Abstract
Participatory culture, as defined by Henry Jenkins, emphasizes the active role of individuals in the creation and dissemination of content, breaking away from the logic of passive consumption and fostering collaborative and creative communities. However, this research proposes to advance this discussion and introduce a specific framework by presenting the concept of the corporeal-interagent, expanding notions of discursive and virtual participation and collaboration to address the immersive, artistic, and performative manifestations that characterize the practices of film fan communities. These interactions suggest an expansive and dynamic flow in which the bodies of these individuals, the bodies of the admired productions, and the bodies of derivative creations intertwine, merging and transforming each other. The central problem investigated lies in the need to conceptualize such practices, highlighting how they transcend passive appreciation to shape active agents of artistic and identity-based expression and reinterpretation. The core hypothesis is that the corporeal-interagent operates as an interconnected field, in which interactions between active spectators, works, and artistic productions configure processes of shared learning. The objective of this study is to explore how these fan actions, both as concept and practice, permeate different dimensions—artistic, cultural, identity-based, social, and historical—revealing their potential to expand discussions on education, media, and art. This exploratory research suggests that such a concept represents more than the sum of individual practices; it manifests as a collective movement marked by dynamic and creative exchanges, transforming experiences of immersive appreciation—such as in the narratives of Naruto, Avatar, and Harry Potter—into meaningful practices.
Keywords: Corporeal-interagent, Fan communities, Shared learning, Artistic practices, Immersive interaction.
Introdução
No contexto contemporâneo das práticas midiáticas, em especial no universo das produções fílmicas e seriadas, tem-se observado o surgimento de novas formas de interação, aprendizagem e criação coletiva, que escapam às lógicas tradicionais de recepção passiva e consumo cultural. As comunidades de fãs, marcadas por afetos, engajamentos e partilhas criativas, transformam-se em verdadeiros espaços de experimentação estética, social e identitária.
Interagentes corpóreos? Sim! Eis aqui uma proposição conceitual que se apresenta para provocar reflexão e ressaltar a importância e a singularidade de determinadas produções audiovisuais no contexto social, especialmente dentro de comunidades de fãs2 que compartilham, aprendem e difundem conhecimentos relacionados a essas obras e que, contribuem para novas dinâmicas imersivas e criações artísticas. Nessa discussão, propõem-se três instâncias fundamentais: conter interagentes corpóreos, haver interações corpóreas e tornar-se um interagente-corpóreo.
O presente conceito foi originalmente desenvolvido no âmbito da minha pesquisa de doutoramento na Universidade Anhembi Morumbi, e aqui é retomado em versão sintética, com foco em suas implicações artísticas e educativas nas comunidades de fãs, com breve recorte pensando as proposições das obras e dos aficionados por Naruto, Avatar, a lenda de Aang e Harry Potter.
Esse artigo busca, portanto, desenvolver tal proposição à luz de práticas artísticas e de processos educativos que emergem nesses coletivos, compreendendo-os como territórios de produção de sentidos e de subjetividades em trânsito.
É interessante salientar que ainda que o conceito de interagente-corpóreo dialogue com os fundamentos da cultura participativa e que existam de fato produções artísticas sendo criadas a partir dessa ampliação das relações com diferentes mídias, com expressões e pertencimento, o foco deste trabalho recai sobre essas práticas que emergem no entrelaçamento entre corpo, narrativa e coletividade com filmes, seriadas ou não, e animações. Falar da articulação desse conceito no sentido desses fãs, é trazer à pauta suas comunidades, seus anseios e produções enaltecidas, bem como as artes criadas pelo e com os corpos que, incessantemente, performam entre os mundos da ficção narrativa e da realidade.
Ainda assim, é necessário estabelecer critérios para compreender quando essas práticas configuram, de fato, um interagente-corpóreo — e quando não o fazem. Acredita-se que somente o compartilhamento de produções apreciadas—ou pelas quais os indivíduos nutrem afinidade e se reconhecem como fãs—não implica, necessariamente, em interações ou criações marcadas por imersão intensa para que se configure em uma rede ampla de indivíduos e fazeres enquanto tal. O imergir transcende a ação mecânica das feituras: são corpos que se diluem e que transitam entre os universos das narrativas, persistindo essas experiências por meio do ato de compartilhar, expandindo ideias, aprendizagens e o próprio devir fã.
A metodologia adotada nesta pesquisa é de natureza bibliográfica, fundamentada em Henry Jenkins que discute cultura participativa, Gaston Bachelard sobre o imaginário e Le Breton e Chateauneuf que abordam a ideia do corpo enquanto constructo discursivo e artístico, principalmente. No entanto, além do aporte teórico e de outros que se fizeram necessários, o estudo também se baseia na observação e no contato direto do pesquisador com comunidades de fãs, bem como em três produções artísticas criadas por esses sujeitos. Essas criações foram encontradas em diferentes plataformas digitais, como páginas no Pinterest, Blog, um canal do YouTube, Instagram, além de portfólios disponíveis na plataforma DeviantArt, algumas das quais aqui são trazidas e mencionadas. A investigação, portanto, articula referências teóricas e experiências empíricas para compreender os modos de interação, criação e compartilhamento que emergem nesses espaços.
À luz de algumas teorias, bem como do próprio conceito majoritariamente discutido neste trabalho, temas como pertencimento, identidade sexual e até mesmo formas de genocídio — ainda que simbólicas — serão aqui atravessados pelas obras audiovisuais selecionadas, que atuarão como disparadoras para refletir e tecer tais questões de maneira expandida. A proposta é pensar como essas produções dialogam com as experiências de fãs em uma sociedade profundamente invadida pelos fluxos midiáticos, revelando modos de existir, resistir e criar sentido no entrelaçamento entre as interações corpóreas, arte e narrativa.
As análises aqui desenvolvidas que se debruçam sobre três universos ficcionais distintos, mas igualmente potentes na construção de imaginários e na articulação de discursos sensíveis percorrem as seguintes questões. Em Naruto, a abordagem recai sobre as resistências e conquistas no cotidiano, evidenciando os desafios corporais e emocionais diante das imposições sociais. Em Avatar: A Lenda de Aang, tensionam-se as questões do etnocentrismo, do multiculturalismo e da aculturação, manifestas na construção narrativa e estética da obra. Já em Harry Potter, o foco incide sobre a ressignificação da homossexualidade, reconstruída poeticamente por fãs a partir de personagens originalmente concebidos como heterossexuais. Cada uma dessas obras, à sua maneira, contribui para o entendimento do interagente-corpóreo enquanto presença e potência criadora, crítica e afetiva em uma sociedade mediada por narrativas audiovisuais.
A escolha se deu pelo interesse do pesquisador e pela interação com seus estudantes e amigos, que dialogavam e compartilhavam da mesma motivação pelas produções fílmicas.
1-Traçando um conceito para os trânsitos dos corpos no contexto midiático
Ao abordar os três devires do corpo — estar diante de interagentes corpóreos, ter uma interação corpórea e tornar-se interagente-corpóreo — em sua relação experiencial com o filme, compreende-se que diferentes narrativas ficcionais ao longo da história marcaram imaginários de pessoas de diferentes locais, culturas, classes sociais. Logo, acredita-se que as reflexões aqui tecidas podem ser igualmente aplicadas para compreender fenômenos de recepção e pós-recepção de outras produções audiovisuais.
- Por que Harry Potter, mesmo após tantos anos, continua movimentando fãs?
- O que torna Dragon Ball tão enigmático a ponto de cativar fãs ávidos que o transformam em material artístico?
- Quais são os monstros, personagens e histórias que permeiam universos como Star Wars e Star Trek, evocando o infinito, o desconhecido e o além?
- E os Heróis da Marvel? Podem eles resistir mesmo após sua morte?
Esses são apenas alguns exemplos que ilustram o impacto de feituras instigantes. Embora o foco desta pesquisa seja mais amplo e, ainda que perpasse por produções como Harry Potter, Avatar, a lenda de Aang e Naruto, reconhece-se que as conexões aqui exploradas possuem ressonâncias amplas. Afinal, “para algumas almas, ébrias de onirismo, os dias são feitos para explicar as noites” (BACHELARD, 2001, p. 29). Por outro lado, para almas ébrias de racionalidade e realidade conflituosa e massacrante, a Arte — especialmente as com narrativas ficcionais — surge como um acalento e, por vezes, como uma explicação para os dessabores da vida, para a entrada em um universo imaginativo.
É justamente nesse entrelaçamento entre obra, corpo e imaginação que se estrutura inicialmente o conceito de interagente-corpóreo. Em primeiro momento, de maneira geral e ampla, compreende-se que conter interagentes corpóreos significa apresentar, na obra, componentes sonoros e visuais que dialogam com as subjetividades de seus espectadores, possibilitando traçar interlocuções ao longo de todo o filme ou em boa parte dele, enquanto é assistido. Esses elementos traçam interlocuções com o público no decorrer de narrativas ficcionais desenvolvidas em formatos contendo áudio e/ou visual, sejam impressos, analógicos ou, predominantemente, digitais. Entre esses formatos, destacam-se quadrinhos, filmes, animações (foco da pesquisa), séries, livros, mangás, audiobooks/podcasts narrativos, videoclipes e games com narrativas. Essas mídias têm como fio condutor uma narrativa ficcional, acompanhada por sons, ritmo e conexão emocional com os personagens e/ou cenários, apresentando universos fictícios intencionalmente construídos e estruturados por seus autores. Em muitos casos — mas não em todos — esses universos são caracterizados por elementos fantásticos, maravilhosos ou estranhos3, dependendo de como o sobrenatural (ou o inexplicável) se manifesta ao longo da narrativa.
David Le Breton vai dizer que é indubitável que “uma constelação de fatos sociais e culturais está organizada ao redor do significante corpo” (LE BRETON, 2012, p. 35). Sabendo disso, produções fílmicas, por exemplo, podem de fato ser construídas de forma a dialogar com essas dimensões intrínsecas ao ser humano, ao seu corpo, ao seu papel como ator social. Algumas delas se conectam mais diretamente a grupos específicos, outras se voltam a determinadas etnias ou, ainda, tentam alcançar um público mais amplo, no anseio por atingir muitos, talvez “quase todos”.
Haver interações corpóreas, por sua vez, consiste em conjecturar consigo mesmo (durante e após a experiência narrativa) e com o outro sobre as propostas e vicissitudes propiciadas pelo filme — seja pelo ato de acolhimento por parte de quem o assistiu ou até mesmo pelo estranhamento—, construindo vivências e experiências que transcendem o simples ato de ver.
Esse processo pode ser entendido como um estado de imersão sensorial, que, segundo Janet Murray (2003, p.102), é “a sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente estranha, tão diferente quanto a água e o ar, que se apodera de toda a nossa atenção, de todo o nosso sistema sensorial”. Assim, a interação corpórea emerge não apenas do que é visto, mas da forma como os elementos de áudio e imagens capturam e dialogam com nossos sentidos, evocando reflexões, emoções e respostas corporais.
Gaston Bachelard (2001, p. 4) afirma que, se bem escolhida, a figura inicial — acredita-se aqui que pode ser uma animação, um filme ou qualquer projeção audiovisual ou narrativa ficcional digital, por exemplo — “(...) revelará como um impulso para um sonho poético bem definido, para uma vida imaginária que terá verdadeiras leis de imagens sucessivas, um verdadeiro sentido vital”. Logo, acreditamos que produções, como as aqui escolhidas, não se tratam apenas sobre um forjar-se de um herói, como Naruto ou Harry Potter, de uma saga sensível e preocupada com o bem estar do outro como evidenciado em Aang. Produções e conformações midiáticas que contêm narrativas ficcionais, ou que propõem a expansão do imaginário social por meio de atos de viver e criar, ao entrelaçarem esses cenários com a própria realidade dos indivíduos, os convocam a vivenciar, experienciar, consolidar memórias e a se moverem em direção a um sonho poético — e, por vezes, ao ato criativo.
Seja por meio de desenhos e pinturas, comuns em salas de aula, ou de brincadeiras corporais, performances, danças e apresentações teatrais nas ruas e nos palcos de teatro, essas produções transcendem, principalmente, o mero assistir. Elas promovem diálogos profundos e significativos, oferecendo um sentido vital que orienta a composição corporal e o repertório imaginativo, flexionando o verbo imaginar com imagens que são pessoais e profundamente significativas.
Daí emerge a questão que dá sequência ao conceito: será que todo fazer artístico, ainda que marcado por grande rigor criativo, é, de fato, necessário ou suficiente para a conformação de um interagente-corpóreo?
Acredita-se que sua configuração vá além dessas ações pontuais, diluindo-se, retroalimentando-se e, ao mesmo tempo, expandindo-se nos corpos, construindo um corpo vivo que carrega em si narrativas ficcionais, fãs e participantes das mídias que são reflexivos, ativos e produtores de ações artísticas em constante devir.
Com isso, tornar-se um interagente-corpóreo constitui o devir desse todo; é o nome atribuído a essa articulação entre obra e público — ainda que nem sempre conscientemente reconhecido como tal — e que carrega consigo, junto à rede de fãs construída ao seu redor, as criações, os gestos e as ações que emergem nesse processo. Isso ocorre quando, após diálogos suscitados durante sua apreciação, o indivíduo que teve contato com a obra a expande para além das telas, perpetuando de alguma forma, por meio das Artes que faz e com o outro, o encontro que teve com ela. Há uma constância permeável entre eles (obra e espectador), diluindo-se um no outro em um fluxo contínuo, em uma expansão com suas criações artísticas. Corpos dos fãs, corpos das produções apreciadas, corpos das criações dos fãs. Esse processo evidencia a persistência do encontro entre obra e os sujeitos, em um fluxo que se retroalimenta e se amplia em compartilhamentos, interações, imersões sensíveis e criações artísticas.
Em poucas palavras, seria como perguntar a alguém, passado algum tempo após assistir a um filme: O que você fez depois de apreciá-lo? Conversou consigo mesmo ou com amigos? Copiou, criou, estendeu suas experiências para sua realidade palpável? Houve apenas uma discussão, uma longa conversa nas comunidades, ou algo além do que foi visto foi criado e recriado?
Esse tornar-se enquanto uma configuração que transcende ao mero apreciar, espectador ou, talvez, conversar sobre, implica no rompimento com a ideia das relações imersivas enquanto puramente experiências marcantes para relacionar-se com as memórias, o ato imaginativo em si e a criação, conforme demonstrado por Chateauneuf (2025, p.125). Considerar essas questões, transitando entre o corpo que assiste e passa a fazer parte desse todo (comunidades, digitais ou físicas), da obra apreciada e das produções que faz, significa “ao mesmo tempo, dissolver a dicotomia entre corpo e cultura, corpo e sujeito, corpo e história — compreendendo-o como um produto de construção integrada, moldado ao longo de um panorama narrativo que atravessa os anos”. Com isso, não estão mais apenas integrados ou tomados como simples constructos discursivos, mas sim como discursos potenciais em ação que não antecedem nem impõem normatividades — e que, ao contrário, contribuem para a reflexão e ao movimento consciente de corpos em sociedade.
O conceito aqui proposto, também, trabalha com uma especificidade e expande processos discursivos e de análise em relação à “cultura participativa” de Jenkins, pois extrapola os limites dos diálogos e das relações entre fãs ou indivíduos inseridos na cultura digital, para discutir a formação de um corpo que atua (faz arte) e se torna o próprio objeto de arte, em um processo combativo e híbrido. A ideia conceitual aqui trazida não está ligada ao fã antissocial, como diria e critica o próprio Jenkins, nem à participação de indivíduos que ficam somente no campo das discussões orais ou das ideias: ela está intimamente conectada à pós-apreciação da obra fílmica, principalmente.
Interagente-corpóreo refere-se aos fãs e indivíduos da cultura participativa no geral, suas comunidades, ações, produções, discussões e ideias atreladas às Artes. Mas, então, por que não chamar simplesmente de “comunidade participativa de fãs”? Ou de “comunidade participativa”? A resposta é simples: o conceito abrange todas essas definições, no entanto faz um recorte muito específico. Não se trata apenas das discussões ou produções dos fãs, nem do que foi ou deixou de ser criado. É tudo isso e mais, no entanto, dentro de um campo específico de conhecimento, no contexto artístico: há também quem faça arte, que não participa de nenhum grupo de fãs, mas que está inserido dentro um grupo outro em consonância com a cultura participativa. O que ocorre entre as comunidades é mutável, imprevisível e criativo; não se estagna ou é reduzido a uma única dimensão das supracitadas, nem tampouco se perpetua somente no contexto virtual.
Pode-se afirmar que, de maneira direta, os dois conceitos se cruzam e se complementam, compondo uma tessitura comum entre participação, interação e criação, no entanto, carregam suas especificidades. A cultura participativa, tal como proposta por Henry Jenkins (2022a, 2022b, 2010, 2009), baseia-se em três pilares principais: compartilhamento, interação e criação, entendida esta última como um processo que se manifesta em diferentes campos e linguagens.
Já o conceito de interagente-corpóreo, desenvolvido no âmbito da presente pesquisa, a partir da interação/imersão do pesquisador com o campo das mídias, da arte, da educação e da Arte/educação, propõe uma ampliação desse entendimento ao incluir, além da configuração de grupos, o compartilhamento, a aprendizagem compartilhada e a interação e, sobretudo, a imersão sensível/corpórea com sua extensão na criação artística como expressão performativa e encarnada dessas experiências. Aqui, o corpo não é apenas presença, mas meio e linguagem — suporte de afetos, narrativas e tensionamentos que emergem nas dinâmicas coletivas das comunidades de fãs que por sua vez, trazem à pauta questões sociais de suma importância.
A seguir, apresenta-se uma imagem que visa ilustrar visualmente a relação entre os conceitos de Cultura Participativa, Fandoms e Interagente-Corpóreo. No diagrama, observa-se que o interagente-corpóreo emerge no ponto de interseção entre as práticas coletivas dos fandoms e os princípios mais amplos da cultura participativa. Embora compartilhe elementos com ambos os campos, ele se destaca por incorporar uma dimensão que é simultaneamente artística, estética, corporal e relacional. Assim, ao perguntar “afinal, onde se situa um interagente-corpóreo?”, visualizamos sua posição como um corpo em trânsito — que pertence, toca e ultrapassa os limites de cada um desses campos — sendo, ao mesmo tempo, produto e agente de um fazer sensível, compartilhado, com características e dimensões muito específicas dentro da aprendizagem compartilhada, do fazer e da distribuição e socialização da Arte.
Pode-se dizer que o interagente-corpóreo se configura como manifestação artística, fazer artístico e gesto participativo que emerge de grupos de fãs. Ele representa não apenas a criação estética, mas também a resposta sensível e afetiva ao objeto de admiração, operando como construção subjetiva em trânsito, de maneira dialogada. Trata-se de uma presença que participa ativamente da circulação de saberes e afetos, acionando processos colaborativos e formas de pertencimento que ultrapassam o individual. Nesse sentido, o interagente-corpóreo é também performance e memória, imaginário e criação, expressão de identidades múltiplas e narrativas plurais, atravessando práticas culturais, sociais e políticas com um corpo que age, sente, recorda e transforma — sempre em relação com o outro e com o mundo midiático que o cerca.
2 - Um conceito que é artístico, social e humano
É interessante salientar que diferentes interagentes-corpóreos podem ser atravessados por questões desmoralizantes, negativas ou insidiosas; no entanto, nenhum desses corpos (ou indivíduos), tampouco suas ações, se constituem verdadeiramente enquanto tal conceito, uma vez que caminham na contramão dos princípios aqui propostos. Como nos alerta Ana Mae Barbosa (2010), não basta estar no campo da sensibilidade artística para que se esteja no campo da sensibilidade humana — afinal, os nazistas também eram sensíveis às artes. Um interagente-corpóreo, portanto, não se define apenas por sua relação com práticas artísticas, mas pela forma como essas práticas se articulam a uma sensibilidade expandida: uma sensibilidade ética, relacional e crítica, que se constrói em diálogo com as diferenças, os contextos e as histórias. Trata-se, assim, de uma presença que transcende a estética enquanto apreciação isolada, alcançando o campo da sensibilidade humana como lugar de encontro, deslocamento, criação e recriação compartilhada.
É a presença do ser enquanto indivíduo conformado a partir daquilo que é (negro, branco, trans, homossexual, indígena, mulher, homem); é caminho para dialogar com o outro sobre sua própria estrutura, sua liberdade de ser e sua configuração na sociedade; é linguagem para comunicar-se com — e por intermédio — dos meios sobre si mesmo e sobre o outro.
É interessante considerar que, mesmo que os dois conceitos (cultura participativa e Interagente-corpóreo) se cruzem e foquem na recepção e na pós-recepção, o que aqui discutimos se dá pela compreensão na exacerbação dessa pós-recepção, visto que é através dela que se configuram os diferentes Interagentes-corpóreos.
Esse além parte da ideia do fazer criativo desses fãs, reescrevendo e complementando as narrativas assistidas/apreciadas/sentidas de maneira diversa, criando objetos artísticos em diferentes campos das linguagens, como as artes visuais, música, dança, cênicas, e o próprio cinema, considerando o corpo como uma construção social, que é mutável e ativa.
O conceito proposto enfatiza o alargamento da simples participação dos fãs no campo das discussões ou apreciações passivas para um envolvimento ativo e criativo com a obra, transformando-os em agentes de produções conceituais e práticas, artísticas, culturais, identitárias, sociais e históricas. Em vez de serem meros consumidores ou comentaristas de filmes e outros produtos culturais, esses fãs criam suas próprias expressões artísticas em resposta ao material original.
Tais práticas podem ser compreendidas como; produções culturais, por refletirem tradições, hábitos e repertórios coletivos que expressam a identidade de determinado grupo social; produções identitárias, ao evidenciarem marcadores como gênero, etnia e sexualidade; produções sociais, por emergirem de dinâmicas relacionais que abordam questões de pertencimento, poder e organização coletiva; e produções históricas, quando dialogam com memórias, narrativas do passado, revisitações críticas de eventos e contextos ou, na tentativa da reconstrução de novas histórias. Assim, as obras dos fãs não apenas expressam sua relação com as mídias que consomem, mas também constituem territórios de criação onde o corpo, o afeto e o coletivo se entrelaçam em práticas performativas, de aprendizagens e políticas. No entanto, nem toda produção nasce puramente política, bem como, completamente ilustrativa/artística, embasada em um fazer técnico ampliado. Essas qualidades podem existir e nascer em um interagente, de maneira distinta ou articulada.
É uma interação que emerge do corpo e se dirige ao corpo do outro, retornando a si em um diálogo contínuo. Há uma interação entre os corpos, sejam dos indivíduos pensantes que assistem, sejam as próprias produções fílmicas que, também pensam e possibilitam pensar sobre elas, bem como de outros indivíduos que entram em contato com essas criações feitas pelos fãs ou indivíduos que estão dentro da cultura participativa.
Assim, para além de uma segregação elitista de saberes e sujeitos que os detêm, o grupo, enquanto interagente-corpóreo, oferece aos seus participantes a oportunidade de criar e interagir com considerações e produções distintas, trabalhando com um outro viés atrelado ao social — desta vez, na democratização das artes e do fazer. Todos pertencem à comunidade e podem contribuir para ela; basta imergir no universo da obra de que gostam, trabalhar com ela e buscar conexões em seu conteúdo.
Jenkins diz que:
A cultura dos fãs encontra nessa dimensão utópica da cultura popular um espaço para construir uma cultura alternativa. Sua sociedade é sensível às necessidades que levam seus membros a se sentirem atraídos pelo entretenimento comercial, especialmente o desejo de pertencimento, amizade e comunidade (JENKINS, 2010, p. 318, tradução nossa).
Importa destacar, desde já, que embora existam produções artísticas elaboradas por indivíduos inseridos na chamada cultura participativa conforme citado acima, tais criações nem sempre derivam de vínculos com comunidades de fãs ou de engajamentos coletivos em torno de obras específicas. Muitas vezes, são manifestações autorais que se inspiram em elementos das mídias digitais, mas que não se vinculam a práticas de compartilhamento, interação ou pertencimento coletivo. Do mesmo modo, é possível participar da cultura participativa, criar arte e mesmo assim não integrar, de fato, um grupo estruturado de fãs ou de indivíduos — o que, portanto, não configura o sujeito nem como pertencente à um interagente-corpóreo, tal como proposto neste estudo, nem a conformação de um Interagente-corpóreo.
Outro destaque importante está na ideia de que a noção de interagente-corpóreo não se limita exclusivamente ao contexto do fã, mas tão logo aos indivíduos da cultura participativa. Existem sujeitos que, mesmo não estando diretamente articulados a fandoms tradicionais ou a obras midiáticas específicas, mobilizam narrativas ficcionais, engajam-se em processos coletivos, produzem arte, compartilham conteúdos e constroem vínculos por meio de interações simbólicas e performativas atreladas por vezes, às questões sociais emergentes. Esses indivíduos, portanto, também podem ser compreendidos como indivíduos que conformam e fazem parte de um Interagente-corpóreo, pois atualizam e acionam, por outras vias, os fundamentos do conceito: a presença do corpo em relação, a aprendizagem compartilhada, a criação artístico/estética e o envolvimento afetivo com universos ficcionais. Trata-se de uma conformação mais difusa, descentralizada de algum objeto de culto (produção fílmica específica, por exemplo), mas não menos potente, que revela como as práticas de criação e engajamento artístico extrapolam os limites das obras canônicas e dos produtos culturais hegemônicos, abrindo espaço para outros modos de existir e criar em comunidade.
Como exemplo, podemos citar comunidades que se reúnem para trabalhar, dialogar, compartilhar e aprender em torno da prática do desenho e da pintura realista inspirados em diferentes filmes, sem terem como objeto de culto uma produção específica. Ou ainda, grupos de artistas que utilizam as mídias digitais como espaço para a aprendizagem colaborativa, a troca de saberes e o debate sobre questões emergentes, tendo as artes performáticas como meio de expressão. Os exemplos são múltiplos e revelam a potência criativa desses coletivos na articulação entre arte, mídia e experiência compartilhada. Eles podem, de fato, conformar um Interagente-corpóreo, no entanto, sem estarem de fato vinculado à um fandom.
O conceito de interagente-corpóreo está preocupado, além da participação dos fãs entre comunidades e grupos de recepção, discussão, proposições e aprendizagens atreladas ao que assistiram, no elemento corpo em suas mais diversas dimensões em toda essa articulação, entre o universo do real e do ficcional.
Relembrando e parafraseando Morin (2014) ao falar sobre cinema e imaginário: os anseios e universos imaginativos dos fãs se materializam na arte audiovisual, bem como essa fisicalização do imaginário vivo dinamicamente nos filmes, por exemplo, toma a matéria de seus corpos e seus fazeres para viver na realidade.
Naruto
É notável perceber que podemos acessar as criações de alguns fãs a partir do nosso envolvimento com determinada obra — assim como também é possível percorrer o caminho inverso. Surge, então, a pergunta: o que, afinal, fazem esses fãs?
As práticas dos fãs de Naruto ilustram diferentes aspectos do conceito em discussão, abrangendo desde criações artísticas até a formação de comunidades e transformações pessoais. Diante disso, conjecturando sobre o que se faz ao senti-la, vê-la e vivê-la, destaca-se uma Arte audiovisual encontrada no YouTube4. Considerando-a enquanto produção gestada e nascida dentro do conceito aqui trazido, nota-se que ela, assim como outras obras similares, representa a gênese e o processo de interações corpóreas que se perpetuam e se prolongam no tempo. Não se trata de uma perpetuação “em termos absolutos”, mas sim de um passo “(...) vital em direção à percepção de uma luta secular por comunidades de movimentos populares para obter maior controle sobre os meios de produção e circulação cultural”, conforme aponta Jenkins (2022a, p.240-241).
Nesse contexto, não se observam apenas pessoas que assistem, apreciam ou gostam do que foi projetado; são indivíduos que se personificam como fãs engajados, atuando de forma significativa no âmbito das produções culturais. Esse engajamento movimenta o mercado cultural e promove interconexões entre lugares e pessoas. Ampliam-se os cenários do compartilhar, sentir e fazer Arte.
Como um exemplo encontrado no canal, cita-se uma das músicas em estilo rap, inspirada no personagem Rock Lee, que trabalha o esforço corporal como metáfora para resistências e conquistas no cotidiano, desafios corporais e emocionais diante das imposições sociais, evidenciando como a luta do personagem para alcançar seus objetivos reverbera em desafios vividos por muitos fora da ficção. O rap encontrado na página 7Minutoz5 narra a trajetória árdua vivida pelo personagem no universo das artes marciais. O canal responsável, que se apresenta com o lema “O maior canal de Rap nerd do Mundo!”, reúne uma ampla coletânea de raps que retratam as histórias de personagens diversos — de heróis consagrados a vilões marcantes.
Letras, trilhas sonoras e imagens se articulam na criação de uma linguagem audiovisual com ênfase musical, evocando tanto os feitos quanto os obstáculos enfrentados pelos personagens de Naruto e de outras animações.
Entre os elementos visuais e sonoros presentes no vídeo, sobressaem-se as narrativas tecidas na letra da música, que ressaltam os momentos mais intensos da trajetória de Rock Lee — tanto nos episódios adicionais (fillers) quanto nos arcos principais da animação. A composição vocaliza os sentimentos do personagem ao relembrar sua exclusão por não dominar técnicas como genjutsu6 ou ninjutsu7, sua infância marcada por humilhações e a persistência que o levou a desafiar aqueles que o subestimavam, inclusive dentro de sua própria equipe.
Ao traçar paralelos vivenciais tanto com a obra Naruto quanto com aqueles que a apreciam, é possível expandir e corroborar as perspectivas delineadas pelo conceito fundante aqui abordado. Chateauneuf (2025), ao refletir sobre episódios em que Naruto entra em contato com a energia natural — associação que também pode ser feita com os processos de interação de Rock Lee —, propõe um paralelo entre a obra e a relação do fã com ela:
À medida que seu corpo – não apenas em sua materialidade, mas também energeticamente – se dilui na natureza, esta também passa a integrar sua corporeidade. Ambos entram em sintonia de forma harmoniosa, onde nenhum causa dano ao outro; pelo contrário, retroalimentam-se mutuamente. De forma análoga, espectador (criança, adolescente ou adulto), a obra animada (Naruto) e sua comunidade de fãs também entram em relação, retroalimentando-se em um ciclo contínuo (CHATEAUNEUF, 2025, p.201).
Essa relação entre obra, corpo e espectador, expressa na interação contínua entre narrativa e experiência, ganha ainda mais força quando observada em criações derivadas, como músicas inspiradas por personagens da série, a exemplo de Rock Lee.
O interessante, e que merece destaque, é que a música, densamente inspirada pela animação, não trabalha com utopias irreais quando comparada à vida real. Não é a luta vencida facilmente, os vilões que se tornam pessoas amigáveis ou os colegas de classe que sempre acolhem prontamente. Entre conquistas e perdas, risos e lágrimas, satisfações e decepções, constrói-se o corpo e a persona de Rock Lee, assim como ocorre com outros personagens. Além disso, superar com resiliência as frustrações e desilusões ao longo do caminho evidencia que alcançar um objetivo é possível, embora demande esforço e sacrifícios.
Os criadores da música têm como princípio fundamental a possibilidade de, assim como o público em geral, reelaborarem “(...) os textos dos meios de comunicação, para que os materiais potencialmente significativos correspondam melhor aos interesses culturais da audiência” (JENKINS, 2010, p. 315, tradução nossa), buscando atender aos seus desejos “(...) de forma mais completa”. Suas produções também contrastam “(...) radicalmente com as motivações interessadas da produção cultural majoritária; os fãs artistas criam obras que compartilham com outros amigos fãs” (JENKINS, 2010, p. 315, tradução nossa).
Avatar, a lenda de Aang
A animação Avatar: A Lenda de Aang revela-se como uma produção conformada enquanto interagente-corpóreo, na medida em que articula uma narrativa e uma estética profundamente atravessadas pela diversidade étnica, espiritual e cultural. Sua construção simbólica convoca os espectadores — sobretudo jovens e crianças — a refletirem criticamente sobre o perigo insidioso do etnocentrismo e os efeitos da aculturação forçada, promovendo, assim, um imaginário mais plural e sensível às diferenças.
A partir de sua repercussão ao longo dos anos, desde sua produção, ela se mostra como obra audiovisual conformada enquanto parte desse conceito-corpo coletivo em movimento, que provoca, articula, convoca e performa junto aos fãs inúmeras questões, transitando entre seu universo fictício e a própria realidade social.
Nesse contexto, os desenhos animados como esse podem — e devem — ser compreendidos como linguagens complexas que, ao se apresentarem aos espectadores por meio de signos verbais, visuais e simbólicos, as convocam a uma escuta sensível e a um olhar mais perspicaz, atento às camadas de sentido que se entrelaçam em suas imagens e discursos. Avatar, ao abordar temas como guerra, colonização, equilíbrio entre os povos e espiritualidade, não apenas informa, mas deforma e forma imagens que, por sua vez, contribuem para o deslocamento e a ampliação de um imaginário social. Ele estimula o pensamento crítico, amplia o repertório simbólico e contribui para a construção de um arcabouço de imagens diversificadas, mais ético e mais atento às diferenças. Como exemplos, cita-se a tribo da água com populações de pele retinta que evocam os indígenas de diferentes localidades. Além dela, diante das demais, apresenta-se uma pluralidade étnica e suas interlocuções.
Referindo-se a um de seus escritos, Gaston Bachelard (1942, p. 16) lembra que “(...) imaginação não é, como o sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade”. Diante dessa afirmação, e em paralelo com o processo criativo dos autores da animação, percebe-se a teoria de Bachelard posta em prática — ativada, vivenciada e materializada na própria construção da obra.
Para a criação do constructo animado Avatar: A Lenda de Aang, os desenvolvedores Bryan Konietzko e Mike DiMartino, na produção desta obra, locomoveram-se até a Coreia em um estudo de campo imersivo nas lendas e artes marciais que constituem parte daquela cultura asiática, fazendo com que todas as informações ali encontradas e agrupadas se tornassem elementos fundantes na conformação da narrativa que estavam por construir em suas mais esperançosas produções, fazendo, de fato, com que os observadores participassem, na perspectiva de Morin (1997, p. 21), “(...) do objeto de sua observação”.
Nota-se que a construção criativa do objeto animado não se pautou apenas por memórias adquiridas na infância dos produtores, como o gosto pelas lutas asiáticas; foi também respaldada por novas pesquisas, das quais os criadores se apropriaram da forma mais consciente e articulada possível.
A princípio, o objetivo dos produtores era desenvolver uma animação imersa nas representações visuais do Polo Sul — elementos esses que, de fato, foram incorporados à produção. Contudo, ao longo de suas pesquisas e diante dos achados provenientes das mais variadas culturas, a série passou a ser construída a partir de uma gama de referências que se estendem por diversos países e culturas locais, cada uma com peculiaridades próprias de suas regiões.
Entre paisagens das mais variadas possíveis, populações com culturas diferentes, remetendo desde as manifestações asiáticas, às indígenas, europeias e africanas, dialogando entre os quatro elementos da natureza e a possibilidade de manipulá-los, criou-se a série animada “Avatar, a Lenda de Aang”, uma obra totalmente integradora em questões concernentes a etnias, relevos, política e toda uma construção de uma sociedade em si (PEREIRA, 2019, p.50).
A série é dividida em três grandes partes, chamadas de Livro da Água, Livro da Terra e Livro do Fogo, contendo vinte episódios nas duas primeiras e vinte e um na última parte. A animação narra a história de um jovem menino que, muito cedo, descobre pertencer a uma linhagem de Avatares que, por séculos, vem desempenhando a função de manter o mundo — com suas miríades de culturas e costumes — em equilíbrio, especialmente entre as nações cujos povos descendem de linhagens capazes de manipular um único elemento da natureza por meio de seus sinais vitais e espirituais, a saber: ar, água, terra e fogo.
O único que pode manipular os quatro elementos simultaneamente é o Avatar. Isso porque, há muitos anos, um guerreiro corajoso, ao lutar bravamente ao lado de um espírito de luz para salvar o mundo do caos, acabou formando com ele uma profunda amizade. Mais adiante, os dois se fundiram, dando início a um processo de encarnação cíclica com o propósito de preservar o equilíbrio entre os povos e os elementos.
Por se considerar ainda muito jovem, Aang — o personagem que dá nome à série — se vê, até então, desprovido das responsabilidades adultas, especialmente da imensa tarefa de manter o equilíbrio global por meio de um poder que ainda estava por se constituir. Ao descobrir ser o Avatar, o garoto foge montado em seu animal voador e, durante essa fuga, naufraga e permanece congelado dentro de um iceberg por cem anos, ainda em sua forma infantil. Quando finalmente é encontrado, descobre que sua missão permanece: buscar o equilíbrio entre as nações. No entanto, o cenário agora é ainda mais adverso, perverso, pois a Nação do Fogo havia tomado o poder e iniciava um processo de destruição e monopolização das pequenas sociedades espalhadas pelo mundo. O objetivo central da série gira em torno da aprendizagem — tanto do mundo material quanto espiritual — e do amadurecimento do Avatar, um percurso de autoconhecimento, domínio dos quatro elementos e compreensão de si mesmo como sujeito responsável por restaurar o equilíbrio entre os povos, culturas e os planos da existência.
No desenrolar da história, percebe-se que:
(...) a linguagem, matéria-prima para a construção do pensamento e instrumento essencial do desenvolvimento intelectual, adquire-se, pois, na comunicação, nesse constante intercâmbio entre as pessoas que torna possível exercitar o pensamento e, desse modo, apropriar-se dele (KAPLUN, 2011, p.182).
Nesse contexto, é interessante perceber que a animação não se limita à amostragem dos processos de aculturação e do etnocentrismo eminente; ela também articula questões discursivas relacionadas ao equilíbrio, ao desenvolvimento social. A linguagem, trabalhada e reverberada intensamente em paralelo com os efeitos estéticos — visuais e sonoros — da obra, possibilita camadas de reflexão que ultrapassam a mera ilustração temática, conduzindo a uma elaboração mais profunda do discurso. Não se trata de um existir em detrimento de algo, mas de um porquê daquilo tudo.
Vale salientar que, na conformação do conceito aqui apresentado em paralelo com a animação Avatar: A Lenda de Aang, não é apenas o recebimento constante das imagens, incorporadas ao arcabouço imagético dos indivíduos que a assistem que o conferem como tal. É, como afirma Kaplun, “preciso que o sujeito a use e a exercite, que a pronuncie, escreva, aplique”, e esse exercício “só pode dar-se na comunicação com outros sujeitos, escutando e lendo outros, falando e escrevendo para outros” (2011, p. 182). Tal processo se realiza, de forma plena, por meio de ações concretas de compartilhamento, interação, imersão sensível e criação artística — como evidenciado na criação abaixo, multicultural.
O recurso da linguagem e do discurso, aqui debatido a partir da obra, se manifesta atrelado ao conceito de interagente na configuração das criações artísticas, uma vez que esses objetos falam, discursam e manifestam ideias e pontos de discussão diversos. É justamente por meio desses trânsitos que se torna possível perceber o quanto a aprendizagem compartilhada se evidencia dentro do conceito aqui proposto. Educar-se, para Mário Kaplún, é “envolver-se em um processo de múltiplos fluxos comunicativos” (2011, p. 183). Conformar-se dentro de um interagente-corpóreo, portanto, é ampliar os envolvimentos em inúmeros fluxos comunicativos, contribuindo para a aprendizagem.
Tal articulação até então discutida foi também anteriormente pensada pela pesquisadora Jacquinot-Delaunay, que, em textos espaçados, vislumbrava uma esperança concreta na mescla de acontecimentos afeitos à contemporaneidade, defendendo essa perspectiva com veemência. Em paralelo, Dieuzeide e Jacquinot-Delaunay (2007, p. 173) acreditavam que “(...) as especificidades dos novos meios podiam com vantagem serem colocados a serviço da aprendizagem, propondo simultaneamente as categorias de emprego e dos critérios de integração nas práticas escolares”.
Harry Potter
Voltando-se especificamente para Harry Potter como um dos exemplos dos processos de conformações de engajamento, arte, corpo e interação dinâmica, podemos dizer que ele enquanto filme seriado propõe “(...) camadas de significado embutido em um único episódio” (JENKINS, 2022a, p.176), conjugando elementos visuais e sonoros em poucos minutos, e potencializando o transporte imaginativo para esse momento, essa sensação, universo. Além disso, ele permite o “(...) desembalar em um único episódio” (JENKINS, 2022a, p.177) uma realidade que, na vida cotidiana, se estende e perdura por toda uma existência que é real, mas também imaginária, ou, que toma as vicissitudes do imaginário para atenuar, expandir ou melhorar o imaginário.
Trazendo para um campo inicial de tensionamento social, é interessante considerar que entre diferentes períodos e localidades, em nível nacional ou mesmo internacional, as inúmeras identidades e as denominações a elas atreladas foram se construindo dentro de um imaginário social, em diferentes contextos, como da própria sexualidade — ainda que nem sempre tenham sido conscientemente concebidas, formatadas, validadas ou nomeadas. Passando por padrões que compreendem o homem enquanto indivíduo passível de se relacionar com outros homens, sua performance social e até mesmo sua ação sexual (ativo ou passivo). Fry (1982), assim como Carrara e Simões (2007), nos oferecem um panorama interessante sobre como esses discursos e dinâmicas que permeiam inúmeros campos de pesquisa exercem poder na construção desse imaginário. Postula-se, por exemplo, “a existência de um tipo natural, o homossexual com sua essência e especificidade, e logo ele passa a existir” (FRY, 1982, p. 89).
Logo, diante desses postulados trazidos pelos autores, ainda que minimamente, entre idas errantes, estigmatizações médicas e o forjamento de mitos em torno das identidades homossexuais, poderíamos pensar que diferentes mídias, hoje, principalmente as fílmicas, nos trânsitos da pós-recepção estariam contribuindo para romper com as dualidades (hétero/gay, afeminado/masculino, passivo/ativo) e com as estereotipações. E o mais interessante, ao relacionarmos essas considerações a determinadas franquias, percebe-se que o fato de elas se constituírem como expressões de um interagente-corpóreo permite que inúmeros fãs reconfigurem as narrativas e contribuam, de diferentes maneiras, para a difusão de outras possibilidades de relações humanas.
Com isso, ainda que de forma sutil, as imagens — que, inegavelmente, podem se tornar armas sociais, tanto em sentido negativo quanto positivo — vão se integrando ao tecido de um imaginário social constantemente alimentado por elas. Aquelas que outrora foram vistas como errâncias de uma suposta sociedade do caos, da libertinagem e do pecado, vão, aos poucos, se tornando parte do cotidiano, normalizadas, absorvidas e ressignificadas pela convivência coletiva.
Tanto os filmes quanto, sobretudo, as produções artísticas que deles derivam — muitas vezes associadas a contextos adolescentes — instauram uma cisão entre os limites sociais impostos e a essência do corpo homossexual, quando trazida tal temática à pauta. Ao mesmo tempo, essas produções nos convocam à escuta atenta dos corpos que resistem, se afirmam e performam outras possibilidades de existência.
Diferentes criações de desenhos e pinturas feitas por fãs de Harry Potter abordam essas questões de forma potente, conformando poéticas visuais que se deslocam do “possível” vulgarizado — limitado por normas e convenções — para o campo da poesia, da afetividade, dos encontros e das relações. São inúmeros os sites e plataformas que reúnem imagens criadas por fãs que, por exemplo, representam Harry Potter e Draco Malfoy como um casal gay, além de narrarem diferentes histórias que imaginam suas vidas e vínculos após a última grande batalha em Hogwarts.
Essas criações, mais do que simples reinterpretações narrativas, configuram formas de resistência simbólica e afetiva, nas quais o corpo, a essência do ser e o desejo ganham espaço para existir fora das margens e normas estabelecidas. Ao tensionarem os limites do cânone original e abrirem brechas no imaginário social dominante, tais produções contribuem para deslocar visões normativas de sexualidade e identidade, evidenciando o papel performativo e educativo dessas criações na construção de outros mundos possíveis — mundos em que os corpos dissidentes não apenas existem, mas são também celebrados.
Conclusão:
As reflexões aqui desenvolvidas permitiram compreender como certas produções audiovisuais (ainda que existam outras possibilidades de mídias com narrativas ficcionais), ao entrarem em diálogo com seus espectadores e fãs, extrapolam os limites da fruição passiva para se tornarem espaços de criação, interação e existência sensível. A partir do conceito de interagente-corpóreo, delineou-se um campo onde o corpo, a imersão sensível/corpórea, a narrativa e a coletividade se entrelaçam, construindo aprendizagens compartilhadas e imaginários que tensionam normatividades e problemáticas sociais, para além do mero apreciar. Seja pela resistência corporal em Naruto, pelos conflitos culturais em Avatar: A Lenda de Aang, ou pela ressignificação afetiva de personagens em Harry Potter, observa-se que as obras não apenas representam mundos, mas produzem e recriam mundos — e neles, corpos que sentem, criam, performam e resistem.
Essas produções, conglomerados de interações e o cenário amplo do Interagente-corpóreo, ganham força não apenas pela potência das temáticas que tensionam, mas, sobretudo, por estarem inseridas em um todo maior — um constructo que reúne uma parcela de indivíduos que comungam ideias semelhantes, compartilham angústias e, ocasionalmente, necessitam expressar-se por meio da arte do corpo e do corpo da arte. Esse conceito em ação nos possibilita entender que se aprende compartilhando arte, pensando sobre ela e sobre questões outras emergentes.
Eis aí, de maneira geral e muito pontual, elementos a partir de algumas obras audiovisuais que caracterizam um interagente-corpóreo: a criação que emerge do sensível coletivo, onde o gesto artístico é também gesto de existência, resistência e pertencimento.
Notas Finais
1 Isac dos Santos Pereira, conhecido profissional e artisticamente como Isac Chateauneuf, é doutorando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Possui Doutorado (2025) e Mestrado (2020) em Comunicação Audiovisual, com uma pesquisa focada na utilização da animação Naruto em sala de aula pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM). É também especialista em Arte/Educação: Teoria e Prática (2015) pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e graduado em Artes Visuais pela Faculdade Paulista de Artes (FPA, 2013). Atua como arte-educador na Prefeitura de São Paulo, trabalhando com crianças e jovens do Ensino Fundamental I e II desde 2014.
2De acordo com Jenkins (2009, p. 188), “os fãs são o segmento mais ativo do público das mídias, aquele que se recusa a simplesmente aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante pleno”. Para os fins desta tese, essa definição será adotada como base para compreender os fãs como indivíduos que não apenas consomem, mas que também interagem e transformam as produções midiáticas. Além do mais, a partir de Naruto, expandir a visão dos estudantes nas relações que tecem com suas obras mais apreciadas.
3Segue-se aqui a conceituação de Tzvetan Todorov (Introdução à Literatura Fantástica, 2004). De forma geral, o fantástico manifesta-se na vontade de explicar ou não o fenômeno como sobrenatural, mas sem resposta fechada (por exemplo, em histórias em que um fantasma pode ou não ser real); o maravilhoso aceita plenamente o elemento sobrenatural no universo ficcional (como nos contos de fadas, com magia e seres míticos); e o estranho acaba encontrando explicações racionais para acontecimentos aparentemente sobrenaturais (como quando uma “assombração” se revela apenas um truque ou coincidência).
4Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OhtznbRRLkM. Acesso em 18/06/2023.
5Disponível em https://www.youtube.com/@7minutoz e https://www.youtube.com/watch?v=XwAzVXBjvNo. Acesso dia 18/06/2023.
6Genjutsu refere-se a técnicas ilusórias no universo de Naruto, por meio das quais o adversário é induzido a falsas percepções da realidade, afetando seus sentidos e confundindo sua mente.
7Ninjutsu diz respeito às técnicas mais amplas utilizadas pelos ninjas na série, envolvendo manipulação de energia (chakra) para realizar ataques, defesas ou habilidades diversas, como controle dos elementos, deslocamento rápido e técnicas ofensivas.
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