, por sua vez, tornar-se objeto de elaboração histórica no futuro, retornando a um passado que se reconfigura constantemente no presente. Entretanto, esse movimento só é possível quando há uma experiência suficientemente densa para ser compartilhada e interpretada — seja ela coletiva ou subjetiva, abrangente ou circunscrita a um pequeno grupo.

É nesse ponto que a narrativa se diferencia de certas formas de elaboração histórica marcadas por uma abordagem objetivista. Enquanto essas formas buscam apresentar os fatos de maneira ordenada, documentada e verificável, a narrativa se configura como uma expressão da experiência vivida, priorizando a transmissão subjetiva dos acontecimentos. No entanto, como ressalta Paul Ricoeur (1994), mesmo a história — enquanto prática disciplinar — não está isenta da dimensão narrativa, uma vez que toda reconstrução do passado envolve operações de seleção, organização e configuração temporal que lhe conferem sentido. Ao reconhecer essa dimensão narrativa na historiografia, Ricoeur (1994) amplia a compreensão da história, aproximando-a de um campo interpretativo onde linguagem, memória e tempo se entrelaçam. Reforçando a especificidade da narrativa, Walter Benjamin (1987) acrescenta que diferentemente da informação — que busca comunicar fatos de forma objetiva e imediata — a narrativa preserva a espessura da experiência. Ela se constrói a partir do tempo, das sensações, da escuta e da transmissão oral, permitindo que o acontecimento seja incorporado ao outro. A narrativa, assim, não apenas relata, mas elabora o vivido; ela não visa à precisão do dado, mas à partilha da experiência, produzindo sentido.

Particularmente, apropriamo-nos de um único retrato da avó da primeira autora, feito ainda na juventude para montar o vídeo A Menina do Rio. Intencionalmente recorremos reiteradamente à mesma imagem com a intenção de deslocá-la de seu contexto inicial, abrindo-a a novos sentidos. Embora esse retrato esteja inserido em um contexto específico, seu deslocamento para fora do espaço doméstico lhe confere um caráter anônimo e comum, capaz de estabelecer ressonâncias e diálogos com outras memórias, histórias e experiências de mulheres.

Desse modo, por meio de gestos aplicados sobre a imagem, buscamos evidenciar as dinâmicas sociais que marcaram o cotidiano da mulher retratada. Mãe solo e costureira, ela enfrentou pressões sociais e preconceitos de gênero, numa trajetória que reflete experiências compartilhadas por muitas mulheres de sua época. Apesar dessas adversidades, ela conseguiu criar, no interior de sua vida cotidiana, um espaço possível de convivência — um pequeno grupo no qual vínculos afetivos e formas de cuidado foram construídos de maneira autônoma, à margem das normas sociais que a marginalizavam.

Essa experiência pode ser compreendida à luz do conceito de singularização desenvolvido por Guattari e Rolnik (1996), entendido como um processo em que sujeitos ou grupos, a partir de sua vivência concreta, produzem formas próprias de existência e organização, sem subordinação à lógica dominante. Trata-se de uma “experiência de grupo-sujeito” que, ao captar os elementos essenciais de sua realidade, institui outras formas de relação e pertencimento. Esse movimento ocorre nos planos econômico, técnico, interpessoal e afetivo, e é parte do que os autores chamam de revolução molecular — micropolíticas que, ainda que discretas, operam transformações profundas nos modos de vida e nas estruturas hegemônicas.

A ideia de revolução molecular diz respeito sincronicamente a todos os níveis: intrapessoais (O que está em jogo no sonho, na criação etc.); pessoais (por exemplo, as relações de autodominação, aquilo que os psicanalistas chamam de Superego); e interpessoais (a invenção de novas formas de sociabilidade na vida doméstica, amorosa, profissional, na relação com a vizinhança, com a escola etc.). (Guattari & Rolnik, 1996, p.42).

Foi, portanto, nessas relações interpessoais construídas, que buscamos expressar nas imagens que compõem o vídeo, os relatos de preconceito, as violências de gênero e a resiliência que atravessa toda a narrativa. fragmentada. Por esta razão exploramos cortes, rasuras, sons e suturas que em conjunto formam uma sequência narrativa.

Buscamos, portanto, com o gesto do corte, da rasura e da fragmentação do rosto impresso o retrato, trazer um discurso sobre as violências de gênero e pressões sociais, a partir de uma partilha de experiência como produção de sentido que foi desdobrada nos gestos, edição e áudio do trabalho. Nesse sentido, fazemos uso do retrato em preto e branco para investigar os sentidos “guardados” no contorno dos olhos, da boca, do nariz e da própria expressão que este contém. Isto porque o rosto confere sentido ao corpo. É superfície de entrada do exterior para o interior, tal como descreve José Gil (1997), o rosto está para além de um simples écran ou superfície de inscrição, porque possui várias camadas.

1.2 Tempo e Narrativa

É intrigante pensar em como as experiências da infância nos marcam ao longo da vida. Nesse contexto, o ambiente familiar assume um papel central, tornando-se um fio condutor que entrelaça nossas memórias mais subjetivas. No entanto, essas lembranças são frequentemente imprecisas, levando-nos tanto a imaginar fatos que nunca aconteceram quanto a esquecer outros. Enquanto revivemos estas memórias, a vida segue em um fluxo contínuo de mudanças, impulsionando a reconstrução de nossas identidades a partir de contextos sociais, históricos e familiares. Como afirma Gilles Deleuze (apud Haider, 2022, p. 32), “tudo é partida, mudança, passagem, salto, daemon, relação com o exterior”. Nesse sentido, A Menina do Rio e Self emergem de memórias pessoais reconfiguradas e entrelaçadas com as experiências de vida da avó materna do primeiro autor—uma mãe solteira que desafiou os papéis tradicionais de gênero. Nos vídeos, essas lembranças são costuradas por meio de uma narrativa construída a partir da repetição e desconstrução de retratos. O gesto da mão, ao desferir golpes e traçar costuras sobre as imagens, conduz a ação e estrutura a narrativa, criando um jogo dinâmico de aparição e desaparecimento das figuras retratadas. Nesse sentido, essa passagem de uma imagem para outra, de um ponto para outro, reforça o ciclo contínuo da impermanência de uma memória fixa, além de pressupor um fluxo narrativo, que expressa a passagem do tempo. A este respeito, pontua Ricoeur (1997):

De um lado, a dimensão episódica da narrativa puxa o tempo narrativo para o lado da representação linear. De muitas maneiras. Primeiro, o “então-e-então” com o qual respondemos à questão: “e depois?” sugere que as frases da ação estão numa relação de exterioridade. Ademais, os episódios constituem uma serie aberta de acontecimentos, que permite acrescentar ao “então-e-então” um “e assim por diante”. Finalmente, os episódios sucedem um ao outro de acordo com a ordem irreversível do tempo comum aos acontecimentos físicos e humanos. (Ricoeur, 1997, p. 105).

Dito isto, os vídeos apreendem o tempo através de uma narrativa visual e sonora que se inserem em uma dimensão episódica, cuja linearidade é por vezes quebrada. Isso ocorre nos vídeos de várias formas. Primeiramente, há um contar de uma história fragmentada que se atualiza através dos gestos que inscritos sobre as fotografias. Os gestos possuem uma sequência que obedecem a ordem de ponto inicial da ação e de seu ponto final, conferindo, dessa forma, uma organização narrativa. Nesse sentido, Ricoeur (1994), pontua que existe uma relação entre narrativa e experiência temporal, pois que toda narrativa, seja histórica ou ficcional, organiza e dá forma à experiência do tempo humano. Para ele, o tempo só se torna verdadeiramente humano quando é estruturado narrativamente.

Precisamente esta estrutura narrativa dos vídeos advém dessas ações. Trata-se da própria lógica contida na sequência dos eventos conectados pelo “e depois?”, o que cria uma progressão temporal que sugere que cada ação ocorre independentemente das outras, em uma relação de exterioridade. Isto ocorre porque ao concluir as inscrições sugeridas em cada retrato, outro reaparece para que um novo modo de inscrição comece. Além disso, os episódios formam uma sequência aberta de acontecimentos, o que significa que sempre poderia adicionar novos eventos à história, mantendo a continuidade por meio de um “e assim por diante”. Por fim, essa sucessão de episódios segue a ordem irreversível do tempo, assim como ocorre na realidade dos eventos físicos e humanos mencionados acima por Ricoeur, onde passado, presente e futuro se desenrolam. Acrescenta a isto, Henri Bergson (1999), que o presente vivido é um fluxo, uma duração contínua que se estende tanto para o passado quanto para o futuro.

É, portanto, a partir desse fluxo que buscou-se explorar a relação entre o «antes» o «depois» e o “então”, numa ação presente, que mesmo já sendo passado recente, se atualiza a cada instante que é assistida por alguém. Para Ricoeur (1997), o tempo humano é sempre mediado pela narrativa, ou seja, só conseguimos compreendê-lo e dar-lhe sentido por meio das histórias. Ele argumenta que a narrativa não apenas reflete o tempo, mas também o organiza, conferindo-lhe estrutura e significação, pois a narrativa não apenas reflete o tempo, mas também o configura, organizando a experiência temporal em uma estrutura coerente. Por sua vez, essas experiências temporais situam a ação da narrativa em um dado período da história. A história também nos insere em um lugar de identidade, que nos confere singularidade e reforça nosso sentimento de pertencimento.

2 Imagens da Memória: Entre Esquecimento e Imaginação

Ricoeur (2003), em conferência sobre seu livro A Memória, a História, o Esquecimento, discorre como a memória individual e coletiva se entrelaçam, destacando que “a memória coletiva é uma memória encarnada em indivíduos que se recordam. “Assim, essas imagens transcendem o simples resgate do passado e ressignificam o presente, impulsionando reflexões sociais e políticas. Buscando resgatar fragmentos de uma história familiar marcada por conflitos, foi materializado, por meio de gestos inscritos sobre retratos pessoais, marcas de um tempo e de uma memória subjetiva que também se entrelaçam a eventos históricos. Em A Menina do Rio, por exemplo, as antigas canções e os relatos fragmentados de um cotidiano ligado ao rio, reforçados pela sonoplastia, ajudam a construir identidades que evocam o feminino e remetem a um passado melancólico. Em Self, as marcas dos acontecimentos interditos de um passado imemorial, porque nos escapam, é reconstruído através da imaginação e da atualização de fatos mais recentes que se acomodam em camadas sobre as imagens que remetem a primeira infância. Nas imagens buscou-se, portanto, “revelar a essência” de um afastamento, de uma distância temporal promovidas por um afundamento na ausência.

Diferente da história, a memória envolve tanto o reconhecimento quanto a reapropriação do passado. Ela é o principal meio pelo qual asseguramos que algo realmente aconteceu, mesmo antes de recordá-lo conscientemente. No entanto, essa mesma memória, ao transmitir informações à história, carrega uma contradição: embora seja o único instrumento de reconhecimento do passado, também é subjetiva e frágil (Ricoeur, 2003). A fragilidade das memórias que carrego sobre minha própria infância, assim como as histórias transmitidas por minha avó sobre sua juventude, revelam a imprecisão inerente ao ato de recordar. A memória, muitas vezes nebulosa, é moldada pela subjetividade e permeada por afetos. Quando falha ou quando um acontecimento exige significação, a imaginação intervém, reconfigurando as lembranças e estabelecendo uma relação ambivalente entre o real e o ficcional. Como afirmou Ricoeur (2003), “somos incapazes de nos lembrar de tudo, somos ainda mais incapazes de tudo narrar”.

Nietzsche (2017), argumenta que há um limite para a quantidade de memória histórica que um indivíduo, um povo ou uma cultura deve carregar. Isto porque, o excesso de reflexão sobre o passado pode se tornar um fardo tão pesado que impede a ação no presente. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido nos vídeos, embora reafirmem uma busca por uma memória enleada em infortúnios, dores e adversidades, propõe ao mesmo tempo, novos significados, ao recorrer a imaginação e a reconfiguração do passado atualizado. A isto Nietzsche chama de “força plástica”—a capacidade de transformar, incorporar e superar o passado. Nesse sentido, o equilíbrio entre memória e esquecimento é o que sustenta indivíduos, culturas e civilizações. Também Bergson (1999) reflete sobre o equilíbrio que se deve manter entre o lembrar e o esquecer, quando se refere ao humano que se mantem em estado de sonho, com os olhos voltados para o passado, recusando-se viver no presente, ou ainda, aquele que repudia a memória com tudo o que ela engendra, estaria igualmente condenado a encenar sem cessar sua existência em vez de representá-la verdadeiramente.

Dessa forma, a ação encarnada no fazer artístico que aqui é incorporada nos vídeos possibilita a reconfiguração das memórias afetivas por meio da imaginação, permitindo que o passado seja ressignificado no presente. Se, por um lado, essas imagens evocam a fragilidade da lembrança e a melancolia da perda, por outro, reafirmam a capacidade humana de reconstruir sua história a partir das lacunas deixadas pelo esquecimento. Como pontua Ricoeur (2003), a memória não é um mero registro do passado, mas um processo dinâmico que oscila entre a rememoração e a recriação.

Considerações Finais

As experiências técnicas desenvolvidas nos vídeos A Menina do Rio e Self evidenciam como o gesto artístico, aliado à materialidade dos suportes, contribui para a construção de sentidos. Por meio da manipulação da imagem, da fragmentação e da repetição, os vídeos abordam visualmente questões relacionadas ao tempo, à memória e ao esquecimento, produzindo narrativas marcadas por tensão, ausência e resiliência. A combinação das técnicas de cut-out e matriz perdida, somada a uma reflexão sobre a temporalidade, permite a emergência de uma visualidade que parte de vivências particulares para alcançar dimensões coletivas. As imagens, ao serem inscritas, cortadas e reorganizadas, deixam de operar como simples registos privados, tornando-se espaços de partilha e elaboração afetiva. Ao reinscrever feições maternas e ancestrais os trabalhos propõem uma forma de resistência poética ancorada em micropolíticas do sensível, nas quais tempo, corpo e história se entrelaçam na composição das camadas visuais e sonoras.

Este trabalho foi apoiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P. pela referência de projeto UID/04057: Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura.

Referências bibliográficas

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