Abstract
In January 2023, HBO aired the episode “Long, long time”, the third installment of “The Last of Us” series, an adaptation of the video game franchise released in 2013. The episode portrays the romantic relationship between Bill and Frank, characters who receive in-depth narrative arcs in the audiovisual version, causing uneasy tension in the reception by the game players and spectators of the series. The discussion proposed in this work addresses the possibilities of intertextual relationship (Kristeva, 1969; Figueiredo, 2010) between the fictional material constructed in the source text of “The Last of Us” and its audiovisual version (Elliot 2003; Stam 2006; Hutcheon 2012), considering both the specifics of shifts between different media languages and the notion of re-encounter in the reception experience (Soalheiro 2022). Thus, we will cast a gaze on the disputes that arise when the series challenges the expectations of both game fans and series viewers by extending or modifying characters and situations previously solidified in a transmedia cultural text (Szwydky 2020). We question the revisiting of these characters and their narratives in creating a new product that, in another media language, produces a new re-encounter experience in reception, generating an updating experience of the cultural memory of the fictional material.
Keywords: Adaptation, Cultural Memory, Re-encounters.
Introdução
No início de 2023, foi exibida pela HBO a aguardada adaptação do jogo de videogame “The Last of Us” (The Last of Us 2014). De início, a narrativa seriada já parecia um bom objeto para falar de adaptação audiovisual da mídia “jogos eletrônicos” para o cinema ou a televisão, um caminho já trilhado inúmeras vezes, marcado por diversos insucessos. Afinal, boa parte do que faz um jogo interessante não está presente em um filme ou uma série, o que torna a experiência, no mínimo, frustrante. “The Last of Us” parecia estar trazendo uma outra perspectiva. O jogo possui uma narrativa densa, intrincada, com personagens interessantes lutando pela sobrevivência em um mundo devastado por uma ameaça biológica. Cenários deslumbrantes, onde a natureza parece ir absorvendo o concreto das cidades, e monstros assustadores são apenas parte do apelo de “The Last of Us”. Há, principalmente, a história de Joel e Ellie, personagens que acompanhamos ao longo da trama. Mas esse trabalho não é sobre eles. Nem é sobre “The Last of Us” em si, ainda que a história e seus personagens estejam presentes. Este trabalho é sobre encontros e reencontros. Sobre encontros entre personagens ganhando vida em diferentes linguagens midiáticas, encontros entre o ódio e o diferente, encontros entre o amor e o fim do mundo.
Em dez episódios, a série vai percorrer as histórias contadas no primeiro jogo da saga e no prequel “Left Behind”, que foca na história de Ellie algum tempo antes de seu encontro com Joel. Neste trabalho, daremos ênfase ao episódio “Long, Long Time” (Long Long Time 2023), mostrando como ele se desvia do arco narrativo central para dar protagonismo a Bill, personagem importante em determinado momento do jogo. Ao fazer isso, entendemos que a série mexeu com as expectativas do público, tanto aquele que já tinha familiaridade com o jogo, quanto aquele que vinha tendo seu primeiro contato com “The Last of Us” na narrativa seriada.
Nosso ponto de partida neste trabalho é refletir sobre a mobilização gerada a partir das escolhas na representação e na narrativa de um casal homoafetivo na versão adaptada em formato seriado quando relacionada com o texto fonte. Para traçar essa reflexão, vamos trazer um pouco de contexto, primeiramente situando “The Last of Us”, o jogo e seu universo; depois, falando sobre as relações intertextuais da adaptação, suporte teórico que sustenta nossa discussão aqui. Em seguida, traremos reflexões sobre a recepção do episódio “Long, Long Time” e a mobilização gerada a partir dele.
A(s) história(s) the “The Last of Us”
“The Last of Us”, “os últimos de nós” em uma tradução literal, é um jogo de videogame lançado para PlayStation em 2013. Em pouco tempo, o jogo construiu sua reputação no meio gamer e ganhou diversos prêmios de melhor do ano, atestando sua qualidade técnica, personagens bem desenvolvidos, boa jogabilidade e história cativante. “The Last of Us” ganhou prêmios como “jogo do ano” e “melhor jogo” em premiações como D.I.C.E. Awards, Game Critics Awards, SXSW Gaming Awards e, inclusive, de melhor roteiro para videogame do Writers Guild of America, prêmio concedido a Neil Druckmann, diretor do jogo.
No jogo, somos introduzidos a Joel Miller em um dia comum em sua vida, onde tudo irá mudar de forma repentina. O mundo começa a sofrer os efeitos de uma ameaça biológica, surgida espontaneamente na natureza, onde fungos passaram a usar seres humanos como hospedeiros, transformando-os em uma espécie de zumbi com um único objetivo: conseguir outros hospedeiros. No início do jogo, ainda não sabemos nada disso. Conhecemos apenas Joel e Sarah, sua filha. Rapidamente, a cidade onde vivem entra em colapso e, numa fuga desesperada, pai e filha são parados por um agente de segurança que, após um confronto, fere Sarah mortalmente. Passam-se vinte anos e Joel, marcado por esse luto, vivendo em um mundo que precisou se reorganizar política, moral e socialmente para lidar com essa ameaça, recebe a missão de transportar uma adolescente para uma base dos Vagalumes — um grupo de rebeldes que luta para libertar as pessoas dos mandos e desmandos do governo autoritário que centraliza tíquetes de comida e cerca os civis em áreas de quarentena — com a promessa dessa adolescente, Ellie, ser a cura, uma vez que ela parece ser imune ao fungo que assola a população mundial.
A partir de “The Last of Us”, podemos traçar algumas discussões interessantes, como aquelas levantadas por Hughes (2015) e Green (2016). Enquanto Hughes se propõe a analisar uma certa tensão colocada pelo jogo e pela narrativa entre realismo e jogabilidade, Green traça uma discussão sobre a questão da moralidade e do naturalismo no jogo. Como pontua a pesquisadora, “The Last of Us”,
à medida que leva os jogadores por uma série de ambientes e locais, os imerge em uma exploração desconfortável do que significa ser humano. Este jogo é especialmente notável pelo seu tratamento complexo do colapso da cultura humana e da reconstrução da moralidade humana após uma pandemia global (Green 2016, 746).
“The Last of Us” também se coloca como um interessante objeto para analisarmos questões que atravessam a experiência queer. Ambos os artigos citados aqui referem-se especificamente à sequência “The Last of Us Part II”. Dennin e Burton (2023) apontam que narrativa do jogo atua como uma máquina de empatia para se conectar ou sensibilizar uma audiência não queer, fazendo com que os elementos queer do jogo percam o seu poder de potência ou resistência, uma vez que a ênfase está no trauma e na dor das vivências de pessoas queer. Melo e Pimentel (2022) discutem sobre a campanha de ódio contra o jogo, analisando comentários e medindo seu nível de toxicidade em diversos canais na internet, mostrando como é variada as maneiras que as pessoas encontram para construir seu ódio perante o que não os agrada em particular.
Nossa contribuição na discussão é trazer alguns comentários para as questões de representação de vivências e personagens queer na adaptação do jogo para a série de televisão exibida em 2023 e a mobilização gerada pelo episódio “Long, Long Time”, o terceiro da primeira temporada. Para isso, é importante, antes, apontar as diferenças, as estratégias narrativas e a construção de personagens comparando brevemente o capítulo do jogo onde conhecemos Bill e o capítulo da série que conta a história de Bill e Frank.
No jogo, Joel vai com Ellie até a cidade de Bill na esperança de conseguir com ele um carro para que ele possa levá-la adiante em sua missão. Quando chega à cidade, encontra um lugar exageradamente cercado, cheio de armadilhas prontas para assustar, e até mesmo, aniquilar qualquer desavisado, seja ele humano ou monstro. Em determinado momento do capítulo do jogo, Joel e Ellie finalmente encontram Bill, que se prontifica a levar a dupla até o carro mais próximo, atravessando uma série de perigos no caminho. Ao chegar lá, descobrem que o carro está sem bateria e, por isso, precisam ir até um novo local para buscar um veículo que funcione. Ao longo do percurso, há muitas conversas conduzidas pelos personagens do jogo de forma automática, já programada. Não precisamos fazer nada, realmente, para que a conversa aconteça, apenas caminhar, lutar com monstros e desativar armadilhas. Durante essa conversa, temos alguns pedaços de informação, que dão a entender que há uma certa proximidade e confiança entre Joel, Bill e Tess, outra personagem do jogo, que morre mais cedo nessa jornada. Quando, finalmente, o grupo chega a seu destino, Bill, Joel e Ellie encontram um corpo pendurado. Bill parece meio decepcionado, surpreso até, e Joel pergunta quem é. Bill explica, então, que trata-se de Frank, seu parceiro. Um pouco adiante, navegando pelo espaço encontramos um bilhete deixado por Frank para Bill. Ao longo do jogo, temos a possibilidade de ir coletando fragmentos de anotações, com pistas necessárias para o avanço da história, outras opcionais e umas tantas contextuais, ajudando jogadores a se aprofundarem no universo do jogo, no mundo que foi abandonado por diversas pessoas. Essas histórias, ainda que não sejam a de Joel e Ellie, são narrativas em si e, de fragmento em fragmento, fornecem um grande pano de fundo, uma história criada nas margens da história que a sustenta, paranarrativas1 que ampliam e expandem a linha narrativa principal. Em linhas gerais, entende-se que Frank tirou a própria vida e fugiu de Bill após anos de tormento devido a sua escolha de se isolar de tudo e de todos, criando uma fortaleza particular. E é assim que conhecemos Frank. Um corpo, já sem vida, amargurado e rancoroso, que desdenha de todo o esforço de Bill em protegê-los.
Na série, também temos a história de Bill e Frank. Mas não é bem a mesma história. No terceiro episódio, nomeado “Long, Long Time”, seguimos Joel e Ellie chegando ao pedaço de cidade cercado por Bill para ser um porto seguro contra ameaças humanas e não humanas. Mas, ao invés de vermos essa história pelos olhos dos protagonistas da série, somos apresentados com uma outra perspectiva. O episódio muda a estratégia até então para contar a história de Bill, um survivalist que, em determinado momento, decide ajudar Frank, que caiu em uma de suas armadilhas. Bill, oferece um banquete e Frank, companhia. Rapidamente, os personagens veem-se diante de oportunidade de explorarem esse inusitado encontro como um lugar para construir um relacionamento diante do mundo que se desfazia em ruínas. Ao longo de quase uma hora, vemos essa relação se desenvolver, esses personagens se transformarem, tendo como sustentação o afeto e a possibilidade de fazer planos e construir algo íntimo, profundo e só deles. Mesmo no apocalipse. O episódio ainda costura a presença de Joel e Tess, que conhece o casal em uma frequência de rádio, fazendo a ponte com informações que recebemos antes na série. Dado que contradiz, inclusive, as diversas acusações de que esse episódio é apenas um filler desnecessário. Ao final do episódio, mais uma mudança significativa. O fim continua sendo trágico, mas a brutalidade do jogo dá lugar a uma escolha feita pelo casal de chegar ao fim de suas vidas, com toda a dignidade que lhes cabe considerando o contexto. Já em idade avançada, Frank tem um quadro complexo de uma doença debilitante e comunica a Bill o desejo de se despedir da vida de uma forma que não torne o pouco tempo que lhes resta em algo ainda mais sofrido. Bill acata seu desejo e constrói o plano. O casal reafirma os seus votos de afeto e, no momento derradeiro, Bill decide partir junto. E, assim, Bill e Frank se despedem da série, do universo que construíram juntos para passarem vinte longos anos, com momentos felizes e angustiantes, mas repletos de amor, sonhos e desejo. Foi assim também que o produto audiovisual se despediu das expectativas criadas em torno de um personagem importante, ainda que secundário, na adaptação de “The Last of Us” do jogo para a série.
Enquanto no jogo a história de Bill é uma passagem, ainda que obrigatória, para a jornada de Joel e Ellie, na série, a história é de Bill e Frank. É uma história que valoriza a jornada desses personagens, suas descobertas, seus afetos, seus encontros.
Reencontros nos processos de adaptação
Adaptação, em sua definição mais sintética, é entendida como: uma transposição de uma narrativa literária, de um conteúdo ficcional ou de seus elementos, para outra estrutura de mídia e de linguagem. A respeito do cenário contemporâneo das adaptações, Linda Hutcheon comenta que:
As adaptações estão em todos os lugares hoje em dia: nas telas da televisão e do cinema, nos palcos do musical e do teatro dramático, na internet, nos romances e quadrinhos, nos fliperamas e também nos parques temáticos mais próximos de você. Os diversos filmes que abordam o próprio processo de adaptação, tais como Adaptação [Adaptation], de Spike Jonze, ou Perdido em La Mancha [Lost in La Mancha], de Terry Gilliam (ambos de 2002), sugerem certo nível de autoconsciência — e talvez de aceitação — da ubiquidade do fenômeno. (Hutcheon 2013, p. 22)
A nossa análise desse processo adaptativo neste trabalho é impactada pelas mudanças no próprio campo dos estudos de intertextualidade e adaptação na virada do século XXI que acolhem novas perspectivas para os deslizamentos dos conteúdos entre mídia, em uma perspectiva convergente e sinérgica, descolando as análises de lógicas bilaterais e pendulares que mantinham a ênfase em uma comparação entre texto fonte e versão. Nos interessa, aqui, fazer uso de uma abordagem que tensiona essas dimensões e valoriza os processos intertextuais incessantes de citação, assim como os fluxos da matéria ficcional em diferentes produtos em diversos tempos e a trajetória do espectador/consumidor nesse cenário.
Dessa forma, ao falarmos sobre o cenário midiático contemporâneo, que acolhe e estimula esse tipo de produção intertextual, reconhecemos a intensificação de demanda por narrativas que possam acompanhar o fluxo produtivo e ser transpostas para diversos suportes, transversalmente. A dinâmica prevê a criação de franquias que são mobilizadas em diversas versões, diferentes mídias, expandindo universos. Como Simone Murray diz em “A Indústria da Adaptação” (2012) passamos a entender a adaptação não como a transferência pendular de um produto para outro em uma linguagem diferente, mas sim um processo de citação intertextual incessante.
Os diversos espaços de produção estão, paradoxalmente, em busca de apostas certeiras que engajem o público consumidor. O audiovisual encontra em universos ficcionais amplamente reconhecidos o material ideal para sanar a demanda do público pelo familiar e por experiências novas e especializadas.
A agência desse consumidor está manifesta na sua apropriação de cada nova experiência e na consequente composição de um repertório que está atravessado pela relação afetiva que ele dedica às experiências de reencontro com seu objeto de interesse.
Essa é uma discussão que evidencia as possibilidades da relação intertextual (Kristeva 1969; Figueiredo 2010) entre a matéria ficcional construída no texto fonte de “The Last of Us” e a sua versão audiovisual (Elliot 2003; Stam 2006; Hutcheon 2013), considerando tanto as especificidades dos deslizamentos entre diferentes linguagens midiáticas como a noção de reencontro na experiência de recepção (Soalheiro 2022). Dessa forma, laçaremos um olhar sobre as disputas que surgem quando a série tensiona as expectativas dos fãs do jogo e dos espectadores da série ao estender ou modificar personagens e situações já consolidados previamente em um texto-cultural de uma narrativa transmidiática (Szwydky 2020).
Nos indagamos sobre a retomada dos personagens Bill e Frank e das suas narrativas na realização de um novo produto que, em outra linguagem midiática, produz uma nova experiência de encontro na recepção. Entendemos que esta noção de retomada, quando pensada através do prisma da adaptação audiovisual, é um elemento fundamental para elaborarmos a noção de reencontro, pois é no ímpeto deste resgate que nasce a possibilidade de uma experiência atualizadora de memória da matéria ficcional concretizada no reencontro.
O reencontro, para nós, um momento de recepção espectatorial em que estamos diante de uma narrativa que nos é familiar, algo que conhecemos e reconhecemos, seja através das imagens da indústria do audiovisual, das palavras textuais ou da memória cultural da circulação desses textos, e seus elementos estético-narrativos, no cenário midiático contemporâneo. O reencontro, para nós, é um processo de intertextualidade e de memória. É justamente sobre articular o que é característico do familiar em uma nova circunstância de recepção audiovisual, ou ainda, sobre o momento afetivo da espectatorialidade da mais recente versão audiovisual de um texto fonte. É sobre o conforto ansioso de estar novamente em contato com algo que nos gera a sensação de reconhecimento. É um processo de memória semelhante ao que ocorre ao recordarmos: resgatamos algo do passado e articulamos com o estímulo que está presentificado na experiência de recepção. A articulação que acontece através da sobreposição de múltiplas camadas de referências, chamado de “palimpséstico” (Hutcheon 2013), demonstra que as versões adaptativas propõem um encontro entre passado e presente, atualizando a memória cultural, o reposicionando na indústria cultural e, como consequência, incentivando a sua permanência.
As marcas, como resquícios reconhecíveis de tinta em cada camada de pergaminho, são instrumentos de reconhecimento de cada versão, que revelam as suas circunstâncias específicas de enunciação e de recepção. Cada marca se torna parte da memória cultural do texto-fonte, produzida pelas versões audiovisuais e reconhecidas pelo público especializado. Elas são retomadas em intervalos curtos e, quando citadas ou referenciadas em versões futuras, elas são objeto de reconhecimento. A lógica que atravessa a construção da adaptação como um palimpsesto, ou através da perspectiva de uma “intertextualidade palimpséstica,”, conforme formulado por Linda Hutcheon (2013) a partir do uso do conceito de intertextualidade de Kristeva (1969) e de Gerard Genette (1982), prevê que as adaptações são obras que articulam laços intertextuais de diferentes ordens, com diversas obras, de forma extensiva, produzindo experiências multilaminadas de espectatorialidades.
A memória do texto fonte é palimpsesticamente marcada por uma inscrição que é especificamente relacionada com uma nova experiência de produção. Ainda a respeito da abordagem de Hutcheon sobre a natureza palimpseséstica das adaptações, a autora enfatiza o caráter de vínculo com o passado que a adaptação proporciona na recepção, por estabelecer diálogos intertextuais com textos familiares. Ela afirma que: “parte desse diálogo contínuo com o passado, pois é isso que a adaptação significa para os públicos, cria o duplo prazer do palimpsesto: mais de um texto é experienciado — e de forma proposital” (2013, 161). A natureza dupla está em reconhecer, o que é um procedimento de memória, e em assistir, o que é um procedimento de recepção.
Isso é parte do problema de “The Last of Us” e de Bill e Frank: a expectativa do que é familiar assim como o real encontro com a versão. O deslocamento do lugar de protagonismo gera uma marca dessa versão e dessa experiência, tensionando a questão do reencontro gerando uma nova inserção nesse produto.
Tensões mapeadas na adaptação de “The Last of Us”
Diante das mudanças proporcionadas pelo conteúdo audiovisual em relação ao texto-fonte, observamos uma mobilização grande de pessoas que acompanharam a série, muitas das quais, presumidamente, conhecem ou jogaram a história original. Essa mobilização é interessante porque diz muito do afeto que espectadores e fãs depositam nos produtos culturais que consomem, nos contornos discursivos — e também nas vias diretas — que pessoas utilizam para manifestar seu ódio pelo outro, pelo diferente, e por entender que produtos de entretenimento são objetos de disputa de significado, de narrativa e de identidade. Para mapear essa mobilização, recorremos ao IMBb, por entender que lá conseguiríamos algumas pistas sobre as categorias que vêm sendo acionadas para falar desse caso em específico, além de críticas sobre o episódio e entrevistas com figuras-chave envolvidas na produção da série, publicadas em veículos especializados. Diante desses dados aqui, o que se propõe é uma exploração de possibilidades de conversa para tensionar questões relacionadas a processos de adaptação, especialmente quando os produtos adaptados possuem fãs apaixonados e emocionalmente envolvidos com a obra em si.
No IMDb, um dos comentários que nos chamou a atenção foi um que trazia no título a declaração: “Not my Last of us”2. Esta é uma das várias manifestações de pessoas que elogiaram, criticaram e comentaram a autoria. Dentre os que criticaram, é interessante ver como são usuários que se sentem “donos” da história original, como se fosse necessário o aval deles para que a história seja contada de outra forma.
A autoria parece ser uma categoria bem relevante quando se trata de avaliar conteúdos adaptados de outras mídias. Um usuário dá a “Long, Long Time” o título de “o episódio mais parcamente escrito até agora”3. A crítica negativa à autoria implica, por um lado, que algum tipo de contrato implícito foi quebrado nesse processo de adaptação. Por outro, remete também a uma quebra de expectativa ancorada na repetição, como se a única experiência de consumo válida fosse aquela já conhecida previamente. A chance para a surpresa e a descoberta fica reduzida frente ao desconforto do que se apresenta como novo ou repaginado. Como se a mudança, por si, fosse razão suficiente para considerar a experiência “enfadonha”.
Outra categoria relevante é o ódio que aparece mesmo em avaliações positivas do episódio. Aqui, o ódio parece ser uma chave muito poderosa para as pessoas expressarem seu ponto de vista. Seja aqueles que dizem “odiadores vão odiar”, como se ódio não fosse algo a ser combatido, até aquele que não tem o menor pudor em declarar-se homofóbico, mesmo elogiando o episódio, dando a nota 10 de 10: “Eu definitivamente não achei que gostaria de assistir a dois homens esmagando suas barbas juntos por 75 minutos, mas aí está.”4 Outro usuário usa o espaço para denunciar os votos de quem deu nota baixa para o episódio, apontando um aparente ato de homofobia: “sim, as notas baixas são votos homofóbicos”5. Um outro comentário chama a atenção por destacar uma aparente estratégia de empresas como Netflix e HBO em “empurrar” pautas identitárias para o consumo massivo. Por fim, destaca-se também o review bombing como uma estratégia para deslegitimar e abaixar o ranking do episódio e, por que não, da série como um todo, como se o objetivo fosse passar uma mensagem para os criadores da série. Se essa mensagem é “parem de alterar os nossos jogos e histórias originais” ou “parem de contar histórias de gay”, não sabemos. Talvez um pouco disso tudo. A título de comparação, em maio de 2024, a série tem a pontuação 8,7 no IMDb, com boa parte das notas concentradas nas posições entre 8 e 10. O terceiro episódio, objeto de nossa reflexão aqui, tem a nota 8,1, com muitas notas 1, a nota mínima, e muitas notas 10, talvez um esforço contrário em buscar reequilibrar o review bombing, ou ainda uma expressão legítima do público espectador em relação ao episódio.
A prática do review bombing aparece também em outras plataformas, como o Metacritic. A reportagem de Emily Maskell (2023) mostra como “espectadores raivosos e homofóbicos deixaram comentários no Metacritic, alguns, aparentemente, frustrados no desvio do videogame original de 2013 enquanto outros simplesmente foram homofóbicos”. Ao longo do texto, a matéria destaca comentários de usuários definitivamente enraivecidos e, aparentemente, cansados da “agenda LGBT” e enojados com as práticas de “rainbow washing”.
Importante frisar, entretanto, que, apesar desse conjunto de declarações e manifestações em plataformas digitais como o IMDb que indica certo conflito na recepção da obra, especialmente do episódio em questão, a série, no geral, é bem avaliada. Entre as manifestações negativas, barulhentas e indignadas, há um grupo expressivamente maior de apoio e acolhimento positivo do episódio. O objetivo aqui foi lançar luz nos pontos que mostram as tensões na recepção de um produto audiovisual adaptado e, por isso, eles ganharam destaque.
Conclusão
No caso de adaptações como “The Last of Us”, assim como diversas outras franquias, em que o processo de construção de complexa teias intertextuais é uma premissa, os encontros entre o consumidor e as ofertas de entrada não produzem uma experiência linear, dando-se de maneira mais complexa, mais ampla, acolhendo outros textos e outras versões desse mesmo universo.
“The Last of Us”, a série, sem dúvida, produz uma adaptação que oferece a oportunidade ao público de ter um reencontro com um conteúdo afetivo, conhecido e reconhecido, mas, através das escolhas especificas de produção e condução da matéria ficcional nessa versão televisiva, ele oferece um novo ponto de entrada que vai ser fundamental para a fruição desse universo para o futuro. Um ponto de entrada que acolhe Bill, que conta a sua história de amor e de resistência em um mundo destruído, que enfatiza a experiência de uma outra subjetividade.
A investigação que propusemos aqui foi um esforço de dar luz, em primeiro lugar à complexidade do processo adaptativo, especialmente em produtos de ampla circulação. Mostramos também como, no contexto atual, de um consumo bastante público, que reverbera e ecoa pelos canais digitais, há uma multiplicidade de pontos de vista, que mostram essa complexidade também na esfera da recepção, que questiona a autoria, denuncia, critica, acolhe e pontua.
Essa análise não se propõe a ser conclusiva, mas a debater questões sobre recepção, sobre adaptação e, por que não, sobre histórias. As nossas histórias, que consumimos e que vivemos, especialmente em tempos de fim do mundo. Que histórias valem a pena ser contadas quando o mundo acaba? De que forma elas são contadas? E por quem?
Notas finais
1 Sobre paranarrativas e jogos de videogame, Banfi (2022) faz uma análise bastante interessante dando ênfase ao jogo “The Last of Us: Part 2”. Nele, os jogadores têm acesso ao diário da Ellie, onde a personagem tece comentários sobre diversos aspectos da sua vida e o que vem acontecendo ao seu redor. Apesar de fazer parte da história principal, são também narrativas que acontecem à margem dela. Adiante, o artigo recorre a Jenkins, no texto Game Design as Narrative Architecture, que comenta sobre complexidade estrutural das narrativas de videogames, onde os jogos “escondem suas narrativas” dentro “da mise-en-scene esperando para ser descoberta” (Jenkins apud Banfi 2022, online).
2 https://www.imdb.com/review/rw8845690/?ref_=tt_urv
3 https://www.imdb.com/review/rw8837521/?ref_=tt_urv
4 https://www.imdb.com/review/rw8909927/?ref_=tt_urv
5 https://www.imdb.com/review/rw8848920/?ref_=tt_urv
Bibliografia
Banfi, Ryan. 2022. “Ellie’s jornal: para-narratives in The last of Us Part II” in The Internacional Journal of Computer Game Research v. 22, issue 3. https://gamestudies.org/2203/articles/banfi
Dennin, Kimberly. Burton, Adrianna. 2023. “Experiential play as na analyical framework: empathetic and grating queerness in The last of Us Part II” in The International Journal of Computer Game Research v. 23, issue 2. https://gamestudies.org/2302/articles/denninburton
Elliot, Kamilla. 2003. Rethinking the novel/film debate, Cambridge University Press.
Figueiredo, Vera Lúcia Follain de. 2010. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema, Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio.
Green, A. M.. 2016. “The Reconstruction of Morality and the Evolution of Naturalism in The Last of Us” in Games and Culture, 11(7-8): 745-763.
Hughes, Scott S.. 2015. “Get Real: Narrative and Gameplay in the Last of Us.” in Journal of Comparative Research in Anthropology and Sociology, 6: 149-154.
Hutcheon, Linda. 2012. A theory of adaptation, Londres: Routledge.
Kristeva, Julia. 1969. Semeiotiké: recherches pour une sémanalyse.
Maskell, Emily. 2023. HBO’s The Last of Us review-bombed angry homophobes. attitude. https://www.attitude.co.uk/culture/hbos-the-last-of-us-review-bombed-by-angry-homophobes-424066/.
Melo, Philipe. Pimentel, Clara. 2022. “A Campanha de Ódio contra The Last of Us Part II” in Trilha de Cultura — Artigos Completos — Simpósio Brasileiro De Jogos E Entretenimento Digital (SBGAMES). Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação: 428-437.
Stan, Robert. 2006. “Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade” in Ilha do Desterro: Film Beyond Boundaries. Florianópolis: Editora UFSC: 19-53.
Soalheiro, Marcela. 2022. Adaptação literária na cultura da convergência: clássicos e memória cultural. Tese de Doutoramento, PUC-Rio.
Swydky, Lissette Lopez. 2020. Transmedia adaptation in the nineteenth century. Columbus: Ohio State University Press.
Filmografia
Long Long Time (Temporada 1, ep. 3). 2023. The Last of Us [Seriado]. De Peter Hoar. Produção: Craig Spence, Cecil O’Connor. Santa Monica, CA: Naughty Dog.
The Last of Us (jogo eletrônico) c2014.. Manaus, AM: Solutions 2 Go.