Abstract
The opera Madama Butterfly (1904) by Giacomo Puccini (1858-1924) is a work that refers to scenarios full of symbolism of oriental influence, demanding a deep knowledge of the symbols used in it and the symbolism associated to them. The theme, a target of interest for David Cronenberg (b. 1943), gave rise to a film proposal in 1993. In both media, characters and narratives transport us through themes and experiential environments where conflict and ambition for realities dissimilar from our own, predominate.
The story, based on the passion of a Western man for an Eastern woman, refers to a specific era in culture and arts, where the fascination for the East Culture and the absorption/incorporation of its ways of being are revealed in painting, music and media. The original text, by John Luther Long, serves the libretto of Giacomo Puccini’s opera written by Luigi Illica and Giuseppe Giacosa, as well as for the plot to the screenplay by David Henry Hwang.
Using the discourse offered in these proposals, we intend to discuss the symbolic component present in them, as well as in the one proposed by Giacomo Puccini. This action will allow us not only to describe their characters and experiential and emotional environments, but also to show how their use contributes to the manifestation of the characteristics of an artistic movement that emerged at the end of the 19th century and beginning of the 20th century, the Art Nouveau movement.
Keywords: Madama Butterfly, Giacomo Puccini, David Cronenberg, Semiotics of images, Art Nouveau.
Introdução
Embora a influência do Japonismo nas artes visuais seja notável, ela não se restringe apenas a este campo da arte, influencia também a arquitetura, o paisagismo e a moda. Encontrando-se entre os vários temas que aborda, aqueles ligados à tradição militar, à religião, ou à vida quotidiana, o despontar do Japonismo, que resulta do fascínio da sociedade europeia pelas culturas extraeuropeias, mormente a japonesa, naquilo que são os seus modos de vida, religião, símbolos e simbologias culturais, leva a que muitas das suas características sejam refletidas e colocadas em arte. O interesse que sobressai por esta cultura conduz a uma quase inevitável influência sobre os criadores ocidentais, facto que podemos perceber em numerosos conteúdos propostos desde o século XIX por vários artistas, entre eles compositores. Assim, fácil é reconhecer a influência que a arte japonesa detém sobre a criação artística ocidental, inspirando os artistas nas mais diversas áreas, bem como aqueles do movimento Arte Nova, desempenhando um papel importante no desenvolvimento da arte em finais do século XIX e início do século XX. O Japonismo inicia por volta da segunda metade do século XIX, fruto de um conhecimento mais aprofundado que o ocidente obtém das culturas de outras partes do mundo que não a Europa. Promovido nas Exposições Internacionais que decorriam um pouco por todo o mundo ocidental, principalmente as de Londres (anos 1851, 1862) e de Paris (anos 1855, 1867, 1878, 1889, 1900, 1937), é marcado, a nível plástico, pela assimetria, a ausência de profundidade e o uso de cores primárias. Enquanto corrente artística, não representa uma cópia daquilo que nos era proposto pela vida e cultura japonesas, representa sim, a união entre duas culturas, facto que gerou um outro modo de olhar o fazer e o dizer a arte, factos que se consubstanciam em diversas formas de inovação e inspiração1.
É do conhecimento geral que, até ao século XIX, o Japão se manteve bastante isolado do mundo ocidental. Estando fechado a influências externas, a genuinidade da sua cultura permaneceu inalterada, sendo um fator de atração por parte de outros países do mundo, sobretudo os ocidentais. Ao longo da sua história confrontamo-nos com diversos períodos sociopolíticos e regimentais, principalmente o período Edo, o qual, vigorando entre os anos de 1603 a 1867, se caracteriza por ter conseguido alcançar uma época de paz, promovendo a falta de contacto e de relação com outros países da Europa e do Mundo. Dando lugar ao período Meiji que vigora entre os anos 1868 e 1912, percebemos que conduz à progressiva modernização do país2. Futuramente, sob a influência de diversos países e sob o domínio da colonização britânica, ocorre um forte processo de ocidentalização, tornando-se o Japão o primeiro dos países asiáticos a ser considerado um país fortemente industrializado3.
A abertura do país a influxos externos é, pois, um facto, mas a influência nunca se faz num único sentido e acaba por atingir os dois lados. Consequentemente, a arte e a cultura japonesa são descobertas pelos artistas europeus sendo que entre os anos de 1860 e 1870, se verifica um forte afluxo em direção à Europa de diversos objetos de arte provenientes do Japão. Analisando a produção de alguns artistas europeus, especialmente os franceses, podemos afirmar que o Japonismo surge como reinterpretação europeia dos elementos recolhidos numa prospeção por elementos desta cultura, integrando características e estilos desta nos objetos de arte criados a nível ocidental. Na produção alusiva a esta tendência, o Japonismo, encontramos o intercâmbio de influências entre as artes japonesa e europeia que se exterioriza, por exemplo na simplificação do uso das cores e da perspetiva. No que concerne a paleta de cores, encontramos aquelas consideradas como as mais vivas, nomeadamente os vermelhos e os azuis escuros. No caso das gravuras japonesas, como estas representam muitas vezes o quotidiano e a natureza, são os tons mais naturais que são explorados. As formas e outros elementos tais que as árvores, as flores e os pássaros, bem como o elemento água, nas suas mais diversas formas, são combinados em equilibrados conjuntos representativos da natureza e dos espaços de vivência deste povo. São também os elementos que encontramos representados em grande destaque nas gravuras japonesas que deram origem ao Japonismo. Em comum, para além de serem elementos da natureza, possuem as formas orgânicas que são do agrado dos artistas desta época da história da arte4.
O modo como representavam os diferentes elementos da natureza e vivência humanas nos objetos de arte fascina então os autores ocidentais motivando-os a integrá-los, utilizando técnicas diferenciadas, na sua produção artística. A ópera Madama Butterfly (1904) de Giacomo Puccini (1858-1924) é uma obra que remete para cenários plenos de simbolismo de influência oriental, reclamando um conhecimento profundo dos símbolos nela utilizados e da simbologia a eles associada. Em outro, a sua narrativa possui símbolos, simbologias e temas considerados pertinentes e influentes à época, mormente o papel da mulher oriental, o interesse e curiosidade pelo novo e desconhecido, o amor não correspondido, as diferenças culturais e sociais, entre outros. A história, assente na paixão de um homem ocidental por uma mulher oriental remete para uma época da história da humanidade onde a cultura e as artes assumem o fascínio existente pelo oriente promovendo a incorporação, senão absorção, das suas formas de ser e estar. Esta ação concretiza-se ao nível das várias artes, seja na pintura, na música, nas artes visuais ou cinematográficas. Neste sentido, o tema, alvo do interesse de David Cronenberg (n. 1943), origina uma proposta fílmica em 1993 intitulada de M. Butterfly 5.
O texto original, da autoria de John Luther Long (1861-1927), e escrito em 1898, serve de base à criação do libreto da ópera de Giacomo Puccini Luigi Illica (1857-1919) e Giuseppe Giacosa (1847-1906), bem como ao enredo que serviu de base ao guião do filme, desta feita da autoria de David Henry Hwang (n. 1957). Neste sentido, podemos não só perceber a forte influência da obra original nas narrativas propostas, como o interesse que transparece, anos mais tarde, pelas mesmas temáticas. Até que ponto não são ainda hoje atuais refletindo uma não evolução ética, social e moral. Recorrendo ao discurso oferecido nestas duas propostas, pretendemos discutir a componente simbólica presente na obra musical e, posteriormente, na obra cinematográfica e na música que a suporta. Esta ação permitir-nos-á não só caracterizar os seus personagens, vivências e emoções, como mostrar de que modo o seu uso concorre para a manifestação das características e simbologias de um movimento artístico que eclode em finais do século XIX e início do século XX, o movimento Arte Nova.
1. Madame Butterfly da autoria de John Luther Long sob a lente de Giacomo Puccini e David Cronenberg: simbologias, intenções e identidades
Madame Butterfly de John Luther Long, alvo do interesse de vários autores, que redigem guiões que servem de base às obras que aqui nos propomos analisar foi, também ele, inspirado numa obra anterior intitulada Madame Chrysanthème (1887), da autoria de Pierre Loti (1850-1923), um escritor e oficial da marinha francesa6. A análise da sua obra permite perceber a influência que recebe de outras culturas, sobretudo as orientais, facto que coloca em obra sob os mais diversos aspetos. Ricamente ornamentadas por ilustrações que nos mostram os elementos do território, mas também as características e elementos da sua cultura e identidade, surgem pejadas de informação que capta a atenção do ocidental para estas realidades, motivando a sua apreensão enquanto cultura, modos de vida, simbologias e religião. Neste contexto, o interesse manifesto por culturas de outras regiões do globo surge narrada e vivenciada tanto pelos autores como pelos leitores da sua obra. Ao nível das correntes artísticas, os elementos geradores de conhecimento e arte enformam-se destas realidades.
Assim, e no contexto do Japonismo, bem como no do Movimento Arte Nova, os motivos da natureza pertencentes à fauna ou à flora, ou outros com uma simbologia relacionada, ou ainda diversos artefactos de uso no dia-a-dia, encontram-se frequentemente retratados. No primeiro dos livros, Madame Chrysanthème, bem como no segundo, Madame Butterfly, encontramos referência a dois elementos da flora e da fauna abundantemente reproduzidos no contexto do movimento Arte Nova, o crisântemo e a borboleta.
A borboleta e a libélula, pela sua beleza e particularidades, são dois dos animais mais retratados pelos artistas Arte Nova e pelos japonistas. No manancial de registos e produções artísticas a que temos acesso de final de século XIX e início do século XX, no campo da música, principalmente a erudita, as representações da fauna e da flora em arte, manifestaram-se sobretudo na composição de obras onde, para além da componente sonora e musical, se integram elementos de outras componentes artísticas, especialmente a visual, a coreográfica, a cénica e a teatral. Neste contexto, não podemos desmerecer os ideários, simbologias e imagéticas que encerram. Diversos compositores foram por eles influenciados, criando um conjunto de obras que refletem as suas componentes estilísticas e estéticas. A nível musical, podemos referir como características predominantes o uso frequente de harmonias inovadoras, timbres exóticos e progressões harmónicas inusitadas, refletindo a busca por uma expressão artística mais autêntica, livre e individual, mas também a reprodução do conjunto das influências de outros domínios do conhecimento e de outras regiões do mundo, sobretudo as orientais7. As características que este movimento possui ao nível da produção de obra fizeram com que a música composta neste período fosse considerada uma forma de arte total, onde diferentes disciplinas se uniram para criar uma experiência estética e musical diferenciadora.
1.1 Madame Butterfly de Giacomo Puccini
A ópera Madama Butterfly (1904) da autoria do compositor italiano Giacomo Puccini, assenta em libreto redigido conjuntamente por Luigi Illica e Giuseppe Giacosa como já referido anteriormente (Giacosa 1904). Esta proposta encontra-se suportada pelo drama da autoria de David Belasco (1853-1931), o qual, por sua vez, se baseia numa história escrita pelo advogado norte-americano John Luther Long (Long, 1904). Como podemos verificar vários são os autores e modos de transmitir uma história de amor e desamor que sustentará a proposta do compositor. Iniciando numa obra redigida por John Luther Long (1904), é redefinida por Giacosa e Illica de modo a poder ser utilizada por Puccini como texto base para a sua ópera. A obra estreou no Teatro Alla Scala de Milão a 17 de fevereiro de 1904. Nela encontramos uma forte influência oriental que não surge somente do expresso no subtítulo da proposta de Giacosa – tragédia japonesa-, mas também de toda uma simbologia que transcorre da narrativa, das temáticas, dos espaços e dos conteúdos narrados (Giacosa 1904). Para além dos elementos veiculados pelo texto, é clara a intenção do compositor em incluir intencionalmente algumas melodias ou técnicas de escrita tradicionais do Japão. A influência oriental e do japonismo surge neste contexto, mas também, quando, para dar mais realismo sonoro à sua proposta, Puccini engloba duas melodias tradicionais japonesas como material temático em dois momentos cruciais da narrativa.
Segundo Kuino Hara (2003), há duas melodias que se destacam pelo significado cultural e pela história que suportam: Miyasan, uma canção do período Meiji que refere alguns aspetos da vida em tempos de guerra e Kimigayo, uma canção que, pela sua importância, se pode considerar um Hino do Japão8. Simultaneamente, segundo um outro autor, Haylock (2008, 116),
Aparentemente, o que levou Puccini a procurar inspiração no Oriente foi uma representação da nova peça em um ato de David Belasco Madama Butterfly, a que o compositor assistiu em Londres em Junho de 1900 [...]. O cativante enredo da peça (baseado num conto de John Luther Long), que conta a história de um oficial de marinha americano que se casa com uma gueixa, engravida-a e depois regressa à América para contrair um casamento “a sério” [...]9.
Embora Puccini dominasse mal a língua inglesa, só captando o sentido geral daquilo que se dizia, reconheceu o tema da tragédia referenciada na obra de Long e Belasco, como um assunto relevante, audacioso e auspicioso para a sua ópera. De modo a enaltecer o tema, mas também as características que sobressaem da influência da cultura japonesa e do mundo oriental, o compositor utiliza diversos símbolos que recalcam e aprofundam toda a imagética e dramaticidade da história revelando-nos o profundo conhecimento que o autor possuía da simbologia que lhes estava associada.
Relacionada com a designação da obra encontramos logo a referência a um inseto em particular, a borboleta, elemento e simbologia bastante relevante para os criadores à época. Lembremos os objetos da autoria de Alphons Mucha onde a borboleta impera. A borboleta assume um papel de destaque durante a ópera, pois encontra-se constantemente relacionado com a personagem principal, Madame Butterfly. Assim como Cio-Cio-San, as borboletas representam uma beleza delicada que é breve. Butterfly é descrita como uma mulher formosa que ambiciona casar-se com um homem de uma outra cultura e nacionalidade, neste caso a americana, de modo a viver uma vida confortável e influenciada pelos valores do ocidente. Contudo, os seus planos são aniilados e ela é direcionada, gradualmente, para um final de vida trágico. Os pássaros também são importantes para as culturas orientais. As suas presenças, com especial destaque para os rouxinóis, reforçam a ligação de Butterfly com a natureza e o Japão. Assim como as borboletas, os rouxinóis representam a fragilidade e a pureza, características arroladas a Cio-Cio-San. Contudo, o canto deste pássaro, ao longo da obra, também está relacionado com a solidão, o sofrimento e a saudade, emoções sentidas pela protagonista logo depois do seu casamento com Benjamim Franklin Pinkerton. Em sentido contrário, estes animais, também refletem a esperança que esta detém no regresso do seu amado (Giacosa 1904).
A presença de outros animais e a simbologia a eles associada como sejam os peixes, em especial as carpas, também se manifesta. De grande importância e significado na cultura japonesa, as carpas são conhecidas por nadarem contra a corrente refletindo determinação e bravura10. Outro elemento frequentemente apresentado é a flor de cerejeira, a sakura, que representa a beleza efêmera e a fragilidade11. A cerejeira fica pouco tempo florida. Aproveitemos, pois, intensamente cada momento, pois o tempo passa e a vida é curta. Na obra que analisamos encontra-se diretamente relacionada com o amor e felicidade que Butterfly sente por Pinkerton mas, com o decorrer da narrativa, tudo acaba em sofrimento e abandono (Giacosa 1904). A efemeridade dos momentos, dos sentimentos e da vida em tudo surge. Aquando da cerimónia do casamento de Butterfly com Pikerton, as flores de laranjeira surgem, como surgem no mundo ocidental, como símbolo de pureza, mas também de fertilidade e de esperança num futuro próspero e promissor12. Contudo, e apesar desta simbologia tão auspiciosa, as flores de laranjeira, no enredo proposto por Long e Belasco, também representam a ingenuidade de Butterfly ao acreditar no amor de Pinkerton (Giacosa 1904)13.
O jardim, espaço fulcral da casa na cultura japonesa, apresenta um papel crucial na obra pois que é palco de alguns dos momentos decisivos da obra. Luxuriante e bem desenhado do ponto de vista da paisagem, engloba não somente as espécies arbóreas e florais, como o elemento água. Se usualmente, as flores estão relacionadas com momentos de alegria e celebração, nalguns casos revelam também o infortúnio e a morte. No contexto da narrativa de Madama Butterfly, a personagem decora a casa com inúmeras flores, tanto antes, como depois do casamento. Com esta ação pretende não só o embelezamento dos espaços, como transmitir e comunicar uma intenção. Algumas vezes encontra-se relacionada com momentos de alegria e prazer, outras, com momentos mais dramáticos e trágicos. Neste caso podemos referir a cena da morte de Cio-Cio-San no jardim da própria casa. Do ponto de vista da ação, as flores reforçam, neste caso, o sentimento de dor e despedida, mudando drasticamente o seu significado. Por vezes têm um significado comunicativo bem forte como no caso da colocação de Butterfly quando diz que quer que Pinketon a veja usar uma papoila vermelha no chapéu: “Qua ch’io lo vesta, Vo’ che mi veda indossoil vel del primo dì. E un papavero rosso nei cappelli...” (Giacosa 1904, 60-61). As papoilas, flores muito delicadas que fenecem quando colhidas, enaltecem a paz e a passividade. Existindo em fartos conjuntos pelos campos e bermas da estrada, a papoila é originária da Ásia. Em várias cores, as suas pétalas caem rapidamente quando as flores são arrancadas pelo caule. Por esse motivo, e apesar de enaltecerem a paz e a passividade, são consideradas símbolo de fraqueza e do amor efémero. Efémero revelou-se também o amor de Pinkenton.
No desenrolar da narrativa, um dueto entre Butterfly e Suzuki no jardim da casa, enumera diversas flores, as rosas, as violetas, os lírios, os jasmins e as tuberosas. De modo a que o jardim renasça sempre, Butterfly e Suzuki plantam afincadamente o jardim: “Gettiamo a mani piene mammole e tuberose, corolle di verbene petali d’ogni fior!” (Giacosa 1904, 59) As rosas simbolizam a beleza e a paixão, a beleza jovial de Butterfly e a sua fragilidade. As violetas estão relacionadas com a humildade e lealdade. Atendendo ao contexto da narrativa, as violetas estão associadas à fidelidade de Cio-Cio-San perante um casamento inconsistente e tumultuoso. Os lírios representam a inocência e a pureza. Contudo, em algumas culturas, também estão relacionados com a morte e o luto. Neste caso é interessante relevar o modo como Butterfly se dirige ao filho já no segundo ato, mesmo no final da peça, quando afirma que este é filho do lírio e da rosa:
Tu, tu, piccolo Iddio! Amore, amore mio, fior di giglio e di rosa, qui la tua testa bionda qui, ch’io nasconda la fronte dolorosa ne’ tuoi capelli. Non saperlo mai per te, per i tuoi puri occhi, muor Butterfly perchè tu possa andare di là dal mare senza che ti rimorda ai dì maturi, ilmaterno abbandono. [...] Addio! piccolo amore! Va. Gioca, gioca (Giacosa 1904, 74).
Ao longo da ópera numerosas são as cenas onde Butterfly reflete uma beleza efêmera. Sendo uma personagem que, de forma trágica, abdica de toda a sua vida devido ao amor que sente por Pinkerton, e o qual não é correspondido, não perde ao longo da sua conduta a elegância da postura e do trato, bem como a sua feminilidade. Esta conduta é reforçada pelo simbolismo de vários objetos e pelo uso da flor de Jasmim. Enquanto símbolo, o Jasmim representa a elegância e o amor, sendo uma flor delicada, como delicada é Cio-Cio-San. Por último, não podemos deixar de fazer referência às tuberosas. Em determinadas culturas, elas representam a morte e o luto, embora noutras, possam estar associadas à paixão. Assim como os lírios, as tuberosas são um prelúdio do sacrifício de Butterfly ao longo de toda a narrativa, o qual culmina, no final da obra, com a sua morte (Giacosa 1904).
Além da escolha detalhada de elementos e simbologias associados aos elementos da fauna e flora apresentados na obra, Puccini discrimina e apresenta objetos determinantes na narrativa da ópera. De entre eles referimos o Kimono, a Tanto e a figura do Buda, mas também a tipologia da casa de Butterfly e a bandeira americana. Na cultura e tradição japonesas, o kimono é um símbolo inquestionável. Reforça a cultura de Butterfly, em oposição com a de Pinkerton. Com o decorrer da narrativa, Cio-Cio-San abandona as vestes tradicionais japonesas de forma a agradar Pinkerton, constituindo uma renúncia simbólica à própria cultura como se percebe também quando esta apresenta a bandeira americana ao filho na esperança que se torne um cidadão americano. A bandeira americana surge como um indício de imperialismo e ocidentalismo na obra. Outro aspeto fundamental na narrativa é o tipo de casa da Butterfly: “Casa giapponese, terrazza e giardino, In fondo, al basso, la rada, il porto, la città di Nagasaki.” (Giacosa 1904, 5). Com vista para o mar indica aos espectadores a diferença de ideologias orientais e ocidentais. Pinkerton salienta algumas características da estrutura desmerecendo a sua solidez e eficiência. Contudo as suas afirmações são prontamente contrariadas salientando as diferenças culturais no que concerne a construção e edificação dos imóveis. Se as suas características e o modo como se encontra decorada, foram notadas por Pinkerton logo no início da obra, estas também representam as diferenças culturais do casal. O início e o fim da obra acontecem nesta casa. Este é o local onde nasce o amor de Butterfly por Pinkerton, mas também o local onde se dá o acontecimento mais trágico da obra, - o seu suicídio. O culminar de toda a narrativa, dá-se em sua casa pois que considerando-se desonrada não tem outra alternativa senão a morte. Depois de mandar embora Suzuki, Butterfly prossegue com o ato suicida:
Va - va. Te lo comando. [..] Poi Butterfly va davaoti al reliquiario, si inchina e rimane immobile assortain doloroso pensiero. Va allo stipo, ne leva un gran velo bianco che getta sul paravento: prende il coltello che, chiuso in un astuccio di lacca, sta appeso alla parete presso il simulacro di Budda, lo impugna e ne bacia religiosamente la lama tenendola colle due mani per la punta e per l’impugnatura: quindi legge le parole che sono incise sulla lama: Con onor muore. Chi non può serbar vita con onore. (Graciosa 1904, 73)14.
A nível musical, para além da enorme riqueza melódica, harmónica, textural e timbrica que o compositor dissemina ao longo de toda a obra de modo a caracterizar as diversas cenas da narrativa, encontramos um conjunto de melodias-motivo os leitmotive de Madama Butterfly. Estes elementos apelam à memória auditiva e musical do espectador, mas também à memória de sentimentos e emoções sentidos aquando da narrativa proposta na obra. As simbologias e os símbolos que os autores descerram ao longo da narrativa e do guião criado, marcantes nas duas sociedades, revelam-se fulcrais para o entendimento das opções dos dois protagonistas. Madama Butterfly de Puccini, alcança assim uma grande intensidade dramática, possuindo com os elementos enformadores do discurso musical e com os leitmotive enumerados pelo autor, uma forte ligação expressiva, bem como com os cenários e o libreto de Graciosa. Através da sua sábia construção e colocação em obra, reafirma os textos e contextos da criação.
Puccini compôs esta obra de forma contínua, sem quebras entre secções e partes. A sua abordagem, de certa forma cinematográfica, visto que o compositor usa a essência da música para criar múltiplas ambiências e sentimentos, é inovadora à época. O uso do leitmotiv apela à memória auditiva e emotiva. O compositor emprega esta técnica de uma maneira bastante ousada utilizando o leitmotiv não apenas como uma memória de um ambiente, de um personagem ou de um acontecimento, mas como uma ligação entre diversas destas memórias fazendo alterações que lhes permitem personalizar os elementos musicais em face da sua intenção expressiva, bem como dos elementos narrativos de cada uma das cenas e ações nela explanadas. Deste modo, pode considerar-se que a utilização destes elementos, os leitmotive, desenvolve uma capacidade premonitória ligando inconscientemente episódios e momentos da narrativa que partilham os mesmos elementos musicais sempre variados. Através da comparação e análise dos leitmotive disseminados ao longo de toda a obra, percebemos que o compositor não se servia deste recurso unicamente para recuperação e reutilização de material musical, procedimento feito em função de uma melhor apreensão e compreensão da narrativa, mas também para criar uma proximidade com o público. Esta apresentação continuada e variada dos mesmos temas e motivos permite que o ouvinte/espectador crie memórias ao longo da obra, facilitando a ligação entre o público e a história narrada, originando uma conexão com os elementos propostos, promovendo a intimidade e familiaridade com os personagens, os temas da narrativa e as reflexões nela propostas, captando inequivocamente a atenção de todos para o drama narrado.
1.2 M. Butterfly de David Cronenberg
Por seu lado, M. Butterfly (1993) de David Cronenberg (n. 1943) é um filme do género drama que tem por base um guião que surge da adaptação de uma peça de teatro da autoria de David Henry Hwang e cuja ação nos remete para os anos 1960, numa época marcada pela perda da Indochina pelos franceses, pela guerra no Vietname, pela ascensão do Maoismo, e pela revolução cultural na China. A história narrada envia-nos ainda para uma inesperada história de amor, espionagem e traição. O guião, apoiando-se na história verídica do amor vivido por um diplomata francês Bernard Boursicot e Shi Pei Su um cantor da ópera de Pequim, ergue-se polémico no contexto referido. A temática da obra, inquietante e perturbadora, reporta não só a relação amorosa e o amor homossexual e desafiante dos dois protagonistas, como a perseguição de que são alvo e a consequente acusação e condenação por espionagem que levará Bernard Boursicot à prisão (M. Butterfly 1993). A obra, explorando dimensões culturais, vivenciais, sociais, comportamentais e políticas bastante agitadoras num país em desafiante mudança à época, a China, revela-se alvo do interesse de Cronenberg que intenta a sua colocação numa pelicula fílmica de modo a merecer os conteúdos narrados e que refletem a influência da obra original de John Luther Long (1904).
O filme a que esta narrativa dá forma desenrola-se na cidade de Pequim no ano de 1964, numa época de grandes convulsões na China que, sob a alçada do regime comunista (regime instaurado em 1949) se encontrava, neste período, na antecâmara da Grande Revolução Cultural Proletária. Esta ação ambicionava consolidar o Maoismo, enquanto expurgava os valores do capitalismo e da tradição, bem como dos elementos predominantes e que validavam os contextos social, cultural e económico vigentes à época. Toda esta agitação e controvérsia, toda esta inquietação social e política, cultural e comportamental, surgem retratados em M. Butterfly (1993). A história narra-nos a paixão obsessiva de um diplomata francês, René Gallimard, por Song Liling, uma cantora da ópera de Pequim. Para além das consequentes consequências derivadas de uma paixão tida por um homem casado, acrescem o facto de esta paixão ser dirigida a uma mulher de uma cultura completamente distinta e, nalguns aspetos, alvo de desmerecimento por parte dos estrangeiros residentes em Pequim. Acresce o facto de a sua ignorância pela cultura e a ópera de Pequim o levar a apaixonar-se por uma mulher que afinal era um homem. Gallimard passará todo o filme na ignorância deste fato desvalorizando inúmeros sinais de que algo poderia estar errado. Enleado pela beleza e fascínio exercido por Song Liling tudo aceita sem questionar (M. Butterfly 1993).
Se o amor nasce quando ouve e vê pela primeira vez a interpretação que Song Liling faz da ária Un bel dí vedremo da ópera Madama Butterfly de Giacomo Puccini, detetamos que, no início do filme, o comportamento e a postura de René Gallimard perante a população e a cultura chinesas é até de falta de empatia e de desconsideração. Ao percorrer as ruas e os bairros da cidade, confrontado que se vê com a cultura e tradição deste país reage sempre menosprezando a todos, e a todos os seus traços mais genuínos e identitários. Porém, ao frequentar a ópera e ao deparar-se com a interpretação de Liling, a transformação principia (M. Butterfly 1993)15. Assistindo ao trecho da ópera onde a protagonista morre, fica de tal modo perturbado com a intensidade da interpretação que quer conhecer a sua intérprete. Conhece então Song Liling passando a admirar o modo como a cantora se coloca nas personagens que interpreta e as questões e indagações que lhe coloca16. Na narrativa fílmica, o momento fica marcado com a inclinação do corpo de Gallimard para a frente, em deferência para com Butterfly, demonstração inequívoca do seu interesse. A ténue iluminação do seu rosto, antecipando a intensidade emotiva da descoberta, e a captação do deslumbre pela voz e pelos gestos da cantora não mais se dilui, conduzindo ao medrio convincente de um grande e fatal amor. Depois de assistir à interpretação de Madama Butterfly, uma ópera ocidental, Song Liling convida Gallimard a assistir a uma representação da Ópera de Pequim. Este convite vem no seguimento do contacto feito por Gallimard e da breve troca de impressões sobre a obra e a sua interpretação. Neste contexto, Song Liling aproveita para perguntar a Gallimard se foi convincente na sua interpretação como japonesa e, perante a sua excitação diante da beleza subjacente ao sacrifício de Butterfly, Song insiste que isso corresponde unicamente às fantasias dos homens ocidentais, onde a mulher oriental se submete totalmente ao homem, perdendo a sua voz (M. Butterfly 1993). Aceitando o convite de Song Liling, René Gallimard desloca-se ao bairro chinês, procura o espaço onde se produz o espetáculo e assiste a uma das apresentações da Ópera de Pequim. O seu espanto e fascínio pela cantora crescem, procurando-a nos bastidores. O inevitável acontece. Apaixonando-se de modo arrebatado pela cantora, a qual corresponde a essa paixão, desafiam os preceitos culturais e sociais das suas culturas, encetando um relacionamento.
A transformação de Gallimard continua e Cronenberg concede-lhe a possibilidade de olhar a cultura chinesa numa outra perspetiva. Neste contexto, o personagem interpretado por Jeremy Irons modifica a forma como olha as ruas e as pessoas, os seus movimentos e ofícios, não apresentado já a indiferença e o desmerecimento iniciais. As diferenças culturais são agora um fator de aproximação e não de repulsa, sendo que no desenrolar da narrativa Song Liling seduz o diplomata e aproveita para o convidar a ampliar a sua instrução em relação à cultura oriental. Abre assim uma brecha para que o deslumbramento do ocidental pela mulher oriental se instale e faça com que Gallimard busque nas coisas simples o objeto desse fascínio.
A transformação ocorre a diversos níveis. Numa noite, Gallimard demora-se perante a observação de um homem que captura libélulas junto ao rio. Junta-se a ele. Este oferece-lhe uma libélula, uma metáfora para o desejo do homem ocidental em capturar a bela e frágil Butterfly, mas também por se adaptar às mudanças que o amor nascente lhe impõe (M. Butterfly 1993)17. No entanto, Song Liling é uma espiã ao serviço do governo chinês. Toda a sedução e manipulação emocional de Gallimard tem um objetivo. Sábia, sabe subtilmente reduzir a culpa da consciência. Quando recebe Gallimard pela primeira vez, avisa-o da perigosidade do seu encontro e do escândalo subjacente ao desenvolvimento de uma relação. Diz-lhe que a China não se encontra na era moderna (como a França) e que a cultura milenar chinesa dita que o simples ato de lhe servir um chá detém implicações inauditas. Mas como Gallimard se encontra perdidamente apaixonado e fascinado por Song Liling não lê com clareza as suas palavras e toca-lhe as mãos. De imediato Song Liling pede ao diplomata para se retirar, mas Gallimard coloca as mãos sobre os seus ombros. Song Liling admite naquele momento que nunca tinha convidado um homem a entrar na sua casa, o que leva o incauto diplomata a beijá-la.
Como se encontra perdidamente apaixonado por Song, René mantém um relacionamento duradouro, procurando-a sempre que se encontra na China. Neste ínterim, Song é instigada a ter um filho desse relacionamento para selar de forma mais robusta a relação com Gallimard prendendo-o numa teia cada vez mais apertada, e pensada, pelo Governo da China, num período de grande tensão política a nível internacional. É esta a fragilidade do diplomata. Preso numa teia que o leva a ficar refém das vontades do governo chinês pois teme pela segurança tanto de Song Liling como do seu filho, torna-se um agente duplo, passando informações sigilosas para a China. Com a desconfiança crescente das autoridades francesas Gallimard é alvo de uma investigação que lhe assinala algumas irregularidades. Neste contexto vê-se perseguido, acusado e julgado pelo Governo Francês depois deste descobrir toda a envolvente da sua relação e dos atos de traição à pátria por ele cometidos. Aquando do julgamento, e somente aí, Gallimard é informado que o seu grande amor é afinal um homem, sendo que a sua transformação se completa na cena final quando antecipa a sua morte no papel de Butterfly18.
De modo a fortalecer no seu íntimo o papel e a condição de mulher, afirma continuadamente: “Eu chamo-me René Gallimard, também conhecido como Madame Butterfly” (M. Butterfly 1993). O filme termina com o suicídio de Gallimard na prisão e a deportação de Song Liling para a China. Nesta cena, uma das mais emotivas e dramáticas do filme, Gallimard suicida-se perante um palco de incontáveis colegas de presídio. Sob o seu olhar, que se executa de cima para baixo, para um palco onde se expõe física e emocionalmente perante todos os seus companheiros, acomete contra a própria vida procurando a dignidade perdida19. De grande poder criativo e intensidade dramática, a cena exacerba a crueldade que vive e a situação de forte fragilidade em que se encontra no cárcere. A música corrobora toda esta intenção e tensão dramática. Uma das mais dramáticas de toda a narrativa, a cena final apela à reflexão profunda sobre os valores e as questões de identidade e género presentes em algumas obras fílmicas ao longo dos tempos. O protagonista suicida-se na prisão, não só para limpar a sua honra e alcançar a dignidade perdida, mas, e acima de tudo, para que com as suas falas e a intensidade da sua interpretação, nos leve a refletir sobre temas proibidos na cultura chinesa (e não só) à época como sejam as questões de género, identidade, paixão, amor, empatia, solidariedade, respeito e aceitação do outro e da sua diferença. A narrativa faz-nos ainda refletir sobre as relações humanas e as diferenças culturais existentes entre o ocidente e o oriente que poderiam servir para enriquecer humanamente o ser humano, mas que, as mais das vezes, são utilizadas para o seu aniquilamento.
Irons, numa interpretação sublime, questiona-nos sobre o que é o amor e a sua presença nas nossas vidas. Ao longo das suas falas ele confronta-nos com o nosso desconhecimento sobre o que é o verdadeiro amor e o conhecimento que dele temos. Depois de se apresentar, e dirigindo a nossa atenção para o facto de ser gozado por amar um homem, ele afirma sem pudor que todos vós que me olhais com superioridade e desprezo não vos reríeis de mim, pelo contrário, homens como vocês deveríeis estar batendo à minha porta e suplicando que vos revelasse os meus segredos. Eu, René Gallimard, soube o que é ser amado pela mulher perfeita (M. Butterfly 1993). E continua revelando as aspirações do homem ocidental para com a visão da mulher oriental, expondo os seus desejos: Eu tenho uma visão daquilo que é o oriente, com mulheres esbeltas com cheosan e kimonos, que morrem pelo amor de indignos demónios estrangeiros como eu. Que nascem e competem para ser mulheres perfeitas, que tomam qualquer castigo que lhes dermos e sempre respondem, fortalecidas pelo amor. Incondicionalmente. Esta visão transformou-se na minha vida. O meu erro é simples e absoluto. O homem que eu amei não era digno. Não merecia sequer que o olhasse nos olhos. No entanto, eu dei-lhe o meu amor. Todo o meu amor. O amor de que vos falo cegou os meus olhos, tanto que agora, quando me olho no espelho, não vejo mais quem sou. Eu tenho uma visão do oriente, a profundidade dos seus olhos amendoados, são mulheres caladas, mulheres dispostas a sacrificar-se pelo amor de um homem, mesmo por um homem cujo amor é completamente indigno. Morrer com honra, é melhor que viver com desonra. Então, finalmente, aqui na prisão, longe da China, encontrei. O meu nome é René Gallimard, também conhecido por Madame Butterfly (M. Butterfly 1993).
Conclusão
Após todo o processo de análise e reflexão sobre os conteúdos envolvidos na conceção e construção, tanto da ópera Madama Butterfly de Giacomo Puccini como do filme M. Butterfly de David Cronenberg, percebemos que as duas propostas nos mostram diversos elementos que nos indicam a presença de simbologias e símbolos identitários da cultura oriental, assim como um constante conflito entre esta e a cultura ocidental. A presença de elementos simbólicos nas duas propostas enfatiza os conteúdos narrados. No caso da ópera de Puccini, a simbologia associada à presença de numerosas espécies florais e animais concorre para a elucidação de um imaginário que se quer presente de modo a orientar a nossa perceção da narrativa, mas que se quer seja feito de um modo encantador e subtil. Exige o conhecimento da simbologia que neles se encontra e que nalguns casos são oriundos da cultura oriental. Concorrendo para a manifestação de um reflexo da influência extraeuropeia na produção de arte. Acrescem um conjunto de artefactos e toda uma simbologia associada à religião que não podemos desmerecer e que no início do filme de Cronenberg surge premonitória de alguns factos da narrativa.
Se a presença de elementos da natureza predomina nestas duas realizações artísticas, a sua presença não serve somente a embelezar o relato, mas de modo mais forte e enfático, à manifestação de uma intenção expressiva e comunicativa do seu autor de modo a alcançar a totalidade do conhecimento vertido. Na proposta fílmica relevamos logo o início do filme onde um conjunto de símbolos se faz narrativa. De entre eles encontramos a máscara, a borboleta, o leque, a espada, a Pipa, a sombrinha ou outros de cariz e simbologia religiosa, os quais, no seu desenrolar são premonitórios daquilo que será a história. Nele, o confronto entre as duas culturas sobressai. São inúmeras as cenas onde esse conflito surge e, ora a aceitação, ora o desprezo por aquilo que é diferente, assomam. Este facto é narrado numa das falas do filme quando ouvimos uma das intérpretes afirmar que como já dizia seu pai, o oriente é o oriente e o ocidente é o ocidente e nunca se encontraram (M. Butterfly 1993).
A narrativa intenta essa aproximação num amor perigoso e proibido. Mas, muitos são os alertas para isso, vindos não só da protagonista Song Liling, como de diversos outros participantes. Mas Gallimard não desiste e, louco de amor, interroga sobre se a sua amada não é a sua Butterfly. Insistentemente pergunta, obtendo a confirmação por parte de Song Liling. Não será premonitório também esta elocução. Afinal se atentarmos à narrativa de Madama Butterfly, o gatilho desse amor, tudo se encontra em sintonia. É um amor que surge na diferença de culturas, se firma na perda e na desonra, na mentira e falsa identidade de modo a alcançar proveitos para outros. É um amor condenado à morte e ao sacrifício dos seus atores. Sobressaem ainda as diferenças culturais e a tentativa de aculturação de um e outro lado. As cedências de parte a parte que, no caso de Song Liling têm um fim maior, o da espionagem.
De modo a nos informar do que irá acontecer temos alguns elementos premonitórios e que são relevantes no contexto da simbologia e dos símbolos identificados em finais do século XIX e início do século XX. Neste período são igualmente vários os movimentos artísticos que transcorrem estas preocupações em arte, mormente o movimento Arte Nova. Abundantemente ligado às questões da preservação da natureza, as narrativas formais e discursivas dos seus objetos de arte, são sobejamente influenciadas pelos conhecimentos que os seus autores possuem do mundo, da cultura, da arte e da natureza. Paralelamente é também neste período que se inicia um movimento de emancipação por parte do sexo feminino e todas as questões de género e igualdade de oportunidades se começam a colocar. Estas temáticas são igualmente abordadas por Cronenberg na sua proposta fílmica. O conhecimento de outras realidades culturais, vivenciais e artísticas, provenientes da realização das diversas Exposições Universais um pouco por todo o mundo, também se torna uma realidade, promovendo o conhecimento, a interação e, aos poucos e poucos, o respeito entre os povos.
No que concerne os elementos e características do movimento Arte Nova, a análise dos elementos que compõem a ópera Madama Butterfly apresenta definitivamente diversas características valorizadas por este movimento artístico. Na narrativa emergem diversos elementos e as simbologias a eles associadas, sendo notória a influência do Japonismo. Movida pelo interesse despontado pela abertura do Japão ao ocidente após o término do xogunado, surge a mudança política que se desencadeou devido às problemáticas sentidas internamente como o notório atraso tecnológico, comercial e militar que tornava o país um alvo vulnerável frente às potências mundiais e à pressão externa causada pelos norte-americanos devido ao seu interesse comercial no Pacífico.
O filme, de uma forma diferente, mas eficaz, promove a discussão e reflexão sobre temas importantes para o homem e a humanidade, constituindo-se, também ele, numa forma de discutir a sociedade, a política, a cultura e a arte, procurando através da sua narrativa, e das suas manifestações simbólicas e identitárias, captar a atenção de todos para a necessidade de nos aceitarmos e respeitarmos mútua e inequivocamente, de modo que as diferenças que possam existir entre nós não sejam motivo de dissensão, mas de ascensão não só individual, como coletiva e mundial.
Notas Finais
1Influenciando, como já referido, diversos movimentos artísticos de finais do século XIX e início do Século XX, como o Impressionismo ou o Arte Nova, a sua presença encontra-se na obra de diversos autores como Vincent Van Gogh (1853-1890), Édouard Manet (1832-1883), Edgar Degas (1834-1917), James Tissot (1836-1902), Claude Monet (1840-1926), Paul Gauguin (1848-1903), Georges Seurat (1859-1891), Alphons Maria Mucha (1860-1939), Pierre Bonnard (1867-1947) e Henri Matisse (1869-1954).
2Este isolamento teve o seu término quando Matthew Calbraith Perry (1794-1858) forçou o Japão a abrir portas ao exterior e a assinar uma série de tratados com grandes potências estrangeiras. A assinatura destes documentos causou grande desconforto entre alguns samurais que apoiavam o Imperador. O último xogum, Tokugawa, renunciou ao cargo em 1868, dando início à era Meiji, em homenagem ao imperador Meiji que havia assumido o poder político.
3Nesta fase, o país encontra-se ainda num processo de expansão territorial sobre as nações vizinhas, o que originou conflitos com o Império Russo e o Império Chinês. Com a morte do imperador Meiji, o país estava convertido numa nação moderna, industrializada, com um governo central. Assumia-se enquanto superpotência rivalizando com o ocidente.
4Esta forma de arte e as técnicas que utiliza, sendo desconhecidas dos ocidentais, fascinaram os artistas à época. Vivemos uma época pós-impressionista, buscando-se por novas ideias e formas de representação da vida em arte. Como exemplos de objetos de arte, pinturas, que representam esta influência podemos enunciar a obra La Japonaise au Bain (1864) de James Tissot. Claude Monet elabora uma obra que intitula Ponte japonesa (1899). Outro grande pintor, Vincent Van Gogh, assume a sua paixão pelas representações estilizadas das xilogravuras japonesas (Ukiyo-e). No conjunto da sua obra destacamos A Cortesã (1887), uma pintura baseada numa estampa japonesa e Retrato de Père Tanguy (1887), onde o pintor retrata o seu fornecedor de tintas, Julien Tanguy (1794-1858), numa representação onde encontramos diversas xilogravuras japonesas em pano de fundo.
5Nos dois suportes, personagens e narrativas transportam-nos por temas e ambientes vivenciais onde predominam o conflito e a ambição por realidades diversas das nossas.
6Pierre Loti, pseudónimo de Louis-Marie-Julien Viaud, nasceu em Roquefort, em França, a 14 de janeiro de 1850. A sua carreira militar, enquanto oficial da marinha francesa, permitiu que viajasse um pouco por todo o mundo, experienciando diversas culturas, algumas bem distintas da cultura europeia e francesa, em particular. Este facto transcorrerá ao nível da sua escrita. As suas obras, maioritariamente romances autobiográficos, encontram-se impregnados de um exotismo nostálgico mostrando-nos a leitura que faz de países tão distantes como a China, o Japão, o Senegal, Marrocos ou a inquietante Ilha de Páscoa. Nesta enumeração, percebemos a riqueza das experiências que possui e que verterá ao nível da sua produção artística. Reconhecido enquanto escritor pelos pares será eleito membro da Academia Francesa a 21 de maio de 1891, aos 41 anos de idade. De entre as suas obras destacamos Aziyadé (1879) e a sua continuação a nível narrativo em Fântome d’Orient (O Fantasma do oriente, 1892), Le Pecheur d’Islande (O Pescador de Islândia, 1886), Le livre de la pitié et de la mort (O Livro da Piedade e da Morte, 1891), Japoneries d’automne (Outono japonês, 1889), Au Maroc (Em Marrocos, 1890) e Les Désenchantées (As Desencantadas, 1906). Morre a 10 de junho de 1923, em Hendaia.
7Neste campo, a influência do japonismo é relevante.
8Hara (2003) reforça, contudo, que a história desta canção é muito mais complexa.
9Gueixa (ou gueisha) é um termo japonês que significa artista. As gueixas são mulheres da tradição japonesa com formação em diferentes artes, vocacionadas para o entretenimento de clientes ou convidados em banquetes, casas de chá ou outros locais (públicos ou privados) onde sejam requisitadas. São caracterizadas pela forma especialmente cuidadosa com que se vestem, se penteiam e se pintam. Uma gueixa inicia sua formação ainda muito jovem, sendo no começo designada por maiko, que significa aprendiz. Durante a formação, as futuras gueixas têm aulas de canto, música, dança, postura e etiqueta, aprendem tarefas domésticas e artes tradicionais japonesas em locais próprios para o efeito denominados de okiya.
A gueixa tem servido de inspiração para diversas produções artísticas. Entre elas se destacam a ópera Madama Butterfly, de Puccini, e o filme Memórias de uma Gueixa (Memoirs of a Gueisha), do diretor Rob Marshall, baseado no best-seller homónimo de Arthur Golden, publicado em 1997.
10Butterfly também nada contra a corrente quando mantém a esperança de um futuro tranquilo mesmo perante inúmeros sinais de um desfecho trágico para a sua relação quando já casada.
11Flor de Cerejeira significa a beleza feminina e simboliza o amor, a felicidade, a renovação e a esperança. É uma flor de origem asiática, conhecida por Sakura, a flor nacional do Japão, onde estão documentadas mais de 300 variedades de cerejeiras.
Os samurais, os guerreiros japoneses, eram grandes apreciadores da flor de cerejeira. Desde aqueles tempos, passou a estar associada à efemeridade da existência humana e ao lema dos samurais: viver o presente sem medo. Assim, a flor de cerejeira está também associada ao código do samurai, o Bushido.
12A flor de laranjeira é uma planta com propriedades terapêuticas. Dotada de um forte simbolismo popular (representa a pureza, a castidade e o matrimónio), destaca-se pela sua cor branca e aroma perfumado. Como o próprio nome sugere, esta flor nasce em árvores de laranjas (laranjeiras), normalmente durante o período da frutificação da árvore. Tradicionalmente, a flor de laranjeira é considerada o símbolo da pureza, da castidade, da inocência e da fertilidade. Utilizada pelas noivas na cerimónia do casamento, estas interpretações surgiram a partir de antigas civilizações orientais. Foram os árabes que introduziram este simbolismo na Europa. Assim, a flor de laranjeira passou a ser uma tradição nos casamentos. As decorações das cerimónia tinham como destaque estas flores que, assim como sugere o simbolismo tradicional, representam a pureza e o desejo de fertilidade para o futuro casal.
13A sua inocência e credulidade leva-a a pensar que o seu amor é verdadeiro. Logo depois de celebrar o sacramento do casamento, verifica que não é essa a realidade. Depois de casada e depois de engravidar, confronta-se com a partida do seu amado, o qual tarda em regressar. Assim, sem o querer admitir, percebe que foi enganada e abandonada como o tinham pressagiado todos os seus amigos e familiares.
14A Tanto é uma peça que captura a essência do código dos samurais, também conhecido como Bushido, um conjunto de princípios que orientam o comportamento de um guerreiro. Forjado à mão, não é apenas uma ferramenta de precisão, mas também uma homenagem à tradição japonesa, à conduta e rigor de um modo de ser e estar em sociedade. A tanto utilizada por Butterfly no seu suicídio é um símbolo tradicional da cultura japonesa. Representa o código samurai, sendo um sinal de honra durante o seppuku, um ritual de suicídio que se concretiza de modo a preservar a dignidade. Com a utilização desta arma no seu suicídio, Butterfly aceita o fracasso e retorna à sua cultura, após tentar incessantemente agradar a Pinkerton e à ideologia ocidental que este defendia. Para além de ser um objeto extremamente importante na cultura samurai, a tanto que Butterfly utiliza pertencia a seu pai, um falecido samurai, reafirmando novamente o retorno à sua herança cultural e familiar.
15O facto dá-se numa das suas saídas na qual vai assistir a uma das óperas mais importantes e emblemáticas de Puccini cuja temática narra um amor sofrido e o choque entre duas culturas tão diversas e distantes, a cultura ocidental e a oriental: Madama Butterfly.
16É a partir deste momento que emotivamente manipulado pela forma como Song Liling atua em palco, a paixão desabrocha no coração de Gallimard.
17Também conhecida por representar transformação, a libélula simboliza a liberdade, a adaptabilidade e a mudança. As libélulas são insetos qua passam um bom tempo da sua vida em ambientes aquáticos, como ninfas, até atingirem a maturidade na fase adulta. Assim, a transição entre os dois ambientes faz com que a libélula simbolize o poder de adaptação às circunstâncias. Cronenberg dará à libélula um poder inaudito pela mensagem subliminar que detém. O guião de Hwang não continha esta cena, mas atendendo a que as libélulas nascem a partir de larvas em meio aquático (as ninfas) e que resultam de uma transformação do ser nascente, essa ideia permanece ao longo do guião dando a entender a transformação que se operará em Gallimard pelo encontro com Song e a consequente consciência que este terá de si próprio com o auxílio da diva, e que será clarificada no decorrer do filme.
18De notar ainda o facto de René Gallimard e Song Liling se conhecerem numa época em que os cantores da Ópera de Pequim serem homens e René ignorar o tempo todo o facto de a sua mulher ser, na verdade, um homem e interpretar as reservas de Song Liling em relação ao seu corpo como questões relacionadas com a rígida moral chinesa. A partir desse momento, e sendo obrigado a reconhecer toda a verdade, René Gallimard assume o papel do ex-amante como Madame Butterfly, a mulher que morre por causa de um amor ilusório (M. Butterfly 1993).
19Cronenberg ilude o tempo e o espaço, intercalando a cena final com enquadramentos da deportação de Song Liling. Neste fazer, o realizador liga as emoções de Song Liling ao destino de René Gallimard na prisão.
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Filmografia
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