Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

The relational disillusion in The Square

O desencanto relacional em The Square

Guy Amado 1

ICSEZ – UFAM – Universidade Federal do Amazonas, Brasil
VIA – Grupo de Pesquisa Visualidades Amazônicas (UFAM)
ID+ Instituto de investigação em Design, Media e Cultura
(Universidade de Aveiro / FBAUP)

Abstract

The Square (2017, Palme d’Or at Cannes), a film by Swedish director Ruben Östlund, delivers a sharp critique of the individual’s condition in today’s consumer society. Set in Sweden, the plot is structured around a sarcastic reading of the peculiarities of the contemporary art system — starting with the utopian artistic project that lends its title to the film — and what is perceived as a certain hermeticism and frivolity still prevailing in the context in which this production circulates. The movie also stretches this approach into a broader commentary on ways of life in consumer society and, ultimately, on human nature. Östlund places special focus on topics such as ethics, morality, and rationality in light of the imperatives of mass communication in today’s society, which are extensive to the “art world”—as well as its consequences. Drawing on concepts from authors in art theory and the sociology of art, such as P. Bourdieu, N. Bourriaud and J. Rancière, this paper aims to delve deeper into aspects presented anecdotally in the film, particularly the dynamics of contemporary art circulation, its codes, and its supposedly direct connections to everyday life. The analysis emphasizes a critical perspective on the supposed potential of proposals within the trend known as “Relational Art,” illustrated by the artistic installation that gives the film its title, and its potential impracticality in the face of the tension between certain premises of “political correctness” and the vicissitudes of human nature.

Keywords: Cinema, Contemporary Art, Art and society, Relational Aesthetics, Art world.

Introdução: The Square e The square

The Square é um santuário onde impera a confiança e o cuidado. Em seu interior, todos partilhamos os mesmos direitos e deveres2.
Lola Arias

A epígrafe acima é o enunciado de um projecto artístico que irá co-protagonizar o filme The Square (2017), ao qual também empresta o título. Nos termos utópicos da autora ou propositora da peça, a personagem fictícia Lola Arias, supostamente uma artista argentina, a instalação procura criar um espaço simbólico, ainda que também demarcado fisicamente, um “território neutro”, no interior do qual as pessoas assumiriam o compromisso de se despirem de seus preceitos e prioridades da vida mundana e se permitiriam uma experiência de redenção, solidariedade ou, se quisermos, da mera tomada de consciência do peso da existência em uma sociedade tão desigual. Em síntese, é uma peça que convida à instauração de uma microutopia temporária, como propunha Nicolas Bourriaud (2009)3, a ser activada espontaneamente por participantes casuais.

Trata-se de uma obra de arte que, por sua condição eminentemente participativa, e fundada em uma proposta que se efetivaria a partir das situações ou eventuais “encontros” entre indivíduos, e despida de quaisquer pretensões de formalização material – o “artístico” se realizaria na activação da proposição –, pode ser directamente associada à vertente conhecida como Estética Relacional, de grande presença nos anos 1990 e na primeira década do século 21. Ainda que não mais ostensivamente anunciada, sua influência ainda pode ser percebida em proposições artísticas da atualidade. Mas voltaremos a esta temática mais adiante, pelo que ela oferecerá de paralelos à alegoria cáustica proposta pelo realizador Ruben Östlund neste filme.

The square, a obra de arte, é uma instalação a ser montada no espaço externo em frente ao palácio que abriga o museu X-Royal, onde trabalha o protagonista, Christian, curador-geral da instituição. A peça é formada por paralelepípedos minuciosamente arranjados na calçada e emoldurados por um dispositivo luminoso, acompanhada de uma placa que traz os já citados dizeres “The Square is a sanctuary of trust and caring. Within it we all share equal rights and obligations”. O esquematismo maniqueísta do bem-intencionado enunciado parece indicativo da superficialidade pomposa que compõe a dinâmica de relações do art world.

O museu integra um conjunto arquitetônico histórico, e a montagem da obra The square envolve uma complexa operação de retirada de parte do calçamento exterior e a demolição de uma estátua barroca para viabilizar sua instalação nos termos estabelecidos pela artista – o que já consiste em um comentário sarcástico sobre os caprichos em torno de certos criadores de arte contemporânea. Em uma cena emblemática do filme, operários tentam remover a estátua, que representa um personagem histórico montado em um cavalo, em uma operação logística complicada. No meio do processo, a pesada escultura se parte, decapitando a figura e destruindo o pedestal – e toda sua inerente carga simbólica – sobre o qual ela estava. É dessa forma pouco sutil que é apresentado o contexto de instalação da peça The square4 (Figura 1), que será ali implementada; no local do pedestal retirado é demarcada e instalada a área quadrada, um espaço de 3 x 3 m delimitado por uma faixa de luz branca e uma placa assinalando sua existência e afirmando a natureza da proposta. No interior do museu, a peça é complementada por uma intervenção “interativa” na qual os visitantes, para acessarem o espaço, devem indicar, apertando um botão, se “confiam ou desconfiam” das pessoas. A opção escolhida irá determinar percursos diferentes a serem realizados pelo público.

E assim está lançada a tónica de sarcasmo e ironia que ditará o filme, em sua mirada sobre o universo da arte contemporânea e das relações sociais.

Figura 1. The Square instalada em frente ao museu X-Royal. Still de The Square (2017) ©.

Christian

The Square, o filme, se coloca desde saída como um comentário ácido à cultura capitalista e à atmosfera pretensiosa que caracteriza o mundo da arte contemporânea e acompanha a rotina de Christian – interpretado por Claes Bang –, respeitado curador-chefe do Museu Real de Estocolmo, ou X-Royal, um sujeito divorciado e de modo geral pai dedicado de duas filhas, e típico apoiador de boas causas, cuja vida entra em crise após uma série de eventos absurdos e embaraçosos. No decorrer da trama acompanhamos sua jornada descendente, enquanto ele gradualmente se afunda nas consequências de uma sucessão de más decisões.

Christian é idealista em suas palavras mas quase sempre incoerente em diversas de suas ações e atitudes, mostrando-se fraco diante das demandas e mazelas da rotina mundana, especialmente quando afastado do espaço museológico onde exerce um papel de poder. Ele se mostra intensamente tocado pelas questões sociais levantadas pela obra The square, exposta no museu que coordena, convencido de que a proposição artística é uma ideia revolucionária e de que a arte pode insuflar valores positivos e estimular novas atitudes entre as pessoas (Figura 2). Por outro lado, revela também seu pendor pela frivolidade e pelo alpinismo social, esforçando-se para desempenhar bem seu papel no alto escalão da instituição em que atua e assim buscar uma condição que permita manejar com desenvoltura as expectativas de seus empregadores, patrocinadores, visitantes e dos próprios artistas.

O protagonista no geral enfrenta questões e situações comuns a todos nós, no que tange a assumir (ou não) responsabilidades, confiar e ser digno de confiança (ou não), etc. Quando se depara com um dilema, contudo, suas ações individuais entram em conflito com os princípios morais que defende. Esse é talvez o cerne do problema filosófico apresentado em The square, ostensivamente potencializado, no filme, pela obra homónima que tanto mobiliza o curador, com sua edificante convocação a uma – utópica – mensagem de acolhimento e solidariedade generalizada. O personagem de Christian se converte em uma contradição ambulante, com o director do filme sugerindo que muitos fora da tela também o são – especialmente no meio da arte contemporânea.

Figura 2. O protagonista Christian a ensaiar discurso que fará. Still de The Square (2017) ©.

Östlund

E aqui cabe um parêntese: uma breve mirada panorâmica sobre a obra cinematográfica do realizador sueco Ruben Östlund, onde é possível entrever um assunto ou aspecto de interesse central e recorrente: a frágil camada de civilidade humana que nos separa de nossos instintos mais egoístas e animalescos. Seus filmes em geral tendem a apontar contradições da natureza humana sem moralismos fáceis. Assim é em Force majeure (Força maior, 2015), em que Östlund satiriza sombriamente a atual “cultura da eficiência”, obcecada pelo trabalho, a partir do viés da crise de identidade existencial, apresentando de forma anedótica a saga de um pai de família que, sob a ameaça de uma avalanche devastadora em um resort, busca antes de tudo salvar a si próprio, em detrimento de seus entes queridos. Já em Triangle of Sadness (2022) o mesmo aspecto ético é convocado a serviço da lógica absurda dos privilegiados, quando um naufrágio em um cruzeiro de luxo instaura um caos em que os sobreviventes são forçados a se reordenar coletiva e socialmente a partir de critérios alheios ao dinheiro. Novamente Östlund traz situações extremas para tecer comentários que ridicularizam toda uma classe social, a dita elite globalizada. O próprio cineasta atesta sua predileção por essa temática “demasiado humana”:

“Um dos maiores dilemas para mim é que, como seres humanos, estamos lidando com nossos instintos e nossas necessidades ao mesmo tempo em que nos vemos como pessoas racionais e civilizadas. O lado civilizado de nossas personalidades governa nosso self ético, a nossa tendência de demonstrar respeito e confiança aos outros. Mas quando estamos lidando com nossos instintos e somos colocados contra a parede, existe um conflito entre esses dois lados de nossas personalidades. Esse conflito está no centro de ser humano”. (https://revistacult.uol.com.br/home/the-square-ruben-ostlund/).

Tais questionamentos e inquietações são também activados de modo inegável em The Square, com ênfase no comentário ácido sobre o sistema da arte contemporânea, território bastante familiar ao cineasta. Afinal, o filme tem suas origens em um projecto artístico real realizado pelo próprio Östlund em 2014 em parceria com o produtor Kalle Boman, para um museu de design na Suécia. A proposta era surpreendentemente semelhante à obra de arte que dá título ao filme (Figura 3), consistindo em um quadrado desenhado no chão no centro da cidade; e qualquer pessoa que nele entrasse se comprometeria a tratar os outros da mesma forma.5

Figura 3. Divulgação do projecto artístico original de Östlund e Boman, 2015. ® CoProduction Office, Denmark, 2017.

Ironias com o Artworld

The Square, o filme, escancara as contradições e hipocrisias do mundo da arte contemporânea a partir de um olhar afiado e satírico. Östlund utiliza o ambiente artístico como um microcosmo para expor a desconexão entre o aspecto elitista do artworld e o grande público, bem como a vacuidade de certos discursos curatoriais. E aqui cabe mesmo ressaltar a dimensão orgânica que o mundo da arte assume como veículo para as diatribes do diretor, o que aliás torna este filme tão peculiar. Afinal, trata-se de um meio pouco afeito a assumir protagonismo no universo cinematográfico, até por seus modos e códigos específicos. No máximo vemos remissões superficiais a este sistema em um ou outro filme, mas sempre como breves ambientações ou pontuando certos clichês ou esquematismos; mas em The Square, no entanto, a trama se desenvolve a partir desta referência, o que pode ser verificado em diversos momentos, como se verá. Foi esta característica singular que gerou a principal inquietação para este artigo: a possibilidade de a arte contemporânea emergir como assunto central para o cinema, ainda que o escopo do filme se estenda para questões mais densas e específicas a partir deste mote.

Isto se deve em grande medida às idiossincrasias pessoais do realizador, um obcecado com as vicissitudes do “estranho mundo da arte contemporânea”. O filme se esforça para acertar no tom e nuances que caracterizam este universo, absorvendo maneirismos típicos daquele habitat. A este respeito, Östlund afirma:

The art world is a hard arena to satirize. It’s like a satire from the beginning in many ways. I only could take in things that have actually happened, like when they’ve cleaned up art pieces by accident. So it’s a naturalistic approach to the art world. (Bouchet, 2017)

A declaração é reveladora do tom que perpassa quase todo o filme. Cenas, situações e vários personagens são inspirados, de modo tão directo quanto caricato, em referências reais do mundo da arte, gerando momentos divertidamente embaraçosos que rendem a textura mais substancial de The Square, pelo que passo a analisar alguns em seguida.

A entrevista

Logo no início do filme, o curador-geral Christian é entrevistado por uma jornalista norte-americana, Anne (Elizabeth Moss) e fala da dificuldade em competir com colecionadores particulares, que “gastam mais em uma tarde do que eles em um ano inteiro”. Defende, entusiasmado, a importância de tornar a arte contemporânea acessível a todos, e em seguida Anne pede, frisando evidentemente não ser tão erudita quanto ele, que Christian lhe explique melhor um texto repleto de jargões herméticos (uma passagem sobre a produção de Robert Smithson6 publicada por ele mesmo no site do museu). A princípio, nem o próprio curador parece ser capaz de traduzir o conteúdo cifrado daquelas linhas, terminando por dar a volta à questão e rebatendo sua interlocutora com uma indagação ontológica e um clichê já bastante gasto sobre a questão da legitimação da arte: “if you place an object in a museum... would that make it art?”, confundindo deliberadamente a repórter, que contorce o rosto como se diante de uma revelação profunda, embora claramente não tenha compreendido a resposta. A dimensão provocativa está sinalizada já de saída, no evidente paradoxo em se buscar tornar a arte mais acessível enquanto ao mesmo tempo sugere-se que a mesma está balizada em códigos e discursos indecifráveis, até para supostos especialistas. Ainda que de modo algo caricato, Östlund traduz em boa medida a dinâmica de contato generalizado com a produção de arte contemporânea. O que nos faz pensar no próprio “quadrado” que dá nome ao filme — a já referida instalação que simboliza um “espaço de confiança e cuidado” onde todos são iguais — e em como ele é ironicamente inócuo. Ninguém no filme parece realmente compreendê-lo ou levá-lo a sério, tornando-o uma metáfora perfeita para a arte que se propõe a ser socialmente engajada, mas acaba como mero adorno no circuito dos privilegiados.

Mais adiante, em outro diálogo com os mesmos personagens, em que a jornalista confronta Christian, o aspecto cómico é intensificado por uma escultura volátil (Figura 4) - uma pilha de cadeiras que esporadicamente vibra e emite sons altos - que interfere de forma hilária e inconveniente no diálogo.

Figura 4. Still de The Square (2017) ©.

A faxina

Em outra cena temos outro episódio bastante representativo das idiossincrasias do meio artístico; neste caso, a dinâmica institucional de conservação de arte contemporânea frente aos imperativos de mercado (valores de obras e de seguro) e as peculiares formalizações de linguagens artísticas da atualidade. Uma das exposições em cartaz no X-Royal é Mirrors & piles of gravel, que consiste exatamente em uma instalação composta de espelhos e pilhas de cascalho, que ocupa uma das salas do lugar7. E eis que, em um momento de manutenção rotineira, assistimos a um funcionário da limpeza tentando fazer seu serviço no espaço da mostra e tendo dificuldade em trafegar em seu aspirador do tipo zamboni (um carrinho) em torno dos montes de pedregulho. Logo fica claro que ele aspirou acidentalmente uma quantidade considerável da peça (Figura 5). Membros do staff da curadoria se dão conta da situação e ficam em pânico com o facto, já que uma obra havia sido “adulterada”, até que Christian sugere de modo singelo que eles simplesmente procurem mais cascalho e despejem secretamente nas pilhas, “corrigindo” o prejuízo acidental. A cena é um comentário ou provocação divertido à clássica questão do valor e do estatuto da obra de arte contemporânea (e a dinâmica institucional que a legitima) e do seu caráter de exclusividade, e evoca episódios reais recentes em torno de outras obras e instalações de arte como Where shall we go dancing tonight? (2015), do duo de artistas Goldschmied & Chiari8, e o caso da mostra de Damien Hirst em que o residual de uma festa (pilhas de cinzeiros cheios, xícaras de café pela metade, garrafas de cerveja vazias, guardanapos usados e jornais amassados) se converte em uma instalação em uma galeria, apenas para ser devidamente removida pela equipe de limpeza do estabelecimento na manhã seguinte.

Figura 5. Equipa de limpeza. Still de The Square (2017) ©.

A conferência

Outra cena emblemática do olhar crítico do realizador é a da situação típica de uma conferência no museu em que um artista famoso, Julian (Dominic West), descreve sua obra num jargão pretensioso e vazio, enquanto o público assiste em atitude reverente, mesmo sem captar a maior parte do que é dito. A sequência é uma crítica mordaz à forma como a arte contemporânea muitas vezes se esconde atrás de um verniz intelectual inacessível, mais preocupada com a autojustificação do que com a comunicação ou a reflexão genuína. A dada altura, o artista, trajando algo como um pijama e um paletó9 é ostensivamente questionado por alguém na plateia, com obscenidades rosnadas que interrompem o fluxo de declarações pretensiosas do convidado. Ao se localizar a pessoa com o comportamento disruptivo, percebe-se que é – ou parece ser – um portador da síndrome de Tourette, condição que uma vez constatada dá início a um acalorado debate moral na plateia do evento. Ao longo da querela, a posição que defende o direito da maioria não ser perturbada prevalece sobre o direito do indivíduo se manifestar, mesmo em sua condição sui generis: mais uma breve ilustração do “comportamento de manada” atuando na adoção de posicionamentos morais questionáveis. O “politicamente correto” capitula frente ao imperativo do status quo, um ambiente em que este é reiterado a todo tempo.

O homem-macaco

Mas o momento mais marcante em The Square, um clímax desestabilizador, é sem dúvida o da chamada performance do “homem-macaco”, e que exige um comentário mais pormenorizado. Ao longo do filme, vemos fragmentos de uma peça de videoarte projetada em salas do museu, em que há um homem musculoso em trajes sumários encarando o público, grunhindo e imitando os modos de um símio de grande porte. O “homem-macaco” em questão é um artista performático, Oleg Rogojzin – interpretado com excelência pelo ator, dublê e coreógrafo Terry Notary10 –, que a dada altura apresenta uma performance em um jantar de gala no museu de Christian, para convidados da elite local e potenciais doadores da instituição. O contexto determina em muito a potência da cena: a apresentação decorre durante um evento exclusivo, com o salão repleto de mecenas endinheirados e a fina flor da sociedade, em mesas elegantemente decoradas. Tudo tresanda a sofisticação e civilidade, até que o “homem-macaco” adentra o salão: dali em diante, numa espiral ascendente de um mal-estar, o personagem interfere de modo decisivo na ordem vigente. Se inicialmente sua presença é saudada no registro de certo “exotismo” divertido que entretém, arrancando risinhos e aplausos fora de hora, à medida em que o artista radicaliza sua ação performática, contudo, intensificando o registro do “animal selvagem”, instala-se o desconforto e o terror generalizado no elegante convescote. A situação oscila para um silêncio gradualmente constrangedor e temeroso da parte do público, frente a atitude cada vez mais hostil e intimidadora do personagem simiesco. O performer vai aos poucos evidenciando que a habitual “zona de conforto” do público pode ser abalada, pela maneira como vai liberando os modos animalescos de seu personagem, presumivelmente um gorila.

A cena inicia com um aviso em áudio primoroso, que visa “ambientar” os presentes, situá-los em relação ao que irá transcorrer:

Welcome to the jungle. Soon you will be confronted by a wild animal (o performer). As you all know, the hunting instinct is triggered by weakness. If you show fear, the animal sense it. If you try to escape, the animal will hunt you down. But if you remain perfectly still, the animal might not notice you, and you can hide in the herd, safe in the knowledge that someone else will be the prey.(The square, 2017, min.105-107)11

Ou seja, diante da iminente ameaça, mantenha-se quieto (omisso?) e torça para o predador atacar seu próximo. Como se percebe sem dificuldade, a título de instruir ou prevenir a audiência das peculiaridades daquela ação artística, o comunicado investe a metáfora da dinâmica de sobrevivência na natureza selvagem de uma qualidade extensiva a certos modos da própria sociedade dita civilizada, em que o contrato social frequentemente é rompido ao sabor de interesses e conveniências pessoais. Essa máxima transmuta-se também em uma espécie de leitmotiv da própria narrativa do filme, uma vez que o comportamento e atitudes humanas se apresentam como assunto central.

Figura 6. A performance do “homem-macaco”. Still de The Square (2017) ©.

No decorrer da cena, a criatura bestializada perambula aqui e ali, como se reconhecendo o terreno (Figura 6); e, diante de tantos convidados, é exatamente sobre o artista estrangeiro (que tem uma exposição em cartaz no museu) que se detém, e passa a admoestá-lo. Não há como não perceber um paralelo entre o instinto de rivalidade entre machos-alfa e a inerente necessidade de afirmação de sua condição de superioridade, que o performer opera em código gutural, hostilizando o convidado – justo um artista! – até que este se retire, constrangido e contrariado. Neste ponto Oleg também instaura um novo patamar para sua ação, quando ignora, em brados selvagens, uma tentativa do curador de encerrar a performance naquele momento. Dali em diante, a audiência percebe que a “fera” simiesca não está mais sobre controle – se é que chegou a estar – e instala-se definitivamente um clima de tensão que converge para um encerramento drástico e algo apoteótico da performance.

O desfecho trágico, com uma súbita investida (também animalesca) de homens do distinto público sobre Oleg, cujo “macaco” assediava uma jovem, aponta para as tênues instâncias que podem fazer cair a máscara civilizatória, a partir de uma situação-limite. Aqui o diretor explora os limites da arte – e da civilidade –, particularmente no momento em que a performance cruza a linha da “grande arte oficial” e descamba para a pura bestialidade – manifesta não mais pelo performer, no caso, que se torna vítima. Aqui, Östlund satiriza a submissão da elite cultural a experiências chocantes em nome da sofisticação, questionando até que ponto a arte realmente provoca pensamento ou apenas reproduz um ritual de status. A cena já tornou-se um clássico no cinema recente, e teria sido inspirada em obra de um artista de performance russo, Oleg Kulik12.

A dimensão Relacional

A descrição desta última cena permite introduzir um conceito operacional que norteia este texto, nas articulações que propõe entre o cinema, a arte contemporânea e a vida em sociedade, elementos destacados em The Square: a ideia de participação do público e o envolvimento decisivo do “outro”, tão evocados e convocados em práticas artísticas – e não apenas as performativas – contemporâneas. Falamos da dimensão participativa e “de partilha de experiências” que caracteriza a vertente artística conhecida como Estética Relacional, que será melhor analisada mais adiante e emerge aqui em sua forma mais dantesca – e ainda assim, incomodamente muito humana. Em registo alegórico, Östlund contrapõe na cena do performer “simiesco” os instintos animais às convenções sociais, enfatizando as maneiras pelas quais certos códigos sociais podem ser trespassados, mesmo que flertando com a barbárie.

Pode-se ler esse episódio do filme como uma forma de o cineasta acentuar a hipocrisia que dá a tónica nas convenções comportamentais vigentes especialmente neste meio, o da arte contemporânea, em que a frivolidade e certa sofisticação blasé devem andar em par com a disponibilidade para uma sociabilidade calculada, de modo a reafirmar sua condição de “igual” numa situação típica como a de um vernissage, por exemplo.13 E aqui é possível evocar de passagem o pensamento de Pierre Bourdieu, na medida em que se interessava pela análise da estrutura de posições objectivas e relações invisíveis de poder que vinculam os agentes sociais (sujeitos); especialmente a partir dos conhecidos conceitos de habitus e espaço social por ele tratados. Em seu Razões práticas: sobre a teoria da ação (1996), o autor aborda as instâncias afirmadoras da função simbólica da legitimação, tão cara ao meio aqui enfocado, o artworld, e que Bourdieu associa a uma dinâmica de permanente conflito (apud Silveira, 2015, p.127).

Incorporar, como faz Bourdieu, o conceito de habitus como fonte de auxílio para se pensar a mediação entre condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade ou comportamento dos indivíduos permite conexões directas com aspectos do filme de Östlund. Bourdieu assinala que “uma das funções na noção de habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes” (1996, p. 21), característica que, associada àquele entendimento do habitus, percebemos aflorar neste último episódio (e em outras cenas descritas), culminando na catarse brutal que encerra o mesmo.

A partir de um entendimento – enviesado, é verdade – do “campo artístico” de Bourdieu14 como uma arena que encerra a si mesma, e que “age como um prisma que filtra e refracta forças externas, de acordo com sua própria lógica e estrutura” (Wacquant, 2005, 119) é possível perceber os mecanismos de impermeabilidade a fatores e critérios de avaliação externa que o sistema da arte contemporânea gera, e que são também largamente abordados na película.

Mas a dimensão relacional tal como é apresentada no filme diz respeito diretamente à já referida vertente artística, muito influente, capitaneada pelo crítico de arte e curador francês Nicolas Bourriaud na década de 1990. Foi este teórico da arte que concebeu a plataforma estético-teórica que resume muito do que seriam as tendências artísticas de renovada abordagem do social pela arte à época, convergindo na chamada Estética Relacional. No livro homônimo que lança as bases da ER15 (Bourriaud, 2009), o autor assim define essa movimentação: “um conjunto de práticas artísticas que tomam como ponto de partida prático e teórico a totalidade das relações humanas e seu contexto social”, afirmando se tratar de “uma arte humana e democrática”, onde os artistas “preenchem as fissuras no elo social”16. As relações sociais são então encaradas quase que como uma linguagem ou dispositivo artístico em si; um meio, antes que um fim.

Trabalhos da ER ofereceriam então não “prescrições teóricas”, mas pequenas e momentâneas “utopias práticas” (Figura 7) por meio das quais as pessoas poderiam aprender a viver melhor. O raciocínio implícito por trás destas práticas ditas relacionais é o de que a obra de arte é uma “forma social” derivada e impulsionadora de relações humanas (Bourriaud, 2009, 58) – aqui quase sempre pensada em chave aberta, em vetor positivo e harmonioso – nos grupos (artistas + público/comunidade) que deflagram tais propostas artísticas.17

Figura 7. O artista Rirkrit Tiravanija e sua famosa proposta relacional de oferecer refeições como espaços de partilha e de “construção de vivências”. ©.David Zwirner Gallery

Ora, a partir desta definição da plataforma estética, não seria exactamente isso que o projecto artístico The square personifica, no filme? Não são precisamente estes os valores e abordagens ali aventados, seja na forma como nos enunciados e premissas “transformadoras”? Pode-se mesmo dizer que o filme é em certa medida praticamente a transposição visual em registro irónico-alegórico de aspectos estruturais da ER. A abordagem paródica do artworld adoptada pelo realizador fica mais e mais explícita.

Falência de um modelo social

Mas para além da sátira ao mundo artístico, The Square também funciona como uma reflexão ácida sobre a sociedade contemporânea, especialmente no que diz respeito à ética, ao individualismo e à ilusão de solidariedade. O projeto The square no filme propõe um espaço utópico de igualdade e confiança mútua, mas a narrativa mostra o quanto essa ideia é incompatível com a realidade social. A começar pelo protagonista Christian, que era suposto ser o bastião desse ideal, mas que age de maneira completamente oposta: ele se mostra egoísta, covarde (ou ao menos omisso em vários momentos) e hipócrita (no âmbito de relações pessoais e profissionais e em suas atitudes em geral).

Uma passagem emblemática dessa perspectiva desalentadora no filme se traduz no episódio do polémico vídeo institucional. Visando incrementar suas estratégias de marketing, o museu X-Royal contrata dois jovens consultores de mídia arrogantes e inexperientes para ajudar a instituição a impulsionar sua visibilidade na internet. Em uma reunião do conselho marcada por um tom francamente fútil, os supostos especialistas lançam a ideia de criar um vídeo viral no YouTube para chamar atenção para a próxima exposição, justamente em torno do projeto The Square. Após uma sucessão de mal-entendidos e hiatos comunicativos, e sem que se acompanhasse de perto a concepção e execução do vídeo, quando pronto este acaba se mostrando escandalosamente ofensivo18 e de facto cumpre sua missão de “chamar a atenção” para o museu, só que não exactamente do modo que se esperava (Figura 8). A reação pública à campanha — indignação seletiva e calculada — também reflete a superficialidade do activismo contemporâneo, mais interessado em likes do que em mudança efetiva.

Figura 8. A infeliz campanha de marketing promocional para o projecto The Square. Still de The Square (2017) ©.

A polêmica gerada leva o curador a ter que responder publicamente pelo museu, o que gera novas situações-pretexto para o realizador abordar a hipocrisia que rege a lógica institucional. O incidente é um exemplo perfeito das complicações advindas da necessidade compulsiva e dos imperativos de visibilidade da comunicação social que ditam a tónica de funcionamento de tantas instituições e modos de ser no atual modelo de sociedade. A propósito deste episódio, cabe retomar palavras do próprio Ruben Östlund:

“Confiar na sociedade é um valor fundamental na Suécia para sustentar nossa forma de vida. Hoje, em toda a Europa, estamos exagerando os medos em relação ao estrangeiro, ao outro, que não são reais e nos levam à paranoia. Muitos meios de comunicação e partidos políticos buscam o sensacionalismo ou criam um conflito para chamar a atenção.” (Belinchón, 2018)

Essa e diversas outras situações ao longo da narrativa – como uma cena em que um menino imigrante maltrapilho é tratado com hostilidade por funcionários do museu – sugerem que a “zona de confiança” evocada pelo projecto The square é uma abstração, uma mera fantasia utópica, já que a sociedade real e concreta é marcada pela desigualdade econômica, pela insegurança e pelo medo do “outro”. Esta impressão é reforçada pela ênfase em se demonstrar ao longo da narrativa a incapacidade do personagem Christian, o curador, em pôr em prática os valores preconizados pela proposta artística “redentora” que ele defende em âmbito institucional. Mas por outro lado Östlund parece nos incitar a relativizar suas fraquezas, como se os falhanços de Christian ecoassem nossas próprias deficiências enquanto modelo social falido na promoção da igualdade, solidariedade e justiça.

Arte, mundo, vida – e eficácia?

A narrativa do filme praticamente se estrutura a partir de sketches como os apresentados, que acabam por funcionar como contrapontos irônicos e brutais ao enunciado da obra The square, comentando de forma contundente a falência de um modelo social e o inerente conflito de classes, e a frequência com que estes tópicos tem sido evocados em projetos artísticos “relacionais” – aí sugerindo também a falta de efetividade ou de eficácia por trás destas nobres iniciativas.

Esta é aliás uma das ressalvas que se levanta em torno da já apresentada ER: o debate sobre uma possível eficácia (ou não), a partir do que é genericamente referido como “forma aberta” de suas propostas, com os trabalhos de arte se anunciando como “em aberto” indefinidamente.19 Essa característica, presente em tantas proposições fundadas em estratégias relacionais, gera uma dinâmica de certo modo confortável: afinal, uma vez que a ideia de resultado final é sempre mantida em suspenso, não se pode cobrá-los em termos objectivos acerca de seu pretenso “funcionamento” ou, se quisermos, de sua eficácia, da efetividade de seus postulados quando levados a cabo. Assumem-se apenas como exercícios de “construção coletiva de significados” a partir de processos de convívio “que permitam a reinvenção do cotidiano” em “encontros intersubjetivos” em que “experiências partilhadas” multiplicam “as possibilidades de fazer” e congêneres20, aspectos da ER argutamente questionados por Claire Bishop em seu artigo seminal Antagonism and relational aesthetics (2004). Para a teórica e crítica de arte canadiana, as utopias bem-intencionadas de Bourriaud “apoiam-se confortavelmente num ideal de subjetividades como um todo e de comunidade como um ‘estar junto’ imanente” (Bishop 2011, 9), apontando a lacuna de uma espécie de pulsão de atrito ou de conflito que considera essencial na composição da democracia e das relações sociais como um todo, e que Bishop chamará de antagonismo.

Outro pensador contemporâneo que poderia ser convocado para este debate é Jacques Rancière, que se debruçou sobre a questão da eficácia na arte em seu Espectador emancipado (2010), ainda que de uma perspectiva diversa. Neste livro, o autor retoma o tema da arte e política para analisar o papel da recepção da arte e o estatuto do público espectador nos tempos que correm. Rancière traz a noção de eficácia à tona quando analisa uma parcela da produção artística genericamente designada sob o mote da “arte política” — ou arte social, ou arte engajada, etc. —, que no mais das vezes é passível de inclusão no rol das prácticas em ER, propostas que se assumem quase como uma “prestação de serviços”, e portanto supõem o alcance de objetivos ou o cumprimento de metas.

Para Rancière, tais proposições se aproximam de uma ideia de eficácia quando vistas como “saídas exemplares da arte para fora de si mesma” (2010, 72). Ou seja, quando em última análise deixam de ser arte para se afirmarem puramente como o que enunciam e almejam: acções ou proposições que se pretendem em alguma medida transformadoras do contexto social onde operam, e em que muitas vezes o aspecto ético se sobrepõe fortemente ao estético. Para tal, frequentemente adoptam procedimentos que as distanciam das demandas de uma experiência estética no plano visual — por exemplo, abdicando da representação e prescindindo da materialização de objectos artísticos, apostando antes no factor sensibilizador que convoca a adesão do público à causa em jogo.

O conteúdo destas duas últimas sentenças não soou familiar? Qualquer semelhança com o projecto artístico The square poderá não ser mera coincidência...

Conclusão

The Square, o filme, é uma obra multifacetada que usa o humor negro e o desconforto para comentar de modo ácido tanto o meio da arte contemporânea quanto as estructuras sociais. A partir de situações um tanto absurdas e personagens falhos ambientados no mundo arte contemporânea, Ruben Östlund demonstra que, por trás de discursos de solidariedade e empatia, esconde-se uma realidade marcada pelo egoísmo, hipocrisia, desigualdade e incomunicabilidade. The Square aborda questões espinhosas, como o senso de responsabilidade individual, o comportamento social e as noções de inclusão e pertencimento, expondo os limites que determinam quem estaria “mais apto” a integrar a sociedade civil, e como a afirmação social econômica segue sendo um determinante nessa dinâmica. O filme explora como os limites do que é considerado apropriado segundo o contrato social podem ou são ser violados em situações específicas, questionando, a partir de códigos do sistema da arte contemporânea, o significado de “civilidade” tanto no sentido social como político, convidando a uma reflexão sobre a ideia de existência comunitária. Um filme que claramente se coloca contra a “ditadura do politicamente correcto”, lançando um olhar crítico sobre práticas (e teorias) de arte contemporânea que, por sua vez, transbordam em um comentário ácido generalizado sobre a natureza humana e indícios de falência moral das sociedades modernas ocidentais.

De uma forma divertidamente perturbadora, o filme de Östlund questiona nossa compreensão de tópicos “demasiado humanos” como honestidade, empatia, confiança e senso de vida comunitário. Seja partindo de uma discussão bizarra sobre o que fazer com um preservativo usado, ou de um plano criativamente desastroso para recuperar um telemóvel roubado ou de uma concepção tétrica de “marketing institucional”, ou ainda dos desdobramentos dramáticos de uma performance artística animalesca, são muitos os momentos no filme que sugerem que nossas noções de integridade e senso de comunidade podem ser muito mais frágeis do que pensamos. E como a arte contemporânea lida com isto. A própria obra The square no filme pode ser vista menos como um projecto artístico do que um espelho de nossas próprias contradições — como um lembrete de que, enquanto o “espaço de confiança” permanecer uma abstração, continuaremos potencialmente a falhar uns com os outros (Figura 9).
Por outro lado...que diabos pode significar exactamente “um santuário de confiança e cuidado” nestes tempos confusos em que vivemos?

Figura 9. Stills de The Square (2017) ©.

Notas finais

1Cidadão brasileiro e português. Crítico de arte e professor Adjunto de Teoria da Arte na Universidade Federal do Amazonas – UFAM, curso Artes Visuais, Parintins, AM, Brasil. guyamado@ufam.edu.br

2Tradução livre de “The Square is a sanctuary of trust and caring. Within it we all share equal rights and obligations”, conforme consta na versão oficial em português.

3Conforme terminologia adotada por Bourriaud, pensador que irá formular as bases teóricas da Estética Relacional.

4O título original da peça explora semanticamente o duplo sentido do termo square em inglês, que pode designar tanto a figura do quadrado como o espaço da praça.

5Informações detalhadas sobre a origem do projecto artístico em The Square: Ruben Ostlund on directing and writing the Palme d’Or film – The Upcoming e The Dream of a Common Project: An Interview with Ruben Östlund on The Square — Cineaste Magazine

6Artista conceptual estadunidense (EUA, 1938-73) associado à vertente da Land Art.

7Numa clara referência a peças do seminal artista conceptual Robert Smithson (EUA, 1938-73).

8Dove andiamo a ballare questa sera? no original, uma instalação composta por 300 garrafas de champanhe vazias e diversos elementos que encenavam o residual de uma grande festa, e que foi “limpada” por funcionários da galeria que muito naturalmente confundiram aquilo com “sobras reais” de um evento no local. Para maiores detalhes, veja-se https://collectibledry.com/art-design/where-shall-we-go-dancing-tonight-goldschmiedchiari-installation/, https://www.vice.com/en/article/8qkvab/a-janitor-threw-away-a-boozy-art-exhibit-thinking-it-was-trash e https://www.bbc.com/news/world-europe-34648339.

9Alusão sutil ao notório apreciador de trajes de dormir no mundo da arte, o célebre pintor e realizador nova-iorquino Julian Schnabel. Detalhes que explicitam o grau de imersão e interesse do realizador no mundo da arte contemporânea.

10Notary já havia trabalhado em Planet of Apes e Avatar.

11“Bem-vindos à selva. Logo você será confrontado/a com um animal selvagem (o performer). Como todos sabem, o instinto de caça é desencadeado pela percepção de fraqueza. Se você demonstrar medo, o animal irá sentir isso. Se você tentar escapar, o animal irá te caçar. Mas se você permanecer perfeitamente imóvel, o animal pode não notar sua presença, e você poderá se esconder no rebanho, torcendo para que a presa seja outra pessoa”. Tradução livre do autor.

12Tendo a seu lado uma placa com os dizeres “cuidado com o cão”, Kulik apresentou-se como um “animal bravo” em um museu sueco em 1996; o artista acabou de fato mordendo algumas pessoas que se aproximaram demais, incluindo a filha do curador-chefe. O caso foi parar na polícia. Mais detalhes disponíveis no site do artista: www.artriot.art.

13Pensa-se aqui sobretudo em práticas comportamentais observadas e mesmo vivenciadas extensivamente pelo autor, no decorrer de quase 20 anos atuando no meio da arte contemporânea (maioritariamente em São Paulo).

14E aqui cabe ressaltar que a noção de “campo artístico” pensada por Bourdieu difere radicalmente do artworld ou “mundo da arte” popularizado por Arthur Danto em sua interpretação da dinâmica de funcionamento e (auto)legitimação do sistema da arte contemporânea, na esteira da teoria institucional da arte de George Dickie.

15Esta abreviação substituirá doravante a expressão “Estética Relacional”.

16Bourriaud usa o termo interstício social para referir a condição ou o estatuto da obra de arte na contemporaneidade, mais especificamente seu lugar no sistema econômico vigente. Ele pensa o interstício como definindo um espaço na organização social que permite ou sugere possibilidades de intercâmbios para além das já estabelecidas pelo sistema em questão.

17Na práctica, a ER não é\foi uma corrente artística identificável por características visuais ou estilísticas. Os artistas podem ter trabalhos bastante distintos entre si mas convergir em certas abordagens, “atitudes” ou afinidades conceptuais.

18O vídeo, aberrantemente apelativo, mostra uma linda menina loura e maltrapilha de 5 ou 6 anos, numa caricatura de “criança homeless”, literalmente sendo explodida no interior da obra The square. A linha conceptual adotada era “veja o que pode acontecer se você não demonstrar empatia pelo outro”, supostamente em conexão com a proposta artística.

19Um exemplo arquetípico das práticas relacionais é a obra de Rirkrit Tiravanija, artista argentino-tailandês que se notabilizou por “criar situações” como oferecer refeições enquanto propostas artísticas (no interior de uma galeria ou museu) e se tornou um ícone desta vertente. A ideia é gerar “espaços de troca/partilha” comunal a partir do evento social gerado pelo ato e “trabalhar o encontro e a convivência como matéria-prima”.

20Os trechos entre aspas são clichês frequentemente presentes no vocabulário da chamada Estética Relacional. Ao invocá-los num mesmo parágrafo, a ideia era externar o grau de vagueza e intangibilidade contidos nestes enunciados.

Bbibliografia:

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Tese/Dissertação

Silveira, Luís Gustavo. 2015. Bourdieu e o papel da legitimação social do discurso filosófico sobre a obra de arte. Tese de Doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Filmografia:

The Square (2017). Ruben Östlund. Dinamarca / França / Suécia. 142 min. Cor.

Produção: Suécia: Plattform Produktion AB, Essential Films. / Arte France Cinéma / Coproduction Office