Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Latin America and Portugal: new interactions between cuisine, performance, and video in the INTOXICAÇÃO series

América Latina e Portugal: novas interações entre culinária, performance e vídeo na série INTOXICAÇÃO

Fábio Jabur de Noronha

Universidade Estadual do Paraná, Brasil

Abstract

My interest in cuisine inspired the question “What do you eat?” that currently drives my creative processes in video and performance, the theme of this communication. “What do you eat?” is part of the INTOXICAÇÃO series, which continues and consolidates the cuisine theme in my artistic practice. The subject has been investigated, recorded, and traversed by performance since the mid-1990s. For three decades, this bias of video performance has focused on recording the ingestion of something edible and, in particular, on the systematization of scripts for recording and interacting in performances. During this period, different equipment was used, the creative processes changed, as did the conceptual interests. The centrality of the issue of food intake in my research brought a geopolitical dimension to the INTOXICAÇÃO series: the previous works were dedicated to the body and the problematization of exemplary aspects of works from Art History; now the iconographic link is gone, and the focus is on the modifications that took place in Portuguese cuisine with the introduction of ingredients that were once endemic in Latin America. Thus, this communication will report how the entry of new fields of investigation, such as cuisine, transformed the artistic process of the series in question. What were traditional Portuguese recipes like before the first transatlantic voyages? “What do you eat?” will create, through performance and video, versions of recipes “emptied from Latin America,” updating old combinations. In this continuation of the INTOXICAÇÃO series, performance and video will interact through “reverse transactions.”

Keywords: Cuisine, Performance, INTOXICAÇÃO, Geopolitics, Video Art.

Prólogo

Desde a infância, gosto de cozinhar. Tenho memórias da minha avó paterna e das mulheres árabes do lado da minha mãe. Sempre cozinhei nas viagens da adolescência — quase nunca lavava louça. Meu pai teve restaurantes.

Um dia, três garotas coreanas estavam no café.

Prestes a sair, elas carregavam suas bandejas em direção ao balcão.

Em cada uma delas havia um copo com um terço de suco de laranja; pensei em combiná-los para evitar o desperdício de energia — do cultivo ao processamento da fruta.

As garotas haviam comprado mais força de trabalho do que precisavam. Lamento não ter bebido aquele copo cheio.

Observava tudo com visão estereoscópica, ligeiramente desconectado da realidade.

No mesmo café, um cara de Madrid começou a falar sobre sua viagem recente, ele disse que havia comido merda em Paris, literalmente, e acrescentou: coisa de gay, sabe?

Prospecções e curiosidades

Drogas

Em “Intoxication and Aggression”, Jeffrey Fagan pondera sobre as evidências da associação entre o uso de substâncias ilícitas e o comportamento agressivo (1990, 241), aponta que os mecanismos causais exatos do vínculo são relativamente pouco compreendidos; que a conexão também é menos direta do que a literatura científica e o senso comum sugerem (243) — ainda que haja persistência de estudos que vinculam violência aos efeitos da intoxicação; que orientem que o uso de substâncias pode ser um fator relevante para disparar ações violentas (241-42).

A intoxicação não determina necessariamente comportamentos agressivos, posto que a sequência temporal entre o uso de substâncias e as ações violentas não constitui, por si só, uma relação causal objetiva; e que a natureza da correlação é multifacetada, envolve interações entre produtos farmacológicos e fatores psicológicos, socioculturais, etc. Além disso, distinções são necessárias para uma análise do tema, para expor a diversidade dos efeitos farmacológicos decorrentes das “drogas”: as variadas substâncias psicoativas interagem com a mente e o corpo de maneiras específicas e na interação com contextos vividos (Fagan 1990, 243). Este último aspecto mostra a complexidade do tema (intoxicação e agressão) e a dificuldade de limitar, conceitual e metodologicamente, os fatores que mediam este vínculo (246).

Amor

Martha Nussbaum (1991, 75) ressalta, em Nietzsche, a conexão entre intoxicação, amor e arte: “o quão longe pode ir o poder transfigurador da intoxicação?” O amor representaria a forma suprema de intoxicação, aquela que transformaria e, neste caso, acabaria com a realidade de tal forma que, “na consciência do amante, sua causa se extinguiria e algo mais tomaria seu lugar — “a vibração e o brilho dos espelhos mágicos de Circe” (106). Esse poder transformador operaria com igual potência em várias classes sociais; o amor seria uma forma de belo-engano que, paradoxalmente, enriqueceria a vida. Essa intoxicação amorosa, para Nietzsche, constituiria o fundamento essencial da criação artística, pois alteraria a forma como percebemos o mundo. A arte seria, na verdade, o resultado de um interesse profundamente erótico, “da experiência inebriante do amor”; todos os elementos “mágicos, vibrantes e líricos”, tornaraim a arte transcendente, poius eles emergem do poder criativo do amor (108).

Antonin Artaud

Vale conectar dois aspectos da vida de Antonin Artaud, eventualmente tratados como distintos: sua proposta revolucionária de um “teatro de crueldade” e seu envolvimento com substâncias tóxicas — como o peiote e o ópio (Lyons 1974, 120). Para Artaud, de fato, o teatro e as substâncias funcionariam como caminhos para a “lucidez anormal”: um estado de percepção elevada e transcendente, para além dos limites da linguagem e da racionalidade europeias (126). A intoxicação ajudaria a superar a dor da separação (do mundo) e recuperar uma “divindade original perdida”; a construir “um caminho para a exaltação” e escapar às restrições sociais.

O ópio é descrito por Artaud “como um agente que torna as palavras insuficientes e leva o usuário ao hieróglifo” (Lyons 1974, 127). Artaud tinha uma relação ambivalente com o ópio, caracterizava-o como “fraude” e “invenção assustadora”; sabia que, embora o ópio libertasse o usuário de uma estrutura perceptiva “incompleta e perigosa”, ele acabaria por suspendê-lo em outra percepção limitada, de paralisia criativa (127). Tal consciência parece ter exercido influência na construção de um “intoxicante superior”, que pudesse superar a “paralisia silenciosa do ópio”. Nesse cenário, o teatro da crueldade surge como um sistema alternativo de intoxicação — um método para a “lucidez anormal” e dissolução do sistema semiótico antigo (129).

Substâncias intoxicantes

Logan (1974, 82) analisa a importância das substâncias tóxicas na França e na Inglaterra do século XIX. O consumo aumentou significativamente durante esse período, as importações de ópio para a Inglaterra quadruplicaram entre 1830 e 1860 (85). Essa tendência coincidiu com os primeiros movimentos organizados de temperança, particularmente na Inglaterra e, posteriormente, na França (onde a Société Française de Tempérance só foi estabelecida em 1872). As respostas legislativas à questão da intoxicação variaram. Na França, por exemplo, as leis oscilavam entre medidas restritivas ao consumo (de álcool com proibição do absinto em 1914) e as facilitadoras (pelas leis para os mercados).

Essai sur l’Intempérance, de Edmond Bertrand, e A History of Drink: A Review, Social, Scientific, and Political, de James Samuelson (1872 e 1880 respectivamente) mostram abordagens para eliminar o abuso de álcool e apontam a complexidade do termo “intoxicantes”, ele abrange desde os opiáceos até o café e o tabaco (Logan 1974, 82). Embora o século XIX seja tradicionalmente descrito como a era do industrialismo, colonialismo ou nacionalismo, para Logan, ele poderia ser chamado de “era da intoxicação” (92). Ve-se aí, então, ampliada a noção de intoxicação para um estado de frenesi ou delírio — e um paralelo entre o aumento do consumo de substâncias ditas tóxicas e as rápidas mudanças sociais e econômicas (92).

A intoxicação é apresentada como um meio de fuga individual das convulsões sociais, particularmente entre intelectuais como De Quincey, Baudelaire, Rimbaud e Coleridge.

Maconha

Laumon et al. (2005) examinam a relação entre a intoxicação por maconha e acidentes de trânsito fatais na França. A abordagem atende o campo da segurança viária e a síntese é esta: embora haja consenso que o uso de maconha modifica certas habilidades cognitivas e motoras, necessárias para dirigir (em qual velocidade?), o impacto no risco de acidentes não foi claramente definido — e os autores enfatizam que o risco (pouco definido) é significativamente menor do que o associado ao álcool.

Água

Intoxicação hídrica aguda é um fenômeno raro, mas significativo: é o caso clínico de delírio no qual um paciente desenvolveu convulsões e coma causados pelo consumo de água. Entre sete casos, três pacientes sofriam de esquizofrenia, enquanto os demais tinham histórico de alcoolismo crônico (Alexander e Hamilton 1973, 89).

“O que você come?” e as universidades

Meu interesse pela culinária desenhou a pergunta “O que você come?” Ela atualmente movimenta meus processos criativos em vídeo e performance, eles são o tema desta apresentação. “O que você come?” é o início de uma nova pesquisa a ser desenvolvida na universidade em que leciono, entre 2025 e 2029: “O vídeo e a performance na série INTOXICAÇÃO”.1 A apresentação é, também, uma espécie de levantamento do que carrego comigo até o momento, no que concerne a série INTOXICAÇÃO. Escrevo para saber o que tenho nos processos de criação da série, para encontrar um método neles.

O termo “processo”, segundo Stiles, quando usado no contexto da arte, é preciso e vago (1995, 577). Os artistas usaram, segundo a autora, o processo simultaneamente como um fenômeno natural, como um eixo central de seus métodos de trabalho e como um estilo. O processo artístico é considerado tanto para descrever o comportamento dos materiais quanto como uma referência às atitudes dos artistas em seus estúdios, por exemplo. O processo também funcionou como um ponto de intersecção e transição entre a pintura e a escultura tradicionais e a profusão de práticas experimentais que surgiram no final da década de 1960 (1995, 577). O que começou no final da década de 1940 como um interesse pelo gesto pictórico evoluiu gradualmente para uma consciência aguçada de como os processos informam as práticas em todos os níveis da constituição do campo da arte.

“O que você come?” tem sua forma definida por um modo de agir institucional, já “endêmico” em minha prática, por conta dos outros vínculos implicados em pesquisas anteriores — o artista junto com o professor e o pesquisador de uma universidade pública. Tal posição no campo é estrutural, os processos de criação envolvidos incluem, portanto, uma parte dedicada à construção de redes de trabalho.

Minha tese de doutorado, defendida em 2013, é um caso: explicitei logo na primeira página as condições daquele vínculo institucional.2 Disse que ele não era contingente, que indicava um posicionamento no campo da arte e algumas das margens para minha prática artística; que meus estudos haviam sido marcados pela interlocução direta com outros pesquisadores; e que, em diferentes níveis, foram construídos por experiências compartilhadas naqueles contextos específicos de pesquisa.

Por exemplo, nas proposições artísticas que realizei para o corpo da tese — chamadas enxertos —, as disciplinas, seus conteúdos e dinâmicas tornaram-se matéria de trabalho. Os enxertos foram tramados a partir da universidade, são ensaios visuais e puderam ser apresentados como trabalhos finais de disciplinas teóricas. Eles são possíveis, então, na medida em que constituem respostas a essa demanda institucional, ao cumprirem requisições particulares de certas disciplinas. Talvez não fossem possíveis sem o anúncio prévio de sua variação. Os enxertos não são trabalhos regulares, mas variações admitidas em uma espécie de parceria e ajudam a definir a extensão disto que pode ser considerado um trabalho feito para a universidade.3 Assim como é, nas bordas da universidade, “O que você come?”.

De fato, meu interesse em tramar uma prática artística com a matéria dos ambientes de sua futura inserção vem do final dos anos 1990, quando comecei a usar o computador e as redes telemáticas como ferramentas ativas. Minha pesquisa de mestrado, defendida em 2005, também foi afetada por esse cenário de tecnologias telemáticas, pela ideia de que a dissertação seria parte das redes de distribuição do meu trabalho artístico, como um suporte para peças gráficas — com estes títulos: Alvos; Protetor de tela; Mapas que são parte desta ação.

Como elaborei em minha pesquisa de pós-doutorado, na pesquisa em artes, o relato crítico em primeira pessoa ocupa posição central. A partir desta perspectiva, descrever um método significa mostrar uma trajetória percorrida e proporcionar acesso objetivo a determinados aspectos, selecionados por quem esteve junto dos processos de criação — sejam individuais ou colaborativos. O método reconhece e desenha um sistema.

É sempre importante lembrar que os processos vivenciados correriam o risco de permanecer invisíveis em caso de ausência do reconhecimento de um método. Descrever um método é organizar uma composição com eventos ocorridos no tempo e em contextos particulares e fazer notar as hierarquias de tais eventos. E, no caso de “O que você come?”, o que elaboro para ser dito na comunicação em AVANCA 2025 (outro vínculo institucional) projeta algo a ser modificado durante sua realização — pois tratamos de processos criativos em andamento. Esta comunicação é uma forma de organização para o que desejo fazer, a partir de vínculos com instituições públicas.

O que pretendo fazer?

Preparar uma série de refeições e servi-las a um grupo selecionado de pessoas. O cardápio dependerá de pesquisas de campo e bibliográficas em Lisboa e Porto, para compreender a composição histórica de certos pratos portugueses. Primeiramente, busco receitas contendo o maior número de ingredientes endêmicos da América Latina. Serão pratos (ou uma combinação de receitas) da culinária portuguesa, escolhidos para iniciar rotinas de “esvaziamento”. A intenção é fazer duas versões diferentes — uma “esvaziada” de um ingrediente latino-americano, e outra com o ingrediente removido. No final, teremos dois novos pratos, separados pelo Atlântico. Outra coisa que desejo é implementar métodos de gerenciamento de energia na cozinha — diferentes daqueles de cardápios de culinária com histórico-militar?

Esta comunicação articula elementos relevantes, faz um histórico dos processos de criação e, com eles, aponta uma possibilidade de forma para a realização da performance de “O que você come?”. Com a incorporação de novos campos de investigação na série INTOXICAÇÃO, trazidos pela localização geográfica e temporal das substâncias absorvíveis a serem utilizadas na proposta artística: alimentos endêmicos da América Latina trazidos pelos portugueses para Portugal. Nesta continuação da série INTOXICAÇÃO, performance e vídeo interagem através de “transações reversas”.

Esta pergunta direta me vem à cabeça: como eram as “receitas tradicionais” portuguesas antes das primeiras viagens transatlânticas? A comunicação “América Latina e Portugal: novas interações entre culinária, performance e vídeo na série INTOXICAÇÃO” é sobre o que está por vir — sobre não saber. O consumo de absorvíveis em minha pesquisa, com o recorte geográfico e temporal das primeiras transações, introduziu uma dimensão geopolítica à série INTOXICAÇÃO: os trabalhos anteriores foram dedicados ao corpo e à problematização de aspectos exemplares de obras da História da Arte; e, agora, o vínculo iconográfico se dissolveu, e o foco está nas modificações na culinária portuguesa após a introdução de ingredientes outrora endêmicos à América Latina.

Antecedentes de interesse: substâncias, culinária, vídeo e performance

Minha preocupação com o gerenciamento de energia na cozinha, com os aspectos cotidianos da cozinha, moldou a pergunta “O que você come?” Já tenho algumas “respostas”: elas vêm de ações teste que conduzi com dois amigos e de conversas sobre o tema enquanto cozinhava. A primeira ação de teste ocorreu dentro do programa de residência que coordeno, “oi_Monstro”. Financiei 15 dias de experimentos culinários na casa de uma artista. “O que a artista comia” foi reconsiderado para torná-lo “mais saboroso”, ajudando-a a desenvolver um cardápio para um possível restaurante pop-up. No entanto, a artista estava desconfortável em declarar explicitamente o que comia. Ela também não vislumbrava mudar métodos habituais de consumo de energia durante a preparação dos alimentos. A segunda ação de teste também ocorreu durante uma residência artística. Novamente, propus uma reflexão sobre o gerenciamento de energia durante a preparação de alimentos e como isso poderia afetar o que comemos — em escala global? A artista não estava aberta a adotá-la ou modificar suas rotinas diárias de cozinha e gerenciamento de energia.

Performance e os aparelhos

Treino em performance - a partir de Kazuo Ohno

A ideia de “treino em performance” veio da leitura do livro Treino e(m) Poema, das palavras de Ohno. Aos poucos estou tentando definir o teor deste interesse; e o quanto a palavra “performance” poderia ser esvaziada e produzir outro tipo de realização: o treino não almeja ser uma obra de arte; não desejo declarar que o treino é uma performance (ele opera nela). O treino não se organiza em torno da repetição técnica ou de habilidades formais. É um processo de descondicionamento para o corpo; é uma abertura para estados de presença que modificam gestos codificados. Ele trabalha com imagens que não precisam tornar-se visíveis. O treino em performance pode não acumular repertório e, por isso, operar por subtração. O corpo funciona como se fosse uma membrana permeável.

A primeira vez que articulei a performance e os aparelhos foi com a fotografia analógica em meados dos anos 1990. E é significativo notar que, antes do início da série INTOXICAÇÃO (2015), estas fotografias de performances tenham como tema a documentação do entorpecimento; e, também, que existe uma notável proximidade formal entre as fotografias dos anos 1990 e a série INTOXICAÇÃO. Ciclicamente esbocei roteiros e gravei performances com (e para) as câmeras neste décadas, meus processos criativos e interesses conceituais mudaram — assim como os aparelhos que utilizei.

Em 2002, utilizei uma versão digital do livro Electronic Revolution, de William S. Burroughs, “transformado” em trilha sonora, em dois vídeos, AUDIO 65 e AUDIO 65a. A mesma trilha sonora se repete em ambos e foi criada da seguinte forma: traduzi uma versão digital do texto de Burroughs do inglês para o português usando um programa de computador; depois, com outro programa, “dei” voz a esse texto já significativamente alterado que, devido à tradução, estava em parte incompreensível. Na época, não havia vozes para textos em português, pelo menos não no programa que usei; portanto, a cadência, o sotaque etc. da linguagem são os de um falante categorizado como inglês/americano.

Embora haja esse uso duplo da trilha sonora, as duas obras têm significados relativamente independentes. Em AUDIO 65a, a “personificação” do texto de Burroughs é dada pelos dispositivos e por uma espécie de legenda: o resultado final do áudio foi gravado em uma fita K7 que, por sua vez, foi gravada em vídeo para “ilustrar” o que se ouve; a fita com as informações funciona como uma legenda que percorre todo o tempo de leitura — AUDIO 65a. Já em AUDIO 65, essa mesma trilha sonora é articulada a uma performance em vídeo para determinar sua duração: trata-se de um vídeo de aproximadamente uma hora, documentando, com apenas dois cortes, o consumo ininterrupto de tabaco; para evidenciar essa intoxicação, com certa literalidade, efeitos de vídeo foram adicionados às imagens originais durante a edição.4

Além desses dois casos (AUDIO 65 e 65a), o terceiro vídeo de referência para esta pesquisa, também é de 2002. Intitulado Sonho, foi realizado em parceria com a artista Margit Leisner, por ocasião do evento Faxinal das Artes, um projeto de residência artística realizado em 2002, financiado pelo governo do Paraná, no sudoeste do estado, na antiga vila residencial dos trabalhadores que construíram a Usina Hidrelétrica de Foz do Areia, chamada Faxinal do Céu.5

A quarta referência deste estudo vem do meu doutorado: realizei, como requisito final de uma disciplina, a News: input/output COLAPSO L Á B I O S \ my lips look like an ass?, que se desdobrou da seguinte forma, conforme descrevi detalhadamente em minha tese. L Á B I O S foi um trabalho em vídeo específico realizado em Porto Alegre em junho de 2009, dentro do elevador do prédio do Instituto de Artes da UFRGS, e que foi intermediada pela academia, por meio de uma disciplina de pós-graduação para mestrandos e doutorandos em Poéticas Visuais. Não teria funcionado sem o espírito cooperativo de quem estava lá e participou de alguma forma, mais ou menos relutantemente, mais ou menos disposto a se envolver no que era necessário para que a obra existisse. A ação ocorreu em um local específico, contou com o suporte de um vídeo construído exclusivamente para um tipo de dispositivo, geralmente chamado de mp4 player, fones de ouvido especialmente preparados para uso simultâneo por duas pessoas e algumas instruções gerais.

Em 2013, escolhi a cozinha como cenário para um vídeo de conversa sobre minha pesquisa de doutorado, gravado durante um almoço que preparei para duas pessoas do mundo da arte. E, no ano seguinte, a performance “ticket que eu te dei pra vender” foi vendida em um leilão de arte.6 O comprador do “ticket” seguiu instruções — era válido para quatro pessoas. A compradora renunciou ao direito de escolher as convidadas, então os selecionei com base em suas conexões com o leilão. Elas participaram de uma performance na minha cozinha, desde a preparação até a degustação de bebidas e comidas. Todas ficaram intoxicadas; uma convidada disse que queria beijar todas na mesa — apenas um beijo aconteceu, observado de perto pelas outras. Passei a maior parte do tempo de costas, no fogão, manuseando a faca e os ingredientes, ouvindo atentamente. Uma convidada não sabia que era intolerante à pimenta e ficou completamente vermelha. Passou. Nada foi registrado, exceto uma fotografia de um anel deixado no balcão da cozinha por uma das convidadas — a mesma que propôs beijar todas. Esta única imagem está perdida em algum disco rígido. Gostaria de poder encontrá-la.

Meses depois, gravei um vídeo ficcional para “documentar” a performance “ticket que eu te dei pra vender”. Recriei exatamente o mesmo jantar, mas o operador de câmera acidentalmente a desligou quando deveria tê-la ligado, e vice-versa — o resultado foi uma filmagem incomum, inédita.

Em 2015, comecei a gravar a série INTOXICAÇÃO, ainda sem este título; ele surgiu durante as gravações. As performances envolveram instruções, rotinas de movimento e o consumo de alimentos e bebidas. Os registros das performances permanecem não editados, exceto pelo vídeo Capricórnio.7 Sua gravação foi feita com base em instruções dadas à performer: cortar pedaços de chocolate e ingeri-los lentamente; não tirar a mão de dentro da boca até que ele amoleça e, finalmente, derreta. Esse procedimento foi repetido até que a barra de chocolate acabasse. Foi uma performance longa; o chocolate era amargo, duro, tinha 90% de cacau. Nesta série, dependendo da edição, percebo que as gravações em vídeo das performances podem funcionar mais como um tipo de documentário de assunto impreciso.

Outras referências, possíveis encontros

“América Latina e Portugal: novas interações entre culinária, performance e vídeo na série INTOXICAÇÃO” destaca certas estruturas hierárquicas — neste caso, a relação entre América Latina e Portugal dada pelas plantas. O capitalismo moderno se consolidou como um sistema que acumula formas históricas de exploração do trabalho, sob a hegemonia do trabalho assalariado e do mercado mundial, centrado na Europa (Quijano 2000, 537-38). A colonialidade do poder é eurocêntrica, mesmo após as independências políticas, a colonialidade se mantém através de estruturas sociais, epistemológicas e econômicas (540-41). Na América Latina, estados independentes reproduziram a dominação colonial, sobre indígenas e negros, para impedir a formação de nações democráticas (562-63). A modernidade não é um fenômeno exclusivamente europeu, mas um processo global (544-45).

Walter Mignolo discute como o conhecimento de povos não europeus foi sistematicamente suprimido nos processos de colonização. A epistemologia ocidental, baseada em línguas e instituições europeias, impôs hierarquia racial e geopolítica, na qual certos corpos e regiões eram considerados inferiores (2009, 2). Esta “matriz colonial de poder” operou na exploração econômica e, também, na dominação epistêmica (3). O epistemicídio está ligado à “geopolítica do conhecimento”: a produção intelectual do “Terceiro Mundo” é tratada como mera fornecedora de dados a serem processados pelas instituições acadêmicas do “Primeiro Mundo” (9). Pois, nos resta a “desobediência epistêmica” para afirmar o direito de produzir conhecimento a partir de experiências e cosmologias particulares (15).

“O que você come?” utilizará experimentos culinários e reflexões sobre performance para analisar e sintetizar narrativas históricas. Acredito que a “desobediência epistêmica”, como forma poética, seria uma ferramenta para reestruturação de paradigmas de conhecimento — esvaziar receitas. A culinária foi (e continua sendo) um campo de dominação, sem reconhecimento de suas origens.

É possível ver nas trocas culinárias processos de mestiçagem e resistência, “fronteiras” como espaços de conflito. Elas transcendem as delimitações geográficas, estão nas instâncias culturais, identitárias, existenciais. Em Borderlands / La Frontera: The New Mestiza (1987), Anzaldúa descreve a fronteira como “uma ferida aberta” que sangra, entre o terceiro e o primeiro mundo, para formar uma “cultura de fronteira” (Anzaldúa 1987, 3). A fronteira é um lugar de contradição, onde sujeitos atravessados desafiam categorias rígidas; a fronteira tem potencial transformador, consciência mestiça, a ambiguidade se torna uma força criativa (Anzaldúa 1987, 77-80).

Notas finais

1Sou professor no programa de Pós-graduação stricto sensu em Cinema e Artes do Vídeo (PPGCINEAV: 2018-atual), na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Serei pesquisador visitante no Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público (MADEP) no i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, sediado na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (MADEP/i2ADS/FBAUP) de 01 de julho a 31 de dezembro de 2025.

2Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Revista ARMINHA:
https://leglessspider.wordpress.com/wp-content/uploads/2020/05/arminha_v6_intoxicacao_150_166.pdf
https://leglessspider.wordpress.com/wp-content/uploads/2016/04/arminha_v3_2017_00-196.pdf

3Ver pesquisa: http://hdl.handle.net/10183/72687

4AUDIO 65 e 65a:
https://archive.org/details/audio_65
https://archive.org/details/audio_65a

5Sonho: https://archive.org/details/sonho

6Assista ao vídeo “Aparelhos Cnpq” a partir do minuto 32: https://archive.org/details/AparelhosCnpq

7Capricórnio: https://archive.org/details/INTOXEp1Capri
Alguns quadros das gravações foram publicados aqui: https://leglessspider.wordpress.com/wp-content/uploads/2020/05/arminha_v6_intoxicacao_150_166.pdf

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