Abstract
Ghost Portraits (2023), directed by Kleber Mendonça Filho, offers a deeply personal lens through which to view the city of Recife, drawing on the filmmaker’s own memories of his home, neighborhood, and formative cinematic experiences. These autobiographical elements serve as a point of departure for exploring the intersection between the transformation of Recife’s historic city center and the decline of its once-vibrant cinema culture. The film weaves together multiple layers of perception – archival footage, images filmed by the director since his youth, fictional sequences from his own work and that of others – intertwined with broader historical and social reflections on the city. By alternating documentary and fictional images from different periods, the film encourages the viewer to have a reflective and multifaceted approach to its subject. This stands in contrast to the journalistic representations that often promote hegemonic urban imaginaries.
This article explores the role of memory in the film, analyzing how cinematographic language and autobiographical storytelling engage with Recife’s socio-cultural evolution. Central questions include: How have the cycles of appreciation and neglect of downtown Recife both reflected and influenced the fate of local cinemas? In what ways have real estate speculation and cultural change contributed to cinema’s marginalization in the urban fabric? And how does the film’s use of cinematic memory enable a re-reading of the historical and spatial transformations of the city? Ultimately, what does the director reveal about what once was visible in the city’s center but has since become spectral – a ghost portrait of old Recife?
Keywords: Brazilian cinema; public urban spaces; docu-drama; dream-reality.
Introdução
Considerada no Brasil, como a “Veneza brasileira”, localizada na região nordeste, capital do estado de Pernambuco, Recife é uma cidade praiana, recortada pelo rio Capibaribe, que nasce no sertão pernambucano e percorre um longo caminho até desembocar no mar. Há uma forte relação geográfica e cultural entre esses elementos naturais e a construção física e social da ocupação urbana recifense, marcada por contínuas enchentes, secas, canais que recortam seus bairros, problemas de esgoto, o mangue e os odores que deles resultam. Recife tem memórias visuais, sonoras e olfativas que se fixam em seus moradores e naquelas pessoas que a visitam.
O centro da cidade, outrora fulcro da vida política, econômica e cultural da capital pernambucana, passou nas últimas décadas por um processo de declínio multifacetado, marcado por esvaziamento populacional, deterioração física do espaço construído e reconfiguração das centralidades urbanas. Este fenômeno, embora não exclusivo de Recife, adquire contornos específicos devido à interação entre fatores históricos, econômicos, urbanísticos e políticos.
Um dos principais motores do declínio foi a desconcentração das atividades econômicas e administrativas que antes se localizavam nos bairros do Recife Antigo e de Santo Antônio. A partir da década de 1970, impulsionado pela ampliação da malha viária e pelo crescimento da frota automobilística, observou-se um processo de suburbanização e descentralização dos serviços, com a migração de atividades comerciais, empresariais e residenciais para áreas como Boa Viagem, Casa Forte e, mais recentemente, para polos emergentes como o bairro do Pina e a região de Suape (Lacerda et al. 2018).
Paralelamente, políticas públicas de planejamento urbano nas décadas de 1980 e 1990 falharam em promover uma revalorização efetiva do centro histórico, muitas vezes adotando estratégias fragmentadas ou voltadas predominantemente para a patrimonialização turística, em detrimento das necessidades cotidianas de habitação, mobilidade e segurança da população local (Abascal e Bilbao 2024). Isso contribuiu para um processo de gentrificação, onde projetos de requalificação — como o Porto Digital — criaram enclaves modernizados sem integrar de forma sistêmica a população residente ou circulante (Lacerda e Fernandes. 2015; Simas, Oliveira, e Carvalho 2021).
Outro fator relevante é a mudança nas dinâmicas habitacionais. O centro do Recife, densamente povoado até meados do século XX, sofreu um êxodo residencial motivado tanto pela deterioração do parque habitacional quanto pela crescente percepção de insegurança e obsolescência urbana (Gomes de Lima et al.). A falta de incentivos à moradia popular no centro, reforçou a descontinuidade do uso misto do solo, enfraquecendo o tecido urbano que sustentava uma vida cotidiana ativa.
Por fim, aspectos estruturais da economia urbana também desempenharam papel fundamental. A terceirização da economia recifense, acompanhada pela informalidade crescente no comércio, gerou uma ocupação precária do espaço central, com impacto direto na imagem pública do centro como espaço “degradado” (Amorim 2019). Esta estigmatização afasta investimentos e moradores, criando um ciclo de retroalimentação do declínio.
O filme “Retratos Fantasmas”, do diretor Kleber Mendonça Filho, convida-nos a enxergar Recife, como resultado desses usos espaciais que dialogam de maneira dialética com a história, dividindo a obra cinematográfica em três partes bem definidas. Na primeira, narra-se a cidade a partir de lembranças pessoais que misturam espacial e temporalmente sua casa, o bairro e as experiências imagéticas (fotos e filmes) que desenvolveu nesses locais desde sua infância. A segunda, foca na relação entre a transformação do espaço urbano do centro antigo e a decadência gradual de suas salas de cinema até seu fechamento. Na terceira, mostra o processo de transformação dessas salas de cinemas em igrejas evangélicas neopentecostais. Em todas as partes, dialógicas entre si, busca realçar como a memória se ressignifica, revelada por imagens que mostram a articulação entre trajetórias pessoais, da cidade e do país.
Vida pessoal e a presença do cinema
As partes que o cineasta busca dialogar: trajetória pessoal-relação com o cinema, estão separadas no filme por subtítulos: “O apartamento de Setúbal”, “Os cinemas do centro de Recife” e “Igrejas e espíritos santos”. Essas dimensões espaciais interligam imagens da casa, do bairro e do centro da cidade, revelando um processo similar ao de sua memória. Ele seleciona e relaciona informações do passado para construir uma narrativa com sentido pessoal e social para seu presente. Nesta construção, o filme contribui tanto para a compreensão das mudanças urbanas, sociais e culturais na cidade do Recife, como também dos grandes centros urbanos. Suas memórias dialogam inclusive, com olhares de outros cineastas, cujos trechos de cenas de suas obras são exibidos no filme.
A partir do levantamento de aspectos e imagens de arquivo sobre a vida na sua casa, no seu bairro e do centro antigo do Recife, nota-se a reflexão de como o cinema colaborou para um uso público que efetivava uma maior apropriação do centro da cidade como lugar de vida social, e não apenas de consumo — aspecto acentuado contemporaneamente pela especulação imobiliária e por mudanças de hábitos culturais audiovisuais (TV e videocassete), que relegaram as salas de cinema a um segundo plano no espaço urbano. Essas, tornaram-se assim, concreta, metaforicamente lugares apagados, verdadeiros fantasmas.
Partindo do princípio de que o filme resgata a memória da cidade como espaço de convívio a partir do olhar cinematográfico do diretor Kleber Mendonça Filho, nossa análise será centrada nos elementos do filme que permitam compreender essa visão. Para isso, dividiremos a análise em três partes.
(i) A relação casa-bairro, tendo como base a casa como um espaço de convivência e resistência, estimulado pela própria mãe historiadora do diretor. Ali se demonstra como o ambiente físico e artístico colaborou para um olhar imaginativo do filho. Vemos também a transformação do bairro (aspecto das ruas, tipologias arquitetônicas) em espaços cada vez menos acolhedores. Esta mudança se manifesta em espaços cada vez mais compartimentados - muros altos, grades em portas e janelas, além de arranha-céus fechados em si mesmos, sem comunicação com a rua - tornando os espaços públicos cada vez menos acolhedores ao pedestre e inadequados ao convívio para interações sociais.
(ii) A relação cinema-centro, tendo como foco a colaboração das salas de cinema na apropriação e vivência dos espaços públicos do centro de Recife pelos cidadãos, não apenas como um espaço de consumo, como atualmente acontece no Recife e em outros centros urbanos, mas como a relação entre o abandono do centro e a mudança do eixo financeiro e de poder para outros locais na cidade;
(iii) A relação casa-cinema: a casa vivida que vira a casa cinematográfica, transformando-se em lugar de experiências reais, ficcionadas e imaginadas. Nessa dinâmica, o cinema vê a casa e o centro da cidade, como produtores de memória, tensões e esperanças.
A casa e o bairro
A memória permeia cada momento, cada imagem, cada reflexão do filme. Na primeira parte da narrativa, “O apartamento de Setúbal”, desenvolve-se a relação do cineasta com a sua casa e o bairro desde a infância.
Enquanto o prédio e a casa são apresentados, veem-se imagens antigas e novas que marcam as transformações arquitetônicas nos cômodos do apartamento da mãe de Kleber, Joselice Jucá, uma historiadora que pesquisou os abolicionistas Joaquim Nabuco e André Rebouças no Brasil do século XIX. Em seus estudos, ela utilizou a técnica da história oral, fato significativo na medida em que o seu filho também procura conhecer ou expor informações das histórias de vida dos personagens retratados no filme por intermédio de suas narrativas.
No filme, conta-se que a mãe sempre procurou estimular que Kleber filmasse e muito por essa influência o primeiro lugar das filmagens foi em casa. A presença do cinema era uma constante na vida familiar, tanto que, nas duas reformas da casa, a primeira teve o quarto de empregada doméstica transformado em escritório e na segunda, em um espaço para assistir filmes. A casa foi como um campo fértil que forneceu as sementes para sua criação, sendo utilizada em vários de seus filmes. Segundo o diretor, foi um espaço de resistência e colaborou decisivamente para seu olhar imaginativo.
Desde o início do filme, o diretor estabelece como ponto importante da sua estruturação dramatúrgica a justaposição de tempos e/ou gêneros cinematográficos – ou seja, muitas vezes um mesmo local do Recife é filmado em épocas diferentes, e/ou então alterna-se o modo documental e ficcional.
Essa simultaneidade é fundamental para o raciocínio central da narrativa, que se estrutura em torno da ideia do ‘retrato fantasma’: o que existe não é apenas o que se vê imediatamente. Tanto as referências do passado, quanto a maneira de se relacionar socialmente e culturalmente no local, quanto o olhar imaginativo, em idas e vindas de imagens temporalmente registradas de modo não linear para compor ao espectador, um determinado lugar. Kleber busca sentidos pessoais e sociais para o lugar a partir da multiplicidade temporal e cultural que o preenche.
Segundo José Antônio Orlando,
A partir dos fragmentos de outro tempo, o narrador encontra o vazio do presente – a presença na ausência. A todo momento, o fio das lembranças volta às imagens fotografadas ou filmadas: passo a passo, vai construindo ou reconstruindo as cenas, revelando questões da política, da economia, de arquitetura e urbanismo, do desenrolar da história pessoal e social. (2024, 498)
O artista, nesse sentido, tem a liberdade de enxergar camadas diversas de representação do lugar – inclusive aquelas que se referem aos aspectos não visíveis e/ou da percepção pessoal – a partir da concretude dos fatos socioculturais presentes e passados.
E por esse viés, do olhar ampliado sobre um lugar, é ressaltado o ponto de vista de que a vivência do espaço é social. Mesmo que o cinema seja um equipamento de lazer, ele pode promover uma reflexão ampliada sobre os usos do espaço além da apropriação privada e de consumo. Nesse sentido, ao nos fazer enxergar as diferentes possibilidades de convivência humana no mesmo lugar, o filme nos leva a pensar que o cidadão deveria ter o direito de se apropriar da cidade para viver e não apenas para produzir.
Segundo Ana Fani Alessandri Carlos,
A cidade se reproduz na contradição entre a eliminação substancial e manutenção persistente dos lugares de encontros e reencontros, da festa, da apropriação do público para a vida. Há resíduos e resistências nos subterrâneos que fogem ao processo homogeneizador e terrificante do capital. (1992, 91)
O filme, nessa lógica, busca resgatar uma resistência do olhar, de retomar os vínculos culturais históricos, que reveem o espaço urbano sob um ponto de vista diverso ao do capital, este que promove o uso utilitário do espaço, conectado apenas à produção de trabalho e mercadorias.
A abertura do cinema para um olhar múltiplo e imaginativo, que capta diversas e possíveis camadas de representação do lugar, é exemplarmente simbolizada pela cena em que o diretor descreve o estranho fato de que durante muitos anos, ele fotografou o apartamento, mas num determinado momento, captou a foto de um “fantasma”. A foto era da sala do apartamento, mas nela aparecia uma imagem de uma figura embaçada e até hoje não identificada.
O que um artista pode enxergar além das imagens padronizadas sobre um lugar? Que imagens ressignificam e ampliam a reflexão sensível sobre um lugar, uma cidade, uma nação?
Um dos procedimentos apresentados desde o início da primeira parte é a justaposição de cenas filmadas em diferentes cômodos da casa em épocas diferentes, durante toda a juventude do cineasta, por cerca de vinte anos e posteriormente já com filhos correndo pelos cômodos. Ver-se e rever-se no mesmo cenário, que por sua vez também se transforma com o tempo, traz ao diretor diferentes camadas de sentido à sua trajetória pessoal e familiar, e ao seu processo de desenvolvimento como artista. Ao mesmo tempo, permite enxergar como a cultura globalizada e cinematográfica se mistura às vivências da cultura local de Recife, numa ressignificação constante do lugar de vida do artista.
O roteiro nos faz adentrar de algum modo em sua origem, imergir no seu universo pessoal e artístico para, em seguida, nos levar a olhar os arredores e o bairro.
Nas cenas em que aparecem making-offs de filmagens na casa, mostra-se que, inicialmente, os vizinhos começaram a participar como figurantes algumas vezes - uma primeira conexão do autor com a sua realidade imediata. Por outro lado, acontecimentos na vizinhança foram motivo para a criação de cenas ficcionais desde a sua juventude até a atualidade: uma delas foi criada a partir de uma situação real em que a atriz Maeve Jinkings jantava com Kleber, quando todos ouviram um som estranho. Não reconheceram a princípio o motivo, mas depois descobriram que uma pessoa havia entrado na casa da vizinha para roubar o gás. Vemos tudo isso acontecer no filme como se fosse um acaso registrado nas reações de todos pela casa, porém verificamos pela lógica da narrativa que aquele momento foi encenado, uma ironia, uma brincadeira do diretor com os espectadores para mostrar outros modos de contar a memória.
O diretor relata que no filme “O som ao redor” (2012), um de seus trabalhos, a mesma atriz ouviu um latido de um cachorro que, na vida real, era o mesmo da casa vizinha da família - que passava os finais de semana sozinho e latia sem parar. Com o passar do tempo, percebeu-se que a mesma casa foi tomada por gatos, já que havia sido abandonada. Esse fato, não isolado, coincide justamente com o processo de desenvolvimento dos arranha-céus no bairro. No mesmo processo de abandono, a casa vizinha criou cupins no telhado, referência forte que aparece noutro filme de Kleber: “Aquarius” (2016).
Quando explora imagens da rua, o diretor nos mostra que as mudanças acontecem tanto pelo aumento exponencial da altura dos prédios, como também pela adoção de grades nas casas que antes tinham portões baixos. Já o restante do espaço do bairro foi se tornando cada vez menos público e cada vez mais privado: a corrida de carros, a praça da igreja, o mangue, eram motivos para a convivência no espaço externo até os anos 1970, início dos 80 (conforme imagens de arquivo apresentadas). Essa realidade mudou a partir do momento em que a especulação imobiliária no centro foi redesenhando o traçado urbano, expulsando moradores e não moradores, e limitando quase totalmente o uso coletivo e não lucrativo do espaço.
O mistério da memória - dos fatos documentados, mas também do que se pode ou se tenta lembrar, do que se constrói a partir das vivências reais do passado pessoal e coletivo -, juntamente com a virtualidade que a imagem cinematográfica pode construir - com seus olhares diversos, múltiplos -, estão presentes na imagem-fantasma e na conexão casa-bairro afetuosa que o filme promove.
Assim, a memória, fator tão estimulado desde a infância em sua própria casa, continua a permear a sua criação também nos momentos seguintes do filme.
Os cinemas e o centro
A segunda seção do filme inicia-se ao som da música “Meu Sangue Ferve por Você” de Sidney Magal (1977) e imagens dos cinemas do centro de Recife, trazendo a dúvida se a declaração de amor do texto da melodia se endereça aos cinemas, ao centro da cidade ou a ambos. O clima de nostalgia é estabelecido, seja pela canção ícone popular de massa dos anos 70 – altura da adolescência do cineasta – seja pelos edifícios, outrora suntuosos, agora revelados pelas imagens como edifícios degradados, dilapidados em sua arquitetura emblemática e servindo a usos bem menos glamourosos.
Conforme a referência aos filmes de terror, pode-se deduzir que os cinemas são os zumbis, os mortos-vivos da película, ou ainda o semi-vivo vampiro, que surge em uma imagem-referência, atravessando a Ponte da Boa Vista (Fig. 1).
O cineasta-narrador então declara o seu amor por pela cidade:
Eu amo o centro do Recife.
Eu amo o centro do Recife.
Eu cortei e depois coloquei de volta duas vezes no filme essa fala, achando que era redundante dizer isso. Mas depois lembrei que a gente tem que falar quando gosta de alguém.
(Fala do cineasta e narrador Kleber Mendonça Filho)
(Retratos Fantasmas, 2023)
Em seguida, descobrimos que esta visão espacial-amorosa que o cineasta tinha (e ainda tem) do centro da cidade orienta-se e possui como marcos espaciais a localização dos cinemas pelo tecido urbano (Fig. 2). Ele investiga o papel dos cinemas de rua enquanto loci de memória coletiva e resistência cultural frente à erosão dos espaços públicos urbanos.
Estas salas de cinema trazem consigo memórias ligadas aos encontros sociais ali promovidos, criando imagens visuais deste passado. São estes alguns dos retratos-fantasmas que o cineasta traz para o espectador e que dão título ao filme. O principal fantasma, o centro da cidade, outrora polo financeiro e de poder, era permeado por estes centros culturais – os cinemas – onde os discursos do poder vigente poderiam ser disseminados.
Neste sentido, um relato interessante é o caso de do cinema Art-Palácio, projetado para ser uma sala da UFA, o estúdio de cinema alemão, que durante os anos 30 e 40 foi controlado pelo estado alemão e responsável pela propaganda nazista de Goebbels e Hitler. O intuito da construção do Art-Palácio era disseminar a ideologia nazi-fascista durante o governo de Getúlio Vargas, simpatizante desta ideologia. Estratégia que não se realizou graças ao fim da segunda guerra mundial.
Similarmente, e ao mesmo tempo, contrariamente, num contexto mais recente, o cinema São Luiz é hoje uma sala pública que também não segue a lógica comercial, mas possui outro intuito:
Um cinema como este ajuda a construir caráter. (Fala do cineasta e narrador Kleber Mendonça Filho)
(Retratos Fantasmas, 2023)
A relação entre o cineasta Kleber Mendonça Filho e o Cinema São Luiz configura-se como uma vinculação simbólica e afetiva que ultrapassa os limites da atuação profissional enquanto cineasta ou espectador. Inaugurado em 1952, o São Luiz destaca-se como um dos mais representativos cinemas de rua do Brasil, notável por sua arquitetura em estilo art déco e por seus vitrais singulares (Fig. 3).
Após um processo de restauração de grande porte, o cinema foi reaberto ao público em novembro de 2024, com a presença de Mendonça Filho, cuja participação reafirma seu engajamento com a valorização e preservação de espaços culturais históricos. Além disso, o São Luiz figura como sede do “Janela Internacional de Cinema do Recife”, festival fundado por Mendonça Filho e Emilie Lesclaux em 2008, consolidando-se como um dos principais espaços de difusão cinematográfica na cena cultural Recife-pernambucana contemporânea.
O cineasta pode então, através dos filmes escolhidos para exibição, manter a sala como um espaço de encontro e discussão, ou como poderíamos dizer: ressuscitar um morto. Mas o cinema São Luiz é uma exceção.
As demais salas de cinema percorridas durante o filme tornaram-se: (i) igrejas (Cinema Eldorado e Cinema Albatroz) – novamente enfatizando o papel do espaço físico do edifício como um espaço de poder, e onde este poder se situa no contexto atual; (ii) loja, mini shopping center (Cinema Moderno, Cinema Veneza), mais uma vez enfatizando uma transferência de poder para os “templos do consumo”, locais de distração e embotamento, como talvez tenham também sido os cinemas nas décadas de 40 e 50; (iii) demolidos (Cinema Politeama), dando espaço a outros usos do poder vigente.
O próprio cineasta acompanhou por dois anos a “morte” do cinema Art-Palácio (Fig. 4 e 5), documentando com sua câmera VHS os últimos suspiros. Estas imagens estão presentes no filme, e trazem mais um fantasma para esta narrativa: Alexandre Moura, falecido em 2002, o responsável pela projeção dos filmes no Art-Palácio. Ele narra momentos tensos durante a ditadura em que a censura bateu à porta da cabine de projeção:


– O filme está preso viu!
– Quem é o senhor?
– Eu sou da polícia federal.
O filme também retrata o momento em que o centro em si, como mais um morto-vivo ressuscita a cada ano durante o Carnaval, numa sobrevida regada a frevo, fantasias e capoeira (Fig. 6). E ainda percorre diversos edifícios emblemáticos do centro em franca decadência, entre eles o edifício Alfredo Fernandes onde se situavam diversas distribuidoras cinematográficas tais como a Universal Pictures, Warner Brothers, Metro, Columbia Pictures, Fox, Paramount, Disney entre outras.
Todas em um mesmo edifício por quase 70 anos e, conforme relata o cineasta, o atual administrador do edifício afirma categoricamente que nunca existiu nenhuma distribuidora de filmes no edifício.
Mais adiante, o cineasta também passeia pelos vários letreiros fixados às marquises, relevando diversos espaços temporais:
A paisagem da cidade era marcada por palavras de fantasia. (Fala do cineasta e narrador Kleber Mendonça Filho) (Retratos Fantasmas, 2023)
Casa vivida, casa filmada
O cinema é um espaço de memória. Similar ao que fazemos para guardar fisicamente em nossas cabeças o que entendemos em nossas vidas como significante. Nele, por intermédio de seus recursos técnicos, ordena-se em suas imagens, sobretudo pela montagem, a narrativa de aspectos vividos, imaginados, sonhados e inventados, transformados em filme por seus realizadores. Mas o que significa trazer ao registro cinematográfico, a lembrança do que se quer contar ao público, de maneira a fazê-lo identificar-se e dialogar com a história contada? Revela-se aqui, um buscar contínuo de partilha de imagens organizadas numa lógica que ao mesmo tempo situa pessoal, artística e esteticamente criador e espectador.
Nesse filme, essa busca ocorre em diferentes camadas de maneira simultânea, ora em material de arquivos fotográficos, ora com registros audiovisuais familiares, ora com cenas de filmes do diretor e também encenações que concretizam o que ele narra em off, aparecendo imagens suas ou outras de pessoas que fazem parte de sua história, sobretudo sua mãe Joselice. Fazer esse exercício para o diretor, configura-se em contínuos mergulhos que entram e saem de seus processos de experiências vividas, traduzindo seus afetos pela relação intrínseca que ele estabelece entre a casa, o bairro, a cidade e as salas de cinema.
Nesse jogo de diferentes esferas de convivência e experiências, o público e o privado se reconfiguram na passagem do tempo histórico e se misturam às imagens do tempo cinematográfico. Desenvolve-se aí, um fluxo em que passado e presente buscam explicar a trajetória vivida assimilando-a, frente à perplexidade de mudanças às vezes abruptas e quase sempre violentas para o cotidiano de seus cidadãos. Com elas, a possibilidade do que se vê, gera para o diretor inúmeras temáticas em torno da “apropriação”, transformando-se na criação de suas realizações cinematográficas.
Como vimos, a “Primeira parte: o apartamento de Setúbal”, apresenta a nós espectadores a descrição física do apartamento comprado com financiamento da Caixa Econômica Federal em 1979, no bairro Setúbal, a 250 metros da praia de Boa viagem, próximo da igreja Nossa Senhora de Boa viagem (edificada na metade do século XVII), numa região onde antes havia o mangue. Somos ambientados ali, com imagens e narrativa em off, à conformação do espaço: “três dormitórios, uma suíte, sala, copa e cozinha, um banheiro social” e também às reformas. Na medida em que ouvimos a narrativa, vemos espalhadas nos cômodos do apartamento muitas fotos de membros das famílias em cenas cotidianas.
Essa casa iconograficamente se constitui ora como cenário, ora como personagem, ora como parte de lembranças criadoras de significados. Aparece como registro histórico e como parte narrativa para compor vários filmes do diretor, sempre de forma modificada, o que confere à sua imagem, múltiplas funções construtoras de camadas de memórias entrelaçadas, tanto para sua vida pessoal como profissional e também possibilidades de criação. Nesse aspecto, a casa para ele é a fusão de um horizonte, cuja mirada traduzida ao mundo, literalmente revela a forma como ele faz seu cinema e alterna de modo derivado, sua vida. Ele narra que a casa nova, significou um recomeço de vida para sua mãe, logo depois da separação do pai, Kleber.
As imagens que ilustram estes trechos, mostram uma foto em preto e branco do casal dançando em um baile, logo depois de sua mãe sentada na sala bem arrumada sozinha, sorrindo, ao lado de muitos objetos de enfeite na estante, fitas cassetes, televisão, aparelho de som e copos de bebida. Realça-se o registro de uma época, que contraposta às cenas posteriores, apontam como a mudança foi radical nos modos de vida. Não só pelas reformas da casa, mas sobretudo pelas mudanças ocorridas na história do país, registro mostrado em fotos em que o diretor aparece com sua mãe nas manifestações populares das eleições de 1989.
O apartamento depois se transformou na produtora de filmes do diretor. Ali também se apresenta a relação familiar com o espaço, já com a nova geração, com seus filhos sendo fotografados por ele em espaços que já nos são familiares por conta das imagens anteriores vistas no filme, agora com novas formas de apropriação espacial.
A casa vivida e filmada, portanto, se alterna diante do espectador trazendo um diálogo imagético que trabalha a aproximação afetiva que o diretor busca contar em todo filme. A casa vira uma personagem e junta-se à paixão que se quer apresentar: o amor pela cidade e pelo cinema. Ao tentar nos conquistar com esse olhar através de toda linguagem cinematográfica construída, o que se verifica é uma corporificação dessa fantasmagoria que pela imagem nos convence da concretude e necessidade do cinema em nossas vidas como recurso de identificação e reflexão do mundo que passa por nossos olhos.
Pelo cinema, a chance de um registro, imaginário ou não, garante-se uma ideia de localização temporal que constitui uma forma de memória e esta se torna viva, na medida em elementos revelados como importantes para a dinâmica do fazer cinematográfico se colocam intrínsecos num lugar onde o que se dispensava no cotidiano as experiências significativas de uma cidade. Nesse momento, o filme acaba por se fazer como a chave que conecta sentidos de sociabilidade e história.
Conclusão
O declínio do centro do Recife deve ser compreendido como produto de uma confluência de fatores históricos, estruturais e contingenciais. Sua reversão exige políticas intersetoriais que combinem reabilitação urbana, inclusão social e redefinição da centralidade dentro da lógica metropolitana.
Um aspecto relevante do filme e que eventualmente aparece como uma premissa, é apreciá-lo em sua totalidade conhecendo os trabalhos anteriores de Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor, Aquarius, Bacurau, eletrodoméstica, etc) assim como cineastas e atores pertencentes ao seu círculo de convívio. O espectador que estiver alheio a estas informações prévias, possivelmente não terá como mergulhar completamente nesta viagem temporal e espacial pela cidade de Recife.
O filme tem seu mérito enquanto documentário que provoca o espectador a se aprofundar e conhecer filmes e imagens mencionados, sobretudo por sua temática geral que remete a filmes anteriores sobre a apropriação do privado pelo público e qual o sentido cultural, político, econômico e social que pode gerar. Além disso, em suas narrativas aparecem dimensões do fantástico, do terror, do suspense e do aparente nonsense que trazem o espectador para as preocupações do diretor em refletir sobre nossas heranças históricas de desapropriação e formas de resistência. Novamente, a relação intrínseca entre o vivido e as imagens como porta-voz desse diálogo se faz presente.
Kleber Mendonça Filho é, pessoalmente, alguém que fala pouco. É com as imagens que mais se comunica e lança seus horizontes. Na cena final deste filme o recado que une ironia, esperança de uma cidade apropriada pelo cidadão comum, coloca o cinema como grande agente dessa reflexão. O diretor pega um táxi e o motorista ao saber que ele faz filmes, diz que adora cinema, que também é ator e sabe fazer sua encenação ficando invisível e para nossa surpresa, desaparece diante da câmara continuando a falar com o cliente no carro. Para nós espectadores que estamos a ver um filme que parece documentário e que por isso seria mais realista, o narrar daquele personagem, nos lembra que estamos dentro de uma história de cinema, mas que por um momento nos convenceu de ser realidade. Nesse aspecto, o cinema nos joga para a dimensão do possível dentro do onírico e nesse sentido, o filme que assistimos cumpre seu papel.
Bibliografia
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Tese/Dissertação
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Filmografia
Aquarius. 2016. De Kleber Mendonça Filho. Brasil: Cinemascópio e Vitrine Filmes. DVD.
Retratos Fantasmas. 2023. De Kleber Mendonça Filho. Brasil: Cinemascópio e Vitrine Filmes. DVD.
Discografia
Meu sangue ferve por você. 1977. Sidney Magal. Brasil: Polydor Records.
Notas finais
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto Estratégico com a referência UID/04008: Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design. A autora Miriam de Oliveira Gonçalves é financiada pela bolsa de doutoramento da FCT referência 2021.07021.BD.
