Abstract
This text is part of the postdoctoral report presented to the Graduate Program in Social Anthropology in 2023, developed collaboratively and under the supervision of Lisabete Coradini. In the first part of the text, we address the concept of life stories in the form of autobiography, including their epistemological, methodological, and ethical implications. Although we find that written autobiographical narratives—both literary and essayistic—have been dominant subjects of theoretical reflection, visual arts, theater, digital narratives, and especially cinema have been studied by many authors and researchers since the mid-20th century. Autobiographical cinema is the focus of the second part of the text: stages or moments of development of autobiographical cinema, the emergence of landmark works in autobiographical cinema in recent decades, and the selection of two (+1) films for a study on how autobiographical narrative functions in these films. In the third part, we will discuss the creative activity—autobiographical production of an audiovisual essay, integrated into a teaching, research, and extension project. The limits of this publication did not allow for the adequate development of the second and third parts, which will be the subject of a future publication within the scope of the aforementioned postdoctoral activities.
Keywords: Life stories, autobiographies, autobiographical cinema, participatory audiovisual research.
Introdução
Há 22 anos escrevi com a.os doutoranda.os em antropologia visual um livro de Métodos e Técnicas de Investigação em Antropologia publicado em 2003. O capítulo VI desta publicação tinha como título Histórias de Vida e foi resultado do trabalho com a doutora Fátima Nunes. Nas quase 40 páginas de texto abordamos algumas das questões centrais das histórias de vida (narrativas de vida1, testemunhos de vida, biografias, autobiografias, a diversidade de nomeação é, ainda hoje muito diversificada): fundamentação teórico-epistemológica das histórias de vida; a voz das pessoas singulares - implicações epistemológicas, metodológicas, éticas; áreas temáticas abordadas nas histórias de vida e os processos, métodos e técnicas das histórias de vidas.
Como afirma Daniel Bertaux.
As narrativas de vida podem ser consideradas como «textos» na aceção que Barthes, Foucault e Derrida dão a este conceito, isto é, «uma produção discursiva que existe em si, como uma pedra caída do céu. Como um enigma a decifrar, cujo sentido nos é dado em cada leitura, por cada leitor. Um «texto», neste sentido, é um objeto opaco onde se depositaram, a maior parte sem o conhecimento do seu autor, múltiplos elementos que fazem parte do seu tempo, da sua época, da sua ideologia, da sua visão do mundo, das linguagens que o atravessam a ele e ao seu tempo (Bertaux, 2000: 84).
Ou no dizer de Lejeune, referindo-se à autobiografia: “é uma narrativa retrospetiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2014, p. 16). O autor enfatiza que é preciso que exista uma forma narrativa em prosa, de uma vida individual (história de uma personalidade), uma relação de identidade entre o autor (cujo nome remete para uma pessoa real) e o narrador, perspetiva retrospetiva do narrador, muitas vezes demarcada pelo uso da primeira pessoa, mas que pode admitir expressões na segunda e terceira pessoas a depender dos tempos de enunciação – desde que narrador e personagem principal coincidam.
Na altura, baseados numa extensa pesquisa documental, afirmávamos que, ainda que contestadas em alguns meios académicos e suscitando uma grande diversidade de questões, decorrente da sua aplicação às especificidades de cada contexto e aos diferentes atores sociais, é possível, todavia, encontrar uma trama comum quanto ao seu efeito emancipador e que “se pode exprimir de maneiras diferentes: em relação ao saber académico, ao papel e ao conhecimento do formador; em relação às influências sociais e às fontes de poder social; em relação às fronteiras, preconceitos e limitações que atribuímos, por vezes, a nós próprios. Em síntese, estamos perante uma abordagem que facilita a assunção do próprio futuro, da autoformação, do auto-desenvolvimento e uma assunção coletiva, particularmente no meio comunitário” (Ribeiro, 2003).
Histórias de Vida – biografias, autobiografias ou vida como narrativa
Alguns autores classificam a Histórias de Vida – biografias ou autobiografias, como método. Não se trata apenas de um método ou técnicas de pesquisa, nem mesmo estratégias de pesquisa, mas mudança profunda no pensamento científico. Talvez possamos falar em mudança de paradigma como podemos apreender da afirmação de Jerome Bruner2:
Tem sido tradicional tratar o pensamento, por assim dizer, como um instrumento da razão. O bom pensamento é a razão correta, e sua eficácia é medida contra as leis da lógica ou da indução. De fato, em sua forma computacional mais recente, é uma visão do pensamento que levou alguns de seus entusiastas a acreditar que todo pensamento é redutível à computabilidade por máquina. Mas o pensamento lógico não é o único ou mesmo o modo mais ubíquo de pensamento. Nos últimos anos, venho observando outro tipo de pensamento (ver, por exemplo, Actual Minds, Possible Worlds Bruner, 1986), que é bastante diferente em forma da razão: a forma de pensamento que entra na construção não de argumentos lógicos ou indutivos, mas de histórias ou narrativas. O que quero fazer agora é estender essas ideias sobre narrativa à análise das histórias que contamos sobre nossas vidas: nossas “autobiografias.” (Bruner,1987:11)
Constatamos hoje que o modo narrativo, caracterizado pela criação e interpretação de histórias e que organiza a experiência e a memória em termos de tempo, personagens e acontecimentos/eventos é fundamental para a compreensão da experiência humana, pois permite a construção de significados pessoais e culturais. Daí o interesse crescente por formas narrativas sejam do contexto familiar, escolar, de formação, de trabalho, de cuidado de pessoas vulneráveis, nos cuidados, ou mesmo nas livrarias ou na Internet. Narrar um acontecimento, um momento, um período ou uma vida inteira é colocá-lo em palavras (textos, imagens, sons, sonoridades, falas) através das quais revisitamos o significado atribuído à nossa experiência.
Ao permitir-nos estabelecer ligações entre os factos – vividos ou imaginados – que constituem o nosso quotidiano e os acontecimentos que alteram o curso da vida, o trabalho biográfico e autobiográfico baseia-se em processos de enunciação, escrita, reflexão e diálogo, através dos quais tanto a compreensão de si mesmo e dos outros se desenvolve, mas também dinâmicas de identidade que moldam a existência ao longo do tempo. Num momento em que os ritmos de vida, as inovações tecnológicas e as mudanças sociais são marcados por intensa aceleração, não é de estranhar que as abordagens através das quais são produzidas e partilhadas histórias de vida, individuais ou coletivas (a partir de autobiografias de pessoas famosas aos de pessoas comuns, desde práticas de orientação profissional a sessões de terapia, desde cuidar de pessoas em situações de rutura até apoiar pessoas em fim de vida, desde uma coleção biográfica até escrever um blog) ganhem novas formas, dinâmicas e novos interesses. O desenvolvimento de uma história de vida constitui, de facto, um meio privilegiado de identificação de referenciais, modelos e filiações, enquanto tantos recursos que podemos acompanhar, nos quais podemos contar e que é possível transmitir num contexto em constante evolução.
Concordo com Bruner quando afirma que “os processos cognitivos e linguísticos moldados culturalmente que guiam a autonarrativa de histórias de vida alcançam o poder de estruturar a experiência percetiva, organizar a memória, segmentar e dar propósito aos próprios “eventos” de uma vida. No final, nos tornamos as narrativas autobiográficas pelas quais “contamos” nossas vidas”… concluindo “não consigo imaginar um projeto de pesquisa psicológica mais importante do que aquele que se dirige ao “desenvolvimento da autobiografia”—como nossa maneira de contar sobre nós mesmos muda, e como esses relatos vêm a controlar nossas maneiras de viver” (Bruner, 1987: 12).
Numa primeira constatação verificamos que tem sido dada maior importância às narrativas ou autonarrativas escritas sejam literárias (as obras de Gertrude Stein no ano de 1933, Maya Angelou, Roxane Gay, Malala Yousafzai, Annie Ernaux– premio nobel da literatura em 2022, Elena Ferrante e autores brasileiros como Carolina Maria de Jesus, Eliane Lage, Rita Lee, João W. Nery) ou ensaios e obras científicas autobiográficas (A África fantasma de Michel Leiris, As palavras de Jean Paul Sartre, A queda do céu - Davi Kopenawa e Bruce Albert entre muitos outros). Talvez esta aparência resulte da maior atenção ao género literário ou ao ensaio. Notamos, porém, que o cinema autobiográfico ou elementos autobiográficos no cinema têm consideráveis desenvolvimentos sobretudo desde os anos 1960.
Philippe Lejeune (2014) interroga-se sobre a possibilidade de um cinema autobiográfico – cinema mim, autobiografia filme. Confessando sua pouca familiaridade com o cinema – “se me aventuro a falar de cinema, é porque nesses últimos anos o cinema se aventurou a falar de autobiografias, utilizando termos genéricos próprios da escrita” (Lejeune, 2014:258). Lembra também que o termo autobiografia não apenas atingiu o cinema, mas se estendeu a outras artes da representação (no teatro Tadeuz Kantor ou Philippe Caubère, na dança Pina Bausch, na fotografia Gilles Mora, Eddy Tricerri nas artes plásticas entre muitos outros, Durer, Rembrandt, Van Gogh, Picassoos nos autorretratos).
Confessando a sua pouca familiaridade com o cinema busca e expõe os argumentos de Elizabeth Bruss, cética em relação cinema autobiográfico. No entanto, acaba por afirmar que com o desenvolvimento das tecnologia e diminuição dos custos do fazer cinema “O cinema autobiográfico começa a existir, diferente da autobiografia escrita, mas também diferente do cinema de ficção, a meio caminho entre cinema amador e cinema experimental” (Lejeune, 2014:271). Mais tarde viria a afirmar:
Cinema-eu? Ao reivindicar o nome de “autobiografia”, impõe uma comparação com uma tradição literária à qual parece confiar. Esta comparação tem os seus limites, como o problema da “adaptação” das obras literárias para o cinema, mas também tem o seu interesse, na medida em que leva a refletir sobre a relação entre o eu e a ficção. A autobiografia literária, cuja dimensão ficcional fica assim esclarecida, não vai morrer por isso, não pode ser melhor. Por outro lado, os novos romancistas, que haviam anunciado a morte do personagem, da história e do tema clássico, dedicam-se hoje a ilustrar o género autobiográfico, renovando suas técnicas. E aqui está o cinema, por sua vez, que diz “Eu.” A autobiografia só pode ser enriquecida, é uma aventura que deve ser seguida com curiosidade (Lejeune, 2008: 26).
Hoje não há dúvida de que há uma recuperação do desejo de autobiografia no cinema. Do lado dos cineastas e das empresas os filmes estão se multiplicando diante dos olhos e aumentando cada vez mais o número de ficcionistas tentados por uma autoexperiência biográfico. Do lado dos espectadores, o filme autobiográfico transbordou provisoriamente as margens de difusão em que se encontrava, até então, principalmente localizada e protegida: cinema de vanguarda, cinema independente ou experimental. Pagar uma entrada para ver um filme em que alguém filmou um momento de sua vida - um duelo, um amor, uma jornada - está prestes a se tornar uma prática padrão do espectador. Quais as razões desse ressurgimento do interesse pela autobiografia no cinema? Sem dúvida, resultado de múltiplas causas, provavelmente conjuntas. Alain Bergala (2008: 27-34) enumera algumas das razões desta mudança, deste desejo de autobiografias no cinema; mas
O futuro do cinema é um tempo de normalização servil às normas da indústria. Necessário reagir. As autobiografias no cinema adquirem esta forma de reação. Como o faz também a literatura e as artes. Veja-se acima Bruner em relação à autonarrativa.
O surgimento de novos instrumentos: constata-se o desenvolvimento de câmaras de vídeo pessoais, cada vez mais manejáveis e com bom desempenho. A realizadora iraniana Samira Makhmalbaf, afirma como os três métodos de controle externos que reprimiram o processo criativo dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecnológico, podem estar resolvidos hoje com a revolução digital — a câmara (e os sistemas de edição digital) pode ignorar essas formas de controlo e estarem disponíveis ao realizador.a.
Necessidades mais profundas: o desconforto da civilização leva à necessidade acrescida e, por vezes, angustiada de nos situarmos numa civilização com mudanças cada vez mais rápidas, onde as estruturas tradicionais de transmissão e as referências simbólicas entram em colapso.
O que causa o desejo de autobiografia? Philippe Lejeune fala, no que diz respeito à escrita, da “função corretiva” de qualquer empreendimento autobiográfico. Esta se revela ainda de forma mais intensa no cinema onde, apesar de tudo, mobiliza os sentidos. As ferramentas e os meios que permitem uma escrita de tipo autobiográfico requerem uma energia inicial muitas vezes maior do que na escrita e, por isso, um empenho que pode ser mais do que desejo preguiçoso ou inconstante. É difícil imaginar alguém realizando um projeto autobiográfica sem que haja, em seu foro interno, algo que reivindique um ou outro modo de reparo.
A escrita autobiográfica é muitas vezes entendida e instigada como apoio psicológico não desprezível em um combate contra algo que ameaça o sujeito em sua integridade ou sua identidade, na sua relação com o mundo.
Também pode encontrar sua causa em uma difícil elaboração do luto, em que a filmagem em primeira pessoa permite a concretização de um diálogo.
Regresso de migrantes aos territórios de origem. Memorias da imigração, o retorno aos lugares de origem que, entretanto, se alteraram profundamente. Tragédias das viagens e os complexos processos migratórios.
O cineasta volta a trabalhar com os planos anteriormente registados (arquivos pessoais) em uma operação de montagem e/ou (re)montagem. Novo foco de enunciação que reorienta (posteriormente) o que era inevitavelmente dispersivo na captação subjetivo-instantânea das imagens. Por meio dessa reelaboração secundária, os dois momentos: o das primeiras imagens e o reencontro com elas.
O trabalho de pesquisa sobre media digitais coordenados por David Miller3 China, Índia, Turquia, Itália, Reino Unido, Trinidad e Brasil, aponta para formas de apropriação desses media e de utilização de narrativas de si. Miller argumenta que os media sociais proporcionam uma plataforma onde as pessoas podem apresentar suas vidas de forma “autêntica”, mas essa autenticidade é muitas vezes uma performance cuidadosamente construída. Refere, no entanto, que ao contrário das autobiografias tradicionais, que são narrativas contínuas, as autobiografias nos media sociais são fragmentadas e instantâneas. Cada post ou atualização de status é um fragmento que, ao longo do tempo, constrói uma narrativa mais ampla sobre a vida da pessoa. Esta fragmentação permite uma interação constante com o público, que pode comentar, compartilhar e responder às postagens, moldando a narrativa em tempo real. Também destaca a hiperconectividade e o imediatismo dos media sociais influenciam a maneira como as pessoas narram suas vidas. A possibilidade de compartilhar instantaneamente permite que os eventos sejam documentados quase em tempo real, muitas vezes com pouca reflexão. Isso pode levar a uma representação mais superficial das experiências, mas também permite uma conexão mais imediata com a audiência. O aspeto visual dos media sociais, especialmente em plataformas como Instagram e Facebook, é central para a construção de autobiografias. Miller enfatiza que as práticas autobiográficas nos media sociais são profundamente influenciadas pelo contexto cultural e da localidade. A questão da privacidade é central nas autobiografias digitais. As pessoas são frequentemente conscientes das audiências múltiplas que suas postagens podem alcançar e, portanto, praticam a autocensura. Também a intencionalidade.
Também as tecnologias digitais, media sociais e plataformas digitais deram aso a novas formas de auto narração. O uso de selfies como processo autobiográfico oferece uma maneira poderosa de explorar e expressar a identidade pessoal na era digital. Ao capturar e compartilhar momentos significativos de suas vidas, indivíduos podem criar narrativas visuais ricas e multifacetadas que refletem suas experiências, emoções e crescimento pessoal. Esta prática não só promove o autoconhecimento e a autoexpressão, mas também pode servir como uma ferramenta educativa e terapêutica valiosa. É, contudo, essencial abordar as considerações éticas e os desafios associados para garantir que o processo seja positivo e autêntico.
Muitas outras formas de autonarrativa podemos encontrar na sociedade atual. Destaco ainda a forma como se construi identidade na criação de avatares e se desenrola a vida em ambientes como o Second Life, nas plataformas de Jogos digitas ou nos sites ou plataformas de Encontros. A autobiografia em sites ou plataformas de encontros possui características específicas que diferenciam essas narrativas de outras formas de autobiografias em media sociais. A pesquisa de Daniel Miller, embora mais focada em redes sociais convencionais como Facebook e Instagram, oferece também ideias que podem ser aplicados no estudo dessas dinâmicas nas plataformas de encontros. Estas formas de autoapresentação têm algumas características específicas: autopromoção e Performance, Narrativas Condensadas, Visualidade e Primeira Impressão, Autenticidade vs. Manipulação, Feedback e Ajuste de Perfis. O contexto cultural influencia significativamente como as pessoas se apresentam em plataformas de encontros. As autobiografias em plataformas de encontros são um exercício de identidade performativa, onde os indivíduos tentam equilibrar autenticidade e atratividade em um espaço altamente competitivo. Essas plataformas amplificam certas dinâmicas presentes em outras formas de media social, como a curadoria de imagens e a importância da narrativa pessoal, mas também introduzem novos desafios, como a necessidade de causar uma boa primeira impressão de forma imediata.
Acredito que as formas de contar e as maneiras de conceituar que as acompanham se tornam tão habituais que, finalmente, se tornam receitas para estruturar a própria experiência, para estabelecer caminhos na memória, não apenas guiando a narrativa de vida até o presente, mas também a direcionando para o futuro. Tenho argumentado que uma vida vivida é inseparável de uma vida contada — ou, mais diretamente, uma vida não é “como foi”, mas como é interpretada e reinterpretada, contada e recontada: a realidade psíquica de Freud. Certas propriedades formais básicas da narrativa de vida não mudam facilmente. Nossa incursão na autobiografia experimental sugere que essas estruturas formais podem ser estabelecidas cedo no discurso da vida familiar e persistir teimosamente, apesar das condições mudarem. (Bruner,1987:31).
Cinema autobiográfico
O reconhecimento formal do cinema autobiográfico e dos princípios do cinema autobiográfico ou das autobiografias no cinema ou como refere Patrícia Mourão em “A invenção de uma tradição” (2016), acontece nos Estados Unidos na “Buffalo Conference on Autobiography in the Independent American Cinema” em 1973. O objetivo anunciado no cartaz da conferência era investigar “a tradição emergente da autobiografia no cinema independente contemporâneo”.
Em metade dos filmes de vanguarda americano presentes, o tema da “autobiografia” no cinema estava puxando para todos os lados e correndo descontroladamente. [...] Enquanto antes de 1960 (conforme descrito em um pequeno artigo de Jay Leyda) os aspetos autobiográficos e diários entraram no cinema principalmente de forma indireta (exemplos podem ser vistos na obra de Lumière, Dziga Vertov, Chaplin, etc), a partir da década de 1960, ocorre uma expansão radical do uso da autobiografia no cinema. Isso é claramente visível no trabalho de cineastas independentes. A forma relacionada praticada no cinema comercial é a biografia. Mas a autobiografia filmada em todas as suas complexidades só pode ser encontrada entre os independentes (MEKAS, 1973, p. 73).
Patrícia Mourão em sua tese de doutoramento, referenciada em muitos trabalhos académicos atuais, propõe uma história para a autobiografia no cinema. Considera quatro momentos no desenvolvimento do cinema autobiográfico:
Primeiro, o esforço demonstrado para se pensar e propor uma história para a autobiografia no cinema (Lumière, Chaplin e Vertov como pontos de ancoragem). Segundo, um empenho ainda maior para compreender o fenómeno a partir das convenções de um gênero (a tentativa de classificar a produção entre vários subgéneros). Terceiro, a sugestão de que a tendência da autobiografia é um fenómeno maior, não localizado exclusivamente no campo do cinema de vanguarda, e que acolhe uma variedade de linguagens (vídeo-arte e cinema político). E, quarto, condensando todas as outras, a ideia de que a novidade do fenómeno está na sua consciência como género ou como forma, mais do que na prática propriamente dita. Ou seja: a prática ou a forma da autobiografia não seria em si uma novidade, mas a consciência e o debate sobre ela sim – resta saber, e acreditamos que sim, se essa consciência modifica a forma” (MOURÃO, 2016, p. 29).
Os filmes de família dos Irmãos Lumière - Le Repas de bébé (1895), L’Arroseur Arrosé (1985); o percurso migratório de Charles Chaplin sobretudo The Immigrant (1917), a autobiografia dos fazedores de cinema O homem com a câmara (1929) de Dziga Vertov iniciam à sua maneira as autobiografias, narrativas de si no cinema.
O segundo momento, referido por Mourão, emerge a partir deste congresso centrado no debate sobre o género e suas convenções – autorreflexividade e a relação com a linguagem e com a inscrição do tempo, e sua genealogia inspirada na história, na autorrepresentação na pintura, na fotografia, na literatura. Nesta fase há um esforço notável para pensar o cinema autobiográfico como uma tradição e em relação ao género literário autobiográfico.
A década de 1970 é o momento institucionalização. O terceiro momento. O cinema independente americano centra seu interesse na autobiografia, entendida não apenas como passagem do biográfico para o autobiográfico, mas como “uma reflexão sobre a natureza do cinema e, muitas vezes, sobre sua associação ambígua com a linguagem” (SITNEY em MOURÃO, 2016, p. 33), e suas implicações filosóficas, literárias ou as histórias preocupantes ao contar-se, ao narrar a história de si mesmo. Esse interesse contemporâneo é resultado de muitos fatores: o relativo “esgotamento” ou exploração crítica dos campos genéricos tradicionais do drama, da poesia e da ficção; as possibilidades políticas de escapar da dimensão aparentemente estética ou fechada da literatura imaginativa para as possibilidades históricas e referenciais da autobiografia; as potencialidades teóricas oferecidas pela referência problemática que a autobiografia inevitavelmente evoca e, penso eu, o crescente sentimento de medo de que o eu sobre o qual a extensão imperial do termo autobiografia foi baseada possa de fato ser nada mais do que uma ficção que a teoria crítica contemporânea irá pelo menos expor. A linguagem será finalmente reconhecida como a escrita de si; abriremos mão do ego e buscaremos a nós mesmos naquela transição pronominal astuta – o eu do discurso (COX em MOURÃO, 2016, p. 35) Era também relevante o interesse do público pelo cinema autobiográfico “pode ser atribuído a um maior interesse em autoconsciência, crescimento pessoal, antecedentes familiares, consciência expandida e o movimento do potencial humano. Na era da autoajuda, da busca por raízes e património, experiências pessoais e questões de vida estão a tornar-se assuntos aceites pelos cineastas” (KATZ em MOURÃO, 2016, p. 35). Na declaração do Novo Cinema Americano em 1963 afirma-se “Não queremos mais filmes falsos, polidos, lisos – preferimos os ásperos, mal acabados, mas vivos; não queremos filmes cor-de-rosa: os queremos cor de sangue”.
Do ponto de vista formal, uns privilegiavam a imagem. O som, quando presente – alguns filmes eram silenciosos, era acrescentado depois, em geral em voz over. Outros recorriam ao som direto, ainda que a voz over também fosse ser utilizada. Tematicamente, há também algumas linhas mestras. Com frequência no grupo dos cineastas veteranos, a investigação autobiográfica passava pela história pessoal dos realizadores enquanto cineastas e abordava seu amadurecimento artístico; ao passo que para outras as investigações direcionavam-se para histórias e relações familiares, para momentos de crise que revelavam conflitos geracionais, ligados aos debates de género e ao feminismo. Entendemos que o género de cinema autobiográfico não tem regras muito restritas, mas admite várias formas e funções diferentes (carta, diário, confissões, ensaios, relatos autobiográficos) há, porém, algo comum a estas formas e funções - a importância da experiência pessoal e oportunidade de oferecer dela um relato sincero a outrem. Philipe Lejeune tenta categorizar e distinguir as diversas formas de escrita de si a partir de variações nos modos de escrita e leitura: enquanto os diários, por exemplo, são íntimos na escrita e na leitura, as autobiografias são íntimas no conteúdo e públicas no seu destinatário. Mas para além dessa diferenciação, ele também é categórico a respeito da sinceridade como condição sine qua non da autobiografia, chegando a circunscrevê-la a partir de uma perspetiva jurídica. Para ele, trata-se de “um compromisso explícito do autor, um pacto de veracidade proposto aos leitores” (LEJEUNE, 2014, p. 223). Como afirma Mourão, a tendência da autobiografia é um fenómeno maior, não localizado exclusivamente no campo do cinema de vanguarda, e que acolhe uma variedade de linguagens (videoarte e cinema político, cinema e memória).
O quarto momento do cinema autobiográfico condensa todas as outras, a ideia de que a novidade do fenómeno está na sua consciência como género ou como forma, mais do que na prática propriamente dita. Ou seja: a prática ou a forma da autobiografia não seria em si uma novidade, mas a consciência e o debate sobre ela sim – resta saber, e acreditamos que sim, se essa consciência modifica a forma.
As questões da reflexividade são uma das caraterísticas marcantes no cinema autobiográfico atual. Dos filmes autobiográfico realizados na última década em Portugal - A toca do lobo (2015), de Catarina Mourão e Metamorfose dos Pássaros (2020) de Catarina Vasconcelos; no Brasil - No Intenso Agora (2017) de João Moreira Sales, Elena (2012) e Democracia em vertigem (2019) de Petra Costa, em França - Chantal Akerman par Chantal Akerman (1997) e No home movie (2015) de Chantal Akerman, As Praias de Agnes (2009) de Agnes Warda e Les années super 8 (2022) de Annie Ernaux, David Ernaux-Briot, Isto Não é um Filme (2011) de Jafar Panahi no Irão e Stories We Tell (2012) de Sarah Polley no Canadá; todos partem ou incluem histórias de família. João Moreira Sales só utiliza imagens de arquivo em No Intenso Agora faz uma interessante reflexão a utilização da imagem nos acontecimentos políticos – maio de 1968 em França, Primavera de Praga, Manifestações dos secundaristas no Rio de Janeiro, Revolução Cultural Chinesa – imagem filmadas pela mãe. O filme tem uma poderosa banda sonora (voz over), premiada em alguns festivais, com uma forte componente reflexiva sobre o usso das imagens, mas também sobre a família, sobre os acontecimentos políticos e o modo de os filmar ou de os ver. De salientar a música final evocando o fim trágico da mãe.
As Praias de Agnes de Agnes Warda é um complexo jogo de espelhos em que a realizadora cria eventos e situações em que se ligam a vida pessoal e o cinema, a fotografia e a cinematografia os acontecimentos e as sociabilidades do cinema e os conflitos sociais e políticos, o amor e a morte (presença de Jacques Demy), o cinema e a VIDA. Enfim, Agnés sintetiza o filme no final ao mostrar uma cabana construída com a película do filme “era uma vez dois atores bons e bonitos que protagonizaram um filme que se manifestou um fracasso. Respigadora como sou, recuperei as cópias abandonadas do filme, e nos pusemos a desenrolar os rolos e os bons e belos atores reencontraram-se em superfícies e paredes, atravessados pela luz. O que é o cinema? É a luz que chega de algum lado e que é retida pelas imagens mais ou menos escuras ou coloridas. Quanto estou aqui (na cabana), sinto que vivo no cinema que ele é a minha casa” [Praias de Agnes 01:43:20 - 01:44:00].
O cinema autobiográfico tem uma constante proximidade ao cinema experimental, ao cinema artesanal, ao filme-ensaio “[...] uma forma que pensa, se pensa, se ensaia e se experimenta; um meio de expressão em que a matéria se modula juntamente com o pensamento; ou, ainda, uma forma que, enquanto se faz, se revela e questiona como e porque está produzindo” (SIQUEIRA, 2006, p. 28).
Nesse sentido, os ensaios fílmicos reafirmam a importância da experimentação e ultrapassam os limites estritos de um “eu unitário, definido e individual” (SIQUEIRA, 2006, p. 179) para chegar a uma “dimensão de exterioridade, pluralidade, diferenciação” (SIQUEIRA, 2006, p. 180). Nesses filmes, a montagem exerce um papel fundamental, pois possibilita a conversação entre vários elementos do filme, que tem como base uma grande coleção de materiais, de temas, espaços e tempos. “Os ensaístas são cineastas errantes [...]. Seu desgoverno faz com que as etapas, normalmente fixas, de produção do filme também sejam livremente modificadas e colocadas em movimento” (SIQUEIRA, 2006, p. 45).
Como funciona a autobiografia nos filmes Isto Não é um Filme e Stories We Tell
Escolhemos dois filmes para analisar as configurações das narrativas autobiográficas: Isto Não é um Filme (2011) de Jafar Panahi e Stories We Tell (2012) de Sarah Polley. Faremos ainda referência ao filme Les Années Super 8 (2022) de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot.
O filme iraniano Isto Não é um Filme (2011) codirigido por Jafar Panahi4 e Mojtaba Mirtahmasb é considerado um excelente exemplo de um filme autobiográfico que utiliza a forma cinematográfica para refletir sobre a vida e a condição pessoal do cineasta no Irão. Panahi está em prisão domiciliar condenado por “propaganda contra o regime” após apoiar o movimento de oposição durante as eleições presidenciais iranianas de 2009. O filme documenta um dia na vida de Panahi enquanto ele espera o resultado de um recurso da sentença. Ele discute seu processo criativo e tenta, de maneira subversiva, continuar fazendo cinema dentro das limitações impostas pelo governo. Panahi narra cenas de um roteiro que ele havia escrito antes da proibição e que nunca foi filmado, utilizando o espaço de seu apartamento como palco para descrever as cenas. O filme mistura elementos documentais e ficcionais, desafiando as definições tradicionais dos elementos constituintes de um filme.
Isto Não é um Filme mostra como o cinema pode ser usado não apenas para contar histórias, mas também como um meio de resistência e autorreflexão. Jafar Panahi, através deste filme, desafia as restrições impostas a ele e, ao mesmo tempo, oferece ao mundo uma poderosa declaração sobre a resiliência do espírito humano e a importância da liberdade artística. Este filme é uma adição crucial ao cânone do cinema autobiográfico, mostrando que, mesmo em circunstâncias extremas, a voz do artista pode perdurar e inspirar. Também em Taxi Teerão (2015) mostra formas de resistência, de autorreflexão, de criatividade e desafio às limitações impostas, de liberdade de artísticas não obstante as limitações resultantes da condenação. Enumeremos algumas das formas (caraterísticas, estratégias narrativas) que nos permite considerar este filme como autobiográfico: Panahi está no centro da narrativa, refletindo sobre sua vida, seu trabalho e a situação política no Irão (autorreferencialidade); mostra uma visão íntima do quotidiano de Panahi em prisão domiciliar suas frustrações e sua resistência através da arte; discute abertamente o ato de fazer cinema, questionando a natureza do filme e a criatividade sob restrição; o filme em si é um ato de resistência contra a censura, uma declaração de que a criatividade não pode ser totalmente suprimida.
A quase totalidade da ação do filme decorre no apartamento em que está em prisão domiciliar. Quando sai desta situação é para revisitar arquivos de filmes anteriores em que a temática é de resistência a formas de criatividade. O confinamento torna-se mais acentuado quando as filmagens passam do apartamento para o elevador do prédio onde partilha com o zelador do prédio, porta semiaberta do elevador, outras histórias (micro-histórias) dos vizinhos, do zelador, mestrando em artes, que não vê outra profissão a não ser a de zelador do prédio em substituição da irmã. A forma de trazer informação para a situação de Panahi tem caraterísticas muito peculiares. Não é Panahi que conta os detalhes: o zelador conta como a polícia invadiu o prédio; a secretária eletrónica (telefonema da esposa) no início do filme descreve a família, a época do Natal com o presentes e visitas à família, e mesmo as recomendações para regar as plantas e tratar da iguana da filha; posteriormente é no telefonema para a advogada que se conhece a sentença, o recurso, as estratégias de defesa; a conversa telefónica fragmentada, controlada e cheia de interditos com Mojtaba Mirtahmasb conta o que se passa na rua – dificuldade de trânsito, as manifestações na ruas, a polícia e as explosões audíveis no apartamento e mesmo a necessidade de sair e as preocupações com a polícia; o entregador de comida traz igualmente informação sobre os movimentos de rua; a encenação no apartamento do roteiro do filme em que a protagonista, também ela confinada pelos pais que a proíbem de ir para a universidade:
O filme é sobre uma garota, que foi admitida em uma universidade, no campo das artes. Mas como ela vem de uma família tradicional, os seus não permitem que ela siga aquele curso. Particularmente, depois que ela passa no vestibular, e seu nome aparece nos jornais. Seu pai descobre e a família impõe-lhe restrições. Então os pais saem numa viagem e trancam a garota dentro de casa. De agora em diante, com todas as portas fechadas, a garota tenta encontrar uma maneira de sair de casa. Se ela não conseguir chegar a Teerão em tempo para a matrícula, perderá a oportunidade de ir para a universidade [Isto não é um filme – 00:16:28 - 00:17:31].
O filme é de uma simplicidade formal extrema e de uma densidade surpreendente. Filmado com uma câmara digital e um telemóvel (celular) dá a sensação de urgência e autenticidade, reforçando a ideia de que o filme é uma documentação real de sua vida sob restrição.
Isto Não é um Filme levado para Paris numa pen drive escondida num bolo e apresentado em Cannes na Special Screenings em 2011 foi amplamente aclamado internacionalmente, tornando-se um símbolo da luta pela liberdade de expressão no Irão e inspirou outros cineastas a explorar formas criativas de contornar a censura e a usar o cinema como uma ferramenta de resistência política.
O segundo filme escolhido foi Stories We Tell (2012) de Sarah Polley considerado uma obra-prima do documentário autobiográfico, combinando narrativas pessoais, filmes de família e uma abordagem meta-narrativa para explorar as complexidades da memória e da identidade, mas sobretudo as formas de as contar. Através de sua busca pessoal, Sarah Polley nos oferece um olhar profundo e íntimo sobre sua família, ao mesmo tempo que questiona a natureza da verdade e da narrativa. Este filme é uma contribuição significativa para o campo do documentário, destacando como histórias pessoais podem revelar verdades universais sobre a experiência humana. O filme e considerado como abordagem inovadora ao documentário autobiográfico e por sua exploração sensível e complexa da memória, identidade e narrativa familiar. Começa com uma citação da Margaret Eleanor Atwood, como que uma epígrafe do filme:
Quando estamos no meio de uma história ela não é história nenhuma; é apenas uma amálgama, um bramido tenebroso, uma cegueira, um destroço de vidros estilhaçados e de madeira partida, como a casa num remoinho, ou um barco esmagado por icebergs, ou arrastado para os rápidos, em que todos os seus ocupantes se sentem incapazes de o imobilizar só mais tarde é que a narrativa se configura numa história quando a contamos a nós mesmos ou outra pessoa. Margaret Atwood – Alias Grace (1997).
Há quase dez anos que tento escrever sobre este filme, mas cada visionamento me traz novas e mais aprofundadas leituras. Não apenas a ideia principal do filme – entender sua mãe, a dinâmica familiar e os contextos sociais e artísticos em que sua vida se inscreve. Ou, se quisermos ser simplistas, a procura de seu pai biológico e as consequências. Só isto seria uma imensa tarefa e uma reflexão sobre a família, a sexualidade, a ética, a moral e a arte de as representar.
Sarah Polley não apenas dirige o filme, mas também participa ativamente como narradora e investigadora, o que dá ao documentário uma dimensão autobiográfica clara. Ela examina suas próprias memórias e confronta as diferentes versões da história contadas pelos membros da família (autorreferencialidade); múltiplas vozes, múltiplas narrativas: O filme explora o conceito de «verdade» através das múltiplas perspetivas apresentadas. Cada membro da família e amigo.as próximo.as da mãe tem sua própria versão dos acontecimentos, o que sublinha a natureza subjetiva da memória e da narrativa pessoal. Sarah Polley habilmente costura essas diferentes narrativas, revelando como cada pessoa constrói suas próprias histórias e como essas histórias podem diferir radicalmente umas das outras.
Sarah Polley utiliza extensivamente filmes de família para descrever a vida de sua mãe e da família. Estes filmes família, alguns reais e outros recriados para o documentário, adicionam uma camada de autenticidade e nostalgia à narrativa. A recriação de filmes família com atores também serve para questionar a ideia de autenticidade na narrativa documental. O documentário inclui entrevistas (conversas por vezes divertidas) íntimas com membros da família, amigos próximos da família (sobretudo da mãe). Estas entrevistas são intercaladas com narrações que fornecem contexto e reflexões pessoais de Polley (Roteiro e/ou ensaio pessoal a que se refere Michael). A narração do pai de Sara, Michael Polley, é particularmente significativa, pois ele lê um ensaio pessoal sobre sua vida e relacionamento com Diane. Stories We Tell mostra os bastidores do processo de filmagem e a interação de Sarah com seus entrevistados - conversas leves, bem-humoradas, divertidas, por vezes irónicas, por vezes formais. Esta abordagem meta-narrativa faz o público consciente do processo de construção do documentário, sublinhando a ideia de que as histórias são, em última análise, construções subjetivas. É aí que o filme se torna surpreendente: o modo ou a forma como nos contamos, o modo diferente de contar de Sara Polley, Harry Gulkin, Michael Polley. Ainda que sem a possibilidade de o texto mostrar as imagens vejamos o que dizem sobre este como contar ou como revelar a verdade:
Sarah – Viva Harry. Não me agrada nada divulgar a história a menos que inclua todas as versões, ou seja a minha vivência dela, a tua vivência e a da minha família. Tenho pensado muito no desejo de contar esta história e no meu desejo de documentar esta experiência em filme. Ao iniciar este processo, não sei que forma o projeto assumirá. Não sei se é um registo pessoal para mim mesmo ou algo para outros verem em determinada altura. Não sei quanto tempo levará, nem se será alguma vez terminado, nem tão pouco sei como contá-la, para além da explorar através de entrevistas com os envolvidos, para incluir todas as perspetivas, por muito contraditórias que sejam. Talvez um dia se transforme num documentário para consumo alheio. Não sei se isto acontecerá nem se quero que aconteça, mas qualquer que seja o resultado, seria estranho não te incluir [Stories We Tell 01:21:45 - 01:23:01]
Harry – Não me agrada. Acho que isso dá uma ideia muito confusa. Como disse, assim nunca se vai ao fundo de nada. Ficam muitas pontas soltas. Acho que todos podem ser ouvidos, mas dar o mesmo peso a todos, sobretudo àqueles que tiveram papéis secundários!… Em primeiro lugar há os intervenientes principais os que estavam presente e foram diretamente afetados. Depois há um círculo de pessoas que foram afetadas tangencialmente devido à sua relação com os intervenientes principais. E depois há outro círculo concêntrico, que ouviu ou soube da história por um dos principais intervenientes, e todos eles podem ter diferentes narrativas, sendo que essas narrativas são moldadas pela relação com a pessoa que lhes contou e pelos acontecimentos. O facto de eles relatarem as suas reações não revela a verdade. As pessoas têm tendência a fazer declarações com base naquilo que viram, que sentiram, com base naquilo que recordam e com base nas suas lealdades. As circunstâncias afetarão cada pessoa de maneira diferente. Não significa que as verdades sejam diferentes. O que há são diferentes reações a acontecimentos /eventos particulares. A função crucial da arte consiste em contar a verdade, em encontrar a verdade da situação. É disso que se trata [Stories We Tell 01:23:50 - 01:25:16].
Michael Polley - Gosto de escrever, mas custa-me sempre começar porque nunca sei sobre o que quero escrever. Aquilo levou-me a pensar na quantidade de histórias incríveis que podemos contar sobre nossa própria vida, sem termos de encontrar coisas interessantes lá fora. Percebi que ela me tinha lançado para o colo de uma história espantosa. Aos poucos comecei a construir uma imagem daquilo tudo. E muito do passado de Diane e das minhas próprias ações assumiam uma tonalidade deferente. As revelações despertaram em mim uma obsessão por contar a história a quem a quisesse ouvir. O meu crescente entusiasmo pela própria narrativa, bem como a constante reavaliação do meu próprio passado, fizeram-me andar às voltas durante dois dias. No Sábado consegui finalmente enviar uma email a Sarah com o seguinte resumo dos meus pensamentos. “Minha querida Sarah, tenho a cabeça às voltas há 24 horas. Ao redigir os meus pensamentos, espero conseguir deter este estado febril e poder ver as coisas sobre outra perspetiva. Aconteça o que acontecer não devemos censurar Diane pelo que aconteceu em 1978… O amor é tão breve e esquecer é demorado [amar é breve, esquecer é demorado] como escreveu Neruda. O Harry deve ter ficado desapontado quando ela voltou para Toronto, e eu lamento que isso tenha acontecido. Mas ela regressou a Toronto e nós os três ficamos felizes por a termos novamente connosco e depois descobrimos que ela estava grávida. Para mim, foi uma alegria, para ela, deve ter sido agonizante. O mais terrível da angústia mental pela qual ela passou foi nunca ter percebido qual teria sido a minha reação se me revelasse tudo. Julgo que lhe teria dito que não se preocupasse e que estaria pronto a aceitar a ambiguidade da parentalidade. Mas falhei uma vez mais. Como é possível que falemos tanto, eu, pelo menos, falo, sem nunca deixar transparecer aquilo que realmente somos? [Stories We Tell 01:14:34 - 01:18:21].
Faremos ainda referência ao filme Les Années Super 8 (2022) de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot. A obra literária de Annie Ernaux tem extensas ligações ao cinema, ao teatro, à fotografia. É também autobiográfica ou, na própria classificação da autora, auto-sociobiografia. Foram adaptadas para cinema L’Autre, Passion Simple, L’Événement. La Place foi adaptada para teatro e encenada por Hugo Roux em 2022 e Corinne Mariotto, Muriel Bénazeraf adaptaram Passion Simple, encenada em 2023 por Corinne Mariotto, François Donato. Trata-se, porém, de obras adaptadas por outros autores. Em L’Usage de la Photo (2005), escrito em colaboração com o fotógrafo e ex-companheiro da autora Marc Marie, Annie Ernaux é co-autora de fotografias e da coescrita a partir dessa fotografia e em Les Années (2019) a escrita surge inspirada nas fotografias relevantes na vida da escritora. Les Années Super 8 (2022) Annie Ernaux, David Ernaux-Briot continua este processo criativo retomando, os filmes de família – imagens registadas entre 1972 e 1981 pelo marido de Annie Ernaux para criar uma narrativa pessoal e íntima que entrelaça memórias familiares com eventos históricos e culturais. O filme funciona como um elo entre a memória pessoal e a história coletiva. Annie Ernaux narra as cenas, refletindo sobre como os momentos capturados nas filmagens se relacionam com eventos maiores na história; continua assim a tradição autobiográfica presente nos escritos de Annie Ernaux, utilizando o formato audiovisual para expandir suas reflexões sobre identidade, tempo e memória; os filmes de família revelam as transformações sociais e culturais da época, destacando mudanças nos papéis de gênero, nas dinâmicas familiares e na paisagem política da França.
Gostaria de experimentar analisar este filme com outras ferramentas que não as já adquiridas de descrição do filme. Recorrendo para isso à sugestão e experiência de análise de Jerome Bruner acerca de quatro autobiografias referidas em Vida como narrativa (1987) e utilizando uma ferramenta teórica desenvolvida pelo crítico literário e filósofo Kenneth Burke para analisar atos humanos e sua motivação – Pentad. Os Cinco Elementos da Pentad: Ato (Act) - Refere-se ao que aconteceu ou está acontecendo. É a ação em si que está sendo analisada; Cena (Scene) - Descreve o contexto ou o cenário em que a ação ocorre. Inclui fatores temporais e espaciais; Agente (Agent) - O indivíduo ou grupo que realiza a ação. Foca em quem está executando o ato. Agência (Agency) - Refere-se aos meios ou instrumentos utilizados para realizar a ação. Propósito (Purpose) - O objetivo ou intenção por trás da ação. Explica o “porquê” da ação. A Pentad de Burke é usada para descrever e entender ações humanas complexas, identificando como esses cinco elementos se relacionam e se influenciam mutuamente. Através desta análise, é possível ganhar uma compreensão mais profunda da motivação por trás das ações e dos significados atribuídos a elas pelos participantes. Burke também introduz o conceito de “ratios” para explorar as relações entre os elementos. Por exemplo, a relação entre “ato” e “agente” pode ajudar a entender como as características do agente influenciam a ação. A relação entre “cena” e “ato” pode destacar como o contexto afeta a natureza da ação. O tempo para geração deste texto não permitiu o experimento, mas uma metodologia a considerar na análise das produções realizadas pelos estudantes.
Atividade criativa - produção autobiográfica de um ensaio audiovisual
O projeto pesquisa que deu origem a este texto desenvolveu-se em múltiplas etapas: a primeira consistiu na criação de um grupo piloto online constituído por cinco pessoas, séniores, de formações, origem e nacionalidades diversas e com percurso pessoais, profissionais e de formação muito diferentes e de dois professores / investigadores da UFRN. Posteriormente uma segunda fase em que foi criada uma formação e produção audiovisual na Fio Cruz - Fundação Oswaldo Cruz: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Entre Imagens: Construir o Olhar / Educar o Olhar (Ribeiro e Afonso Rodrigues, 2022) e conversas, sessões e reuniões informais com colegas da UFRN. Na terceira fase a criação de um workshop / oficina na AO NORTE do qual resultaram quatro produções audiovisuais. Uma quarta fase, ainda em desenvolvimento, foi a criação na UFPE - EDUMATEC da disciplina de Tópicos de tecnologias educacionais – Possibilidades metodológicas de Design Total de Pesquisa, Literacia Midiática e Autobiografias na Educação de que resultaram vinte curtas autobiografias audiovisuais, na conclusão das quais se recolheu, na última aula, de forma espontânea a reação dos estudantes aos trabalhos realizados e finalmente, ainda dentro desta fase a criação de um curso / disciplina – Autobiografias: Antropologia, Cinema e Educação realizada simultaneamente no EDUMATEC – UFPE, na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo, na Universidade Rey D. Juan Carlos; com forte ligação a instituições culturais da sociedade civil - AO NORTE - Associação de Produção e Animação Audiovisual e com ligações a Union de Cineastas, Educar la mirada, RIAA – Rede de Investigadores em Antropologia Audiovisual, Rede Cultura Visual e Associação Olho Largo, Cabo Verde e mais recentemente com a FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco. A disciplina teve 6 módulos de formação remota com participação de professores de diversas IES – Instituições de Ensino Superior: Escola Superior de Educação do IPVC Portugal, Universidade Rey Juan Carlos, de Espanha, Universidade Federal de Pernambuco, do Brasil e um Módulo prático de 30 anos a realizar no mês de junho. Envolvidos na disciplina 11 professores, 8 universidade de Grupos de Pesquisa.
Deu-se assim forma aos objetivos do projeto enunciado no projeto proposto à UFRN – PPGAS: Inventariar experiência dos participantes na identificação de filmes comerciais (documentário ou ficção) e/ou filmes de pesquisa em que se destaquem narrativas autobiográficas, verificar como se estruturam e configuram essas narrativas e quais fundamentos teóricos, éticos e estéticos do cinema autobiográfico. Paralelamente o projeto propõe que os participantes desenvolvam uma pesquisa autobiográfica que conduzam a uma produção audiovisual e seu aparelho crítico-criativo (diário e notas de campo) e finalmente utilizem a metodologia (experimento) no trabalho de campo, como metodologia audiovisual participativa/colaborativa com uma população específica (jovens, adolescentes, estudantes, profissionais, pessoas idosas…) visando a produção individual de dados (produção audiovisual e diário) e a produção de uma obra coletiva (produção audiovisual e livro ou obra digital interativa).
Verificamos, pois, que se trata de um projeto em andamento do qual ainda há produções autobiográficas e algumas reflexões teóricas, não definitivas. Estimamos que estas possam vir a surgir e a ser partilhadas nos próximos anos em que se desenvolverá este projeto. Não seja ele um projeto de longa duração como o é a Vida como narrativa (1987) de Jerome Bruner.
Notas finais
1 História de vida (Ferrarotti, Pineau, Legrand), narrativa de vida (Bertaux, Poirier, Clapier-Valladon, Raybaut, Le Grand entre outros), autobiografias (Le Jeune, Bruner), autonarrativa (Bruner) indicando como géneros vizinhos memórias, biografia, romance pessoal, diário, autorretrato ou ensaios, poema autobiográfico. Podemos incluir entre este a literatura biográfica ou autobiográfica da literatura de cordel.
2 Jerome Bruner (1915-2016) foi um psicólogo americano cujo trabalho teve um impacto profundo na psicologia cognitiva, na educação e na teoria da aprendizagem. Sua carreira académica abrangeu várias décadas e instituições de prestígio, incluindo a Universidade de Harvard, a Universidade de Oxford e a New School for Social Research. Bruner foi um dos pioneiros da revolução cognitiva, que desafiou a predominância do behaviorismo na psicologia. Ele acreditava que o comportamento humano não poderia ser completamente compreendido sem considerar os processos mentais internos, como pensamento, perceção e resolução de problemas. É, porém, mais conhecido por sua teoria da aprendizagem por descoberta, que propõe que os alunos aprendem melhor quando são ativos na construção de seu próprio conhecimento. Ele argumentou que a educação deveria se concentrar em ajudar os alunos a pensar e resolver problemas por si mesmos, em vez de apenas transmitir informações.
3 Em 2012, foi lançado um projeto de cinco anos denominado Projeto de Pesquisa em Redes Sociais e Ciências Sociais, para estudar o impacto global das novas redes sociais. O estudo baseia-se em dados etnográficos coletados ao longo de 15 meses nos países acima referidos. O projeto foi financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa.
4 O premiado diretor de cinema iraniano Jafar Panahi, foi libertado em fevereiro de 2023 após ter sido preso em julho de 2022 por protestar contra a detenção de dois de seus colegas cineastas. Ao indicar uma greve de fome terá afirmando “Eu irei resistir até meu corpo sair da prisão”. Panahi é conhecido por seu trabalho crítico em relação ao governo iraniano e já havia enfrentado problemas legais anteriormente devido à sua obra e ativismo. Em 2010, Panahi foi condenado a seis anos de prisão e a uma proibição de 20 anos de fazer filmes, escrever roteiros, dar entrevistas a meios de comunicação estrangeiros e sair do Irão. Esta sentença foi resultado de suas críticas ao governo e da participação em protestos políticos. Não consta que esta sentença tenha sido revista.
Referências bibliográficas
Bergala, Alain. 2008. Si “yo” me fuera contado Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez págs. 27-34.
BRUNER, Jerome. 1987. Life as Narrative. Social Research, 54(1), 11–32. http://www.jstor.org/stable/40970444
Bruner, Jerome. 1991. The Narrative Construction of Reality, Critical Inquiry, 18(1) pp 1-21.
KOPENAWA, Davi e BRUCE Albert. 2015. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, São Paulo: Companhia das Letras.
Lechner, Elsa. 2023. Dimensões coletivas do trabalho biográfico como pesquisa-formação: oficinas biográficas em foco, Linhas Críticas, 29.
LEJEUNE, Philippe. 2008. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte : Editora UFMG.
Lejeune, Philippe. 2008. Cine y autobiografía, problemas de vocabulario, Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez, págs. 13-26 T & B Editores.
Lejeune, Philippe. 2008. Veintiún años después. Cineastas frente al espejo / coord. por Gregorio Martín Gutiérrez, págs. 11-12
Leroux, L. P. 2004. Théâtre autobiographique : quelques notions. Jeu, (111), 75–85.
MEKAS, Jonas. 1973. Movie Journal. Village Voice, Nova Iorque, 5 abr. 1973, p. 73.
Merrill, B., & West, L. 2009. “Using Biographical Methods in Social Research” fornece uma visão abrangente sobre métodos biográficos, incluindo o uso de autobiografias na pesquisa.
Mitchell W. J. T. 1981. On Narrative University of Chicago Press.
MOURÃO Patrícia. 2016. A invenção de uma tradição: caminhos da autobiografia no ci- nema experimental, ECA – USP,
Nóvoa, António Sampaio da e Finger, Matthias (Editores). 1988. O método (auto) biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde.
Ribeiro, José da Silva. 2003. Métodos e Técnicas de Investigação em antropologia, Universidade Aberta. Cap VI – Histórias de Viva. 319-364.
Ribeiro, José da Silva e Afonso Rodrigues, Manoela. 2022. Autobiografia: campo de experimentação em expansão, AO NORTE – Cinemas. Edição 2, pp. 21-35, 2023.
Ribeiro, José da Silva; Anjos Afonso Rodrigues, Manoela. 2023.Corresponding author: Anjos Afonso Rodrigues, Manoela. “Autobiography: expanding field of experimentation. (Autobiografia: campo de experimentação em expansão).”. CINEMAS. , v.02, p.21 - 35, 2023. 02 21-35. https://www.ao-norte.com/cinemas/02/cinemas02.php
Ribeiro, José Silva. 2022. “Reconfigurações de um percurso académico em tempos de pandemia. O futuro é hoje”. Revista UFG: https://doi.org/10.5216/revufg.v22.72983.10.5216/revufg.v22.72983
Ribeiro, José da Silva e Afonso Rodrigues, Manoela. 2022. Entre olhares e fazeres autobiográficos: uma experimentação coletiva em audiovisual - Between autobiographical looking and practices: a collective experimentation in audiovisual - AVANCA | CINEMA. Ppp 583-590.
SIQUEIRA, Marília Rocha. 2006. O ensaio e as travessias do cinema documentário. BH: UFMG,
Souza, Elizeu Clementino. 2007. (Auto)biografia, histórias de vida e práticas de formação, Nascimento, AD., and Hetkowski, TM., orgs. 2007. Memória e formação de professores [online]. Salvador: EDUFBA.
Tricerri, Eddy. 2023.Autobiografia de uma artista. São Carlos, Brasil: De Castro.
Filmografia
A toca do lobo. 2015. De Catarina Mourão, Laranja Azul, Portugal.
As Praias de Agnes. 2009. De Agnes Warda, França.
Chantal Akerman par Chantal Akerman.1997. De Chantal Akerman, EUA
Democracia em vertigem. 2019. de Petra Costa, Brasil
Elena .2012. De Petra Costa, Brasil.
Isto Não é um Filme. 2011. De Jafar Panahi, Irão
L’Arroseur Arrosé. 1985. Lumière, França.
Le Repas de bébé. 1895. Lumière, França.
Les années super 8. 2022. De Annie Ernaux e David Ernaux-Briot, França
Metamorfose dos Pássaros. 2020. De Catarina Vasconcelos, Portugal.
No home movie. 2015. De Chantal Akerman, EUA.
No Intenso Agora. 2017. De João Moreira Sales, Brasil
O homem com a câmara. 1929. De Dziga Vertov
Stories We Tell. 2012. De Sarah Polley, Canadá.
The Immigrant. 1917. De Charles Chaplin.