Abstract
Mental illnesses are becoming increasingly visible in society. The dissemination of information about them is a necessity in order to dismantle misinformation. Cinema, as an element of audiovisual representation of the human being in its entirety, plays a role in portraying psychopathologies. Through the content we consume, we form an opinion about what we see, and we carry that into our social circles. Thus, the way cinema portrays mental illnesses will contribute to how the public interprets and understands them. Through a sample selected from a set of inclusion and exclusion criteria applied on the IMDB platform, some films were analyzed with the aim of understanding how they represent anxiety, using an analysis grid based on scientific aspects derived from the DSM-5 Manual. From the narrative exposition and the techno-aesthetic aspects, it was concluded that the representation of anxiety in cinema is not linear; there are credible points and points where nothing relates to psychopathology. The shots used are similar in the portrayal of the feelings conveyed by the characters, and the way psychopathology is conveyed determines the choice of film aesthetics used.
Keywords: Audiovisual, Anxiety, Cinema, Techno-aesthetics.
Introdução
De acordo com dados da World Health Organization (WHO), 10% da carga global de doenças são do foro mental, de entre as quais a ansiedade se encontra em primeiro lugar (WHO 2023, 64), em Portugal 22% da população sofre com algum tipo de doença mental e a maior percentagem, de acordo com dados correspondentes ao ano de 2019, corresponde à ansiedade, que corresponde a 9% da população (OECD e Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde 2024, 22). As doenças mentais são um tema de debate com uma abertura cada vez maior na esfera pública nos dias de hoje, contudo ainda se encontra envolto em certos estigmas. Um estigma é definido como uma situação na qual um indivíduo não é plenamente aceite na sociedade (Goffman 1891, 4). O facto de existir estigma socio-cultural acerca da doença mental gera a necessidade de expor de forma coerente e acurada a ansiedade e outras doenças mentais, de modo que estas possam ser aceites na sua totalidade na sociedade, sem estigmas. Neste caso particular a análise é feita através do cinema, uma forma de arte com o potencial de transmitir mensagens e de mudar mentalidades sobre diversos temas sociais.
As análises já existes que pretendem analisar a forma como a ansiedade é representada no cinema debruçam-se sobre as narrativas, recolhendo informações úteis nos campos da psicologia e psiquiatria, a presente análise distingue-se pois é voltada para as ciências audiovisuais, destacando como é que a ansiedade é representada através da imagem, do som, dos planos, da iluminação, elementos audiovisuais que produzem significado. Os filmes não são apenas narrativas, mas sim um conjunto de significados que no seu todo transmitem mensagens, que por sua vez, terão um efeito sob quem as vê, que poderá desencadear a reflexão e talvez a mudança.
Ao longo da história as doenças mentais têm vindo a ser representadas no cinema de forma extrema, como sinónimos de loucura (Wedding and Niemiec 2014), o que contribui para a acentuação do estigma identificado. Por esse motivo a presente análise opta por uma amostra constituída por filmes mais recentes, partindo da pergunta “Como é que a ansiedade é representada no cinema, nos últimos 10 anos?” de modo a observar como é que a ansiedade tem vindo a ser transmitida para os espectadores, através das ferramentas tecnoestéticas utilizadas no cinema, constituindo esse o objetivo primário da investigação.
As doenças mentais no cinema
O cinema pode mudar visões, é entendido como uma arte poderosa, pois é uma indústria influente na sociedade (Alshadoodee 2021). Os filmes não dizem apenas respeito ao texto enunciado pelos atores, são sim uma compilação de significados e mensagens que irão ter um efeito de reflexão e talvez mudança por parte de quem os vê. O cinema retrata todo o tipo de temas e representa várias fações distintas da sociedade, dando voz a minorias, o que desencadeia a discussão de assuntos e temas na sociedade, contribuindo para a sua aceitação. Também no caso das doenças mentais, a representação destas no cinema contribui para a normalização do tema. O cinema é uma ferramenta importante na forma como influencia a perceção dos espectadores em relação às doenças mentais, uma vez que circula desinformação em relação ao tema (Wedding and Niemiec 2014). Os autores, Wedding & Niemiec (2014) creem que o cinema é a arte com maior influência, devido a esta ultrapassar barreiras geográficas, culturais e pessoais. Os filmes são assistidos com a expectativa de serem encontradas semelhanças com a nossa vida pessoas, de modo que possamos relacionarmo-nos com o que é projetado no ecrã e a relação entre essas representações e a psicologia torna-se uma evidência, pois a representação do ser humano vai das suas partes mais risonhas até às mais sombrias (Fernandez 2011, 89).
Cinema é arte e como tal é visto como uma forma de entretenimento, contudo Byrne (2009) acrescenta ao cinema uma função de mudança social. Os filmes psiquiátricos fazem parte de um império comercial, seguem os investimentos e o populismo, ou seja, dão ao público aquilo que o público quer ver (Byrne 2009, 286). Essa lógica que o autor apresenta faz com que cada filme seja uma cópia do anterior, que siga a tendência de mercado, o que torna este tipo de cinema propenso a violência, é esta a conclusão que o autor chega a partir da análise de mais de 370 filmes, descrita no artigo Why psychiatrists should watch films (or What has cinema ever done for psychiatry?) (Byrne 2009).
“Paranoicos, psicóticos e outros transtornados fascinam ou perturbam o espectador porque a loucura interrompe a ordem imanente do mundo e as modalidades habituais de percepção deste” (Fernandez, 2011, p. 89). Para Fernandez (2011) o cinema é acima de tudo uma forma de arte que se presta à representação das doenças mentais e vai ao encontro de Byrne (2009) ao afirmar que muitas das vezes essas doenças não são bem representadas, pois não existe uma finalidade educativa por trás dessas representações, mas sim uma finalidade comercial e artística (Fernandez 2011, 90). O autor acrescenta ainda que a “loucura” não é um critério diagnóstico aplicável a nenhuma psicopatologia.
Nas grandes produções cinematográficas de Hollywood, existe frequentemente a representação de doenças mentais, desde a década passada. Em longas-metragens como Psycho (1960), One Flew Over the Cuckoo’s Nest (1945) e The Silence of the Lambs (1991), a doença mental é representada, e levada ao extremo, como sinónimo de loucura (Wedding & Niemiec, 2014). De notar também que todos estes filmes estão incluídos na categoria de terror/thriller, o que também perpetua uma imagem negativa e assustadora das doenças mentais.
Desde os anos 90 que a violência é um tema comum, no já referido Psycho de Alfred Hitchcock, a violência é descrita como um sintoma psiquiátrico, “Here, a quiet person who would not even kill a fly turns into a heinous serial killer” (Das et al. 2017, 311). Desde o início do cinema que hospitais psiquiátricos chamaram à atenção dos realizadores, produtores e do público em geral, com interpretações negativas que usam a manipulação psicológica e emocional como tratamento (Arenas-Rojas 2021, 42), de referir também que na maioria dos casos existe um envolvimento sexual entre os pacientes e os psiquiatras. Exemplos disso são Das Cabinet des Dr. Caligari (1920), Bedlam (1946), The Snake Pit (1948), La Tête Contre les Murs (1959), Shock Corridor (1963), Shock Treatment (1981) e Hombre Mirando al Sudeste (1986).
Apesar de Byrne (2009) e Wedding & Niemiec (2014) concordarem que a representação das doenças mentais no cinema é disforme, concordam também que existem representações que apesar da violência, não são totalmente negativas na forma como mostram as doenças mentais. Os autores dão o exemplo de The Three Faces of Eve (1957), David and Lisa (1962), Ordinary People (1980) e A Beautiful Mind (2001), como produções com representações “simpáticas” das doenças mentais. Existe o consenso de uma evolução no cinema na forma como as psicopatologias são representadas, de representações fechadas e “loucas”, típicas dos hospitais psiquiátricos, passou-se para as representações do dia a dia, com a representação das doenças mentais num contexto social, familiar e pessoal.
Notam-se claras diferenças entre as representações dos anos 90 e as representações mais atuais, mas existe também a consciencialização de que as representações contribuem para o estigma. Contrariamente à perspetiva de Fernandez (2011), Arenas-Rojas (2021) guia-se por uma representação cinematográfica direcionada para o ensino. Admite um crescimento dos filmes capazes de prover descrições patológicas aceitáveis e razoáveis, podendo até vir a ser utilizadas para fins de ensino (Arenas-Rojas 2021, 43). O foco deixou de ser as clínicas psiquiátricas e as personagens são capazes de experienciar os seus sintomas em contextos sociais, proporcionando múltiplas perspetivas da doença.
Como é possível ver, o cinema tem um papel de entretenimento, mas também tem influência nas perceções dos temas tratados, pode ser uma ferramenta de ensino e de consciencialização sobre as doenças mentais. Na perspetiva de Fernandez (2011) o cinema não tem um papel educacional, pois trata-se de arte e a arte pode ser excêntrica, já Arenas-Rojas (2021) considera que é fundamental o papel de ensino do cinema nas questões de doença mental.
Metodologia
Partindo da pergunta: Como é que a ansiedade é representada no cinema? A análise é composta por filmes produzidos ao longo da última década que representam a ansiedade, a psicopatologia com a maior percentagem a prevalecer em Portugal (OECD 2018). O universo considerado na análise é composto por todos os filmes que representam a ansiedade, produzidos entre 2013 e 2023, a partir do qual, utilizando a plataforma IMDB, foi selecionada a amostra, de acordo com um conjunto de critérios de inclusão sendo eles: a) estar listado no ranking da plataforma IMDB; b) ter sido produzido entre 2013 e 2023; c) ser uma longa-metragem; d) possuir o nome da doença mental na sinopse. Paralelamente também foram estabelecidos critérios de exclusão, tais como: a) ser um documentário; b) ser uma longa-metragem de animação; c) ser uma biografia; d) ser baseado em eventos reais.
Para a pesquisa da amostra, na plataforma IMDB, foi utilizado o conjunto de palavras chave: “Anxiety”; “Feature Film”; “2013-2023”; o que levou a um resultado composto por 134 longas metragens, das quais 11 eram cumpridoras dos critérios acima citados, sendo elas: Beau Is Afraid (2023); Dear Evan Hansen (2021); Pink Skies Ahead (2020); Per Lanciarsi Dalle Stelle (2022); Nevrland (2019); Sarah Préfère la Course (2013); Northern Lights (2016); 53 Wojny (2018); The Game Warden (2016); Violet (I) (2022); e Själanöd (2014).
Os filmes que compõem a amostra foram analisados seguindo os critérios de uma grelha de análise, criada de raiz, que inclui três grandes campos, os critérios observáveis relacionados com a psicopatologia, as características da personagem, psicológicas e relacionadas com o ambiente em volta desta e, por fim, a narrativa e as técnicas utilizadas para a representação da ansiedade, com o auxílio do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-5 (2013) que permite comprovar a acuracidade da representação da ansiedade. A tabela de observação tem a possibilidade de ser aplicada a estudos semelhantes, que envolvam a representação de doenças metais no cinema.
Resultante da amostra, existem alguns conteúdos fílmicos que não foram visualizados e consequentemente não se encontram inseridos na análise. Isso deve-se a vários motivos. Sarah Préfère la Couse (2013) é uma produção que se encontra disponível na Amazon Prime vídeo, contudo não está disponível em Portugal. A produção Sueca Själanöd (2014) encontra-se disponível na plataforma Vimeo, mas as legendas apenas estão disponíveis no idioma original da narrativa, o que a torna incompreensível. O mesmo se sucede com Northern Lights (2016), The Game Warden (2016), 53 Wojny (2018) e Violet (2022), produções com pouco mediatismo cujo acesso não foi conseguido, pois o seu rasto online é bastante reduzido ou até mesmo nulo.
Psicopatologia |
Como é representada; Palavras utilizadas para a descrever; Sintomas; Causa apresentada. |
Personagem |
Idade; Nacionalidade; Comportamento; Características psicológicas; Condição económica; Condição social; Relação no trabalho; Relação com a família; Relações de amizade; Relação própria; Forma como lida com a doença; Procura ajuda?; Alvo de violência ou prospeto de violência; Final da personagem. |
Narrativa |
Sentimentos apresentados; Planos e Movimentos de Câmara; Cores; Cenário; Iluminação; Sonoridade. |
Trata-se de uma análise documental baseada na recolha de dados sobre um tema específico, através da observação de filmes. É um estudo de natureza exploratória, descritiva e interpretativa que pretende expandir os conhecimentos sobre a forma como a ansiedade é representada no cinema.
Representação da ansiedade no cinema
A forma como a ansiedade tem vindo a ser representada no cinema na última década vai ser analisada a partir de uma amostra de de cinco filmes, sendo eles: Nevrland (Schmidinger 2019), onde conhecemos Jakob; Pink Skies Ahead (Oxford 2020), representado pela personagem Winona; Dear Evan Hansen (Chbosky 2021), que tal como o nome indica nos apresenta Evan; Per Lanciarsi Dalle Stelle (Jublin 2022), cuja personagem se chama Sole; e Beau is Afraid (Aster 2023) que, também tal como o nome indica, nos apresenta os medos de Beau.
Os medos andam associados à ansiedade, dado que a ansiedade é “a antecipação de uma ameaça futura” (APA 2013, 223), de acordo com o Manual DSM-5. Os personagens analisados nas narrativas presente no parágrafo acima, experienciam a ansiedade através dos seus medos. Evan, aluno do ensino secundário possui medos relacionados com a sua integração e dificuldades em fazer amigos e socializar, aspetos diagnosticáveis como ansiedade social, um medo acentuado que se aplica em situações sociais nas quais o indivíduo é exposto a possíveis avaliações por parte de terceiros (APA 2013, 201). A postura de Evan, representada através do plano americano (figura 1), mostra como este tenta passar despercebido perto dos outros estudantes, com uma figura corcovada e desconfortável. No caso dos personagens Jakob, Winona e Sole, iniciaram a fase adulta das suas vidas e possuem medos que se prendem com sentimentos de estagnação, devido a incertezas sobre que rumo dar às suas vidas, medo de falharem na “vida”, todos se sentem perdidos. Jakob tenta sempre passar despercebido em qualquer situação, a sua expressão é de medo e desconforto, expressa no plano aproximado (figura 2). Sole olha diretamente para a câmara e fala com o espectador sobre os seus medos, o que faz com que estes não precisem de ser desvendados através das técnicas cinematográficas utilizadas (figura 3), contudo é recorrente encontrarmos a personagem a mexer nas mãos, o que indica um nervosismo constante. Com Winona não conhecemos a ansiedade visualmente, mas sim através das falas da personagem, que transmitem que esta se sente de alguma forma diferente das restantes pessoas. Por último, Beau, um personagem mais maduro, com uma idade compreendida entre os 45 e os 50 anos, sente medo de tudo o que o rodeia, medo este proveniente de traumas de infância. Persistem os sentimentos de culpa e medo que o impedem de ter uma vida equiparável à grande maioria da população, observado no grande plano (figura 4), onde observamos uma expressão que denota preocupação, ou através do plano de pormenor dos olhos de Beau, que transparece pânico (figura 5).
Os ataques de pânico, associados a múltiplas perturbações mentais, destacam-se como “um tipo particular de resposta ao medo” (APA, 2013, p.223) nos casos de ansiedade e estes episódios estão presentes de formas semelhantes na forma como os personagens exprimem os seus medos. Cada personagem apresenta diferenças e semelhanças na forma como transmite os ataques de pânico, previstos no Manual DSM-5. No filme Dear Evan Hansen, a respiração acelerada, a sudorese e a náusea caracterizam os ataques de pânico, visível através do plano contra picado da figura 6, cuja iluminação destaca a pele suada do personagem. Em Per Lanciarsi Delle Stelle a personagem sente dificuldades em respirar e a sua visão fica turba, o que é representado através das pessoas à sua volta, desfocadas (figura 7), o que indica a sensação de tontura, desmaio ou vertigem indicada no Manual DSM-5. De forma semelhante, em Pink Skies Ahead, a personagem não acredita no seu diagnóstico de ansiedade, pelo motivo de nunca ter experienciado um ataque de pânico, o que esta vê como um sintoma fundamental para o diagnóstico, contudo acaba por acontecer na narrativa. Assim como na narrativa anterior, a personagem fica com a visão desfocada, também representado pelo desfoque do que se encontra à sua volta (figura 8), a personagem experiencia também dificuldades respiratórias, desconforto abdominal e tremores que são expressos através de planos aproximados (figura 9). Para além da já vista dificuldade em respirar, em Beau is Afraid, existe a representação da parestesia (anestesia ou sensação de formigueiro), o corpo do personagem fica paralisado durante um período de tempo e este não se consegue mover, representado pelo medium long shot que permite a visualização da figura do personagem de corpo inteiro, imóvel (figura 10). A água visível no chão indica a passagem do tempo na cena. Por último, em Nevrland, os ataques de pânico são experienciados pelo personagem em dois momentos distintos da narrativa. O primeiro resulta numa má disposição física, com vómitos seguidos de desmaio, dois sintomas que também podem ser encontrados no manual DSM-5, representado pelo medium shot (figura 11) e um outro no qual o personagem alucina com o seu psicoterapeuta, que lhe fala com uma voz assustadora e distorcida, perguntando-lhe qual o seu medo, a resposta do personagem é enrolar-se no chão a chorar (figura 12), sintoma que já não se encontra acurado na representação da ansiedade.
Para além dos ataques de pânico, existem outros sintomas característicos do transtorno de ansiedade generalizada, mas estes não são transparecidos com grande evidência na amostra de filmes analisados. Em Per Lanciarsii Delle Stelle a ansiedade é representada pela baixa autoestima e pensamentos intrusivos, duas características que não constam no manual de diagnóstico. Em Dear Evan Hansen, a postura do personagem transmite a tensão muscular constante, uma característica de diagnóstico, mostrando-o sempre tenso e “acanhado”, como visível na figura 13, cujo enquadramento mostra o personagem de forma inferior em relação às restantes figuras em cena. Também em Pink Skies Ahead (2020) é possível encontrar apenas um sintoma característico da ansiedade, neste caso a preocupação excessiva. Na narrativa de Beau is Afraid, existe a compilação de vários sintomas presentes no Manual DSM-5, como a preocupação excessiva e a respetiva dificuldade em controlar essas preocupações, tensão muscular, fatigabilidade e perturbações no sono. O personagem está em constante estado de alerta, Beau tem medo de tudo, o que será um cenário irreal, pois vê a realidade como se se tratasse de um cenário apocalíptico. Também em Nevrland, os sucessivos episódios de alucinação, que se confundem com a realidade narrativa, serão mais corretamente aplicados a outro tipo de diagnóstico, como a esquizofrenia. Os sucessivos episódios de alucinação contribuem para uma construção disforme da ansiedade, pois as alucinações não são típicas de um diagnóstico de ansiedade.
Quanto à forma de tratamento aplicada para a ansiedade, é encontrado o registo de medicação no caso de Evan, Jakob e Beau e acontece também a psicoterapia, mostrada de duas formas distintas. Primeiramente, em Per Lanciarsi Delle Stelle, a relação entre a personagem e o médico psicoterapeuta é mostrada de forma semelhante, com posturas semelhantes, sentados à mesma distância (figura 14), já no caso de Nevrland a consulta não corre como esperada, o ambiente no interior do consultório é distante e frio, ao permanecer de pé, o profissional de saúde mental exibe uma postura de superioridade, enquanto que o paciente parece vulnerável sob as suas ordens, sentado no centro da sala vazia (figura 15), transmitindo uma ideia desadequada daquilo que deve ser o contexto e a postura entre paciente e psicoterapeuta. A partir do contraste destas duas posições podemos observar que existem realidades diferentes que são transmitidas em relação à figura de profissionais de saúde mental, sendo que em alguns casos se promove uma ideia errónea da relação que o terapeuta deve manter com o sujeito que o procura, que está numa situação de sofrimento e não deve ser tratado como o que acontece com Jakob, em Nevrland.
É também importante falar da sonoridade, uma vez que a música e outros sons são recursos que conferem ritmo e dinamismo à narrativa. Destacam-se barulhos que vão para além da banda sonora, tais como o som da respiração de Jakob nos momentos em que este se encontra ofegante, como durante ou após as alucinações ou o barulho de um zumbido quando Winona experiencia um ataque de pânico. Ainda em Nevrland, destaca-se a inexistência de som, que cria uma atmosfera desconfortável para o espectador, acompanhando a estranheza e o medo que o personagem sente. O som é uma ferramenta particularmente explorada em Beau is Afraid, pois expressa o perigo e o medo que o personagem sente. A narrativa inicia-se com apenas som, o som de uma mulher a gritar e de uma fenda a abrir-se, acabando com uma criança a chorar, o espectador sabe que acabou de presenciar o nascimento do personagem pela sua perspetiva. Quando está em casa, o mundo lá fora parece um lugar perigoso, no silêncio do interior da habitação ouve-se a confusão vinda da rua, a qualquer hora do dia ou da noite ouve-se tiros, sirenes do carro da polícia, pessoas a discutir e gritos. Também a banda sonora nesta narrativa se assemelha há de um filme de terror, criando suspense, como se ao virar de cada esquina alguma coisa horrenda e inesperada fosse acontecer. Todos estes elementos existem na narrativa para salientar a sensação de medo constante que o personagem sente.
O medo transmitido ao espectador através da banda sonora de Beau is Afraid é conjugado com a iluminação. No corredor de acesso à saída do prédio da habitação do personagem, a luz é ténue que escurece as paredes vandalizadas equipara-se ao cenário de um filme de terror (figura 16), como se fosse aquele espaço a barreira que separa Beau do perigo iminente. Nesta representação da ansiedade, particularmente, a narrativa é confusa, representa a viagem do personagem pelos seus medos, contudo não é possível associar a narrativa a algo lógico, pois trata-se de acontecimentos irreais e insólitos. Nevrland é palco de algo semelhante, uma narrativa fria, com uma iluminação low key que transmite sentimentos de estranheza, medo e confusão, cujos elementos visuais auxiliam na transmissão da ideia de alienação e desconexão experienciadas pelo personagem. De forma oposta, os restantes filmes analisados apresentam uma linguagem visual sem grandes complexos, descontraída, com cores claras e uma iluminação high key (figuras 17, 18 e 19).
Discussão dos resultados
Vendo a forma como a ansiedade é representada nos filmes analisados conclui-se que nenhuma das narrativas faz uma representação completa da ansiedade. Os ataques de pânico são representados de forma acurada, de acordo com os critérios de diagnóstico do Manual DSM-5, transmitindo ao espectador a experiência daquilo que são os ataques de pânico e a dor que pode causar a quem passa por eles, através da utilização de planos que retratam com proximidade os sintomas. Por sua vez, na representação da ansiedade generalizada, não são encontrados muitos elementos que a simbolizem e estes também não são priorizados na narrativa. Existem também representações que em nada se relacionam com a ansiedade, podendo ser associadas a outras psicopatologias, transmitindo deste modo uma imagem disforme da ansiedade,
No que diz respeito à estética cinematográfica utilizada nos filmes analisado, esta está diretamente relacionada com a mensagem transmitida, pois as narrativas com uma pretensão mais cómica apresentam traços mais leves, luminosos e coloridos, e as narrativas mais dramáticas são mostradas com contrastes maiores na iluminação e com tons mais escuros que auxiliam na transmissão dos sentimentos apresentados pelos personagens.
Conclusão
Os filmes correspondestes à amostra, analisados sob a forma como representam a ansiedade apresentam aspetos semelhantes da psicopatologia, mas em abordagens diferentes, o que a maioria das vezes se encontra relacionado com o género cinematográfico no qual estes se enquadram. Os filmes de género drama tendem a construir uma narrativa mais pessimista e low key, de forma oposta, as comédias, são mais otimistas e leves.
Nos cinco filmes analisados, as personagens apresentadas como portadoras da psicopatologia em análise são todas bastante distintas umas das outras, cada uma delas tem a sua forma particular de demonstrar a ansiedade, bem como de lidar com ela. Estas representações vão da mais “soft” até à mais drástica, que acaba por sair dos padrões daquilo que pode ser considerado uma boa representação da ansiedade. Sobressaem os ataques de pânico, um elemento comum em todos os filmes analisados, cujas representações, apesar de serem diferentes, captam os sintomas e a intensidade dos episódios, sempre em conformidade com o manual DSM-5. No que se refere aos sintomas da ansiedade generalizada, estes mostram-se sub-representados nas narrativas, visto que a maioria dos personagens apenas apresentam um sintoma isolado ou até sintomas distorcidos da realidade. São também retratadas várias abordagens no tratamento da ansiedade, desde a medicação à terapia, o que também contribui para um acentuar do estigma, pois se por um lado em Per Lanciarsi Delle Stelle a psicoterapia é mostrada como um espaço de segurança e conforto, no qual a relação entre o paciente e o profissional de saúde é próxima, o contrário acontece em Nevrland que transparece uma relação de superioridade do psicoterapeuta para com o paciente, fazendo com que este se sinta desconfortável e potenciando a sua ansiedade.
As análises destacam a importância estética do cinema, com a iluminação e a sonoridade a serem utilizadas de forma estratégica, transmitindo o estado de espírito dos personagens e ajudando o espectador a relacionar-se com os sentimentos transmitidos. Os planos utilizados também evidenciam aquilo que o realizador pretende destacar em casa cena.
Revisando o enquadramento bibliográfico utilizado, no qual as representações das doenças mentais no cinema são feitas de forma irreal e distorcida, ao responder à pergunta de partida proposta “De que forma é que a ansiedade é representada no cinema?”, a análise da última década mostra que, apesar de algumas distorções, as representações prendem-se com aspetos fidedignos e consciencializados, capazes de mostrar a realidade de pessoas que lidam diariamente com a ansiedade, o que pode levar à consciencialização da população e à empatia.
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