Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

A reflection on intermediality in the show A woman dressed in the sun, by Cia de Dança Ormeo (Brazil)

Uma reflexão sobre a intermidialidade no espetáculo Uma mulher vestida de sol, da Cia de Dança Ormeo (Brasil)

Carlos Gonçalves Tavares

Faculdade Sudamérica / Obra Unida Lar São Vicente de Paulo, Brasil

Francione Oliveira Carvalho

Universidade Federal de Juiz de Fora / Universidade de São Paulo, Brasil

Abstract

The dialogues undertaken by the various forms of artistic expression characterize the entire history of humanity. In the twentieth century it is clear the influence of the media and technical devices in research and artistic creations. Dance has also, in different ways and styles, undergone significant changes. Both in its artistic and in the educational and social context, it uses the whole evolution of media in their creations, from those who already belonged to the dance, historically, as lighting and music, to the more recent use of cameras, image projectors and other technological means. This paper investigates the intermedial relations between dance, image, theater and music in the spectacles of Ormeo Company, a dance collective situated in the city of Cataguases (state of Minas Gerais, Brazil) and that placed in the contemporary dance dialogue, theater, music and audiovisual media by means of the image projection. This paper analyzes the work A woman dressed in the sun (2007), using the concept of intermediality, theorized by various authors and especially Irina Rajewsky. Ormeo Company’s spectacles have intermedial characteristics, since many artistic elements are interconnected through dance. Thus, the choreography and spectacles created by Ormeo can be said to enhance the aesthetic characteristics of theater, through its representations; music, through the differential treatment of voice and sounds and audiovisual through the image-body dialogue.

Keywords: Intermediality, Dance and tecnology, Ormeo Company, Contemporary art, Contemporary dance.

Introdução

O espetáculo Uma Mulher Vestida de Sol, encenado em 2007 pela Cia. Ormeo, parte da obra homônima de Ariano Suassuna para construir uma experiência cênica que transcende o teatro tradicional. Sua estreia ocorreu no encerramento do 2° CINEPORT – Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, em João Pessoa, Paraíba, Brasil, em um contexto que já sugeria a fusão de linguagens – afinal, um festival de cinema abrigava uma adaptação teatral com forte presença audiovisual.

A peça de Suassuna, escrita originalmente em 1947 e revisada em 1957, é uma tragédia de raízes nordestinas, onde disputas de terra, violência e um amor impossível se entrelaçam. A adaptação dirigida por Daniela Guimarães não apenas preserva esse núcleo dramático, mas o expande através da dança, música e projeções visuais, criando um diálogo intermidiático que merece análise detalhada.

Uma Mulher Vestida de Sol não é apenas uma peça; é um marco na literatura dramática nordestina. Escrita por Ariano Suassuna aos 19 anos, a obra venceu um concurso do Teatro do Estudante de Pernambuco, inaugurando assim sua trajetória como dramaturgo. Em sua versão de 1957, revisitada, aprofunda elementos religiosos, fundindo o sagrado com o profano em um sertão marcado pela seca e pela luta pela sobrevivência.

A história gira em torno de Rosa e Francisco, primos separados por conflitos territoriais. Joaquim Maranhão, pai de Rosa, é um homem capaz de assassinar a própria esposa por ciúmes e mantém uma relação com a filha permeada por suspeitas de abuso. Já, Antônio Rodrigues, pai de Francisco, representa uma moralidade mais equilibrada, ainda que igualmente determinada pela honra familiar.

A cerca que divide as propriedades não é apenas um limite físico; é uma metáfora das divisões sociais, morais e emocionais que estruturam a narrativa. Como observam Moretti e Pascolati (2010), Suassuna constrói um universo onde a fé e a violência coexistem, e onde a redenção parece sempre fugidia.

A peça é uma das referências do Movimento Armorial, iniciativa artística tendo como um dos fundadores o próprio Ariano Suassuna, seu objetivo foi o de valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, pretendendo realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da cultura do país. Segundo Suassuna, sendo “armorial” o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo, a heráldica é uma arte muito mais popular do que qualquer coisa. Desse modo, o nome adotado significou o desejo de ligação com essas heráldicas raízes culturais brasileiras. O Movimento tem interesse pela pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema (GASPAR, 2009).

Cia Ormeo: entre a dança e outras mídias

A Cia Ormeo, grupo intermediático de dança, esteve em atividade entre os anos de 2003 e 2013, tendo a cidade de Cataguases (MG, Brasil) como sede e principal ambiente de trabalho. O grupo surge no projeto social Café com Pão Arte ConFusão, também patrocinado pela empresa de energia elétrica da região Energisa, a partir do interesse de Daniela Guimarães, até então diretora e professora de dança contemporânea do projeto, por criar um grupo profissionalizante em múltiplas linguagens artísticas, compreendendo todo o universo da dança contemporânea, teatro, música, percussão e artes plásticas. As seleções foram feitas pela diretora do projeto e todo o corpo docente, tendo como objetivo perceber possíveis potências artísticas numa população de 900 adolescentes, número total dos alunos do projeto. No começo o grupo contava com 33 integrantes.

Em 2013 o cinema continuou fazendo parte do grupo. O filme, com título vaga-LUMES, mostra a união de 7 pessoas que possuem características em comum, resolvem construir um barco e fazer uma viagem, em que questões pessoais vêm á tona, mesclando elementos ficcionais, como a criação de personagens para cada integrante do elenco, além de algumas caracteristicas pessoais, como depoimentos do elenco sobre saúde, família, trabalho e sonhos.

Foi filmado em cachoeiras da Serra da Canastra (MG), praias da cidade de Sagres (Portugal), e um estúdio em Cataguases (MG), onde ocorrem as cenas internas do barco e sonhos de cada personagem. Como característica de filmagem, foram utilizados planos-sequências em algumas cenas. O filme é ficcional, porém algumas características dos integrantes se fundem com os personagens. Cada integrante possui um solo em cachoeira, um solo de cotidiano e um solo de sonho (gravados no estúdio em Cataguases).

O longa metragem foi idealizado por Daniela Guimarães com assistência do cineasta Marcos Pimentel na criação do roteiro da obra de comemoração dos 10 anos da Cia. Ormeo, sendo lançado em 2018. O grupo teve o ano de 2013 como seu último ano de atividade, se dissolvendo em outros projetos culturais e acadêmicos na região de Cataguases.

Na contemporaneidade as modalidades artísticas estão gradativamente mais próximas. Elas desafiam as classificações habituais e a própria definição de arte. E cada vez mais grupos de teatro e dança utilizam o vídeo e as tecnologias em suas obras, caso da Cia Ormeo, que criou obras especialmente para serem vistas em vídeo.

Assim, a revolução tecnológica iniciada com a fotografia, e continuada pelo vídeo e as novas tecnologias provocou uma mudança significativa na criação artística. A tecnologia não substitui as tradicionais formas de arte, mas em alguns casos interfere e permite novas experiências como é o caso da arte hibrida, onde podemos ver a pintura dialogar com a fotografia, a fotografia com o cinema e o cinema com a instalação artística.

A tecnologia transformou o cenário artístico contemporâneo porque possibilitou o surgimento de novas possibilidades expressivas e técnicas. A videoarte surgida no final da década de 1960 é uma das invenções decorrentes das experimentações dos artistas com a linguagem fotográfica e fílmica. E surge da popularização tanto da televisão quanto do vídeo cassete. Inclusive, o conceito de reprodução da obra de arte já discutido pelos artistas da Arte Pop marcará a produção dos criadores da videoarte, pois desde a concepção de suas obras a ideia de obra única e irreprodutível é substituída pela produção em série ou pensada para ser multiplicada.

A Intermidialidade como Campo de Investigação: Diálogos entre Artes e Mídias

O termo intermidialidade designa o conjunto de interações possíveis entre as artes que a tradição ocidental concebe como distintas — como a pintura, a música, a dança, a escultura, a literatura e a arquitetura —, abrangendo tanto os processos de produção quanto a materialidade da obra em si, bem como suas dinâmicas de recepção e interpretação (MOSER, 2006). Esse conceito também se aplica às práticas artísticas contemporâneas em que múltiplas linguagens convergem, como em espetáculos de dança, teatro, performances, vídeo-instalações e produções cinematográficas.

A intermidialidade emergiu como campo de estudo autônomo principalmente na Alemanha e em países de língua alemã, com significativa contribuição do Centre de Recherche sur l’Intermédialité (CRI) de Montreal e de pesquisadores francófonos e neerlandeses (MENDES, 2011). Contudo, observa-se uma lacuna significativa na tradução de textos fundamentais em alemão para outras línguas, especialmente o inglês, o que limita a circulação desses debates em âmbito global. A ausência de instituições anglófonas equivalentes ao CRI acentua essa dificuldade, embora a mobilidade acadêmica e as redes colaborativas tenham mitigado parcialmente esse obstáculo (MENDES, 2011).

No contexto das Américas, destaca-se a figura de Claus Clüver, um dos principais teóricos da chamada inter-artes, campo que investiga a interação entre linguagens artísticas em obras que transcendem categorias tradicionais.

Etimologicamente, o termo intermidialidade remete ao que se situa inter media, surgindo inicialmente nos estudos aplicados da comunicação para designar práticas que articulam diferentes suportes midiáticos — como imprensa, rádio, cinema, televisão e internet (MENDES, 2011). Uma definição seminal é proposta por Bohn, Müller e Ruppert (1988, p. 10), que a entendem como a transmissão de signos (ou combinações de signos) entre seres humanos, mediada por dispositivos adequados e atravessando distâncias temporais e/ou espaciais. Essa perspectiva evidencia a influência da semiótica e da tradução intersemiótica, tratando linguagens artísticas como sistemas de signos com características próprias.

Clüver (2011, p. 10) amplia essa discussão ao reinterpretar a dança, a música e as artes plásticas como mídias, argumentando que nossa experiência com elas se dá por meio da interação com configurações midiáticas específicas — como uma performance musical ou uma instalação visual. Essa abordagem desafia a noção restritiva de “mídia” como veículo meramente técnico (e.g., rádio, TV), incorporando dimensões estéticas e sensoriais.

Pavis (2005) e Müller (1990) complementam esse quadro, destacando que a intermidialidade não se reduz à justaposição de mídias, mas implica uma integração de conceitos estéticos em um novo contexto, cujas relações variam conforme sua evolução histórica.

A adoção do termo intermidialidade pela crítica contemporânea substitui e expande noções como adaptação e tradução intersemiótica (SISLEY, 2007, p. 37), enfatizando a complexidade das trocas entre sistemas de significação. Contudo, como aponta Rajewsky (2005), a definição de “mídia” depende de fatores contextuais — sejam intrínsecos ao objeto analisado, sejam extrínsecos, como a subjetividade do receptor.

Embora disciplinas tradicionais tenham negligenciado formas artísticas híbridas, os Estudos Interartes têm se dedicado a preencher essa lacuna, desenvolvendo metodologias capazes de abordar produções que integram elementos verbais, visuais, sonoros e performativos (CLÜVER, 2006).

A intermidialidade, portanto, não se restringe às “artes” canônicas nem às “mídias” em sentido instrumental, mas abarca as relações dialógicas entre linguagens e suportes. A escolha pelo termo intermidialidade (em vez de “intermedialidade”) no português brasileiro reflete sua consolidação lexical, ainda que variações persistam. Seu estudo demanda uma abordagem transdisciplinar, articulando semiótica, teoria da comunicação e estética para compreender as dinâmicas culturais e tecnológicas que reconfiguram a produção artística na contemporaneidade.

Outro nome importante nos estudos de intermidialidade é Irina Rajewsky. Esta alemã foi responsável em um de seus artigos (RAJEWSKY, 2005), por propor uma definição e algumas categorias dentro desta área de pesquisa. Rajewsky (2005, p. 51-53) propôs três subcategorias de intermidialidade, para as quais forneceu uma base teórica: transposição intermidiática, combinação de mídias e referências intermidiáticas.

A transposição intermidiática se refere à intermidialidade no sentido mais estreito da transposição midiática (como, por exemplo, adaptações para filmes, novelizações, e assim por diante): aqui a qualidade intermídia deve ser vista com a maneira em que um produto de mídia vem a ser, ou seja, com a transformação de um determinado produto de mídia (um texto, um filme, etc) ou do seu substrato em outro meio (RAJEWSKY, 2005).

Esta categoria é uma produção orientada, a concepção “genética” de intermidialidade, o texto “original”, filme, etc, é a “fonte” da recém-formada produto da mídia, cuja formação é baseada em um processo de transformação intermidiática específica e obrigatória (RAJEWSKY, 2005).

A combinação de mídias inclui fenômenos como a ópera, cinema, teatro, performances, manuscritos iluminados, computador ou instalações artísticas de som, quadrinhos, e assim por diante, ou, para usar outra terminologia, os chamados multimídia, meios mistos, e intermídia. A qualidade intermídia desta categoria é determinada pela constelação midiática constituindo uma mídia produto, o que é dizer que o resultado ou o próprio processo de combinar, pelo menos, duas mídias convencionais distintas ou formas midiáticas da articulação (RAJEWSKY, 2005).

Já as referências intermidiáticas são referências, por exemplo, de um texto literário para um filme através de, por exemplo, a evocação ou imitação de certas técnicas cinematográficas, como cenas com zoom, efeitos de desaparecer e dissolver na montagem. Outros exemplos incluem a chamada musicalização da literatura,
transposição da arte, referências no cinema à pintura, ou na pintura à fotografia, e assim por diante (RAJEWSKY, 2005).

Referências intermidiáticas são, portanto, para serem entendidas como estratégias constitucionais que contribuem para a significação global do produto: o produto mídia utiliza os seus próprios meios específicos, ou para se referir a um trabalho específico, produzindo individualmente em qualquer outro suporte (ou seja, o que na tradição alemã é chamado Einzelreferenz, “Referência individual”), ou referir-se a um subsistema midiártico específico (tal como um certo gênero de filme) ou para outro suporte do sistema (Systemreferenz “, referência do sistema”) (RAJEWSKY, 2005).

As artes cênicas, o cinema e a televisão “remediaram” conteúdos e formas, das literaturas “maiores” e “menores”, do mesmo modo que artes e culturas eruditas “remediaram” artes e culturas populares, e vice-versa, e que jogos de computadores “remediaram” sagas míticas ou arquetípicas e epopeias (MENDES, 2011; BOLTER; GRUSIN, 1998).

Analisando os autores supracitados, vemos como o termo “mídia” pode ser utilizado e entendido em diversos contextos, dependendo da situação em que se encontra o objeto. Segundo estes autores, fatores externos e a subjetividade do receptor influenciam diretamente na definição e no entendimento, sendo que para os pesquisadores, a tarefa muitas vezes é definir os elementos estéticos e técnico-expressivos nos objetos estudados, além da subjetividade.

A Dança como Fenômeno Intermidiático: Relações Históricas e Estéticas

Segundo Lepecki (2006), a dança configura-se como o resultado de uma intrincada rede de relações entre distintas artes e sistemas de linguagem, apresentando ao espectador uma comunicação primordialmente corporal — muitas vezes interpretada como a forma mais elementar de expressão cênica. No entanto, sua manifestação como espetáculo integra, tradicionalmente, elementos como cenografia, figurino, música e, contemporaneamente, dispositivos eletrônicos e tecnológicos, que ampliam suas possibilidades de interação e significação.

Aguiar (2013) aprofunda essa perspectiva ao destacar o caráter multimidiático e interdisciplinar da dança, ressaltando que, historicamente, seu processo criativo sempre dialogou com outros sistemas artísticos — como música, literatura, teatro e artes plásticas. Um exemplo paradigmático é o balé clássico, gênero surgido nas cortes italianas do Renascimento e posteriormente desenvolvido pela aristocracia francesa, cuja essência é intrinsecamente intermidiática: desde suas origens, conjuga dança, música, pintura (nos cenários) e poesia (nos libretos), como destacam Aguiar e Queiroz (2008).

A história da dança oferece inúmeros exemplos de espetáculos que se originaram de obras literárias ou movimentos estéticos. Um marco nesse sentido foram os Ballets Russos de Diaghilev, companhia que revolucionou a cena parisiense na primeira metade do século XX. Dois trabalhos emblemáticos ilustram essa relação: O Espectro da Rosa (1911), coreografado por Michel Fokine, inspirado no poema Le Spectre de la Rose de Théophile Gautier e A Tarde de um Fauno (1912), criação de Vaslav Nijinsky, que transpôs para a dança o poema simbolista L’Après-midi d’un Faune de Stéphane Mallarmé (AGUIAR; QUEIROZ, 2008).

Esses exemplos evidenciam como a dança não apenas traduz textos literários em movimento, mas os reinterpreta através de uma linguagem híbrida, onde gestos, sons e imagens constroem novas camadas de sentido.

A dança, portanto, longe de ser uma arte isolada, constitui-se como um campo de convergência de múltiplas mídias e linguagens. Seja no balé clássico ou nas experimentações contemporâneas, sua natureza intermidiática revela-se tanto na colaboração entre artistas (compositores, cenógrafos, escritores) quanto na incorporação de tecnologias, reafirmando seu papel como manifestação artística plural e dinâmica.

Teatro, dança e intermidialidade: uma análise da montagem

A adaptação da Cia. Ormeo acontece em um território híbrido. Se o texto de Suassuna já é denso em camadas simbólicas, a encenação de 2007 amplifica essa complexidade ao incorporar a dança contemporânea como eixo narrativo.

O palco é preenchido por uma estrutura metálica em forma de concha acústica, que serve tanto para abrigar o Quinteto da Paraíba (responsável pela trilha sonora) quanto como suporte para as coreografias. Esse elemento não é apenas cenográfico; é funcional e simbólico, representando a cerca que divide as famílias e, ao mesmo tempo, a fragilidade das fronteiras humanas.

A cortina branca semitransparente e a rotunda do teatro funcionam como telas para projeções, criando um jogo de sobreposições entre texto, imagem e movimento. Em certos momentos, como na Cena 9, o diálogo da personagem Inocência é projetado em vez de falado, deslocando a palavra para o campo visual. Essa escolha não é meramente estética; ela desestabiliza a linearidade do teatro convencional, convidando o espectador a ler e assistir simultaneamente.

A coreografia não é um ornamento, mas uma extensão da narrativa. Na Cena 1, os personagens Juiz e Delegado introduzem a trama com movimentos miméticos – quando o Juiz descreve o sertão (“com o sol por cima e a terra parda embaixo”), suas mãos e pés materializam a imagem, fundindo gesto e palavra.

Já na Cena 19, a divisão territorial é representada pela corporeidade dos atores: Francisco caminha em uma linha imaginária como se estivesse em uma corda bamba, enquanto os capangas se movem de forma tensa sobre a estrutura metálica, vigiando fronteiras invisíveis. A dança, aqui, traduz conflitos que o texto apenas sugere.

Outro exemplo notável é a representação de Rosa por múltiplas bailarinas, cada uma encarnando uma faceta da personagem:

Essa fragmentação não é arbitrária; ela espelha a complexidade psicológica da personagem, que no texto de Suassuna oscila entre a submissão e a rebeldia.

As composições originais da Profª. Ms. Maria Aida Barroso (UFPE) e as projeções visuais não apenas acompanham a narrativa, mas a reescrevem em outros códigos. Na Cena 26, a morte de Joaquim Maranhão é coreografada como um ritual: o beato Cícero circula o personagem em movimentos hipnóticos, enquanto a música intensifica o clima de fatalidade.

Na maioria das cenas cantadas nesta montagem, notamos ser presente a relação da música com a dança. Além da dança interagir com as músicas cantadas, o teatro também possui forte presença nestas cenas, aparecendo mais através das corporeidades de cada personagem do que propriamente pelos textos e diálogos.

Nota-se também na parceria entre a dança e a música a criação de uma dramaturgia para cada cena. Dessa forma podemos dizer que em Uma mulher vestida de sol, a música cantada obteve forte relação com a dança e com o teatro, porém as relações entre a dança e a música ficaram mais explicitas, mostrando que a dança enquanto objeto de pesquisa do grupo, se encontra em uma posição de diálogo, encontrando-se aberta a interagir com outros elementos artísticos, adaptando-se à situação e sempre pontuando a cena e contribuindo fortemente para a dramaturgia e narrativa.

O audiovisual, por sua vez, atua como um narrador não-verbal. Quando o texto de Inocência é projetado, a ausência da voz humana desloca o peso dramático para o corpo dos atores, que transmitem a emoção através do movimento.

De uma forma geral, a participação das imagens projetadas em Uma mulher vestida de sol enfatizou momentos específicos da montagem. Neste espetáculo temos a imagem projetada como mais um elemento estético, porém suas relações são mais fortemente presentes com as situações ou contextos da peça.

O uso do audiovisual neste trabalho pode ser caracterizado como um cenário virtual, já que suas relações intermidiáticas apareceram mais fortemente com a obra como um todo. Não se notou relação da imagem exclusivamente com o corpo em nenhum momento da montagem. Sua participação serviu para pontuar ou dividir a cena com a dança, com o teatro e com a música, sendo assim um colaborador nas cenas e contribuindo para o espetáculo enquanto produto final.

Personagens e corporeidade: a dança como construção dramática

A opção por um elenco reduzido (10 bailarinos para mais de 12 personagens) exigiu adaptações criativas. Mulheres assumiram papéis originalmente masculinos, como os capangas Martim e Gavião, reinterpretados por Heloísa Ribeiro e Mariana Martins. Essa escolha não foi apenas pragmática; ela reinventa a dinâmica de poder da peça, já que a violência patriarcal é um tema central.

A corporeidade dos personagens foi minuciosamente desenvolvida:

Essas escolhas não são meramente ilustrativas; elas reconfiguram o texto original, acrescentando camadas de significado que só o corpo em movimento pode transmitir.

Conclusão

A interrmidialidade extrapola os limites de apenas uma linguagem e é resultado das fusões entre códigos artísticos diversos, sejam relacionados as linguagens ou as culturas. Afinal, o hibrido é uma característica das criações artísticas da contemporaneidade. Se antes as fronteiras entre as artes eram delineadas e guiadas por regras que classificavam como deveria ser uma pintura, uma escultura ou um espetáculo de teatro ou dança, a partir do século XIX com o surgimento da fotografia e posteriormente do cinema, as fronteiras artísticas tornaram-se mais flexíveis e os artistas e as cias começam a explorar novas possibilidades expressivas.

A montagem de Uma Mulher Vestida de Sol pela Cia. Ormeo não é uma simples adaptação teatral; é uma releitura que expande as possibilidades da obra de Suassuna. Ao integrar dança, música e audiovisual, a encenação demonstra como a intermidialidade pode enriquecer narrativas dramáticas, traduzindo conflitos internos em linguagens não-verbais.

A dança contemporânea, em particular, emerge não como um elemento decorativo, mas como uma ferramenta de análise dramatúrgica, capaz de materializar temas como opressão, amor e fatalidade. Se o texto de Suassuna já era potente por si só, a encenação de 2007 prova que a obra pode ser relida, desmontada e reescrita sem perder sua essência – um testemunho da vitalidade do teatro como arte em constante transformação.

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