Abstract
The film Death in Venice (1971) by Luchino Visconti portrays the life of Gustav von Aschenbach in a specific approach. The elements that he describes in the scenes of the film, shows the charisma of a unique personage on a physical, behavioural, psychological and emotional level. In order to call for a constant look at the character of Aschenbach, Visconti creates a remarkable narrative, leaving no detail to chance, in themes like wardrobe, behaviour or in subjects in which he finds himself involved. Both, Visconti and Mann, offer us the opportunity to reflect deeply on the concept of beauty and the writer’s tireless search for it.
In this paper, we aim to find links between the characterizations that Mann and Visconti make of the characters. We will choose some of the moments that we believe to be the most striking in the work: the passion that Aschenbach develops for Tadzio, and the progress of the entire associated narrative. Supported by the musical component, of which the use of the slow movement of Gustav Mahler’s 5th Symphony is essential, Visconti contributes to underlining the atmosphere of passion and conflict between the two characters. The proposed narratives will be analysed by us in order to characterise the conflicts and emotions present in the film’s discourse and which comprise the relationship between the two involved.
Keywords: Death in Venice, Gustav Mahler, Luchino Visconti, Tomas Mann, film music.
Introdução
Publicado pela primeira vez, em forma de livro, em 1913, Morte em Veneza do escritor Thomas Mann (1875-1955), conta a história de Gustav von Aschenbach, um prestigiado escritor alemão de meia idade que, ao passar por um período de impasse criativo, decide viajar para retemperar as forças anímicas. Vivendo em Munique, é constrangido pela vida numa grande cidade. A necessidade de contactar com espaços diversos do citadino, com outras culturas e tradições faz com que adquira uma segunda casa em Itália, na cidade de Trieste. É para lá que se desloca recorrentemente com a família para passar as férias de verão. É também para lá que a sua intenção de viagem se anuncia. Contudo tenhamos consciência que:
A ideia de um passeio pelo mundo, que durante alguns meses o afastasse de seu trabalho, parecia-lhe muito frívola e por demais contrária a seus propósitos. Não era possível levá-la em séria consideração. E, todavia, não ignorava de modo algum o motivo que dera origem a essa tentação inopinada. Tratava-se do ímpeto de fugir - era preciso confessá-lo a si mesmo! -, da saudade de coisas novas, longínquas, da ânsia de liberdade, exoneração, esquecimento. [...] Melhor seria não reprimir obstinadamente uma necessidade que se manifestava com tamanha força. (Mann s.d, 9-10).
Sabendo da necessidade de se restabelecer física e emocionalmente busca por um lugar, destino de viagem, que lhe pudesse trazer tanto o descanso que lhe retemperaria as forças, como, e sobretudo, a inspiração1. No seu âmago sentia que a inspiração e a capacidade de criar chegariam se, para além de um contínuo e persistente ato de escrever e criar, para alcançar pelo esforço e a necessidade a perfeição, pudesse viver fora dos limites que se auto impunha de forma repetida e, quiçá, auto aniquiladora e, até, perversa.
Tinha a impressão de que sua produção carecia daqueles sinais de ardor e génio brincalhão que resultam da alegria e, mais do que qualquer valor íntimo, por mais grave que seja, provocam, por sua vez, a alegria do mundo apreciador. (Mann s.d,10).
Nesta assunção tinha consciência de que o lugar escolhido seria importante. Nas suas indagações mais íntimas:
Temia o verão no sítio rústico, em cuja casinha estaria a sós com a empregada que lhe preparava a comida e o criado que a servia; temia os contornos familiares dos cumes e dos paredões da serra, que voltariam a circundar o seu tédio insaciável. Em face disso, era preciso intercalar algo diferente, um pouquinho de vida levada a esmo, uma pitada de vadiagem, ares de terras distantes, uma injeção de sangue novo, para que o verão chegasse a ser suportável e fecundo. Viajar, portanto! (Mann s.d,10).
Se a necessidade do novo se impunha, não poderia viajar pois para um lugar comum. A sua escolha primeira não é, contudo, Veneza. Mas a sua natureza não lhe concede a grande viagem, a conquista de outros continentes. Talvez por medo, como afirma no início da obra, talvez porque o declínio das forças se torna evidente, não intenta a viagem nem para muito longe, nem sequer para fora da Europa. A segurança do conhecido é importante mesmo que antecipadamente perceba que nessa segurança falta o risco e o desconhecido que lhe poderia fornecer o gatilho para desenvolver a sua criação. Nesta ambivalência de atitudes e pensamentos não deixava, contudo, de, pelo menos desde que possuísse os recursos necessários, de considerar a realização de uma viagem apenas como uma medida higiénica2.
Se a fortaleza das forças físicas e anímicas são necessárias ao desenrolar do árduo trabalho de criação, paralelamente, é necessário o tempo do relaxamento e do ócio de modo a que a criatividade assome. É ainda necessário a vivência de experiências novas e estimulantes para que o artista se aprovisione de factos, elementos, reflexões sobre o mundo e a vida, assim como da necessidade de fazer brotar em obra e em arte, os sentimentos e emoções, o conhecimento e a vivência que daí decorrem.
Não é na monotonia nem na castração e crueldade do hábito que o novo tem a possibilidade de surgir. Neste sentido, é-lhe exigida a viagem que, num ato de rebeldia em face da ordem e do dever sempre estabelecidos, e por ele sempre cumpridos, concede a si, fazer. Mas, não será para um lugar desconhecido pois que segue para Trieste. Todavia, e apesar da necessidade, não se demora neste local, pois que as condições que ali encontra são asfixiantes. Finalmente, mandou aprontar a sua casa de campo para que pudesse ser habitada dentro de quatro semanas. Certo dia, entre meados e fins de maio, pegou o comboio noturno para Trieste e ali se demorou apenas vinte e quatro horas. Na manhã seguinte, embarcou para Pula.
A escolha de Pula não foi ao acaso. Esta cidade, a maior da península de Ístria, situada na Croácia, localiza-se na sua extremidade sul sendo detentora de uma grande cultura e tradição. A história política e cultural de Pula é estimulante. Possuidora de uma grande amálgama de saberes e tradições, Pula era conveniente ao nosso protagonista pois permitir-lhe-ia usufruir do memorável e, sobretudo, do novo. A riqueza cultural da cidade e a sua localização junto ao mar, não muito longe da sua cidade e do seu país natal, concederia os recursos necessários ao refazimento físico e emocional de Gustav von Aschenbach. Contudo, a passagem e permanência neste lugar de gentes de vários lugares do Mediterrâneo e da Europa Central e, no caso particular das condições meteorológicas que aí encontra, vão anular a sua vontade de aí permanecer e disfrutar.
O que procurava era um ambiente exótico, não relacionado com qualquer outro, mas que fosse de fácil alcance. Por isso foi alojar-se numa ilha do mar Adriático, situada nas proximidades da costa da Ístria, e que nos últimos anos adquirira alguma fama. Estava ela povoada por gente rústica, pitorescamente maltrapilha, que falava um dialeto totalmente estranho. Junto ao mar aberto, havia paisagens magníficas de alcantilados penhascos. Mas agastavam-no tanto a chuva e o ar pesado quanto um grupo coeso de austríacos provincianos que lotava o hotel. (Mann s.d., 19).
Não estando verificadas, no local escolhido, as condições necessárias ao seu estabelecimento definitivo, o escritor decide, mais uma vez, a mudança e:
Dez dias após a sua chegada à ilha, numa madrugada brumosa, uma lancha veloz conduziu Aschenbach e sua bagagem pelas águas de volta ao porto militar. Apenas desembarcado, subiu por um pontilhão de tábuas ao convés húmido de um navio que estava pronto para zarpar rumo a Veneza. (Mann s.d., 20).
Depois de Trieste e Pula, Aschenbach encontra-se finalmente em Veneza. Mas nem tudo são facilidades pois que, depois de chegar a este novo destino de viagem Gustav Aschenbach se confronta com inúmeras outras contrariedades. Em Morte em Veza o texto é, mais uma vez, premonitório. A tensão, o conflito, a omissão, o desequilíbrio, são uma constante.
- Como o senhor escolheu bem o seu destino! - tagarelou. - Essa Veneza! Que cidade magnífica! Uma cidade de atração irresistível para qualquer pessoa culta, não só pela sua história como também pelos seus encantos atuais!
A rapidez mecânica dos seus gestos, tanto quanto o palavreado vazio que os acompanhava, quase que traíam o esforço de atordoar e distrair o futuro passageiro, como se o homem receasse que este pudesse ainda desistir da ideia de ir a Veneza. (Mann s.d., 20).
Depois da chegada a esta cidade, aquela que talvez tivesse as condições necessárias à sua estadia, tudo continua difícil. É difícil a viagem com todos os contratempos e situações que o protagonista vive. É difícil a chegada, o desembarque, a comunicação com as gentes do local. É constante o sentimento de insegurança que promana em muitos dos momentos vividos, mormente aquele que narra a sua partida para o Lido.
- Pois então, não vai me levar à estação dos vaporetti? - perguntou, meio virado para trás. Cessou o murmúrio, mas não veio nenhuma resposta.
- Ora, vamos à estação dos vaporetti! - insistiu Aschenbach, e dessa vez virou-se totalmente a fim de fitar o rosto do gondoleiro, que às suas costas, de pé na plataforma elevada, destacava-se da palidez do céu. Era um homem de fisionomia desagradável, quase brutal. Usava roupas azuis, à maneira dos marujos, e na cintura uma faixa amarela. Na cabeça, tinha um chapéu de palha surrado cujo trançado já começava a se desfazer. A julgar pelo tipo facial e pelo bigode crespo e loiro sob o nariz curto, arrebitado, não era de origem italiana.
(Mann s.d., 25).
Depois de se entregar exausto nas mãos de um desconhecido e ao destino que o esperava, Achenbach deixa-se embalar pelas condições da viagem e do trajeto de gondola que o esperava. Reconhece que apesar de não controlar o momento, a embarcação, o gondoleiro, o mar, o som e os sentimentos que progressivamente o envolvem são relaxantes e até consoladores. Chegado que se encontra, finalmente, ao Lido, busca o repouso e o conforto necessário, hospedando-se no Grand Hotel des Bains.
Acompanhou-o no elevador até o segundo andar, onde lhe mostrou o quarto. Era um aposento simpático, com mobília de cerejeira, enfeitado com flores muito cheirosas e de altas janelas que davam para o mar. Aschenbach acercou-se delas logo que se retirara o gerente. Enquanto as bagagens eram trazidas e arrumadas nos seus lugares, olhou para fora, por sobre a praia deserta a essa hora da tarde, em direção ao mar que nenhum raio de sol fazia brilhar. Num ritmo compassado, calmo, a maré alta lançava à areia compridas ondinhas. (Mann s.d., 28).
O Lido é uma ilha situada na laguna de Veneza. É conhecida por ser uma estância balnear e um local de turismo e lazer. A ilha possui ao longo da sua extensão uma vasta praia e alguns equipamentos versados ao turismo como o hotel e a praia onde se desenrolará toda a ação. Devido às suas características torna-se um local privilegiado para o descanso e o refazimento das forças físicas e psicológicas de muitos venezianos e, em especial, de muitos europeus, cujos rendimentos suportam os elevados custos de permanência neste local. Thomas Mann permaneceu nesta ilha, e neste hotel, no ano de 1911, local onde se inspirou para a escrita de Morte em Veneza.
A história desenvolvida por Mann decorre neste hotel, local onde se encanta pelo jovem Tadzio. De origem polonesa, de uma grande beleza e com apenas 14 anos, conquista a atenção de Aschenbach. Se este se encontrava no local para refazer as forças anímicas, Tadzio encontrava-se a passar férias de verão com a família, na companhia da mãe, da governanta e das irmãs. No hotel existiam diversos hóspedes provenientes de distintas partes do mundo, mas é esta família e este rapaz que captam instantaneamente a atenção de Aschenbach.
Captam-se as fisionomias oblongas e secas de americanos, a numerosa família russa, senhoras inglesas, crianças alemãs com babás francesas, mas, aparentemente, predominava o elemento eslavo. Bem na vizinhança falava-se polonês.
Era um grupo de adolescentes e quase adultos, sob a proteção de uma governanta ou dama de companhia, e que se juntara em torno de uma mesinha de vime: três mocinhas, de quinze a dezassete anos, segundo parecia, e um garoto de cabeleira comprida, a aparentar uns catorze anos. Com alguma surpresa Aschenbach constatou a perfeita beleza desse rapazinho. O rosto pálido, fino, fechado, os cabelos ondulados cor de mel que o emolduravam, a boca meiga, o nariz reto, a expressão de suave e divina dignidade — tudo isso lembrava esculturas gregas dos melhores tempos e, ao lado da pureza ideal das formas, tinha um encanto tão raro, tão pessoal que o observador julgava jamais ter visto, nem na natureza nem nas artes plásticas, alguma obra igualmente perfeita. (Mann s.d., 29).
Para além da beleza que o rapaz possui, o que chama atenção de Aschenbach é a indulgência, a independência e a liberdade que sobressaem do modo como se firma física e emocionalmente, emanando do seu modo de ser, algumas características que, de algum modo, faltam a Aschenbach e que ele, inconscientemente, procura. Deste conjunto, destacam-se a liberdade de ação, fator que não encontramos nas atitudes das suas irmãs, as quais assumem uma postura mais séria e contida, comportamento esperado por parte das meninas e das senhoras à época.
A aparência das três moças, a mais velha das quais já podia ser considerada adulta, era austera e casta, a ponto de quase enfeá-las. Uma farda de convento, de um cinza de ardósia, meio comprida, sóbria, intencionalmente deselegante, com golas brancas como único sinal de animação, reprimia e estorvava qualquer graça física. Os penteados lisos, energicamente colados às cabeças, davam aos semblantes um aspecto de freirinhas, tornando-os vazios e insignificantes. Sem dúvida alguma, o que nisso se manifestava era o espírito da mãe, mas, evidentemente, nunca lhe vinha a ideia de empregar, com relação ao menino, a mesma severidade pedagógica que se lhe afigurava necessária na educação das filhas. Era visível que a brandura e o carinho orientavam a vida do rapaz. (Mann s.d., 29).
Por outro lado:
É importante compreender que o livro tem forte intertexto filosófico e podemos enxergar a narrativa como um tratado sobre o fazer artístico. Neste tratado, é possível perceber um diálogo com o conceito nietzschiano de apolíneo e dionisíaco: a tensão entre a razão (Apolo) e a desmedida (Dionísio). Enquanto Aschenbach é apolíneo, adepto da beleza comedida e harmoniosa, da organização; Veneza é dionisíaca, pois é bela, mas cheira mal, está afundando e é tomada por uma doença.
(Salvá & Diedrich 2020, s.p.).
Neste contexto, apreciar Tadzio é para Aschenbach um ato de contemplação do Belo. Correspondendo aos ideias platónicos e ao ideal de Belo, olhá-lo é percebido como uma forma de elevar o espírito ao estado mais puro do ser. Consciente desta realidade, Aschenbach volve um obsessor de Tadzio. Os seus dias tornam-se uma constante indagação de onde e como está o ser do seu desejo e admiração. A sua atração vira de tal forma doentia que persegue o rapaz por toda a parte, inclusive quando este se desloca com a família a Veneza. Procurando por ele e por uma forma de o contactar a todo o instante, a sua vida passa a ser desenhada em função dos hábitos e afazeres deste e da sua família. Não é ao acaso. O rapaz representa a sua necessidade em vários aspetos. É jovem, belo, independente, livre. Encontrando Tadzio e desenvolvendo esta forte relação de atração acha um motivo de permanência no Lido, uma razão de viver. As férias, num primeiro desígnio, pensadas como um momento para retemperar forças e fazer medrar o seu impulso criativo, tornam-se fator de exaltação, conduzindo o protagonista ao desequilíbrio, ao cativeiro e, progressiva e inevitavelmente, à morte.
Se Tadzio é um jovem de 14 anos, belo e cativante, a aparência de Gustav von Aschenbach, foi inspirada naquela do compositor Gustav Mahler (1860-1911).
Gustav von Aschenbach era de estatura um pouco abaixo da média. Tinha a tez morena e o rosto escanhoado. Sua cabeça, um tanto grande em relação ao corpo quase franzino. A cabeleira penteada para trás, rala no topo, porém espessa e bem grisalha na parte lateral, emoldurava a testa alta, rugosa, como que sulcada por cicatrizes. A ponte dos óculos de ouro, com lentes sem aros, penetrava fundo na raiz do nariz curto, aristocraticamente adunco. A boca era grande, ora frouxa, ora, de súbito, estreita e crispada; a região das faces, magra e encarquilhada; o queixo, pronunciado e levemente partido. Tinha-se a impressão de que vicissitudes impressionantes deviam ter passado por essa cabeça que geralmente se inclinava para o lado, numa atitude de sofrimento, e, todavia, fora a arte que ali se encarregara daquela modelagem fisionómica que em outros casos é realizada por um destino áspero, acidentado. (Mann s.d., 18).
A vida de Gustav Mahler não foi fácil. A tragédia e a morte trespassam toda a sua existência. Desde pequeno que é confrontado com as atitudes de um pai violento. Este facto manifesta-se no modo como este, o pai, agride a esposa, acontecimentos aos quais o futuro compositor assiste. Se o pai é violento, a sua mãe é a candura em pessoa. Esta diferença de personalidades influenciará Malher e o seu processo criativo. O compositor chega a afirmar que algumas das suas obras nascem deste desassossego. Ao longo da sua existência assiste a toda esta violência, vive a sua morte e de alguns dos seus irmãos. Mais tarde, quando pai, perde a filha, sendo ainda traído pelo amor da sua vida, Alma. Faleceu aos 50 anos, em 1911, na mesma época que o Thomas Mann estava em Veneza e escrevia Morte em Veneza. Ao longo da narrativa fílmica de Luchino Visconti (1906-1976) o protagonista revela ser um compositor. De notar que o filme, nos momentos mais emotivos da sua narrativa, é suportado pelo universo sonoro da obra de Gustav Mahler.
O título da obra é premonitório. A morte assoma em diferentes momentos da narrativa. Desde o início que sabemos ser trágico o final do protagonista, do fatal interesse por Tadzio e de toda a sua obsessão. A morte surge ainda expressa em numerosos símbolos e simbologias como sejam a figura do gondoleiro que leva Gustav von Aschenbach para o Lido, assim como a doença e a cólera que grassará na cidade e que será constantemente desvalorizada pelas autoridades sanitárias de modo a não criar alarde3.
Ao longo deste trabalho, pretendemos encontrar os elos que se evidenciam entre a caracterização que Mann e Visconti efetuam dos personagens desta narrativa e o universo sonoro que o mesmo desenvolve de modo a enfatizar os conteúdos narrados. Escolheremos alguns dos momentos que para nós são dos mais marcantes: a paixão que Gustav von Aschenbach vê surgir por Tadzio, e o desenvolvimento de toda a narrativa a esta emoção associada. Suportada pela componente musical, da qual o uso do andamento lento, Adagietto, da 5.ª Sinfonia (1901-02) de Gustav Mahler se faz essencial, Visconti contribui para o sublinhar do ambiente de paixão e conflito entre os dois e toda a problemática a ela envolvente, bem como daquele que emerge no âmago do compositor. As narrativas serão analisadas de modo a caracterizar os conflitos e as emoções presentes no discurso fílmico. Enfocando nos momentos mais importantes do desenrolar da história no que concerne a perseguição do Belo por parte de Gustav von Aschenbach, seja na figura de Tadzio, seja na sua procura incessante nos pequenos momentos do seu dia-a-dia, a resposta sugirá.
1. A perseguição do belo em A Morte em Veneza de Thomas Mann e Luchino Visconti
O filme A Morte em Veneza (1971) da autoria de Luchino Visconti desenvolve-se sob a história homónima narrada por Thomas Mann retratando de forma singular a vida de Gustav von Aschenbach. Incidindo não só sobre os elementos que caracterizam o personagem a nível físico e comportamental, mas também a nível psicológico e emocional, apela ao constante olhar para o personagem de modo a perceber como este se relaciona consigo próprio, com os outros e com o meio que o envolve. Toda a relação que estabelece com o que se encontra fora de si, expõe o modo como se relaciona com ele mesmo. Se num momento mostra curiosidade, empolgamento, arrebatamento e emoção, num outro, logo se retrai. Assim a forma como vive física e emocionalmente é castrada e penalizada bem como aquela de todos aqueles que com ele se relacionam e interagem.
Realmente, a razão e a disciplina praticada desde a juventude conseguiram logo refrear e chamar à ordem aquele impulso tardio e repentino. Aschenbach tivera a intenção de adiantar até certo ponto a obra pela qual vivia, antes ainda de se mudar para a casa de campo. A ideia de um passeio pelo mundo, que durante alguns meses o afastasse de seu trabalho, parecia-lhe muito frívola e por demais contrária a seus propósitos. Não era possível levá-la em séria consideração. E, todavia, não ignorava de modo algum o motivo que dera origem a essa tentação inopinada. Tratava-se do ímpeto de fugir - era preciso confessá-lo a si mesmo! -, da saudade de coisas novas, longínquas, da ânsia de liberdade, exoneração, esquecimento. Era o afã de distanciar-se da obra, do costumeiro local de um serviço rígido, frio, fanático. (Mann s.d., 9).
Nesta ambivalência fruímos o modo como se divulga nos diferentes momentos de interação com o mundo e a vida sendo que ao longo do filme, o realizador concretiza uma narrativa extraordinária na qual não deixa nenhum detalhe ao acaso, seja ao nível do guarda-roupa, seja ao nível do comportamento, símbolos e simbologias associados aos objetos expostos. Acrescem as temáticas que sábia e ousadamente propõe à discussão e reflexão ao longo da sua obra, as quais são aquelas em que o protagonista se vê envolvido: a busca incessante do belo, do amor e da paixão, a experiência da desilusão, do abandono, da finitude e da morte. Tudo isto surge ao longo da narrativa que enaltece ainda a paixão que a figura de Tadzio lhe consente, a emoção desmedida que no seu âmago desperta aquando da sua presença e, o consequente despertar do desejo de produzir e criar, quando finalmente ativo e novamente vivo, se liberta das amarras da rotina.
De repente veio-lhe o desejo de escrever. Era bem verdade que, segundo se afirmava, Eros amava o ócio e só nascera para ele. Mas, nessa fase da crise, a exaltação da sua vítima já visava à produção. O motivo ficava quase indiferente. Uma pergunta, a sugestão de se manifestar francamente a respeito de determinado problema importante, atualíssimo, da cultura e do gosto, fora dirigida ao mundo intelectual e também alcançara o turista. O assunto lhe era familiar, conhecia-o por experiência própria. Subitamente parecia-lhe irresistível o impulso para aclará-lo à luz da sua facúndia. E seu desejo era, precisamente, trabalhar na presença de Tadzio, escrever tomando por modelo a figura do menino, acompanhando com o estilo as linhas daquele corpo que se lhe afigurava divino e transportar a sua beleza para o terreno intelectual, assim como a águia outrora levara ao éter o pastor troiano. Jamais lhe parecera mais doce a volúpia da palavra; nunca compreendera tão nitidamente que Eros residia na palavra como nessas horas deleitáveis mas também perigosas, em cujo decorrer ele, sentado à mesa tosca sob o toldo de lona, com os olhos fixos no seu ídolo e os ouvidos atentos à melodia da sua voz, elaborava à imagem da formosura de Tadzio o seu pequeno ensaio, aquela página e meia de prosa sublime, cujas integridade, nobreza e fervorosa vibração íntima pouco depois despertariam a admiração de numerosos leitores. (Mann s.d., 50).
Tanto Visconti, como Mann, oferecem-nos a possibilidade de realizarmos uma reflexão profunda sobre o conceito de Belo e a sua busca incansável por parte de todos nós, refletidos que nos encontramos na personagem do escritor. De notar que essa busca transcende a personagem e se manifesta, de um modo ou de outro, em todos os tempos e lugares.
1.1 A Morte em Veneza de Luchino Visconti
Morte em Veneza (1971) de Luchino Visconti, construído sobre guião da autoria de Nicola Badalucco (1929-2015) e do próprio Visconti, surge apoiado na obra homónima do escritor alemão Thomas Mann. Detentor de uma extraordinária beleza e rigor formal e discursivo, revela toda a capacidade de composição, encadeamento, caracterização, desenvolvimento e variação dos elementos visuais narrados por parte do escritor, elaborados que foram pelo guionista, para finalmente serem autorizados pelo realizador e cineasta. Neste fazer, os elementos sonoros e musicais que suportam a narrativa fílmica sustentam e elevam todo o potencial dramático da narração e dos temas a ela subjacentes. A fruição da obra mostra-nos que os diferentes elementos estão bem caracterizados. Do ponto de vista musical, definidos tanto melódica, como harmónica e ritmicamente de forma inequívoca, é-lhes associado um leitmotiv que lhes eleva o potencial dramático, o qual se mostra essencial. A tensão emotiva e dramática que ressalta é essencial à persecução da história e cativação da atenção refletindo, consequentemente, a tensão emocional e vivencial do protagonista principal: Gustav von Aschenbach.
No que concerne a identificação sonora e musical dos personagens, verificamos que se encontram ainda associados a texturas e timbres que os distinguem na sua forma de ser, revelando as suas características individuais. Neste fazer, os factos e os lugares narrados, também. O discurso musical surge ainda premonitório, como premonitória é toda a narrativa. Neste contexto, a forma como Luchino Visconti caracteriza os personagens Gustav von Aschenbach e Tadzio numa das cenas mais envolventes do filme, conduz o espectador a uma profunda reflexão sobre os sentimentos e emoções que os dois personagens permitem fazer surgir e que transmitem de modo magistral, não só na forma como interagem um com o outro, como na linguagem não verbal subjacente a todo o seu diálogo.
Olhando por cima da cabeça dos filhos, a senhora dirigiu à governanta algumas palavras em língua francesa. Em seguida, encaminhou-se para a porta envidraçada. Seguiram-na as crianças, primeiramente as mocinhas na ordem das respetivas idades, depois a governanta e por fim o rapaz. Por um motivo qualquer, este virou-se antes de atravessar o limiar, e, como mais ninguém permanecesse no saguão, encontraram os seus olhos estranhamente velados os de Aschenbach, que, com o jornal a repousar nos joelhos, absorvido na contemplação, mirava o grupo. (Mann s.d., 31)
Ao longo do filme, a profundidade do drama e da interpretação, os silêncios que sublinham e salientam o discurso fílmico, caracterizam emocional e intencionalmente os dois personagens, Gustav von Aschenbach, compositor de meia-idade que, de férias em Veneza, se apaixona perdida e obcecadamente por Tadzio, um adolescente polonês de uma beleza estonteante que arrebata o coração do nosso personagem.
Estava abalado a tal ponto que sentia a necessidade de evitar a luz do terraço e do jardim da frente. A passo apressado, procurou as trevas do parque dos fundos. Admoestações singularmente agastadas e carinhosas saíam de sua boca: “Tu não deves sorrir dessa forma! Realmente, não convém sorrir assim a ninguém!”. Atirou-se sobre um banco. Fora de si, aspirou o perfume noturno das plantas. E reclinando-se, com os braços caídos, arrebatado e transido de calafrios, sussurrava a eterna fórmula do anelo - impossível nesse caso, absurda, perversa, ridícula, e, todavia, sagrada, venerável até mesmo nessa situação: “Eu te amo!”. (Mann s.d., 55).
A personalidade de Aschenbach encontra-se definida desde o início da obra destacando as suas características psicológicas, a dualidade e ambivalência dos sentimentos, a tensão e a contenção no seu modo de proceder, a inquietação e o relaxamento, o disfarce e a ousadia, a coragem e a cobardia face aos seus sentimentos e emoções. Tadzio, o foco de toda a atenção de Aschenbach revela-se física e emocionalmente o contrário do compositor, e da restante família, sobretudo das suas três irmãs. No modo como se comporta, sabe que tem impacto sobre os outros, especialmente Aschenbach, manipulando-o de modo consciente ao longo da narrativa. Aschenbach, se num primeiro momento o desvirtua no que concerne o seu comportamento, como que a travar os pensamentos e sentimentos que assomam no seu coração, logo se vê atraído pela dissemelhança comportamental que deteta em relação a todos os outros. Se num primeiro momento é o impacto da beleza que lhe clama a atenção, logo surgem outras características para fazer perdurar o interesse do velho compositor pelo jovem rapaz.
Lá estavam sentadas em posição muito reta, com as cabeleiras louras cuidadosamente alisadas e os olhos vermelhos de sono. Trajavam vestidos engomados de linho azul, com golinhas e punhos brancos. Estavam passando o vidro de geleia umas às outras. Já tinham quase terminado a refeição. O rapaz não estava presente.
Aschenbach sorriu. “Vejam só esse pequeno feácio!”, pensou. “Parece que você goza do privilégio de dormir à vontade, ao contrário de suas irmãs.” Com súbita alegria, recitou de si para si o verso:
“As mudas de roupa, os banhos quentes e a cama.” (Mann s.d., 32).
A presença de Tadzio possui, contudo, um duplo significado. A paixão, a juventude, o renascimento e a exaltação da vida que provocam em Aschenbach, são aquilo que procura, desesperadamente, face à doença e à consciência que tem do declínio das suas forças físicas e à consequente finitude da sua existência humana. Consciente da situação em que se encontra, da visão de Tadzio surge renovado o interesse pela vida, promovendo o rejuvenescimento da paixão e das forças anímicas no compositor.
A aparição daquele vulto querido fora inesperada. Tadzio surgiu tão subitamente que Aschenbach não teve o tempo necessário para recompor as suas feições, dando-lhes o aspecto de calma e dignidade. Podia ser que nelas se refletissem claramente a alegria, a surpresa, a admiração quando seu olhar se encontrou com o do almejado menino. E foi nesse segundo que Tadzio sorriu, que lhe lançou um sorriso eloquente, íntimo, encantador, aberto, que só lentamente lhe descerrou os lábios. Era o sorrir de Narciso debruçado sobre o espelho d’água, aquele sorriso profundo, enfeitiçado, enlevado, com o qual estende os braços à imagem da própria beleza. Um sorriso um tanto forçado, desfigurado pela inutilidade do desejo de beijar os lindos lábios da sua sombra; sorriso coquete, curioso, levemente inquieto; sorriso seduzido e sedutor. (Mann s.d., 55).
Preso pelo sorriso de Tadzio e pela necessidade de amar e ser amado, Aschenbach enceta um processo de conquista. Ciente das dificuldades e da não normatividade da relação que desperta em si e que percebemos ser alimentada pelo jovem, molda a sua estadia aos comportamentos e vivências deste e da família. Levanta-se e deita-se a pensar em Tadzio. Realiza e idealiza o modo de se aproximar dele, sendo que neste conjunto se destaca a necessidade de o proteger de tudo o que o possa enfermar. A obsessão que assoma faz com que procure também ele o rejuvenescimento do corpo físico, uma atitude que julgou, e desprezou, no velho ancião que tentava agradar e permanecer no convívio com os mais jovens (Mann s.d.).
Como qualquer amante, desejava agradar. O temor de que tal solução fosse, talvez, impossível amargurava-o, induzindo-o a acrescentar a seus trajes certos toques de animação juvenil, a usar joias, a perfumar-se, a gastar várias vezes por dia muito tempo com sua toalete. Assim enfeitado, exaltado, nervoso, comparecia às refeições. Em face da doce juventude que o cativara, sentia nojo de seu corpo envelhecido. A visão de seus cabelos grisalhos e de sua fisionomia marcada inspirava-lhe vergonha e desespero. Tudo isso o levava a tonificar-se e restaurar-se fisicamente, fazendo com que frequentasse amiudadamente a barbearia do hotel. [...] Então o profissional eloquente lavou os cabelos do freguês com duas espécies de loções, uma clara e outra escura, e seus cabelos voltaram a ser negros como nos dias da juventude. Depois de arranjá-los em suaves ondas, deu um passo para trás, a fim de examinar a cabeça embelezada. [...] Via então no espelho como o arco das sobrancelhas se tornava mais decidido e simétrico, ao passo que a forma dos olhos se alongava e seu brilho adquiria maior intensidade devido a um ligeiro retoque dado às pálpebras; via como, mais abaixo, lá onde houvera a pele pardacenta, curtida, desabrochava, graças a algumas pinceladas carinhosas, um delicado carmesim. Os lábios, anémicos havia pouco, começavam a turgescer, assumindo a cor viva de framboesas. As rugas da boca, das faces, dos olhos sumiam sob a influência de cremes e águas remoçadoras. Com o coração a palpitar, Aschenbach deparava com um jovem viçoso. (Mann s.d., 73-74).
Morte em Veneza de Luchino Visconti explora duas realidades existenciais, dois mundos físicos e psicológicos que coexistem simultânea ou sequencialmente, interpolando-se ou sobrepondo-se num jogo discursivo de atração e repulsa, de tensão e distensão que caracterizam os sentimentos e ações do personagem principal, Aschenbach. O jogo de sedução de Tadzio e Aschenbach, o confronto de duas divindades opostas: Apolo e Dioniso, e a oposição entre a beleza e a fealdade representados por Tadzio e a família russa, as cenas no mar ou a travessia de gôndola entre Veneza e a ilha de Lido, são de uma profundidade extensa e única para o desenrolar da obra.
1.1.1 A narrativa fílmica
A obra caracteriza-se por momentos singulares, repletos de emoção e simbolismo. O filme inicia com a imagem de um barco a vapor que se aproxima de Veneza. Neste barco segue Gustav von Ashenbach, que, ao chegar a Veneza, apanha uma Gondola para o Lido. Durante a viagem, o Gondoleiro ignora a agitação de Gustavo quando este lhe dirige a palavra por distintas vezes, tentando perceber o que se passa. Esta cena antecipa já o destino do personagem pois é uma referência clara a Caronte, ser mitológico que percorre a fronteira entre os vivos e os mortos4. Gustav von Aschenbach vai usufruir de um período de descanso e encontra-se alojado no melhor hotel do Lido. No decorrer da ação tem um flashback que nos revela que é músico e que tem problemas no coração causados por uma excessiva preocupação e ansiedade, decorrentes da continua busca da perfeição e do belo, e para o qual o médico aconselha repouso absoluto e umas férias em local aprazível e longe das preocupações constantes (Morte em Veneza 1971)5.
Na primeira cena no salão do hotel, após a sua chegada ao Lido, Aschenbach depara-se pela primeira vez com a beleza de Tadzio. Perante esta beleza apolínea, mais um flashbach se dá no qual Achenbach diz que os artistas são como caçadores que caçam no escuro e que os artistas nunca veem o seu alvo nem tampouco sabem ao certo se lhe acertam. Afirma ainda que a beleza não se cria, que é algo que a natureza cria por si própria, sendo impossível de alcançar. Diz ainda que a arte é a fonte mais elevada de educação, logo o artista tem de ser um exemplo. Um exemplo de equilíbrio, inteligência e cor, sendo que a arte não pode ser ambígua. Toda esta inquietação e constante tentativa para alcançar o belo adoecem Gustavo, pois que pelo facto de não conseguir alcançar essa beleza, a frustração se instala levando-o a ficar doente e a necessitar de umas férias longe do seu ambiente criativo (Morte em Veneza 1971).
A deslocação para Veneza faz com que Aschenbach se encontre novamente face ao ideal apolíneo de Belo. Este é trazido por Tadzio que, em sentido contrário, promove emoções dionisíacas em Aschenbach. Estas emoções transparecem no processo criativo que aflora no compositor. Diante de Tadzio, Aschenbach vive dias de euforia e entusiasmo que lhe concedem o renascer e o despertar da sua intenção criativa. Na praia, o compositor assiste a diferentes jogos praticados pelas crianças que aí se encontram, e nos quais Tadzio sai sempre vencedor6. A luta, entre o interior e o exterior dos personagens, e o confronto físico dos participantes exigido pelo jogo, encontra-se presente nos recursos usados nas cenas em que Tadzio sai sempre vencedor e que conduz à exaltação do seu personagem. Sendo elogiado e aclamado por todos, o jogo de sedução conscientemente encetado pelo personagem produz resultados, sendo Aschenbach tomado frequentemente por sentimentos de pânico face ao rapaz.
E o jogo de sedução culmina na dinâmica convulsiva entre duas personagens, duas divindades de características exclusivas e opostas, Apolo e Dioniso. De natureza mais melódica, Apolo contrasta com um Dionisio mais dissonante e turbulento, num apelo ao tumulto interior vivido por Aschenbach num momento bem preciso da sua existência e que antecipa a morte7. Depois do confronto entre os dois, a narrativa desenvolve a dança de Dioniso, um clímax de extrema densidade e complexidade musicais. Após o clímax, o discurso torna-se mais rarefeito, premonição da aceitação por parte de Aschenbach da paixão por Tadzio8.
Na cena final, a partida física e emocional de Aschenbach em face de Tadzio na praia, é um dos muitos momentos em que o ambiente criativo nos remete para uma tensão emocional e psicológica de grande força criativa. É a apoteose criativa e o climax numa relação não firmada entre os dois intervenientes, mas com uma consciência emocional bem patente em Tadzio, e que usa esse jogo emotivo a seu favor (Morte em Veneza 1971). A forma como se passeia e deambula na praia, a forma como olha Aschenbach numa inocência maliciosa e consciente do tumulto emotivo que provoca no escritor, chega a ser perverso e malicioso para o desnrolar da narrativa. E Aschenbach fenece na indiferença de todos e de Tadzio em particular, que avança mar adentro num ato de libertação de todos os pensamentos perante Aschenbach e de todos os pecados que uma relação dessa natureza lhe traria não só a nível emocional, como a nível cultural, social e familiar.
1.1.2 A dimensão da música de Gustav Mahler
A obra de Gustav Mahler que sustenta maioritariamente a ação, o quarto andamento, Adagietto, da sua Sinfonia nº 5 (1901-02), é reveladora de toda a intenção criativa e expressiva de Luchino Visconti. Não podemos esquecer que a narrativa de Thomas Mann contempla uma alusão a este compositor. Na contenção que revela, porta uma enorme tensão emocional e visceral, resultando numa componente musical premiada pela economia de meios que possui na construção melódica, harmonia e rítmica. Do facto, resulta uma obra de elevada beleza, suportada pela simplicidade que nos mimoseia assente no reduzido número de sons das suas linhas melódicas, na contenção criada pelo uso de uma harmonia pouco cerrada e abrangendo um largo espectro harmónico. A tensão originada na repetição, sequenciação e sobreposição de alturas bem definidas, embora gere tensão, cria uma contenção que reduz significativamente o espectro de sons utilizados. Assim, constatamos que, apesar dos seus elementos possuírem uma mesma natureza, apresentam harmonias, timbres, direccionalidades e ritmos distintos. A harmonia, menos tensa e densa, derrama uma riqueza de timbres, mais clara e luminosa, o que suporta o despertar da paixão de Aschenbach por Tadzio.
Morte em Veneza permite-nos, assim, indagar e refletir sobre distintos elementos da narrativa com vista à sua análise no computo da obra. Portanto, o uso do Adagietto da 5.ª Sinfonia de Mahler é importante para a caracterização de distintas atmosferas criativas ao longo da obra. No que concerne a Beleza e Mortalidade presente no texto de Thomas Mann e na narrativa de Luchino Visconti, Tadzio simboliza a beleza idealizada que Aschenbach almeja e com a qual se confronta na sua própria morte. A melodia melancólica que suporta o Adagietto da Sinfonia, reflete a fragilidade do amor e a transitoriedade da vida, e que na proposta fílmica de Visconti sublinha a tensão entre o fascínio de Aschenbach por Tadzio e a iminência da sua decadência e morte, a mesma decadência e atmosfera que nos é apresentada numa Veneza em queda, e que nos caracteriza o declínio de Aschenbach. Numa atmosfera contemplativa e introspetiva, com ritmo lento e expressão melódica delicada, as imagens visuais decadentes de Visconti, combinadas com a lentidão do Adagietto de Mahler, reforçam a atmosfera de ruína e nostalgia presentes na obra. Os dois personagens principais, símbolos do Apolíneo e Dionisíaco, representam a luta entre a racionalidade (Apolíneo) e a paixão destrutiva (Dionisíaco) presente na rigidez emotiva de Aschenbach e na sua entrega à paixão representada por Tadzio. O equilíbrio entre a harmonia (ordem) e a expressividade emocional (caos) representada na obra musical de Mahler, sublinham essa tensão e tumulto criativo.
Já no que concerne o ritmo e a narrativa fílmica, esta detalha o declínio físico e emocional de Achenbach sendo que o ritmo do filme, assente em cenas longas e no sonoro do Adagietto, enfatizam a estagnação e o colapso iminente do protagonista. O andamento Lento inspira à contemplação e à introspeção não só no que concerne aos personagens como à temática das cenas e dos textos usados. De realçar que o silêncio e o texto apoiado em monólogos internos e reflexões filosóficas que exploram a psique de Aschenbach, são propícios ao uso do Adagietto pois que a música substitui o discurso, expressando emoções indescritíveis. Da mesma forma, e na visão do realizador, o Adagietto assume o papel de “voz interna” de Aschenbach, traduzindo seu estado emocional sem necessidade de palavras. Esse facto intensifica o potencial criativo nas escolhas do realizador. E a música chama, assim, imagens introspetivas e sentimentais que sublinham um texto que evoca imagens vívidas da beleza e da decadência dos seus personagens, imagens essas exuberantes e decadentes de uma Veneza que combinam com a música para criar uma experiência estética completa.
O declínio e a fragilidade dos seus protagonistas, exacerbadas na fragilidade física e emocional de Aschenbach é ampliada pelo seu comportamento e pelas composições visuais de Visconti e sonoras de Mahler. No Adagietto, a melodia expressa vulnerabilidade e um senso de finitude, enquanto o declínio de Aschenbach reflete a decadência de Veneza e a certeza de uma morte já por si anunciada aquando da sua viagem de Gondola para a Ilha de Lido.
Conclusão
Da análise e reflexão efetuadas sobre uma obra maior da arte cinematográfica, vemos que escritor e cineasta definem e traçam um percurso onde a música de Gustav Mahler nos permite a definição de um caminho musical na caracterização de cada um dos personagens e das diversas cenas que se sequenciam. A antecipação a nível musical dos acontecimentos da narrativa, uma constante, revela-se igualmente uma característica. As texturas associadas, bem definidas, o prenúncio muitas vezes da ação que se desenrolará. A caracterização musical, como um Leitmotiv, acompanha os personagens e as ações, unificando o discurso e a obra. Aponta ainda para uma circularidade tanto da obra, como dos materiais. Esta circularidade caracteriza igualmente o pensamento de Aschenbach que se encontra indeciso em aceitar os factos e relutante face aos seus sentimentos. Som, texto e imagem interagem, criando uma obra de uma expressividade e dramatismo únicos, reflexo do ato criativo e da vivência dos seus autores.
Notas finais
1Inicialmente a popular obra de Mann foi publicada, por partes, na prestigiada revista alemã Die Neue Rundschau. A escrita da obra ocorreu entre os meses de julho de 1911 e julho de 1912, tendo sido publicada nos números da revista saídos entre Outubro e Novembro de 1912. Sob a forma de livro, a primeira publicação aconteceu em fevereiro de 1913.
2Mann informa que esta ação contrariaria sempre as suas inclinações e vontades, pois que o dever de produzir se fazia maior face à necessidade decorrente de uma saúde em franco declínio.
3Representação de Caronte, o barqueiro de Hades, responsável pela travessia das almas, a cena da gondola é premonitória. Se a morte se anuncia desde este momento, a doença e o surto epidémico de cólera serão desvalorizados pelas autoridades italianas, como de alguma forma foi desvalorizada a relação que se estabeleceu, aos poucos e poucos, entre o velho escritor, Gustav von Aschenbach, e o jovem polonês, Tadzio.
4Como em Veneza existe na altura uma pandemia de cólera, o Gondoleiro personifica esta figura mitológica que também tem como função recolher as almas dos mortos que deambulam na fronteira entre os dois mundos.
5Como Ashenbach é obcecado pelo trabalho e pela perfeição, nomeadamente a musical, esse facto o conduz a um momento de exaustão física e psicológica que será crucial para toda a narrativa fílmica.
6A beleza, a força, a coragem, a inteligência e a liderança sobressaem na personagem, características que atraem o escritor.
7Note-se que o elemento que caracteriza a morte surge pela primeira vez quando Aschenbach se interroga, depois de encontrar o Viajante no cemitério, sobre o destino de viagem a tomar.
8A exaltação musical traduz a exaltação física e psicológica do sonho de Aschenbach, os delírios e a sua componente dionisíaca.
Referências Bibliográficas
Mann, Thomas. S.d. A Morte em Veneza. Companhia das letras. https://archive.org/details/a-morte-em-veneza-toni-kroger-thomas-mann-companhia-das-letras. Acedido em 1 de abril de 2025.
Camila Salvá, Camila e Diedrich. Andressa. 2020. A Morte em Veneza e seu tratado sobre o fazer artístico. Instituto Ling. https://institutoling.org.br/explore/a-morte-em-veneza-e-seu-tratado-sobre-o-fazer-artistico. Acedido em 26 março de 2025.
Filmografia
Morte em Veneza. 1971. De Luchino Visconti. EUA: Warner Bros. DVD.