Abstract
This communication proposes an analysis, through the concepts of Alagmatic Images and Narratives (Dowling, 2022), of the creative process of the film prototype-installation, made as an VR FILM, THE WRITING OF THE GOD (2023-24), a free adaptation of the short story of the same name by Jorge Luis Borges and developed through the research-creation methodology (Chapman and Sawchuck 2012) which was the basis for my doctoral thesis entitled “KINE DATA: Data Cinema by Cosmotechnical Images” (2022).
It thus circumscribes the focus of attention and analysis of the process of creation, recreation, and even transcreation, based on Borges’ powerful fictionalization that takes as its inspirational basis the cosmogony of the indigenous peoples, through the creation of the character of Tzinacán, a Mayan priest, in process of brutal clash with the Spanish invader project represented by the historical character of Pedro de Alvarado.
I call alagmatic narratives a new generative-recombinatory relational way to understand and base the ways of writing and creating Interactive films in Virtual Reality, and they can be briefly and initially understood from an “explicit inspiration”:
[...] respectively in the concepts of philosophical fiction and fabulatory epistemology of Vilém Flusser (FELINTO, 2014) and, in the conceptualization of algamatics, as proposed by Gilbert Simondon (2020.a[1958]) as a refinement of the concept of cybernetics (WIENER, 2019[1948]). (Dowling 2022, 26)
Keywords: Alagmatic Narratives, Cosmotechnical Images, VR Film, Borges, Sph[f]e[y]rical Image.
Introdução
A presente comunicação propõe uma análise com a aplicação dos conceitos de Ficções Epistêmicas, Narrativas Alagmáticas e Imagem Cosmotécnica (Dowling, 2022), a partir de processos de criação de ANIMA LATINA, projeto de desenvolvimento de obra seriada ficcional multiplataformas, com especial atenção ao desenvolvimento do protótipo do filme-instalação em Cinema de Realidade Virtual A ESCRITA DO DEUS (2024), livre adaptação do conto homônimo de Jorge Luis Borges, concebido e realizado através da metodologia de pesquisa-criação [research-creation] (Chapman e Sawchuck 2012).
A análise proposta circunscreve assim o foco de atenção ao processo de criação, recriação, e mesmo de uma transcriação, inspirado pela ficcionalização potente de Borges, que toma como base inspiratória por sua vez a cosmogonia dos povos autóctones Maias, na figura da sua criação ficcional de Tzinacán, um mago Maia em processo de brutal embate com o plano estratégico invasor e aniquilador espanhol, representado pelo personagem real e histórico de Pedro de Alvarado.
As narrativas alagmáticas, e suas derivações aqui tratadas como ficções epistêmicas, podem ser inicial e brevemente entendidas segundo a trilha de uma “explícita inspiração”:
[...] respectivamente nos conceitos de ficção filosófica e epistemologia fabulatória de Vilém Flusser (FELINTO, 2014) e, na conceituação de algamática, como proposta por Gilbert Simondon (2020.a[1958]) como um refinamento do conceito de cibernética (WIENER, 2019[1948]). (Dowling 2022, 26)
Ficções epistêmicas podem aqui ser compreendidas como uma apropriação de conceitos, de ideias e mesmo de tramas provenientes de sistemas narrativos que conformam um modo do pensar científico no ocidente moderno e contemporâneo, sendo transladadas para sistemas narrativos ficcionais emergentes, embarcadas em tecnologias de computação digital, com especial foco de atenção aos sistemas de narração ficcional advindos de um Cinema Digitalmente Expandido (Shaw 2005). A ideia que orbita e inspira a criação do conceito é a de operar novas formas ficcionais, ou quiçá, efetivamente, novas ficções, a partir do campo da filosofia das tecnologias e das novas mídias, num movimento recursivo de autorreflexão e autopoiese, onde a filosofia da técnica e das novas tecnologias de um cinema digitalmente expandido lastreiam a ficção que arma as narrativas e sustenta tramas operadas por dispositivos de imersão e interatividade expandidos.
Uma narrativa pode derivar como alagmática quando digitalmente expandida através de recursos de algorítmica operados através de protocolos Inteligência Artificial (IA) em dispositivos de interação digital, respondendo a comandos de entrada e saída de um sistema cibernético, aqui melhor explicitado com base e lastro conceituais partindo do pensamento de Gilbert Simondon:
Aqui bem entenda-se a narrativa alagmática como sistemas de informação constituídos a partir do conceito de entradas e saídas de sinais que modulam os fluxos informacionais, através da individuação de sistemas dinâmicos que respondem a parâmetros variáveis individualizados, prospectando a constituição de processos narrativos transindividuados. (DOWLING, 2022, p. 117)
A Cosmotécnica (Hui 2016) aplicado às imagens técnicas conforma a terceira conceituação aqui proposta para basear as análises orbitando as narrativas de um cinema digitalmente expandido em realidade virtual, pode ser assim sintética e brevemente contado:
A imagem cosmotécnica busca, assim, validar a aplicação de um pensamento não-eurocêntrico e não euro-centrado para imaginar novas formas de querer, conceber e desenvolver as tecnologias audiovisuais excêntricas, literalmente advindas de fora dos centros hegemônicos de produção e difusão do norte-global, leia-se EUA e Europa. E, que proponham desconstruir a noção de filmes exóticos, e as tradicionais narrativas de exotismo de filme etnográfico, para recompor maneiras de ver, ouvir e mostrar mundos excêntricos, periféricos e, por isso, relevantes para pensar novas maneiras de contar o mundo em mundos. (Dowling 2022, 34)
Por fim, demarcando o limite final desse elenco de conceitos teóricos, surge a construção tecnofabulada de uma imagem esfeérica, constituída pelo processamento de dados numéricos e binários em composição e recomposição [ge-stell apud Heidegger] pela câmera cinematográfica, agora uma máquina com processamento computacional em tempo real, buscando o reenquadro quimérico de uma “imagem total em realidade virtual estereoscópica”:
... o conceito de oposição de continuidade, aqui atrelado às imagens de virtual e atual que compõe a integralidade do objeto, no caso, a imagem esfeérica, composta por equirretângulos de enquadramentos contíguos-opostos que criam a imagem orbital-total, via a estereoscopia da Realidade Virtual (RV): “[...] a existência de continuidade entre as duas partes opostas” (Hui 2021, 132)
Rearmando um Cinema Dado a partir de Grafos Maias
A ESCRITA DO DEUS (2024) resulta sendo uam obra audiovisual desenvolvida como processo simultâneo à tese a respeito de que se assoma a presente comunicação, a modos de pesquisa-criação, onde teses acadêmicas: “...normalmente integram um processo criativo, componente estético experimental ou um trabalho artístico como parte integrante do estudo” (Chapman e Sawchuck 2012).
O filme-instalação de cinema de realidade virtual, que é uma adaptação do conto homônimo de Jorge Luis Borges, teve a sua roteirização inicialmente conceituada como interativa (Adams 1994), onde a experiência narrativa é expandida em um sistema de controle de movimentos e seleção de ações e operações durante o processe de visionamento espectatorial, transformando a espectadora em agente de interação (Interagente/Actante\[I/A]) (Dowling 2022).
A trama ficcionada por Borges cria uma história e se derivado relato dramático sobre a tradicional contenda erguida entre a sensorialidade e a inteleção:
...acrescida da função estético-reflexiva da visualidade e da escrita, como a técnica primordial humana ao estabelecer códigos de retenção da memória, tratados como uma codificação primordial e transcendente. (Dowling 2022, 77)
Na trama original, osacerdote de origem Maia-Quiché Tzinacan, é tornado prisioneiro e logo enclausurado em um catre escuro em uma caverna pelos invasores-colonizadores espanhóis. Tal catre pétreo que aprisiona o mago maia recebe luz em apenas um único momento do dia, quando um carcereiro abre um alçapão para alimentar o prisioneiro com restos de comida, e a luz zenital do meio-dia revela que um jaguar divide a cela com o sacerdote, separados apenas por uma rudimentar muralha de pedras com uma janela com barras ao meio.
O conto de Borges de imediato levanta conexões e paralelismos entre a sua alegoria cavernícola e a alegoria platônica, que baseia o pensamento eurocentrado desde o classicismo com a retomada helenística melhor localizadas a partir do renascimento.
Nicolas Emilio Alvaréz destaque tais elementos na obra do escritor argentino:
A correspondência entre a situação precária de Tzinacán e a celebre alegoria da caverna de Platão (República, VII) é demasiado óbvia para que se considere uma coincidência, posto que tanto Tzinacan como os prisioneiros do mito platônico permanecem enclausurados na escuridão e imóveis e somente lhes é dado conhecer o mundo das aparências. Margeando a teoria platônica da anamneses, pela qual a alma, presa no mundo das aparências, relembra a sua origem divina. Tzinacan narra “Uma noite senti que me aproximava a uma lembrança precisa... Horas depois comecei a visitar a recordação: era uma das tradições do deus” (...). O sacerdote manifesta que seu deus deixou escrita no princípio da criação uma fórmula mágica que conjuraria os males que haveriam de sobrevir ao fim dos tempos, e professa duas crenças: “Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que o meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escrita” (597). (Alvarés 1998, 465)
Apresento possíveis conexões aqui levantadas como articulação para a adaptação intersemiótica proposta a partir do escrito de J.L. Borges, revertendo e mesmo subvertendo experimentalmente o cânone da alegoria originária, reforçando um aspecto de fabulação onírica e recursiva, que foi uma das premissas nos modos propostos pela adaptação do conto para um roteiro interativo de Cinema de Realidade Virtual, abrindo assim o campo de uma narrativa alagmática, inaugurando ficções epistêmicas, breve e sinteticamente aqui resumidas como “a aplicação de protocolos de composição ficcional para sistemas narrativos metaestáveis de indeterminação controlada.” (Dowling 2022, 78).
Sobre a Imagem Técnica em busca do Caosmos
A imagem cosmotécnica desperta atenção para a necessidade de pensarmos e incutirmos pontos de reflexão-crítica e responsiva, propondo assim um modo de ação hábil e por isso mesmo responsivo aos processos de novas ontologias instauradas pelas imagens digitais em composições de síntese computacional, que levem em conta a constituição de outras ficções, relacionais e complexas, [vide o conceito de narrativa alagmática como proposta por essa tese], a partir da busca de outras epistemologias e de outros reais, mesmo outras epistemes das ficções. Efetivamente compondo Ficções Epistêmicas. (Dowling 2022, 339)
O pensamento premonitório de Flusser, ao designar uma filosofia da informação e propriamente das mídias, aplica alguns dos modos deleuzianos de uma “reversão do platonismo” para trazer novos sentidos à materialização do visual por mundos ficcionados e codificados através da imagem numérica, que à época de sua escrita poderiam ser vistos como uma alucinação de certo fetiche de tecnofilia, mas que contemporaneamente se trans[des]materializa em metaversos1 como um fenômeno pop:
A questão abrasadora é, portanto, a seguinte: antigamente (desde Platão, ou mesmo antes dele) o que importava era configurar a matéria existente para torná-la visível, mas agora o que está em jogo é preencher com matéria uma torrente de formas que brotam a partir de uma perspectiva teórica e de nossos equipamentos técnicos, com a finalidade de “materializar” essas formas. Antigamente o que estava em causa era a ordenação formal do mundo aparente da matéria, mas agora o que importa é tornar aparente um mundo altamente codificado em números, um mundo de formas que se multiplicam incontrolavelmente. Antes o objetivo era formalizar o mundo existente, hoje o objetivo é realizar as formas projetadas para criar mundos alternativos. Isso é o que se entende por “cultura imaterial”, mas deveria na verdade se chamar “cultura materializadora”. (Flusser 2017, 29, grifo nosso)
O pensamento do autor tcheco, quase adotado brasileiro, faz antever de forma assim muito bem delineada o atual ambiente de saturação e de superação em escala de algumas formas da representação visual material analógica por uma representação “materializadora” do real codificado, com imagens em composição em processamento dinâmico através de códigos binários, conformando espécies de sombras alfanuméricas no campo da era da informação, sombras digitais substituindo as sombras análogas, que antes conformavam em contraste com a luz plasmadora a base da in-formação, propriamente de um de-signar da imagem platônica.
As potencialidades da imagem da caverna são maiores na imagem técnica. Mas, a técnica é neutra. Ela conduz igualmente ao mal e ao bem. Quer dizer, em uma imagem gerada numericamente, a qualidade estética pode ser levada a perfeições até agora impensáveis. Todavia, a imbecilização generalizada pode gerar baixos níveis impensáveis. A técnica é neutra, mas exacerbante (Flusser 2015, 73)
A passagem de Flusser acima destacada arma uma ponte de articulação com a ideia que orbita a Cosmotécnica como proposta por Yuk Hui (2016), quando aponta para uma nova abordagem da moralidade, modulada partindo de um modo de pensar sinocentrado em resposta oposicional ao pensamento eurocentrado, abordando uma pretensa “qualidade estética” em oposição à ideia de uma “imbecilização” a granel a constituir níveis inauditos não pensados e tecnicamente operados.
E a tal conceito derivo em minha tese com o conceito da busca de uma imagem cosmotécnica (2022), para dar vazão e desvelo a imagens de síntese digitalmente expandidas, aqui apresentando como prova de conceito através da realização de um protótipo de filme-instalação de cinema de realidade virtual, A ESCRITA DO DEUS (2024).
O mesmo Vilém Flusser levanta outro aporte visionário e tão premonitório quanto ao tratar do virtual espacializado entendido como uma forma singularizada, sobreposta e discreta de redução das percepções a estímulos, importante circunscrição focal para a semiose analítica de recepção acerca de um cinema digitalmente expandido realizado nos moldes da estereoscopia e difundidos por armações multissensoriais de realidade virtual.
ESPAÇO VIRTUAL
Chegou-se, assim, a uma sobreposição singular. Se eu continuar fragmentando átomos por meio do cálculo, finalmente chegarei a partículas, sendo que não faz mais sentido denominá-las objetivamente. Discutir se um quark é um objeto ou um símbolo do pensamento matemático é má metafísica. Eu fracionei o mundo objetivo de tal forma que o objeto, por assim dizer, escorreu pelos meus dedos. A observação desse não-mais-objeto pelo não-mais-sujeito coloca definitivamente em questão, além disso, a separação entre objeto e sujeito. Posso fragmentar através do cálculo aquilo que considero característico do indivíduo. Através do cálculo, posso fragmentar as percepções reduzindo-as a estímulos. (Flusser 2015, 103)
Crio a partir daí a conceituação transduzida, ao modo dos movimentos pendulares simondonianos, da imagem cosmotécnica, que assim expliquei em minha recente tese de doutoramento:
A imagem cosmotécnica busca, assim, validar a aplicação de um pensamento não-eurocêntrico e não euro-centrado para imaginar novas formas de querer, conceber e desenvolver as tecnologias audiovisuais excêntricas, literalmente advindas de fora dos centros hegemônicos de produção e difusão do norte-global, leia-se EUA e Europa. E, que proponham desconstruir a noção de filmes exóticos, e as tradicionais narrativas de exotismo de filme etnográfico, para recompor maneiras de ver, ouvir e mostrar mundos excêntricos, periféricos e, por isso, relevantes para pensar novas maneiras de contar o mundo em mundos. (Dowling 2022, 34, grifo nosso)
Caverna Ubíquas para Alegorias Imersivas: transbordar a imagem
Os conceitos de unidade oposicional e de continuidade oposicional, como propostas por Yuk Hui (2021), atrelados às imagens de virtual e atual que integram a composição do objeto visual são aqui derivados e complexificados com a ideia da imagem esfeérica, que é formada por equirretângulos sobrepostos de enquadramentos contíguos e opostos, que criam uma imagem orbital-totalizante, através da técnica de processamento e modulação que possibilita a Realidade Virtual (RV) Estereoscópica, literalmente: “[...] a existência de continuidade entre as duas partes opostas” (Hui 2021, 132).
Experimentando uma justaposição composicional a partir do cânone da Caverna como feita alegoria por Platão, mixado com a ideia de Ge-Stell heideggeriana como uma armação[_]enquadramento]_[composição advinda dos riscos inerentes às novas tecnologias do audiovisual digitalizado, provoco com um questionamento: estamos sendo arremessados para uma contemplação imersiva totalizante, estancando as retinas e os tímpanos às sombras/simulacros vistos em oitiva pelas armações e headsets de Realidade Virtual (RV) em alta definição e fidelidade de imagens e sons, e assim constituindo uma experiência audiovisual, posta como vivência imersiva e interativa expandida, destituída de um fundamental distanciamento reflexivo-crítico?
E derivando para uma outra questão “contínua entre duas partes opostas”: é operacional e factível tecnicamente criar um sistema narrativo de imersão expandida num filme de Realidade Virtual como programa pretendendo ser vetor de desalienação2 cinemática tateando por modos aproximados ao distanciamento brechtiano, revertendo a noção de simulacro como dito no âmbito do platonismo?
Sem esboçar resposta às duas demandas teóricas sobre práticas e programas para um cinema estereoscópico e esfeérico, faço um adendo com a oportuna citação do seminal André Bazin em O mito do cinema total, aqui sampleado e remixado como uma espécie de ‘novo mito do cinema digital total’ que acompanha
as tecnologias do audiovisual refundindo o mito primevo, que fala literalmente de ser possível “descer do céu platônico” por meio das artes mecânicas e cinemáticas:
Logo, todos os aperfeiçoamentos acrescentados pelo cinema só podem, paradoxalmente, aproximá-los de suas origens. O cinema ainda não foi inventado! (...) Se o cinema nasceu, isso se deve a convergência da obsessão deles; isto é, de um mito: o do cinema total. (...) Desse modo, o velho mito de Ícaro precisou esperar o motor de explosão para descer do céu platônico. Ele existia, porém, na alma de cada homem desde que contemplou o pássaro. De certo modo, pode-se dizer a mesma coisa do mito do cinema, mas seus avatares até o século XIX tem apenas uma longínqua relação com aquele ao qual hoje em dia participamos, e que foi o promotor do aparecimento das artes mecânicas, características do mundo contemporâneo (Bazin 1991, 31, grifos nossos).
Aqui o conceito brechtiano de desalienação foi posto como um dos lastros nos modos de conceber e preparar A ESCRITA DO DEUS (2024) como adaptação literária através de um roteiro audiovisual interativo operado com técnicas de imersão digitalmente expandida, almejando a armação de um sistema narrativo metaestável. É importante destacar uma minúcia de tradução, buscando fugas das habituais traições, sobre o termo fundamental para aprofundar o pensamento de Bertolt Brecht: “A tradução ao inglês deste termo brechtiano, optou por traduzi-lo como alienation effects este termo impreciso sugere o oposto do pretendido pelo autor alemão, na verdade, seria um efeito de desalienação.” (Zuolin 1982, 96, grifo nosso).
Assim o conceito de desalienação foi posto como programa no processo de ideação e escrita do roteiro em cinema de realidade virtual adaptado do conto homônimo de Borges, estabelecendo elementos de operação de estímulos e dispositivos cognitivo-corpóreos que instilassem o estranhamento e distanciamento, propriamente buscando uma desalienação aos modos brechtianos. Esse efeito descrito foi composto através de blocos e fragmentos audiovisuais em registro minimalista, buscando opor à imensidão pétrea do ambiente, com estímulos alternados de estados e graus de relaxamento quase meditativo e atenção focal para criar o filme-instalação de cinema de realidade virtual em tela.
SIM]Fundo[OND]Figura[ON
G. Simondon aporta no segundo capítulo da sua tese secundária de doutoramento, Do modo de existência dos objetos técnicos, derivada da sua obra magna A individuação à luz da noção de forma e de informação, um pensamento original e inspiratório sobre e através dos conceitos de Figura e Fundo, partindo das abordagens propostas anteriormente pelas teorias psicanalíticas da Gestalt, empilhando-as em malabarismos virtuosos com conceitos de Virtual e Real, assim como Presente e Futuro-Devir, e que foram fundamentais para a concepção e execução da minha tese a respeito de uma KINE DATA :_Cinemas_Dados_: Por Imagens Cosmotécnicas.
Efetivamente o programa experimental a que me propus ao implementar processos ficcionais conformando Narrativas e Imagens Alagmáticas, e principalmente a sua base procedimental-conceitual-estrutural assentada a partir de sistemas metaestáveis de indeterminação controlada, passam inevitavelmente pela rede conceitual armada pelos fios de Simondon.
Simondon destaca a ideia de meio associado que é importante para compreender a distinção com o hilomorfismo3 como pensado a partir de Aristóteles, e tal distinção é fundamental para melhor entender a articulação relacional entre objetos técnicos, operando uma ‘causalidade circular’:
... tratando do condicionamento cronológico do futuro pelo presente, e, mais ainda, pelo devir, efetivamente pelo vir a ser, aqui, circunscrito como virtual potência. (Dowling 2022, 83)
Simondon segue as ranhuras de seu pensamento reagrupando as noções de futuro e presente, criando uma analogia respectivamente com as de Fundo e Figura, ao tratar de uma efetiva influência do virtual no real, e que foram lastros fundantes para o processo de realização da pesquisa-criação empreendido em A ESCRITA DO DEUS (2024):
A relação de participação que liga as formas ao fundo é uma relação que transpõe o presente e difunde uma influência do futuro no presente, do virtual no real. É que o fundo é o sistema das virtualidades, dos potenciais, das forças que caminham, enquanto as formas são o sistema da atualidade (Simondon 2020b, 107).
Simondon propõe uma transversão diversa e contígua ao conceito de FIGURA como base apresentada pelos estudos psicológicos da Gestalt, deslocando uma inversão da preponderância e dominância da FIGURA em relação ao FUNDO, complexificando a relação dual-oposicional até então predita pela teoria da Gestal. Simondon opera num conceito similar ao que explicita com a sua teoria da alagmática, para melhor pormenorizar e provocar: “... a relação retroalimentada entre estrutura e operação, e a seu potencial recursão.” (Dowling 2022, 85).
A partir dessa reflexão simondiniana o FUNDO passa a ser a estrutura que acolhe e projeta operações-forma, e assim as define e acolhe de forma enérgica, formando um tal “reservatório comum das tendências das formas” transformados em “sistemas virtuais antecipatórios dos sistemas propriamente explícitos”:
O que escapou à atenção dos psicólogos na análise da imaginação inventiva não foram os esquemas ou as formas, nem mesmo as operações, que são elementos espontaneamente destacados e em relevo, mas o fundo dinâmico sobre o qual esses esquemas se enfrentam e se combinam, e do qual participam. A psicologia da Gestalt, apesar de ver com clareza a função das totalidades, atribui a força à forma. Uma análise mais profunda do processo imaginativo mostraria, sem dúvida, que o que é determinante e desempenha um papel enérgico não são as formas, e sim o que as sustenta, ou seja, o fundo. Perpetuamente marginal em relação à atenção, o fundo encerra os dinamismos e faz existir o sistema das formas; as formas participam não de formas, mas do fundo, que é o sistema de todas as formas, ou melhor, o reservatório comum das tendências das formas, antes mesmo que elas existam separadamente e se constituam como um sistema explícito (Simondon, 2020b, 107, grifo nosso).
Simondon afia a estabelecimento de seu pensar, transduzindo as noções de futuro e presente, respectivamente para as ideias de fundo e figura, operando assim a influência do real no virtual, formando assim os lastros marcos plasmadores definidores para alguns modos de fazer que guiaram as trilhas metodológicas e práticas para o processo de pesquisa-criação do filme-instalação em cinema de realidade virtual A ESCRITA DO DEUS (2024):
A relação de participação que liga as formas ao fundo é uma relação que transpõe o presente e difunde uma influência do futuro no presente, do virtual no real. É que o fundo é o sistema das virtualidades, dos potenciais, das forças que caminham, enquanto as formas são o sistema da atualidade (SIMONDON, 2020b, p. 107, grifo nosso).
Quasi Ensaio Visual: Tzinacan Transduzido na Imagem Pétrea
Reenquadro Final: En[d]Framing
Como as figuras #5 a #13 buscam tornar visível através de quase um ensaio visual e reapresentar cá no papiro-digital, a forma como no filme-instalação de cinema de realidade virtual A ESCRITA DO DEUS (2024) aplicamos conceito de uma ficção constituída como epistémica, ao aplicar à conceituação de sua captação e execução a transdução complexificada a partir da compreensão de Gilbert Simondon, abordando a indeterminação de dominância e retroalimentação relacional nos conceitos de Fundo e Figura, tornando o marco teórico em ação e práxis estética reflexiva para o processo de composição imaginal aqui tratada.
Faz-se importante para as reflexões aqui propostas em síntese estabelecer um ponto de articulação visando melhor sombrear e iluminar a conceituação dos contornos transbordantes de uma imagem que se quer cosmotécnica e se prediz esfeérica. Rearmo o contraponto à ideação da imagem entendida como o oposto à verdade como simulacro a partir de Platão que prega e arma uma suposta retidão do olhar como correção [orthótēs]. Através da tese aqui referenciada proponho:
... algo como uma circularidade do olhar, simulacro liberto em síntese digital, literalmente desenquadrando e reenquadrando, de formas descentradas, a tradicional imagem retangular do cinema monoscópico e bidimensional, transformada a partir de então num movimento de orbitalizar espacialmente as composições de imagens e sons estereoscópicos tridimensionais; imagens cosmotécnicas essas que, logo mais à frente, serão amplificadas como imagens esfeéricas, através de uma remagicização expandida pelas tecnologias digitais imersivas e interativas, adensadas com elementos algorítmicos de inteligência artificial. (Dowling 2022, 350-351)
Notas Finais
1 A respeito de diversas conceituações de metaverso recomenda-se a leitura do recente artigo Definindo “o” Metaverso, escrito por Silvio Meira. Disponível em: https://silvio.meira.com/silvio/definindo-o-metaverso/. Acesso em: 30 maio de 2024.
2 “verfremdungseffekt, o efeito de estranhamento”; (ZUOLIN, 1982, P. 96). Disponível em: https://www.academia.edu/167234/Brecht_e_o_Estranhamento_no_Teatro_Chines_tradu%C3%A7%C3%A3o_de_texto_de_Huang_Zuolin. Acesso em: 30 de maio de 2024.
3 “Hilomorfismo [...] FILOSOFIA doutrina segundo a qual os corpos resultam de dois princípios distintos e complementares: a matéria, princípio indeterminado de que as coisas são feitas, e a forma, princípio determinante da essência particular de cada ser Do grego hýle, «matéria» +morphé, «forma» +-ismo.” Disponível em: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/hilomorfismo. Acesso em 30 de maio de 2024.
Bibliografia
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Filmografia
A Escrita do Deus. 2024. De Carlos Dowling. Brasil: Basilisco Produções. DVD.