Abstract
Nowadays, technology is a great ally in removing barriers and facilitating access for users with specific limitations. For example, a child with motor and communication limitations due to Cerebral Palsy (CP) can use technology to develop and reveal their potential talent for learning and performing music. We want to publish a real case of a child, currently aged 11, called Enrique, with CP, whose limitations do not allow him to play any traditional musical instrument. However, Enrique can access information and learn using Support Products, namely a computer and an interface for access through the eyes. This child wanted to learn to play piano, which was difficult for him in a traditional way. Using the Assistive Technology he already had, and an Accessible Musical Digital Instrument called NetyChord, installed on his computer, it was possible to get him to learn music and play the sounds of the piano instrument together with an orchestra in a public concert. The aim of this work, which we intend to disseminate to the general community by making a documentary, is to demonstrate how it is always possible to eliminate barriers by joining forces and combining research networks between different universities and different countries (Portugal and Italy). This objective also includes the use of technology as a means of facilitating music learning for all
Keywords: Technology, Assistive Technology, Cerebral Palsy, Music Learning, Documentary.
Contextualização
Em Portugal, os cursos do Ensino Artístico Especializado (EAE), são estabelecidos pelo Decreto-Lei (DL.) nº 344/1990, de 3 de novembro. Estes cursos têm como objetivo desenvolver as aptidões dos alunos com vocação artística nos domínios das artes visuais, da dança e/ou da música, com a finalidade de futuramente poderem exercer uma profissão numa área artística. Neste contexto, e apesar da inclusão educativa ser considerada fundamental, tal como está preconizada pela Lei de Bases do Sistema Educativo do ano de 1986 e pelos DL. nº 344/1990 de 2 de novembro, DL. nº 54/2018 e DL. nº 55/2018 ambos do dia 6 de julho, ainda existe pouca preparação para que os cursos de música que oferecem as Escolas Artísticas (EA), consigam promover a frequência de crianças com deficiência motora e de comunicação decorrente de Paralisia Cerebral (PC), nos Programas de Ensino Artístico Especializado da Música (PEAEM).
Um exemplo desta situação aconteceu no mês de março de 2018 quando a encarregada de educação de uma criança com PC, desistiu de matricular o seu filho, num dos PEAEM que oferece uma EA perto de sua residência, por verificar que não estavam reunidas as condições de acesso e frequência necessárias para seu filho de 7 anos (Moreno et al. 2020; Moreno et al. 2021).
Considerando esta situação e tendo como finalidade procurar soluções para a mudança desta realidade, promovendo a inclusão de crianças com PC nos PEAEM, entre os anos de 2018 e 2023 foi desenvolvido na Universidade de Aveiro (UA), um Projeto de Investigação-Ação (IA). Este Projeto de IA deu origem a uma Tese Doutoral intitulada: Inclusão de Crianças com Paralisia Cerebral no Ensino Artístico Especializado da Música: da Investigação à Ação, a qual foi defendida em maio de 2024.
Após receber, por parte da UA, a resolução e aprovação dos aspetos éticos e consentimento informado, necessários para desenvolver o estudo, foi realizada a investigação seguindo um desenho Metodológico com diversas ações, realizadas em três ciclos de Investigação Ação (IA). Estas ações compreenderam: (i) diversas revisões de literatura, com o intuito de saber o que já foi feito nesta temática; (ii) a Caracterização da criança com PC que deu origem ao estudo, para conhecer quais as suas potencialidades, aptidões, necessidades e limitações; (iii) Inquéritos por Entrevista a 14 Encarregados de Educação de crianças com PC e a 14 Profissionais da Música que trabalham com crianças com diversas limitações (cognitivas, motoras, auditivas, visuais e de comunicação) para conhecer as boas práticas e as suas necessidades para o ensino de música; (iv) Inquérito por questionário enviado aos Diretores das EA de Portugal para conhecer o que está a ser feito nas EA em prol da inclusão das crianças com PC; (v) Ações de Sensibilização em diferentes EA de Portugal para os professores de música, promovendo a inclusão de crianças com diferentes limitações; (vi) um Estágio Doutoral na Itália, no qual foi desenvolvido, no Laboratório de Informática Musical da Universidade de Milão (LIM-UM), o Instrumento Musical Digital Acessível à Cabeça (HeaDMI), denominado Netychords (simulando o som de um piano), e por último; (vii) Organização e desenvolvimento de um Programa de Intervenção, acompanhando a frequência efetiva da criança na Escola Artística que está a frequentar. No final, foi avaliado todo o processo, o qual envolveu a promoção do trabalho colaborativo interdisciplinar entre profissionais da saúde, da engenharia, da investigação e da educação (Davanzo et al. 2023; Moreno et al. 2021; Moreno e Maia, 2022; Moreno et al. 2023).
Os documentários evoluíram consideravelmente desde a sua criação no final do século XIX. Os primeiros documentários, como o filme de 1895 “ La sortie de l’usine Lumière à Lyon”1, captavam momentos simples e quotidianos. Na década de 1920, cineastas como Robert Flaherty foram pioneiros no género com obras como “Nanook of the North” 2, misturando histórias factuais com técnicas narrativas. Em meados do século XX, surgiu o cinéma vérité, que enfatizava o realismo e a interação espontânea. Os documentários modernos, alimentados pela tecnologia digital, exploram diversos tópicos e ultrapassam os limites criativos, como se pode ver em obras aclamadas como “The Act of Killing” 3, realçando o poder duradouro do género para informar e inspirar (Nichols 2010; Aufderheide 2007).
Os documentários pela sua natureza não-ficcional desempenham um papel crucial no retrato do quotidiano das pessoas com necessidades especiais, servindo como ferramentas poderosas para aumentar a sensibilização, fomentar a empatia e defender a inclusão. Estes filmes podem oferecer um olhar sem filtros sobre as experiências, os desafios e os triunfos dessas pessoas, proporcionando aos espectadores uma compreensão mais profunda das suas vidas. Na perspetiva deste trabalho uma das principais funções do documentário é educar o público, desmontando ideias erradas e estereótipos. Pretendeu-se retratar esses indivíduos não pelas suas condições, mas pelas suas personalidades únicas, talentos e contributos que podem trazer para a sociedade. Documentários como “Crip Camp” 4 e “Including Samuel” 5, constituíram-se como fontes inspiradoras para o planeamento do documentário a produzir, ao conseguirem trazer à luz do dia as lutas pelos direitos e pela inclusão das pessoas com necessidades especiais, tornando visível o invisível (Brylla e Hughes 2017; Mckay et al. 2019).
Os documentários promovem igualmente a empatia e a compreensão ao mergulharem os espectadores nas realidades das pessoas com necessidades especiais. Colmatando o fosso entre as diferentes experiências vividas possibilitam que o público veja o mundo na perspetiva dos retratados, fomentando um sentimento de ligação e de humanidade partilhada. Este envolvimento emocional pode levar a uma maior aceitação social e ao apoio a políticas e práticas inclusivas. Os filmes documentais também servem como ferramentas de sensibilização dando voz às comunidades marginalizadas, permitindo que as pessoas com necessidades especiais partilhem as suas histórias nos seus próprios termos. Através do poder da narrativa visual, estes filmes podem influenciar a opinião pública e potenciar a mudança social. Estes conteúdos audiovisuais inspiram as pessoas com necessidades especiais e as suas famílias, apresentando modelos positivos e histórias de sucesso. Proporcionam esperança e encorajamento, demonstrando que, apesar dos desafios, é possível ter uma vida plena e com impacto (Tarnovskaya e Bailey 2024; Cole et al. 2009).
As ações realizadas durante este trabalho servem para consciencializar que é possível promover a inclusão de crianças com PC nos PEAEM que oferecem as EA. Através desta Investigação Ação proporcionámos as ferramentas e o suporte necessário para que a criança com PC que deu origem ao nosso estudo – Enrique - conseguisse frequentar e aprovar o primeiro e segundo ano do curso de piano estabelecido pelos PEAEM que oferece a sua EA. De facto, o Enrique finalizou positivamente o ano escolar 2023/2024, foi muito bem avaliado pelos seus professores, participou ativamente e de bom agrado em todas as atividades propostas junto dos seus colegas que frequentam tanto a Escola Regular como a Escola Artística que está a frequentar, obtendo as competências necessárias para poder executar publicamente um concerto para piano e orquestra, utilizando Tecnologias/Produtos de Apoio e o HeaDMI Netychords. Neste contexto, surgiram as seguintes questões: O Enrique conseguiu aprender a tocar piano através do olhar? Como foi o processo de aprendizagem, que alterações/adaptações foram feitas? Que recursos foram necessários para que fosse possível a sua aprendizagem? Quanto tempo foi necessário para conseguir aprender a sua parte da partitura do concerto? Quantos ensaios foram necessários com a orquestra? Perante os resultados obtidos, como podemos replicar este estudo noutros contextos? Para dar resposta a estas questões, passaremos a apresentar os Objetivos estabelecidos e a Metodologia desenvolvida neste estudo.
Objetivos do Estudo
O presente estudo, tem como finalidade divulgar na comunidade, por meio de um conteúdo audiovisual de cariz documental, um caso real de uma criança com 11 anos, chamada Enrique, cujas limitações não lhe permitiam tocar nenhum instrumento musical tradicional, conseguiu aprender a tocar piano e participar num concerto com uma orquestra.
Tanto para comunicar, como para ter acesso à informação e à aprendizagem o Enrique utiliza Produtos de apoio (Computador e Interface de acesso pelo olhar). Com a ajuda de mais um software instalado no seu computador - HeaDMI Netychords - conseguiu aprender a tocar piano numa Escola Artística da sua zona de residência.
Mais especificamente, pretendemos:
- dar a conhecer o processo de aprendizagem da criança, as tecnologias que utiliza, o seu quotidiano, os desafios que teve e tem de superar, as suas problemáticas e as suas vitórias, as adaptações e apoios necessários. Tudo isto com o intuito de sensibilizar a comunidade para possibilitar e incentivar a participação de outros casos semelhantes, em prol da inclusão;
- dar a conhecer as ações realizadas até ao desenvolvimento de um concerto para piano e orquestra, no qual o Enrique tocou como solista, juntamente com a Orquestra de Cordas e Sopros da UA;
- registar o concerto atrás referido, bem como todo o processo que permitiu ao Enrique chegar a esse momento, através da produção de um conteúdo audiovisual de cariz não ficcional.
Metodologia
Para a elaboração do presente trabalho utilizou-se uma metodologia qualitativa com o intuito de descrever e analisar por meio de áudio e imagem, uma série de ações realizadas numa situação específica (Coutinho 2018). Mais especificamente, consideramos que esta investigação assume um caráter com fundamentos etnográficos qualitativo-documentais devido ao facto de estudar e registar atividades peculiares realizadas tanto por uma criança como por um grupo de pessoas à sua volta, os quais desenvolvem atividades culturais específicas (Amado 2017; Coutinho 2018). Também consideramos que este é um estudo de caso interpretativo, de natureza múltipla e caráter fenomenológico (porque estudamos um caso específico) uma vez que a situação apresentada - A tecnologia como facilitadora do acesso à aprendizagem musical de uma criança com paralisia cerebral - é o resultado de acontecimentos que se manifestam e estabelecem através de um tempo-espaço determinado, registados através de uma câmara de vídeo e de como estes aspetos podem ser percebidos localmente e no mundo (Coutinho 2018; Turcato et al. 2019).
Para conseguir isto, integrámos-mos de forma imersiva, no contexto social que pretendíamos estudar, registando as interações realizadas na Comunidade Educativa (professores, assistentes operacionais, encarregados de educação e colegas de turma da criança em estudo), que participam na casa, na Escola regular e na Escola Artística. Fomos identificando tanto as interações como os desafios e barreiras que foram ocorrendo, no ambiente normal que rodeia a criança em estudo. Isto porque, “as interações humanas são permeadas de significados que, por sua vez, fazem sempre parte de um universo cultural (Amado 2017, 150)”.
Neste contexto e para a realização do estudo, os investigadores utilizaram a observação participante flexível, dado que esta “…tem como princípio a necessidade de o pesquisador manter sempre algum grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado (Amado 2017, 155)”. Enquanto observadores, também adotámos uma “técnica baseada na observação, centrada na perspetiva do investigador, em que este observa em direto e presencialmente o fenómeno de estudo” (Coutinho 2018, 370). Optámos, assim, por realizar uma “abordagem flexível que envolve a realização de uma observação naturalista dos diferentes ambientes, utilizando a Observação Participante” (Amado 2017, 150).
Quanto ao Objetivo - realização de um concerto e ao seu registo através de um documentário - “participámos” como “informantes” na investigação que está a ser feita da vida do “observado” (Amado 2017; Coutinho 2018), planeando para a realização deste trabalho de investigação, a organização de diversas atividades, as quais foram registadas (ver Quadro 1), no período compreendido entre novembro de 2023 e julho 2024.
Ação | Atividades | Envolvidos | Datas |
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Reunião de coordenação | Definir o trabalho a realizar o qual inclui: a obra a interpretar, as aulas de piano a realizar, a peça a executar e as técnicas de gravação e filmagem a utilizar | Autores do Estudo, Professora de piano, Compositores, Diretor da Orquestra | Nov 2023 |
Partitura finalizada | Os compositores entregam a partitura solista e as partes de orquestra | Autores do Estudo, Professora de Piano, Compositores | Jan 2024 |
Estudo das partes | O Enrique começa a estudar as suas partes solistas junto a sua professora de piano | Autores do estudo, Professora de Piano, Enrique (solista) | Jan - Jun 2024 |
Ensaio da orquestra com o solista | São realizados de forma noturna, na sala CCCI do DeCA da UA, um total de 3 Ensaios. 1 deles foi de orquestra e os outros dois, incluindo o ensaio geral, foram realizados com o solista | Autores do estudo, Professora de Piano, Enrique e a sua Encarregada de Educação, Músicos e Diretor da Orquestra | Mai 2024 |
Realização e gravação do Concerto | É realizado o concerto para piano e orquestra com respetivas gravações de áudio e vídeo, na sala CCCI do DeCA da UA, Portugal | Autores do estudo, Professora de Piano, Enrique, Músicos e Diretor da Orquestra, Equipa de produção audiovisual | Jun 2024 |
Gravações do quotidiano do Enrique | São realizadas diversas gravações vídeo, para dar a conhecer o dia-a-dia da criança: estas incluem a casa e a sua família; a Escola Regular e a Escola Artística onde o Enrique aprende | Autores do estudo, Professora de Piano, Enrique e a sua Encarregada de Educação, Equipa de produção audiovisual | Jun 2024 |
Resultados | Com as gravações de áudio e imagem obtidas, é organizada a edição final do filme para ser apresentado no Festival de Avanca2024 | Autores do estudo, Equipa de produção audiovisual | Jun - Jul 2024 |
Como podem observar no quadro 1, o concerto em que o Enrique tocou piano como solista utilizando o HeaDMI Netychords, foi realizado de forma pública e gravado em formato vídeo e áudio, no dia 3 de junho de 2024, na sala CCCI, localizada no Departamento de Comunicação e Artes (DeCA) da UA (mais informações ver o seguinte Link: https://www.ua.pt/pt/noticias/1/86741). Também foram realizadas filmagens do quotidiano da vida do Enrique na casa, na Escola Regular e na Escola Artística, as quais foram usadas no documentário produzido.
Finalmente, foi solicitado o respetivo consentimento informado, assim como foram solicitadas as respetivas autorizações de imagem e áudio de todas as pessoas e dos encarregados de educação das crianças que aparecem fotografadas e/ou gravadas nos diferentes contextos apresentados no documentário. Com os objetivos e a Metodologia do estudo já definidos, passaremos a apresentar em detalhe as ações realizadas para este trabalho de investigação. Começaremos por caraterizar a criança que realizou o concerto como solista, o Enrique.
Caraterização da criança
O Enrique apresenta uma Paralisia Cerebral Diplégica com forma Discinética Grave nos membros superiores, o que implica a ocorrência de movimentos involuntários nessas extremidades. Possui também limitações bilaterais com alguma hipotonia, sendo os membros inferiores os mais afetados, apresentando também Epilepsia (Moreno et al. 2020; Moreno et al. 2021). Enrique desloca-se com cadeira de rodas e andarilho. Possui um desenvolvimento cognitivo consideravelmente acima da média. Mas, não consegue falar nem escrever de forma “tradicional”. Interage com os seus pares e comunica tudo o que precisa através de gestos, expressões faciais e utilizando tecnologias/produtos de apoio (Moreno et al. 2020; Moreno et al. 2021).
Como podem observar na Fig.1., Enrique desde o ano de 2021 frequenta o Ensino Básico do regime supletivo, num dos PEAEM que oferece uma EA perto da sua residência. Nesta EA o Enrique frequenta as aulas de “conjunto”, “formação musical” e “instrumento piano”, com o apoio de diversas Pessoas (professores, assistentes operacionais, colegas de turma, família, etc.) e o apoio de Tecnologias/Produtos de Apoio para se movimentar (Andarilho, cadeira de rodas, etc.) e para a Aprendizagem (Computador, Interface pelo olhar, HeaDMI Netychords, etc.) (Davanzo et al. 2023; Moreno et al. 2023).
Passaremos a apresentar as Tecnologias/Produtos de Apoio que podem ser utilizadas na Educação, e de entre as quais, as que são utilizadas pelo Enrique para aprender música, em especial o HeaDMI Netychords.
Tecnologias na Educação
As tecnologias na educação podem ser vistas como um processo de implementação de ferramentas voltadas para a facilitação e a dinamização dos processos de ensino/aprendizagem (Maqableh et al. 2024; Sularso et al. 2024), facilitando a criança de ambientes de aprendizagem mais interativos e dinâmicos e proporcionando oportunidades de aprendizagem inovadoras e acessíveis (Moreno et al. 2023; Sularso et al. 2024). Existe uma grande variedade de tecnologias que podem ser utilizadas actualmente na educação. Alguns exemplos são: os Ambientes Virtuais de Aprendizagem; ou Personalização do Ensino; os quadros interativos, a realidade aumentada, a utilização das TIC (aqui nos referimos à pluralidade de tecnologias que permitem a criação, a captura, o armazenamento, a receção e a transmissão de informações); a utilização de Produtos/Tecnologias de Apoio na educação, etc. (Davanzo et al. 2023; Maqableh et al. 2024; Moreno et al. 2023).
Os Produtos/Tecnologias de apoio constituem dispositivos que permitem compensar ou atenuar as limitações funcionais e restrições ao nível da participação no contexto de vida das pessoas com limitações. No caso do Enrique os produtos de apoio que utiliza (o computador e a interface de acesso pelo olhar) são utilizados principalmente para que ele tenha acesso à comunicação e à aprendizagem.
O Enrique na Escola
O Enrique não consegue cantar, percutir ou soprar algum instrumento musical de “forma tradicional”. Devido a isso, a preparação dos contextos na Escola Artística (EA), foi fundamental para que o Enrique conseguisse frequentar e desenvolver plenamente as suas competências nos PEAEM. A preparação destes contextos incluiu as seguintes ações: sensibilização dos professores para considerar a utilização de HeaDMIs para o ensino da música; promover a existência de apoios (pessoas), promover a realização de adaptações curriculares ou materiais adaptados quando necessário; promover a formação de equipas de trabalho colaborativo, facilitar as acessibilidades nos diferentes contextos (Moreno et al. 2023).
As aulas das disciplinas de Instrumento, Formação Musical e Conjunto, são realizadas de forma continua seguindo um horário de duas horas pedagógicas de 45 minutos cada uma, duas vezes por semana. Como o Enrique gosta do Instrumento Piano, instrumento existente na Oferta Formativa que a EA oferece, foi admitido pelas professoras responsáveis do Departamento de Instrumentos de Teclas, como aluno de piano no ano académico 2022/2023. Para que o Enrique conseguisse cumprir com as exigências dos PEAEM do Instrumento Piano que oferece a EA, foram realizadas as seguintes ações: (i) focar o desenvolvimento da sua Aprendizagem, sem descuidar as outras disciplinas, na utilização do HeaDMI NetyChord (ver Fig. 1); (ii) elaborar alguns dos materiais a utilizar. Por exemplo, partituras adaptadas (ver o seguinte Link: https://enriquenopiano.blogspot.com/); (iii) promover processos de participação e inclusão do Enrique junto aos seus pares e; (iv) acautelar para que estejam todas as condições necessárias para que o Enrique consiga frequentar o ensino da música nessa EA - espaços físicos acessíveis; apoios - pessoas/tecnologias, etc. (Moreno et al. 2023).
Neste caso em particular, devido às limitações motoras e de comunicação que o Enrique possui, para ter acesso à Aprendizagem, ele utiliza diversas Tecnologias/Produtos de Apoio. Mais especificamente ele utiliza: (i) um computador portátil, no qual são inseridos todos os softwares assim como documentos que ele precisa para aprender tanto na escola regular como na EA; (ii) o software Grid3, este software é adequado para utilizadores com limitações Neuromotoras cognitivas ou da Fala. A sua utilização necessita de ser complementada com acessórios adaptados, como são o rato ou neste caso com a utilização de uma ferramenta de acesso pelo olhar; (iii) o PC Eye 5 (Tobii Dynavox) o qual é uma câmara que permite aos utilizadores com limitações Neuromotoras, o acesso ao computador através do olhar. Permite trabalhar com qualquer aplicação que possa ser controlada com se fosse um rato e (iv) O Instrumento Musical Digital Accesivel à cabeça (HeaDMI) Netychords (ver Fig. 1).
A seguir apresentaremos o HeaDMI Netychords e a sua utilização.
O HeaDMI Netychords
Este HeaDMI foi desenvolvido no LIM-UM, pelos Professores Doutores Nicola Davanzo e Federico Avanzini (Davanzo 2022; Davanzo et al. 2023). O Enrique utiliza este HeaDMI para tocar piano devido ao seu layout acessível, completo e diversificado, o qual pode ser empregue através da utilização de Produtos de Apoio como neste caso é o PC Eye 5.
FONTE: Moreno et al. (2023)
Como podem observar na Fig. 2, no layout do Netychords as funções sobrepõem-se na tela do computador segundo a necessidade do utilizador. Neste caso, ao lado esquerdo da Fig. 1, podemos ver a interface do utilizador e ao lado direito podemos ver o seu teclado virtual (bolas a cores com os acordes estabelecidos). Estas bolas a cores representam acordes maiores, menores, aumentados e/ou diminuídos de 2, 3 ou 4 notas, com sons estabelecidos na primeira, segunda ou terceira outava, seguindo as necessidades da peça musical. Assim, o Netychords proporciona: (i) um estilo completo das possibilidades musicais as quais são apresentadas na interface do utilizador; (ii) um painel de configurações, o qual pode ser escondido, para conceder espaço total ao teclado virtual; (iii) uma interface totalmente operável apenas através do rastreio ocular. Os botões são suficientemente grandes e podem ser selecionados através do olhar, e “clicado através de duplo piscar de olhos”; (iv) um sistema de salvamento de definições. As configurações e o último layout personalizado são automaticamente guardados para facilitar a execução da obra artístico-musicais; (v) o HeaDMI contem um sistema de autoteste e um sistema de registo de bugs: por exemplo, quando a aplicação falha, um ficheiro de registo com um relatório de erro é criado e uma janela de diálogo é apresentada, etc. Os Professores Doutores Italianos, informaram-nos estarão sempre a ser feitas pequenas alterações, correções de bugs e novos elementos de forma que o software esteja sempre atualizado (Davanzo et al. 2023; Moreno et al. 2023).
Com a caraterização do Enrique realizada e a apresentação das tecnologias/Produtos de Apoio que ele utiliza regularmente para aprender música, apresentaremos a seguir as ações realizadas para o Desenvolvimento do Concerto: a elaboração da obra musical, a gravação do som do concerto e a gravação das imagens que a seguir serão utilizadas na edição final do filme.
A Partitura
A partitura que o Enrique interpreta no concerto, foi criada por dois compositores, os quais, trabalharam de forma colaborativa e em rede para a sua criação. O compositor iraniano Damoon Keshmirshekan escreveu uma linha melódica denominada “Crescendo mágico” e proporcionou algumas ideias de timbres que o compositor português Bernardo Lima utilizou para realizar a orquestração da peça (ver Fig.3).
FONTE: Compositor Bernardo Lima
Como podem observar na Fig.3., neste documento escrito, denominado partitura, mostra-se como se deve tocar a peça musical. Esta composta por informações importantes para o entendimento da música, como o nome da partitura – Crescendo Mágico – o compasso, a tonalidade, o ritmo, as notas musicais, as dinâmicas, as indicações de tempo e as indicações orquestrais (orquestração), entre outras - na orquestração, cada instrumento musical segue uma linha já estabelecida na partitura geral e cada músico ou grupo de músicos tem a sua própria partitura específica. Este documento permite aos músicos tocar a música com exatidão e precisão, seguindo os tons, ritmos e dinâmicas originalmente planeados, sendo uma forma organizada de apresentar a música de maneira clara e concisa. Na parte de cima desta partitura, é apresentada a parte que o Enrique está a interpretar, utilizando o HeaDMI Netychords. A parte melódica da peça é reforçada pelos outros instrumentos que compõem a obra musical (para mais informações sobre o concerto, ver: https://www.ua.pt/pt/noticias/1/86741). Cabe salientar que o Enrique utiliza o olhar para tocar no HeaDMI Netychords. Quando está a utilizar o HeaDMI, tem que olhar de forma direta para o ecrã, e apenas pode olhar momentaneamente de forma periférica para o Diretor da Orquestra. També não pode olhar em simultâneo para uma partitura pelo que tem de a decorar para a poder executar com o HeaDMI Netychords instalado no seu computador.
A seguir, apresentaremos as ações realizadas durante o desenvolvimento do Concerto: a captação e gravação de áudio e os procedimentos de filmagem.
A Gravação de Áudio
A gravação áudio do concerto foi efetuada utilizando uma técnica estéreo para preservar as características espaciais da sala. Um braço de microfone foi colocado a 2,5 metros de altura e um metro atrás do maestro, segurando um microfone XY com configuração estérea nativa. Os microfones utilizados foram um par de cápsulas cardioides marca DPA Tipo 4023 emparelhadas. Estes microfones estavam presos por uma suspensão de borracha marca DPA para minimizar o ruído espúrio conduzido mecanicamente. A sala de concertos em questão é notória por problemas de Radio Frequency Interference (RFI) e Eletromagnetic Interference (EMI), pelo que, para maximizar o Common-Mode Rejection Ratio (CMRR) da transmissão equilibrada do sinal áudio, foi escolhido um par de cabos Starquad. Depois disso, os sinais de áudio foram gravados digitalmente por um Sound Devices 702T usando o seu pré-amplificador interno e digitalizados para 24 bits e 48 kHz.
A Gravação do Vídeo
Para a produção do documentário que retratasse o percurso do Enrique até ao dia do concerto, foi construído um guião de filmagens que organizou a recolha de imagens em diversos momentos durante o mês de junho de 2024. Desde os ensaios conducentes ao concerto, passando pelo próprio concerto, mas também por momentos que retratassem o quotidiano do Enrique em casa, na escola e no conservatório, sendo este último um espaço fundamental para o seu desenvolvimento enquanto músico com necessidades especiais. Após um período inicial de contacto com o Enrique e restante agregado familiar e professores, iniciou-se o processo de recolha do vídeo. Sendo o documentário centrado no concerto, evento marcante em todo o percurso do Enrique, as restantes gravações destinaram-se essencialmente a recolher conteúdo audiovisual que enquanto b-roll pudesse ilustrar e detalhar o caminho do Enrique até ao concerto. Foi normalmente usada uma ou duas câmeras Mirrorless da marca Sony com sensor em formato APS-C, com objetivas de 16mm, 24mm e 35mm de distância focal. O suporte para este equipamento foi feito, quer em tripé de vídeo, quer através de estabilizadores do tipo Gimbal da marca DJI. O vídeo foi gravado em formato 4K a 25fps com um perfil de imagem do tipo HLG3 para maior flexibilidade na fase de pós-produção.
As captações do áudio nestas gravações de vídeo foram efetuadas por microfones do tipo shotgun da marca Rode, montados diretamente nas câmeras. Esta captação, no momento do concerto foi usada como fonte para a sincronização do áudio descrito na secção anterior do documento. Nos restantes momentos de filmagem estas captações foram usadas como som principal e de ambiente.
Conclusão
Em Portugal, a implementação de processos de Inclusão escolar é uma prioridade do Estado. Neste contexto e parafraseando a legislação atual, como sociedade somos participantes e responsáveis por viabilizar que todos e cada um dos alunos, independentemente da sua situação pessoal e social, encontrem respostas que lhes possibilitem a aquisição de um nível de educação e formação facilitadoras da sua inclusão social.
O documentário produzido é uma história real, fruto de um trabalho de investigação-ação desenvolvido na UA em Portugal. Através deste filme, desejamos mostrar um exemplo vivo a replicar. Mais especificamente, pretendemos demonstrar que é possível que todas as crianças, independentemente da sua limitação, possam aprender tudo a que se proponham, incluindo a música. Neste contexto, o Enrique é um exemplo vivo deste ideal, realizando com cresces junto a Orquestra da UA, um concerto como solista muito melhor do esperado para uma criança da sua idade.
A promoção de Aprendizagens Ativas e a utilização de tecnologias inovadoras, como é o HeaDMI Netychords, que o Enrique utiliza para tocar piano, em conjunto com algumas Tecnologias/Produtos de Apoio que ele regularmente utiliza para ter acesso à Aprendizagem na escola (estamos a falar do computador e a interface de acesso pelo olhar PCEye5), foram importantíssimas para conseguir atingir os objetivos propostos para este estudo.
Esperamos que com o exemplo aqui apresentado, possamos proporcionar algumas pistas para promover a participação pela inclusão de todas as crianças. Convictos de que o problema nunca está na criança, está na nossa capacidade criativa para encontrar soluções adequadas a cada situação, para que não seja preciso falar de inclusão.
Agradecimentos
Trabalho financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito da bolsa de doutoramento com a referência 2020.07331.BD, e por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, IP, no âmbito do projeto UIDB/00194/2020, referente ao CIDTFF - Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores.
Notas Finais
1 https://www.imdb.com/title/tt0000010/
2 https://www.imdb.com/title/tt0013427/
3 https://www.imdb.com/title/tt2375605/
4 https://www.netflix.com/pt-en/title/81001496
5 https://includingsamuel.com/film
Bibliografia
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Davanzo, Nicola. 2022. Accessible Digital Musical Instruments for Quadriplegic Musicians, Dipartimento di informatica “Giovanni Degli Antoni” (Doctoral Thesis), Università degli studi di Milano, Itália. https://hdl.handle.net/2434/920339
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