Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Desire and Alienation: The Feminine as Double in Peppermint Frappé

Desejo e Alienação: O Feminino como Duplo em Peppermint Frappé

Ana Roberto

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal

Abstract

Peppermint Frappé (1967) explores the dynamics between fantasy, identity, and desire, highlighting the complexity of the double through the characters of Elena and Ana, both played by Geraldine Chaplin. Using a comparative approach, this article analyzes how these characters reflect the desires and fantasies of the male protagonist, Julián (José Vázquez), and also how the concept of the double operates on both a psychological and symbolic level. This reveals the tensions in the confrontation between feminine idealization and reality, while exposing the male protagonist as incapable of recognizing the autonomy of the woman he seeks to control. Finally, the article also reflects on the influence of the Spanish sociopolitical context on the narrative’s construction, suggesting that Peppermint Frappé subverts traditional narratives by revealing the feeling of alienation present in human relationships under a repressive regime.

Keywords: Peppermint Frappé, Desire, Alienation, Feminine, Double.

Introdução

Peppermint Frappé (Ideia Fixa, 1967) estreou sob o regime do General Franco, em Madrid, a 9 de Outubro de 1967. No ano seguinte, em Cannes, François Truffaut e Jean-Luc Godard, em conjunto com outros cineastas, tentaram impedir o screening do filme no festival como protesto a favor das revoluções estudantis de Maio de 1968 em França. Rapidamente, o realizador Carlos Saura juntou-se a eles e, pouco tempo depois, a comissão organizadora decidiu encerrar aquela que se tornou a edição mais política do festival.

Lançado durante o período da ditadura franquista, Peppermint Frappé representa um marco do Nuevo Cine Español. O filme relata a história de um médico, Julián (José Vázquez) que se apaixona pela mulher do seu melhor amigo de infância, Pablo (Alfredo Mayo). O médico acredita convictamente que havia conhecido esta mulher, Elena (Geraldine Chaplin), em Calanda, aquando das celebrações da Semana Santa. A constante rejeição de Elena leva a que Julián se interesse por Ana (Geraldine Chaplin), tornando-a numa cópia visual de Elena e da mulher de Calanda. Como forma de potenciar o olhar subjectivo de Julián ao espectador, o realizador recorre à mesma actriz, Geraldine Chaplin, para interpretar três mulheres diferentes, que na óptica de Julián convergem numa só.

Esta comunicação pretende analisar de que modo a transformação de Ana numa outra mulher reflecte as projecções inconscientes do protagonista Julián e como o conceito de duplo opera simultaneamente no plano psicológico e no simbólico. Este desdobramento ilumina as tensões entre a idealização do feminino e a realidade, revelando a incapacidade de Julián em reconhecer a autonomia da mulher que procura controlar. Por fim, discute-se a influência do contexto sociopolítico franquista na construção da narrativa, sugerindo que Peppermint Frappé subverte as convenções tradicionais ao expor o sentimento de alienação que permeava as relações humanas sob um regime repressivo.

Os nomes

Elena, variante de Helena, é um nome de origem grega que significa tocha. Este significado pode ser imediatamente remetido para o universo simbólico, associando-o ao fogo do desejo. Enquanto portadora dessa luz, Elena ilumina e, simultaneamente, queima as fantasias masculinas que sobre ela recaem. Seguindo a mesma ordem de ideias e, transpondo o nome para a mitologia grega, Helena era uma mulher atraente, manipuladora e, de acordo com a Ilíada de Homero, a causadora de uma das guerras mais devastadoras da História. Esta duplicidade entre submissão e poder é considerada durante o filme, onde Elena tanto adopta um papel submisso enquanto objecto de desejo de Julián, como de domínio ao criar a desordem entre Julián e Pablo e motivar o desfecho trágico da película.

Ana deriva do hebraico Hannah e significa cheia de graça, nome muitas vezes entendido no sentido de dádiva. Se Elena pode ser entendida como uma femme fatale, Ana é exactamente o contrário, uma mulher simples, uma tela em branco pronta a ser pintada. Nesta lógica de duplicação, a personagem de Ana funciona como o negativo fotográfico de Elena, ou seja, a sua identidade só emerge quando é exposta ao masculino. Neste sentido, Ana não só é uma mulher angelical, contrastando com Elena, como uma dádiva para Julián, pois sendo parecida fisicamente com Elena, Julián pode projectar nela todos os seus desejos.

Julián tem origem no latim e significa da família de Julio, representando o nome da gens Iulia /Julia do Imperador Júlio César. A escolha do nome parece pertinente, não só num sentido histórico, dadas as capacidades de Carlos Saura em ultrapassar a censura franquista, mantendo um cinema político (Koresky 2011); como também diegético, dado Julián ser a figura de poder da narrativa, controlando a vida de Ana e o destino do seu amigo Pablo e, respectiva companheira, Elena. O nome imperial sublinha o impulso de Julián em fundar um império doméstico, no qual o corpo feminino é conquistado.

O início

Peppermint Frappé abre com um grande plano de umas mãos masculinas a rasgar uma página de uma face feminina de uma revista. Desde esta primeira imagem que o filme explicita o gesto patriarcal de editar e reconfigurar o feminino segundo um desejo normativo.

Figura 1 O homem por trás da mulher. Carlos Saura.

Retirada a página cortada, surge a página anterior, um rosto masculino, que pode remeter para o homem enquanto criador da figura feminina, como será o caso de Julián na qualidade de criador de Ana. Simultaneamente, irrompe o som de uma música litúrgica, El Misterio de Elche, reiterando desde logo o carácter religioso associado ao personagem de Julián. A utilização de régua e caneta para traçar as partes corporais femininas que deseja recortar demonstram o desejo e a necessidade de controlo do protagonista. A régua, utilizada para medir, e a tesoura, utilizada para cortar, representam o duplo movimento patriarcal: racionalizar e mutilar. A preocupação de Julián em criar um caderno de recortes com aquilo que gosta numa mulher, caderno este que mostrará a Ana, aponta imediatamente para a vontade deste de construir uma mulher à sua maneira. Mas não só, tal como Willem (1999) salienta, Julián preocupa-se apenas em cortar pedaços de mulheres, artificialmente melhoradas através de peças de vestuário ou maquilhagem e, não uma mulher no seu todo, apontando para uma predisposição por uma mulher que representa um ideal composto, ou seja, um mero “aglomerado de partes”. De acordo com o realizador, os recortes das revistas demonstram a obsessão de Julián por objectos e o fetichismo pelos produtos de beleza que ajudam a criar uma “mulher artificial” (Willem, 1999).

As imagens de diversas partes do corpo femininas, tal como a música, são interrompidas pela passagem para a radiografia de uma caixa torácica. O espectador é agora introduzido ao rosto do protagonista Julián e, de seguida, à sua voz. As primeiras palavras de Julián são no sentido de dar uma ordem à enfermeira Ana, que lhe responde: “sim, senhor”. Após entregar o envelope a Julián, este pede um novo favor a Ana que, imediatamente, responde: “o que quiser, senhor”.

Estes três minutos iniciais do filme são importantes para estabelecer a estrutura diegética central. Desde logo, Julián é apresentado como um homem controlador, que manifesta um desejo de poder sobre o corpo feminino, o que não só é reflectido pelos recortes das revistas, como também pelas primeiras linhas de diálogo entre Julián e Ana, através das quais esta se mostra submissa e pronta a fazer tudo o que Julián lhe peça. Inaugura-se, assim, a dinâmica de mestre e modelo.

Julián e Elena

Julián prepara-se para sair de casa, não sem antes retirar uma foto a preto e branco de duas crianças – o próprio juntamente com o amigo Pablo – e colocá-la no bolso. Este dirige-se até à casa de Pablo, onde será proporcionado o primeiro encontro entre Julián e Elena.

Enquanto Julián conversa com a mãe de Pablo dá-se um campo/contracampo entre o rosto de Julián e a figura de Elena com um vestido branco a descer as escadas progressivamente. Tal como os recortes de Julián, também Elena é apresentada por partes, primeiro os tornozelos, depois as pernas e o torso e, por fim, o seu rosto. A sua apresentação fragmentada acentua desde o início a sua condição de projecto em construção. Assim que Julián encara a sua imagem por completo surge o som do rufar de tambores e o espectador tem acesso a uma imagem activada por Julián daquilo que ele crê ser Elena a tocar tambor com o mesmo vestido branco aquando das festas da Semana Santa de Calanda. A explicação da imagem activada pela consciência de Julián fica explícita e ganha contornos de algo entre o flashback e o sonho. Na óptica de Julián trata-se claramente de um flashback, pois este acredita ter conhecido Elena em Calanda há algum tempo. Contudo, de acordo com Elena, isto não será mais do que o fruto da imaginação de Julián e, ao longo da película, Elena continuará a defender que nunca havia conhecido Julián. Esta discrepância entre a memória de Julián e a realidade reforça a ideia de Elena enquanto figura ilusória, um espectro da obsessão masculina. De acordo com Chatman (McIntyre 2006), o mundo narrativo é provido de um filtro que remonta para a actividade mental dos personagens, ou seja, quem vê. Neste sentido, Julián é a personagem que vê durante todo o filme, o que é evidenciado pela mulher de Calanda, personagem ausente da narrativa e que despoleta toda a acção.

O flashback é interrompido por Pablo que oferece um peppermint frappé à mulher e ao amigo, perguntado-lhe: “continuas a beber isto?”. O peppermint frappé é uma bebida de sabor mentolado que esteve muito em voga durante os anos 60 e 70 nas discotecas espanholas, sendo maioritariamente consumida por mulheres (Mora 2018). Curiosamente, ao longo do filme, raras são as vezes em que Pablo bebe um peppermint frappé, estando esta bebida sempre associada a Elena e Ana ou a Julián que denuncia um interesse claro pelo universo feminino, contrastando assim com Pablo.

A donzela e o demónio

O segundo encontro entre Elena e Julián é proporcionado por Pablo. Numa visita ao consultório de Julián, Pablo pede-lhe que leve a sua mulher a passear. Julián aceita e dirige-se até ao carro desportivo de Pablo, onde a atracção sexual de Julián por Elena se manifesta através do plano de visão subjectiva de Julián sobre as meias de Elena enquanto esta lhe explica como deve colocar as mudanças – o que, simultânea e paradoxalmente, aponta tanto para a inexperiência de Julián em actividades consideradas masculinas como para a tensão sexual sentida entre os dois personagens.

Figura 2 A mão de Elena na cruz de pedra. Carlos Saura.

Numa visita a um jardim local, Julián conta a Elena a história de um diabo que tentou seduzir uma donzela. A donzela contrariou todas as tentativas do diabo até este tocar no seio dela e, consequentemente, transformá-la numa cruz de pedra. Elena ri-se da história popular e coloca uma mão sobre a cruz de pedra exclamando: “é igual à minha mão!”, ao que Julián responde: “essa é a mão do diabo”. Esta afirmação inocente de Elena é a primeira figuração desta enquanto um monstro e funciona como uma premonição do desfecho trágico de Peppermint Frappé. A associação de Elena à mão do diabo inscreve-a desde cedo na lógica do feminino demonizado, tal como sugerido pela tradição patriarcal.

No decorrer do passeio, Julián volta a insistir na ideia de que ele e Elena já se conhecem, socorrendo-se da ferida da mão desta não só como uma consequência de ter participado nas festas de Calanda, mas também como prova de um encontro fortuito no passado. Rapidamente, Elena apressa-se a desmentir e a dar uma explicação para a sua ferida, dizendo que se havia cortado a abrir uma cerveja. Contudo, a visão turvada de Julián, que apenas vê partes e não todos, rejeita a fundamentação de Elena e prorroga a sua crença inicial. Neste sentido, Julián constrói Elena como um fantasma, recusando a sua realidade concreta e convertendo-a numa figura imaginada moldada pelos seus desejos.

O passeio termina com uma visita ao cabeleireiro, onde Julián e Elena conversam sobre o estatuto da mulher. Numa clara alusão às normas morais impostas pela Igreja Católica, Julián critica Elena por não querer ter filhos, argumentando que é para tal que a biologia feminina está programada. A conversa evolui para a temática do casamento e, após Elena ser chamada pela cabeleireira, Julián pega na sua mala e fica encantado com as pestanas falsas que encontra no interior. Um travelling sobre a mão e anel de Elena despoletam um novo flashback, a preto e branco, de uma menina vestida de branco a correr pela floresta, onde é encenado um casamento de brincadeira entre esta menina e Pablo. No final, há um grande plano sobre a face de Julián que parece exteriorizar os ciúmes do personagem em relação ao seu amigo de longa data, Pablo. O fim de semana no antigo colégio religioso, do qual Julián é actualmente dono, serve como pretexto para recolher mais informação sobre Elena e aplicá-la a Ana.

Figura 3 Desejo vs. Repressão. Carlos Saura.

Curiosamente, enquanto Julián experimenta a maquilhagem de Elena, manifestando mais uma vez uma certa androginia do personagem, surge a música que viria a ser conhecida com o título do filme: Peppermint Frappé, mas cujo título original era The Incredible Miss Perryman da banda Los Canarios. Pensando um pouco sobre o título da canção, esta parece evidenciar o mesmo carácter andrógino do personagem principal através do paradoxo entre o miss e o sufixo do apelido man. Julián percebe que a música está a soar do exterior da casa e dirige-se à janela, subindo umas escadas que relembram um altar, podendo remeter para a repressão sexual proporcionada pela igreja Católica. Este espaço, a casa de Julián, transforma-se num cenário assombrado, onde as aparições, as obsessões e os desejos reprimidos emergem como fantasmas do inconsciente.

Enquanto tenta dormir no sofá, observando o fogo da lareira a arder, que parece simbolizar o desejo, Julián tem um novo flashback da menina de vestido branco de quem gostava quando era criança. O protagonista levanta-se e acaba por encontrar Elena, ouvindo-se, novamente, o rufar dos tambores. Julián beija-a, mas Elena afasta-o e volta para o quarto. Imediatamente, o espectador é transportado para o momento em que Julián está a revelar as fotografias que tirou durante o fim de semana. Numa das imagens, Elena parece deformada, como se carecesse de essência e é enquadrada naquilo que se parece com uma cruz cristã, relembrando a história da donzela e do diabo que Julián lhe havia contado.

Figura 4 Negativo de Elena enquadrado numa cruz cristã. Carlos Saura.

A imagem deformada de Elena, captada por Julián, revela o colapso entre o desejo e a monstruosidade.

Figura 5 Elena e Julián observam o quadro de Antonio Saura. Carlos Saura

A terceira configuração de Elena com contornos desfigurados surge aquando da visita de Julián ao museu de arte abstracta com o objectivo de entregar as fotografias a Pablo e Elena.

Brigitte Bardot é uma pintura de Antonio Saura, irmão do realizador, que data de 1958. Retirando a inspiração da personagem amoral de Brigitte Bardot em En cas de malheur (Amar é a Minha Profissão, 1958), Antonio Saura transforma-a num monstro (Tudelilla). O insert sobre o nome do autor e da obra de arte, conjugado com o interesse de Elena pelo quadro, revela a consciência que a personagem tem da sua duplicidade enquanto mulher qualificada para seduzir, ao mesmo tempo que leva a desgraça aos personagens masculinos. Este jogo entre perversão e erotismo é figurado na personagem de Elena, uma mulher sensual sem medo de questionar os constructos sociais. Elena encarna assim o arquétipo da mulher-monstro, simultaneamente deseja e temida, cuja presença abala o sujeito masculino.

Figura 6 A mulher de Calanda vs. Elena. Carlos Saura.

O dia termina com uma performance de Elena que toma o papel da mulher de Calanda. Porém, tal como Willem (1999) refere, a utilização de um vestido preto e não o vestido branco com que Julián a imagina, sugere que Elena é agora o oposto do seu duplo. A imagem pura que Julián tinha da mulher de Calanda é corrompida pela personalidade forte de Elena. Este incidente torna-se no factor propulsor da decisão de Julián em matar os dois amigos.

Julián e Ana

Carlos Saura recorreu à mesma actriz, Geraldine Chaplin, para interpretar tanto os papéis de Ana e Elena como o da mulher de Calanda. Tal potencializa que o olhar subjectivo de Julián seja idêntico ao do espectador, dando a ilusão de que as três mulheres diferentes são na realidade uma só tal como Julián as percepciona. Este jogo de duplos transforma a figura feminina num ser espectral, sem identidade fixa, cuja essência parece escapar à compreensão.

Figura 7 Os movimentos de câmara da primeira vez em que Julián vê Elena e da primeira vez em que vê realmente Ana são semelhantes. Carlos Saura.

Ana representa a velha Espanha conservadora. Tais características manifestam-se na sua inexperiência, nas roupas antiquadas e no desinteresse para com as tendências além-fronteiras. Curiosamente, Julián não está interessado em Ana, mas sim na moderna Elena, que se veste e maquilha de acordo com a moda internacional e fala inglês. O insucesso das investidas de Julián em Elena leva este a focar-se em Ana. Não podendo ter a mulher original e percebendo o potencial de Ana enquanto cópia, Julián faz os possíveis por torná-la no objecto do seu desejo: Elena.

Findo o flashback, que aponta para um casamento a brincar entre duas crianças, o espectador é transportado de volta para o consultório de Julián. É neste momento que Julián, ao observar Ana a trocar de roupa, evidenciando desde logo o carácter voyeurístico da personagem, parece aperceber-se das parecenças entre Elena e Ana e do potencial em bruto desta última. Julián prepara peppermint frappés enquanto inquire Ana sobre a sua vida pessoal. Porém, este parece não estar realmente interessado nas respostas de Ana, mas sim em dar-lhe a conhecer as tendências que a jovem desconhece, desde a roupa até à maquilhagem, recorrendo ao caderno de recortes que estava a construir no início do filme. De seguida, Julián encaminha Ana até ao quarto e orienta-a na forma como esta deve fazer exercício físico. A transformação forçada de Ana em Elena assemelha-se a uma operação espectral: Julián tenta reanimar, através de outro corpo, a mulher que não consegue possuir.

Ao sair do banho preparado por Julián, Ana queixa-se de ter uma bolha na mão entre o dedo polegar e indicador, exactamente no mesmo local onde Elena tem a marca que Julián acredita ter sido causada pelos tambores de Calanda. Esta marca, que numa primeira análise pode parecer insignificante, é o primeiro elemento de ligação entre Elena e Ana, impulsionando o prelúdio de um olhar idêntico de Julián sobre estas duas mulheres juntamente com a mulher desconhecida de Calanda.

Figura 8 Elena e Ana partilham da mesma marca da mão. Elena contradiz Julián, que acredita ser a prova de que Elena esteve em Calanda, e diz tê-la feito ao abrir uma cerveja. A bolha de Ana é infligida pela máquina de exercício que Julián a obriga a utilizar. Carlos Saura.

Após Julian revelar as fotografias do fim de semana na casa de campo depara-se com Ana deitada na sua cama a ouvir a mesma música que Elena, The Incredible Miss Perryman, vestindo umas meias semelhantes àquelas que Elena usava aquando do passeio de carro com Julián. A sobreposição de identidades é cada vez mais visível, contudo, a jovem ainda não está plenamente confortável em maquilhar-se da forma que Julián pretende. O colocar das pestanas falsas em Ana juntamente com o batom da mesma cor, que Elena utiliza, funcionam como um novo avanço de Ana enquanto duplo de Elena. A maquilhagem não é apenas um acessório, mas sim um meio para a construção de uma mulher à imagem da memória e do desejo de Julián. Enquanto Julián prepara peppermint frappés, Ana descobre as fotografias que Julián havia tirado a Elena. Contrariamente ao que se podia achar, Ana não fica incomodada, pois parece perceber que para ter toda a atenção de Julián precisa de se transformar naquela mulher. Em consequência, a jovem sedutoramente diz a Julián que deveriam passar o fim de semana juntos.

O homicídio e a metamorfose final de Ana

A humilhação sentida por Julián, após Elena e Pablo ridicularizarem a fantasia da mulher de Calanda, surge como a força motriz para o planeamento do homicídio do casal. No seguimento desta cena há um insert sobre uma garrafa de peppermint. Se até então o líquido era retirado directamente da garrafa de bebida, este insert dá ênfase à alteração do recipiente, passando para uma garrafa Bols com uma bailarina no interior, o que aponta, igualmente, para uma alteração na estratégia de Julián. Estas garrafas, particularmente famosas nas décadas de 60 a 80 do século XX, continham uma pequena bailarina que dançava ao som de uma melodia quando poisadas em cima da mesa; ao levantar a garrafa, a melodia deixava de tocar e a dança cessava. Em Peppermint Frappé, o mecanismo da garrafa é inverso, a garrafa toca quando está em movimento, o que, tendo em conta o cinema de Carlos Saura, parece não ser um detalhe ingénuo. Numa entrevista de Juan Carlos Rentero (1976) a Carlos Saura, o realizador referiu que nada nos seus filmes era casual. Relembrando que o que define a palavra acção é a possibilidade de fazer algo, no filme, esta possibilidade é simbolizada exactamente através da movimentação da garrafa. Neste sentido, caso a melodia reflectisse o seu mecanismo original e reproduzisse enquanto poisada, tal submeteria Julián a uma inércia comportamental, o que não é o que se irá revelar nos momentos seguintes.

Julián serve-se de um copo de peppermint frappé previamente à chegada do casal, retirando o líquido da garrafa original. Elena brinca com um tambor presente na sala enquanto repete as palavras: “Calanda. Semana Santa e com uma cicatriz aqui dos tambores”. Entretanto, mais uma vez, a masculinidade de Pablo é reiterada e contrastada com a de Julián, pedindo-lhe um whiskey, ao que Julián responde que, primeiro, terá de beber um peppermint frappé. Enquanto Julián prepara as bebidas – servidas da garrafa bols –, Pablo insurge-se na leitura de um poema de Antonio Machado que Julián e Elena tinham recitado juntos no início do filme: “Yo voy soñando caminos”. Curiosamente, Pablo começa a meio do poema, a partir dos versos: “Y todo el campo un momento / se queda, mudo y sombrio” e, só chegando ao final lê as estrofes iniciais, o que pode remeter para uma antevisão do desfecho trágico. A leitura truncada do poema pode ser lida como um reflexo da desconexão emocional que Julián sente, reconstruindo o passado à sua maneira, tal como reconstrói o feminino.

Pablo e Elena erguem-se numa dança descontrolada ao som de The Incredible Miss Perryman destoando da rectidão tão defendida por Julián. Elena pede a Julián para dançar, mas este, prontamente, demonstra o seu desconforto e questiona Elena sobre o porquê de ter contado a Pablo sobre a mulher de Calanda. Elena afirma não ter segredos para com o marido e coloca uma rosa vermelha na lapela de Julián. A rosa, até então hirta, fica murcha em segundos, simbolizando o perecer da paixão de Julián por Elena. O gesto de Elena quebra, também, o controlo simbólico que Julián quer ter sobre os rituais de género, evidenciado a sua impotência em relação ao feminino.

Figura 9 Desfiguração de Elena. Carlos Saura.

Elena corre para fora de casa e Pablo segue-a. Os efeitos da droga que Julián colocou nos peppermint frappés do casal começam a surtir efeito, estes caem no chão e Julián coloca-os dentro do carro, simulando um despiste. Contudo, no caminho, Julián esquece-se de um dos sapatos de Pablo. Antes de colocar Elena no carro, Julián pára para, não só lhe retirar as pestanas falsas como esfregar a maquilhagem da cara desta. Este gesto de lhe retirar a maquilhagem revela-se não só como uma tentativa de apagar a prova, mas também como um momento de desconstrução simbólica da identidade feminina construída, anulando-a para dar lugar à réplica. Tal implica que a destruição de Elena a nível figurativo seja um elemento fundamental para que Julián a consiga matar, ou seja, para que exista uma destruição literal, primeiro tem de existir uma destruição figurativa. As duas imagens iguais não podem coexistir. É um tropo dos filmes de duplos como Vertigo (1959) ou Daydreams (2016).

Figura 10 Metamorfose completa de Ana. Carlos Saura.

Ao chegar a casa, Julián apercebe-se de que Ana eliminou a única pista que o poderia incriminar do crime cometido contra o casal: o sapato de Pablo. Ouve-se o soar de tambores e Ana entra exactamente igual à imagem que Julián construiu da mulher de Calanda, envergando, pela primeira vez, a peruca igual ao cabelo de Elena, evidenciando que para que Ana exista enquanto cópia não pode coexistir com Elena. O corpo de Ana torna-se agora o objeto de inscrição do desejo de Julián, substituindo o real pelo ideal. Julián gira em torno de Ana com a expressão de um criador maravilhado com a sua obra de arte. Com a morte de Elena, a metamorfose de Ana está terminada, seguindo as palavras de Saura: “en el fondo, la película es la destruicción de una mujer para crear otra mujer, que es igual, pero a través de accesorios, de pinturas, de pestanas, de carmin de lábios, de potingues” (Willem 1999).

A lógica por detrás desta transformação remete ao mito de Pigmalião escrito por Ovídio e teorizado na Psicologia contemporânea como efeito de Pigmalião. De acordo com Rosenthal e Jacobson, os indivíduos comportam-se consoante as expectativas que percebem que os outros têm sobre eles. Neste sentido, Ana torna-se plenamente consciente do desejo que Julián projecta sobre ela no momento em que observa as fotografias que Julián tirou a Elena. É nesse instante que compreende que, para ser amada, deverá corresponder ao molde imaginado por Julián, tal como acontece com Judy em Vertigo. Ambos os filmes apresentam protagonistas masculinos que ocupam o papel de criadores ou escultores, moldando as mulheres segundo um modelo idealizado e inatingível. As protagonistas femininas reconfirguram-se para habitarem o imaginário masculino, uma performance do desejo alheio em detrimento da sua própria subjectividade. O desfecho demonstra o carácter destrutivo desta dinâmica: se em Vertigo, Judy morre, em Peppermint Frappé, Ana dissolve-se na imagem de Elena. O amor não se constrói a partir do encontro entre duas pessoas, mas sim através da imposição de uma imagem sobre outra.

Alienação e ditadura franquista

A tensão entre desejo privado e imposição pública, transposta através da personagem de Julián, pode ser interpretada à luz da alienação produzida pelo regime franquista. O protagonista é incapaz de equilibrar e conciliar tradição e modernidade, internalizando, mesmo que inconscientemente, a ideologia do “ángel del hogar” promovida pela Sección Feminina, que confinava as mulheres ao espaço doméstico. Estre triângulo amoroso não é uma mera relação amorosa, mas sim uma projecção de um conflito colectivo: uma Espanha que aspirava à mudança, mas receava as consequências.

Julián está dividido entre o seu desejo e fascínio por Elena, uma mulher cosmopolita e emancipada, e o seu carinho por Ana, que representa a continuidade e a segurança do tradicional. Esta indecisão leva-o a tentar fundir as duas personagens numa só, criando uma mulher que vai ao encontro dos seus desejos e fantasias. Este gesto não é apenas uma acção psicológica, é uma reprodução da lógica autoritária que apaga a diferença e impõe a unidade. O corpo feminino torna-se num lugar simbólico capaz de reproduzir o trauma de uma nação.

É neste sentido que aponto que Peppermint Frappé vai além do individual ao propor um diagnóstico da Espanha franquista, sublinhado ironicamente pela profissão de Julián, um radiologista, ou seja, alguém que analisa o interior dos corpos, aquilo que não se vê a olho nu. Elena encarna a mudança e a novidade enquanto Ana representa a ideia de continuidade. Ao tentar conciliá-las numa só figura, Julián encena a violência simbólica da substituição de um regime por outro. O filme desmonta, assim, a ilusão de neutralidade do desejo e denuncia a instrumentalização da mulher.

Conclusão

Peppermint Frappé serve como alegoria para o desejo e alienação do poder patriarcal num país refém da moral franquista. A personagem ausente da mulher de Calanda funciona como força motriz para o desencadear da confusão mental evidenciada em Julián. Tal funciona como eixo simbólico de um regime que, à semelhança do protagonista, impõe fantasias normativas sobre a mulher. Recorrendo à mesma actriz, Geraldine Chaplin, para interpretrar três personagens diferentes: Elena, Ana e a mulher de Calanda, Carlos Saura salientou a possibilidade de uma fantasia minar a percepção humana ao ponto de forçar uma transferência de características de uma personagem para outra. Esta premissa serve como base para a conflitualidade de duplos figurada em Elena e Ana e sentida ao longo da narrativa. A fantasia masculina move-se de um corpo para outro, anulando a autonomia de cada mulher.

Para que Ana exista plenamente, Elena não pode coexistir com esta, tal torna-se notório ao longo da transformação de Ana. A jovem só coloca a peruca loura, característica de Elena, quando sabe que esta está morta. A aparição final de Ana resulta, não só na constatação de que esta serve de meio de ligação entre Elena e a mulher de Calanda, unindo-as numa só, como também na entrega plena de Ana aos desejos do seu criador. A metamorfose final confirma o êxito do projecto de Julián, mas também o seu fracasso, uma vez que a mulher perfeita só é atingida através da destruição de outra. O franquismo, ao ditar os papéis de género, aliena os indivíduos, independentemente dos seus géneros, das suas próprias identidades, produzindo sujeitos incapazes de reconhecer a alteridade.

Ao questionar o papel da fantasia no amor e, consequentemente, a autenticidade de um amor que (sobre)vive da criação do amante, Peppermint Frappé emancipa-se do universo exclusivo de três personagens, reflectindo sobre os limites do desejo normativo para sustentar fantasias hegemónicas sejam elas psicológicas e individuais ou históricas e colectivas.

Bibliografia

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Rentero, Juan Carlos. 1976. “Entrevistas com Carlos Saura”. In Dirigido por 31, 1217.

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Filmografia

Peppermint Frappé. 1967. De Carlos Saura. Espanha: Elías Querejeta Producciones Cinematográficas. Filme.

Vertigo. 1959. De Alfred Hitchcock. Estados Unidos: Paramount Pictures. Filme.