Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Case study of a trilogy of cinematic creative processes: “Aunque es de noche”

Estudo de caso de uma trilogia de processos criativos cinematográficos: “Aunque es de noche”

Diogo Simão

CIAC - UAlg, Portugal

Abstract

This work aims to examine the creation processes of the short film “Aunque es de noche”, directed by Diogo Simão. This analysis, developed in the context of the dissertation “Case study of a trilogy of cinematographic creative processes: training methodology and communication model”, is methodologically based on the concepts of genetic criticism, explored by Cecília Almeida Salles and Vicent Colapietro, and auto-ethnography applied to the creation of cinema. This study will start from a framework based on the director’s personal perspective in relation to the sociocultural and historical-geographical reality of the Algarve region (Portugal), with special emphasis on cinema’s development, with the aim of contextualizing different aspects of the creative process that led to the final artistic object: this will deepen the understanding of the specificities of the territory in which it was idealized, built and exhibited. Theoretical-methodological approaches to the creative process from the initial idea to the trilogy’s premiere will be contextualized and interviews with the actors will be cited, in order to cover different perspectives on the creation of the artistic object. Two key axes of the processes will be articulated: on the collaborative dramaturgical work based on co-creation and the overlap of theatrical and cinematographic techniques to create a multidisciplinary experience.

Keywords: Creative processes, cinema, multidisciplinary, genetic criticism, Algarve.

Introdução

“No momento da concretização da obra, o artista estabelece um relacionamento íntimo e tensivo com a matéria escolhida, por meio do qual seu projeto se tornará palpável. Na manipulação e transformação da matéria há mútua incitação. Nessa troca recíproca de influência, artista e matéria vão se conhecendo, reinventam-se e, consequentemente, ampliam seus significados.” (Salles, 2017, p.38)

Este trabalho propõe-se contextualizar o percurso do artista-investigador na área cinematográfica, com o objetivo identificar o contexto no qual se gerou o processo de criação da curta-metragem “Aunque es de noche”. Da trilogia trabalhada no contexto da dissertação, selecionei este filme para analisar porque, não só foi o último a ser produzido, mas é também o que mais gerou material de arquivo: entre imagens, playlists, conversas em chat, textos originais, vídeos dos ensaios e behind-the-scenes. Apresentando uma abordagem metodológica que combina análise de materialidades e traços de criação, relatos pessoais, teoria semiótica e crítica genética, este estudo pretende estabelecer paralelos entre a realidade local e as condições para a criação da curta-metragem em análise.

Este é mais do que a continuação natural da minha jornada profissional: é o resultado de um processo de auto-reflexão sobre as diferentes áreas artísticas, estruturas coletivas e personalidades com que colaborei na última década na região algarvia. O próprio Cinema depende de uma série de relações transdisciplinares entre as suas materialidades e a nossa consciência: ética, social, temporal, espiritual e intelectual. Este é um dos motivos que o torna “a forma de arte do nosso tempo”:

So film does not give an account of events but imagines events and makes them imaginable: it makes history, if always three steps removed from the concrete phenomena. (...) We cannot dismiss the possibility that in the future, existentially significant history will play out before an audience on walls and television screens rather than in time and space. That would be authentic posthistory. That is why film is the “art” of our time and the filmic gesture is that of “new people” with whose being we are not entirely in sympathy.” (Flusser, 2014, p90)

1. Contextualização metodológica

1.1. Crítica genética

Inter-relacionar pessoas, ideias, territórios, referências, documentos, velocidades, coerências e estigmas são alguns dos desafios que todo criador enfrenta. A análise destas interrelações introduz-nos à crítica genética e às suas nuances:

O foco de atenção é, portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal, passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai-lhe oferecendo. Um artefato artístico surge ao longo de um processo complexo de apropriações, transformações e ajustes. O crítico genético procura entrar na complexidade desse processo. A grande questão que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento.” (Salles, 1998, p13)

Para compreender como a curta-metragem em estudo foi influenciada, desde o momento da sua idealização, pelos seus contextos adjacentes, irei basear-me na teoria semiótica de Charles Sanders Pierce e na sua aplicação no campo da crítica genética evidenciada em torno das abordagens teórico-metodológicas, propostas neste campo por Vincent Colapietro. Na conclusão do seu artigo Os locais da criatividade: sujeitos fissurados, práticas entrelaçadas, o professor da Universidade de Rhode Island explica:

Há, no centro da teoria peirceana, uma noção que eu tenho chamado ação implicada (...) . Sob a perspectiva dessa teoria, os locais de criatividade acabam se fazendo presentes nos processos de semiose e também nas condições, contextos e consequências desses processos. Agentes somáticos são agentes inevitavelmente implicados que se formam enquanto lutam para dar formas surpreendentes para materiais recalcitrantes. Eles são participantes implicados em um diálogo contínuo, ocorrendo em múltiplos níveis (...). As vidas de tais agentes são, elas próprias, experimentos: estão em julgamento tanto quanto as tradições, materiais, mídias e técnicas com as quais estão experimentando. Suas vidas palpitam nas possibilidades precárias geradas pela experimentação artística. Vestígios inteligíveis do curso irregular dessa experimentação expandida podem ser cortejados e narrados, descritos e interpretados, mas também teorizados. A poética da criatividade deve envolver nada menos que isso.” (Colapietro, 2016)

Na mesma perspetiva, mas para interrogar o carácter formativo destes processos criativos, a análise será feita à luz de certas dicotomias desconstruídas por Edgar Morin, tais como complexidade / singularidade e atividades auto-observadoras / atividades observadoras:

Devemos compreender que existem condições bio-antropológicas (as aptidões do cérebro - espírito humano), condições socioculturais (a cultura aberta permitindo os diálogos e trocas de ideias) e condições noológicas (as teorias abertas) que permitem “verdadeiras” interrogações, isto é, interrogações fundamentais sobre o mundo, sobre o homem e sobre o próprio conhecimento. Devemos compreender que na busca da verdade, as actividades auto-observadoras devem ser inseparáveis das actividades observadoras, as autocríticas inseparáveis das críticas, os processos reflexivos inseparáveis dos processos de objectificação. Assim, devemos aprender que a busca da verdade necessita a busca e a elaboração de metapontos de vista permitindo a reflexibilidade, contendo sobretudo a integração do observador-conceptor na observação-concepção no contexto mental e cultural que é o seu.” (Morin, 2002, p.36)

Na última frase, Morin descreve precisamente o que o estudo genético de uma criação audiovisual permite: a busca da verdade artística e humana a partir de um ponto de vista que ultrapassa a individualidade. Para iniciar o estudo, é necessário criar um registo de relatos dos processos criativos em análise, segundo uma memória descritiva alicerçada numa pesquisa que incorpora: os próprios filmes, documentos, fotografias, vídeos, áudios, o making-of editado neste Mestrado, assim como entrevistas. Isto vai permitir analisá-los e enquadrá-los nos diferentes contextos pessoais, territoriais, sociais, culturais e demográficos que se cruzaram para os construir.

Na conclusão do seu artigo “Interações do audiovisual e processos de criação: um campo de experimentação”, Wagner Miranda Dias e Cecilia Almeida Salles corroboram esta perspetiva analítica:

(...) as interações com o audiovisual geram um vasto campo de experimentação, pois envolvem explorações de arquivos bem como o apagamento de fronteiras entre o processo de criação e o objeto mostrado publicamente. São questões ligadas aos processos de produção, e não às obras. Defendemos, assim, que são propostas artísticas que precisam do olhar da crítica de processo para que se consiga lançar luzes sobre as suas complexas singularidades.” (Dias & Salles, 2020, p139)

1.2. Autoetnografia

Embora exista um making-of da curta-metragem e muitos tipos de arquivos, os processos criativos não foram adequadamente acompanhados de um “diário de bordo” onde basear a investigação. Nesse sentido, utilizarei a metodologia autoetnográfica, uma variante da etnografia. Adaptado da antropologia, este é um método baseado no contacto intersubjetivo entre o investigador e o objeto de estudo, requerendo uma articulação de dados que permitam analisar os sistemas de significados culturais do grupo sob estudo: neste caso, os dados recolhidos serão apresentados no supracitado dossiê genético. Garance Marechal reflecte sobre as três diferentes formas de como o sujeito (“auto”) se relaciona com a perspetiva “etnográfica” tradicional, complementando o contexto observador-conceptor enunciado por Morin:

Autoethnography broadly operationalises three different conceptions of self: self as representative subject (as a member of a community or group) self as autonomous subject (as itself the object of inquiry, depicted in ‘tales of the self’) and other as autonomous self (the other as both object and subject of inquiry, speaking with their own voice).” (2010, p.1)

Silvio Matheus Alves Santos, no seu artigo “O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspetivas e desafios”, reforça a conceptualização desta metodologia, enunciado um modelo de análise que orientará esta dissertação:

(...) a primeira seria uma orientação metodológica – cuja base é etnográfica e analítica; a segunda, por uma orientação cultural – cuja base é a interpretação: a) dos fatores vividos (a partir da memória), b) do aspecto relacional entre o pesquisador e os sujeitos (e objetos) da pesquisa e c) dos fenômenos sociais investigados; e por último, a orientação do conteúdo cuja base é a autobiografia aliada a um caráter reflexivo. Isso evidencia que a reflexividade assume um papel muito importante no modelo de investigação autoetnográfico, haja vista que a reflexividade impõe a constante conscientização, avaliação e reavaliação feita pelo pesquisador da sua própria contribuição/influência/forma da pesquisa intersubjetiva e os resultados consequentes da sua investigação.” (Alves Santos, 2017, p218)

Hal Foster (1996) preconiza a projeção do trabalho artístico através da antropologia pelo estabelecimento de uma relação autêntica com a cultura de um local, mas também como potenciador de inovações políticas. Joseph Kosuth (1975, p.183) argumenta que o interesse no trabalho de um artista enquanto antropólogo é o mapeamento interno da cultura da sociedade em que se insere, estabelecendo um complemento ao papel do historiador e do crítico de arte. Catherine Russell, numa reflexão em que explora a vertente autoetnográfica do cinema documental, mas cujas inferências se aplicam a qualquer ato filmíco, sugere a “encenação de subjetividade” através deste meio como forma de politizar o discurso cultural:

“Autobiography becomes ethnographic at the point where the film - or videomaker understands his or her personal history to be implicated in larger social formations and historical processes. Identity is no longer a transcendental or essential self that is revealed, but a “staging of subjectivity” – a representation of the self as a performance. In the politicization of the personal, identities are frequently played out among several cultural discourses, be they ethnic, national, sexual, racial, and/or class based.” (1999)

2. Contextualização pessoal

Surge, assim, um conceito de autoria, exatamente nessa interação entre o artista e os outros. É uma autoria distinguível, porém não separável dos diálogos com o outro; não se trata de uma autoria fechada em um sujeito, mas não deixa de haver espaço de distinção. Sob esse ponto de vista, a autoria se estabelece nas relações, ou seja, nas interações que sustentam a rede, que vai se construindo ao longo do processo de criação.” (Salles, 2006, p.161)

Por iniciativa de várias entidades, individuais ou colectivas, existem vários projetos que fomentam a literacia cinematográfica no Algarve. Vou concentrar a minha análise na cidade de Faro, capital algarvia, onde estudei do ensino básico ao superior.

Juventude-Cinema-Escola (JCE) é um programa de literacia fílmica promovido pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), através da sua Direção de Serviços da Região Algarve, em parceria com o Cineclube de Faro (CCF.) Está ativo desde 1998 e atingiu várias gerações de alunos de vários estabelecimentos de ensino algarvios. Segundo dados DGEstE publicados em 2018: “Ao longo dos 20 anos que decorreram sobre a sua (JCE) implementação nas Escolas da região do Algarve, já foram exibidos e explorados pedagogicamente cerca de 1 900 sessões de cinema (70 filmes), abrangendo 46 000 alunos e 1 900 professores de 10 Escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico, 63 Escolas do 2º, 3º Ciclo e Ensino Secundário, 4 Colégios e 1 Escola Profissional, num total de 78 Estabelecimento de Educação e Ensino.” 1

Na escola Dr. Joaquim Magalhães, também em Faro, Cinema é uma das opções artísticas de 3º ciclo. Quando frequentei este estabelecimento, em 2008, a disciplina de Cinema já existia, com aulas dedicadas ora à observação e análise de filmes clássicos, ora à tentativa de replicar as técnicas analisadas. O projeto final era a produção de uma curta-metragem em grupo.

O surgimento pontual de clubes de cinema em várias escolas tem-se mantido, sendo o mais ativo na Escola Secundária João de Deus. Esta escola oferece, atualmente, um curso técnico de multimédia (forte componente audiovisual) e um de fotografia. Na Escola Secundária Tomás Cabreira, onde se fomentam grupos de teatro há vários anos, o curso profissional de “Intérprete Ator & Atriz” apresenta-se como a única opção curricular na área da interpretação, não tendo qualquer sequência ao nível do Ensino Superior na região.

Têm surgido vários grupos e cursos de teatro ao longo dos anos na capital algarvia: não só pelos atores, técnicos e escritores que têm formado, mas pelo pensamento artístico e crítico que desenvolvem na comunidade. Quer em instituições de ensino (o grupo de teatro “Tapete Mágico” da Escola Secundária Pinheiro e Rosa tem 30 anos de atividade), quer fomentados por associações culturais sem fins-lucrativos (destaque para o sucesso dos vários cursos e grupos de teatro comunitário dinamizados pela Janela Aberta Teatro - JAT e do MOCHILA - Festival Internacional de Teatro para Crianças e Jovens, organizado pelo LAMA Teatro).

Com as bases sólidas proporcionadas pelo acesso a uma oferta cinematográfica diversificada na região (segundo dados do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), o distrito de Faro possui 11 Cinemas, 35 ecrãs e 6348 assentos 2, aliado ao trabalho do Cineclube de Faro, do Cineclube de Tavira e de outras mostras de cinema organizadas por instituições públicas), uma educação fílmica robusta ao nível do ensino obrigatório e atividades artísticas de base associativa que o complementam, a análise passa agora para o ensino especializado e superior.

Em 2010 abre a ETIC Algarve em Portimão: escola técnica, vocacionada e equipada para estimular o surgimento de profissionais criativos, incluindo nos audiovisuais. Em 2014 a ETIC mudou-se para Faro, onde mantém a sua atividade até hoje. É a única instituição de ensino no Algarve a formar, anualmente, profissionais do audiovisual. Para além disso, aglomera no seu corpo docente vários profissionais ativos. As curtas-metragens e vídeos promocionais produzidos pelos alunos são, normalmente, disponibilizados online.

Na Universidade do Algarve (UAlg), o Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) tem contribuído de forma inegável para a investigação e literacia mediática na região, no país e além fronteiras, com várias publicações, projectos de investigação e a organização de eventos científicos na área das artes e da comunicação. A licenciatura em Imagem Animada tem, recentemente, produzido alguns trabalhos de qualidade, nomeadamente uma curta-metragem vencedora de um dos Prémios Sophia Estudante em 2022. As atuais licenciaturas em Ciências da Comunicação, Design da Comunicação e Artes Visuais oferecem unidades curriculares que permitem explorar algumas etapas do processo de criação audiovisual. Há vários alunos destes cursos que ocuparam cargos técnicos no sector audiovisual. Contudo, são forçados a adquirir as competências necessárias ou em instituições de ensino especializado fora da UAlg ou através de puro empirismo. Toda a antiga equipa do Shortcutz Faro é exemplo disso. Apresentámos, neste festival, várias curtas-metragens realizadas por alunos da UAlg e da ETIC Algarve: mas em comparação com outras instituições de ensino do país, o número era reduzido e raramente exibidas noutras cidades da rede Shortcutz. A Universidade Lusófona, para solucionar problemas relacionados com as candidaturas a apoios e distribuição, criou a Lusófona Filmes. Este é um modelo que tem funcionado de forma exemplar, com um catálogo muito relevante de curtas-metragens realizadas por estudantes desta universidade, muitos delas premiadas nacional e internacionalmente, através da distribuição facilitada pela Lusófona Filmes. O seu estatuto institucional também permite que as produções estudantis concorram e recebam apoios, inviáveis a grupos informais de alunos em universidades sem este tipo de organização ou suporte. É um dado a salientar que não há registo de produções cinematográficas do ensino especializado ou superior algarvio, apoiadas por organismos de estado.

O desenvolvimento de tecnologias de captação/tratamento de imagens e sons digitais, assim como a preponderância da internet permitiram que o material técnico e a partilha de conhecimento se tornassem muito mais acessíveis nos últimos 30 anos. Isto tem suscitado o surgimento de profissionais tecnicamente qualificados mas, no caso específico do Algarve, sem um conhecimento académico ou mecanismos de financiamento que os permitam aperfeiçoar capacidades relacionadas com a direção de projetos. São técnicos, não chefes de departamento. As decisões artísticas nunca são suas.

Por razões mais pessoais que profissionais, matriculei-me em 2012 na licenciatura de Ciências da Comunicação, na UAlg. Até 2015, ano em que a concluí, trabalhei regularmente como ator, figurante ou assistente em diferentes produções teatrais, mas principalmente audiovisuais: curtas, longas, publicidades e videoclipes. Estagiava na produtora Original Features, que tinha perspetivas de rodar uma curta e uma longa-metragem brevemente. Circulava com um espetáculo de teatro que tinha escrito e encenado em conjunto com dois colegas. Publicava críticas e análises sobre vários aspetos da 7ª arte para o Espalha-Factos e para a revista Parq. E, foi devido a estas atividades extracurriculares, que fui convidado a apresentar e a criar a curadoria da mostra mensal de curtas-metragens Shortcutz Faro. O convite foi feito pelo artista visual Jorge Mestre Simão e pela produtora Patrícia Encarnação. Jorge é um artista multidisciplinar que, em 2015, trabalhava como videógrafo freelancer e colaborava com o CIAC. A Patrícia trabalhava também como jornalista freelancer e, eventualmente, tornar-se-ia produtora das minhas primeiras curtas-metragens. Os meus colegas do Shortcutz Faro são naturais da capital algarvia, licenciaram-se na UAlg, especializaram-se fora da região e regressaram. Durante os 5 anos que se seguiram, foram convidados novos membros para a equipa (nomeadamente jovens universitários) que desejavam explorar os audiovisuais como via profissional. Adriano Viçoso, Dinis Ramos, Elsa Beatriz Carmo, Carlos Costa, Ana Beatriz Lopes e Ana Monteiro (que também dirigia o Shortcutz Figueira da Foz) foram imprescindíveis ao sucesso do Shortcutz Faro.

No ano de 2018 tive uma reunião informal com o videógrafo João Guerra, tendo em vista uma possível futura colaboração. Sugeriu criarmos uma curta-metragem numa semana. Foi uma ideia atrativa pois tinha a intenção de participar na competição 48h Film Project. Criar uma produção nestas condições pareceu-me um teste razoável para olear procedimentos, tendo em vista a competição, assim como adaptar o concurso para o Algarve. A produção inicialmente sugerida nunca se concretizou, mas foi daqui que germinou a ideia do processo de criação da curta-metragem em análise.

Estávamos no quarto ano de atividade no Shortcutz Faro e nunca tínhamos recebido qualquer tipo de apoio ou compensação financeira: a marca Shortcutz é reconhecida internacionalmente, mas cada equipa trabalha independentemente e sem uma entidade legal que as represente. Já tendo passado por vários locais, sem que nenhum se tenha efetivado como uma escolha ideal para as mostras mensais de cinema, em 2018 o Shortcutz Faro precisava de renovação. A equipa concordou que o conceito não resultava, não só por falta de financiamento, mas por falta de um espaço na cidade que conciliasse as condições ideais para ver cinema, num ambiente menos formal, mas respeitador das obras. A inconsistência no número de espetadores era uma prova segura da necessidade de mudança. Sugeri abandonarmos a procura do público informal na cidade, e centrarmos a atenção nos jovens do ensino secundário: um público com um conhecimento cultural mais acessível relativamente a qualquer geração precedente e uma literacia filmíca trabalhada ao longo de vários anos, em projetos como o JCE. Os estabelecimentos de ensino secundário em Faro também possuem auditórios onde não é invulgar organizarem eventos culturais produzidos por alunos e/ou professores, que vão do teatro, há dança e, ainda que raramente, projeções de cinema. O trabalho que fazíamos no festival podia colmatar esta lacuna e proporcionar contacto direto com a realidade cinematográfica portuguesa, inclusivamente a produzida ao nível do ensino superior nacional: inestimável durante os três anos que perfazem o secundário português. Para iniciar a abordagem a este novo público sugeri criarmos um concurso para as escolas em que os alunos teriam de criar equipas e produzir uma curta-metragem numa semana. As regras ditavam, entre outros pormenores, que a equipa técnica, elenco, localizações e equipamento podiam ser preparados antes do início da “semana de produção”.

Foram inicialmente convidados os municípios de Faro, Olhão, Loulé e, no ano seguinte, o da Figueira da Foz. Alunos das escolas secundárias dos municípios disponíveis para se envolver (Faro e Loulé em 2018, e Figueira da Foz em 2019) foram desafiados a criar, em equipas de (no máximo) 5 pessoas, uma curta-metragem numa semana (para além de captarem o seu processo criativo através de pequenos vídeos making-of). Um evento de abertura e outro de encerramento deram palco a artistas musicais locais, que tinham disponibilizado livremente as suas composições originais para serem usadas como banda-sonora das curtas-metragens. Foram mais de 400 jovens inscritos, perto de 50 curtas-metragens criadas e mais de 20 mil euros em prémios entregues através de parcerias com municípios, festivais de cinema e empresas. A organização foi feita através de um grupo informal que, no final de 2019, se constituiria sob o nome de Plutão de Verão - Associação Cultural, da qual sou, atualmente, diretor artístico.

O sucesso deste concurso esteve diretamente relacionado com o convite que me foi endereçado pela Câmara Municipal de Faro para trabalhar na candidatura da cidade a Capital Europeia da Cultura em 2027. Este processo, que se estendeu entre 2019 e 2022, exigiu uma análise profunda da realidade local: dos problemas identificados pelos habitantes e potenciais soluções, da busca pela sua identidade e pelas dificuldades em defini-la. Questões patrimoniais, nomeadamente no que toca à relação dos moradores com a memória e realidade do lugar que partilham, foram abordadas em focus-group abrangentes e em diferentes tipos de sessões de participação pública em todas as freguesias do concelho. No âmbito do Plano Estratégico para a Cultura de Faro, apresentado em julho de 2020, foram auscultadas entidades da região do Algarve cuja atividade se relaciona com diferentes formas de expressão cultural, incluindo Cinema, Audiovisual e Fotografia. Entre elas constam o CIAC, o Loulé Film Office, o CCF, a Algarve Film Commission, a ETIC Algarve e a antiga Direção Regional de Cultura do Algarve. As principais conclusões destas discussões foram sumariadas no documento (p.106-108) e traduzidas visualmente, para criar um registo facilmente compreensível da visão que os “fazedores de cinema” do Algarve tinham sobre a sua própria realidade, no ano de 2020.

No contacto direto com os participantes do ShortWeek, encontrei paralelos com a minha jornada pessoal: conheci jovens com uma enorme vontade de mostrar o que pensavam, sentiam e aspiravam, mas sem incentivos ou estruturas de apoio à criatividade. O seu entendimento natural do meio audiovisual foi notório, com algumas curtas-metragens produzidas numa semana a serem exibidas posteriormente em festivais, nomeadamente no Ymotion3 em Famalicão: um exemplo de boas práticas municipais juvenis, com o cinema como principal motor. Estar no meio da efervescência criativa destes jovens talentos foi inspirador: difícil foi não imaginar narrativas em que os pudesse incluir. A trilogia de curtas-metragens em análise na dissertação surgiu para dar resposta a esta vontade que era partilhada pela restante equipa Shortcutz Faro e, eventualmente, pela equipa Shortcutz Figueira da Foz.

A primeira curta-metragem a ser gravada foi “A internet matou o Chester Bennigton”. Produzida em 2018 com o intuito de incentivar as inscrições na 1ª edição do ShortWeek, foi idealizada, gravada, editada e apresentada em público no espaço de uma semana. Ocupa o primeiro lugar em termos cronológicos na trilogia, embora não tenha sido idealizada com sequelas em mente.

A segunda curta-metragem foi “Sofia e o Gajo do Fogo”, produzida em 2019 com uma equipa técnica e artística maioritariamente composta por participantes do concurso ShortWeek da Figueira da Foz. Totalmente desenvolvida também numa semana, esta era apenas uma história dentro do universo estabelecido na primeira curta-metragem, sem uma linha narrativa estabelecida que as unisse.

A estrutura narrativa foi desenvolvida durante o processo criativo da terceira curta-metragem, “Aunque es de noche”. Devido ao confinamento provocado pela pandemia Covid-19, o modus operandi de idealização e gravação numa semana teve de ser alterado. O trabalho online de construção de personagens e dramaturgia estendeu-se durante vários meses, baseado nos dois filmes já produzidos. Apesar de ter sido a última a ser gravada, em 2020, “Auque es de noche” é a segunda em termos cronológicos, concluindo-se a trilogia com “Sofia e o Gajo do Fogo”. Todas as curtas-metragens da trilogia tiveram-me a mim como realizador e co-argumentista, e Ana Monteiro como diretora de fotografia. As responsabilidades de produção foram também divididas entre os dois. O que se segue são dois eixos de análise sobre a última curta-metragem a ser gravada, focando principalmente os aspetos da dramaturgia e das técnicas teatrais utilizadas para preparação.

3. Dois eixos de análise sobre o processo criativo de “Aunque es de noche”

3.1. A evolução do trabalho dramatúrgico colaborativo

Embora baseadas no mesmo “espaço narrativo”, “A internet matou o Chester Bennington” e “Sofia e o Gajo do Fogo” estavam demasiado afastadas cronológicamente para constituírem uma história linear. Sentia a necessidade de filmar uma nova curta-metragem que servisse de transição temática e estrutural, criando assim uma trilogia.

Em 2019 comecei a colaborar com alguns dos jovens atores do concurso realizado em Faro e Loulé, no âmbito de um projecto fotográfico de Ana Monteiro. A vontade de trabalhar com estes artistas numa esfera cinematográfica materializou-se ao conjugar essa vontade com o décor perfeito: as Minas de Sal Gema de Loulé. A ação que tinha idealizado: vários jovens, todos a viver dentro das Minas. Que conflito podia surgir? Que ideias nos interessavam explorar? Com que jovens podíamos trabalhar? Para partilhar este processo específico comigo, convidei os atores e atrizes Constança de Mello, Daniel de Jesus, Gabriel Riley, Margarida Lucas, Salomé Rita e Tiago Leal. Já todes se conheciam, embora não tivessem a mesma idade, naturalidade ou formação. Também nunca tinham trabalhado todes juntes, ainda que quase todes fossem alunos do curso de “Intérprete Ator & Atriz”, na Escola Secundária Tomás Cabreira. O Daniel é brasileiro e o Gabriel tem ascendência americana. Todos viviam em Faro à excepção do Tiago e da Margarida: o primeiro habitava em Loulé e a segunda em Portimão. As diferentes relações, referências culturais e sociais foram pontos-chave para vários debates, onde o único propósito era definir a posição de cada um deles perante a questão central: como seria se vivessem todes dentro da mina? Gabriel Riley refletiu, em retrospetiva, nos paralelismos entre a realidade vivida pelos jovens e pelas personagens: “Era um bocado reflexo daquele grupo de miúdos, o elenco todo, na “grutazinha” do Algarve a aprender e a tentar fazer tudo, mas “não dá”, não há um pay-off desse trabalho. Não há um clímax, mesmo como na curta. Houve uma conexão clara com a realidade.”

Dramaturgicamente, quis fazer sentido de todo o percurso narrativo que tinha construído na trilogia (e nas suas potenciais sequelas) nomeadamente através da organização estrutural segundo o “Paradigma” do autor Syd Field. O autor norte-americano era um dos “gurus” da escrita de argumento, sendo este seu modelo de criação narrativa muito explorado e estudado no cinema comercial4. Estando interessado em construir uma linha narrativa coerente entre as três curtas-metragens, tentei, em março de 2020, fazer sentido das narrativas que tinha construído e do seu potencial futuro:

Opening Image: Janela Sara, acompanhada
Inciting Incident: Rapto Sofia
Plot Point 1: Sofia sai da gruta
Pinch 1: Sofia mata alguém
Midpoint: Sofia torna-se num vilão
Pinch 2: Gajo do Fogo torna-se num herói
Plot point 2: Conversa de Sara e Sofia
Clímax: Conversa de Sofia e Gajo do Fogo
Last Image: Janela de Sofia, sozinha

Estas questões organizativas e artísticas foram sendo trabalhadas de forma informal até que, por fim, criei uma pasta no Google Drive de nome “Kids in a Cave”, no dia 18 de março de 2020:

18 de março O Presidente da República decreta o estado de emergência por 15 dias, depois de ouvido o Conselho de Estado e de ter obtido o parecer positivo do Governo e da aprovação do decreto pela Assembleia da República. O estado de emergência contempla o confinamento obrigatório e restrições à circulação na via pública. A desobediência é crime e pode levar à prisão.5

O confinamento obrigatório, para além do isolamento social, permitiu uma concentração de esforços criativos: nomeadamente no que respeita a projectos tanto de cinema, como de teatro, que tinha idealizado mas nunca materializado.

Em 2018 participei numa residência artística para argumentistas de nome “Drama.pt”. Uma das temáticas que explorei nessa residência foram as consequências de uma educação completamente alienada da sociedade e dos códigos impostos pela mesma. “O Menino Selvagem6, filme de 1970 de François Truffaut, e “O Enigma de Kaspar Hauser7, realizado por Werner Herzog em 1974, foram as primeiras referências que analisei. Ambos baseados em acontecimentos reais, o conflito nos filmes é despontado quando as personagens titulares são colocadas num contexto social, sem que tenham ferramentas morais, éticas, intelectuais ou comunicacionais para estabelecer relações afectivas. Ambos os realizadores trabalharam com protagonistas sem experiência interpretativa, mas isso não os impediu de os colocar em situações de conflito com o mundo “normal”.

No dia 19 de março criei uma sub-pasta chamada “Moodboard”. Aqui pretendia começar a estabelecer algumas referências visuais, mas também inspirações narrativas e metodológicas, tendo como inspiração, não só filmes e peças, mas os processos criativos que levaram aos objectos artísticos finais.Em abril começaram uma série de reuniões individuais e colectivas online, onde todes trazíamos ideias para cima da mesa. Preparava algumas questões fracturantes antes de cada sessão, instigando a discussão e anotando as perspectivas de cada um em documentos individuais para cada intérprete. Em “A Internet matou o Chester Bennington” escrevi o argumento sem grande input dos atores, dando-lhes liberdade para interpretarem o texto como queriam. Em “Sofia e o Gajo do Fogo” trabalhei o texto com Mauro Hermínio e com a protagonista Sofia Mendes: mas o resto do elenco sentia as suas personagens alheias ao mundo que tinha construído. Aprendi com os erros dos meus procedimentos e este seria o filme em que integraria todes os atores no processo criativo.

Um dos primeiros “trabalhos de casa” que propus foi discutirmos o filme “Lord of the Flies”, realizado por Peter Brook e o livro do qual era adaptado, de William Golding. Daí surgiram comparações com os arquétipos das personagens, começaram a despontar reacções emocionais e, sobretudo, intenções perante as questões éticas. Forjámos memórias de um período “antes de estarem na Mina” que se reflectiam nos seus sonhos, desejos, medos e invejas que tinham em relação aos seus “irmãos”. Debatemos expressões artísticas que lhes podiam interessar desenvolver naquele espaço específico, a que tipo de materiais teriam acesso e que utilidades lhes poderiam atribuir. Estas conversas e escolhas permitiram-nos enquadrar muito melhor a personalidade das personagens que estávamos a desenvolver. Depois cabia-me encontrar o ponto de conflito certo para que todos estes traços de personalidade que desenvolvemos pudessem ser explorados através de ações congruentes e filmáveis.

Outro exercício que pedi aos atores, desta feita individual, foi o de escreverem um perfil da personagem que tínhamos criado em conjunto e associarem-lhe uma obra visual e a letra de uma música. Este foi um dos exercícios mais abstratos mas com os resultados mais ricos em termos de possibilidades interpretativas. As músicas escolhidas por cada um deles foi integrada numa playlist 8 que utilizámos nos ensaios presenciais. A atriz Constança de Melo refletiu sobre como este processo ajudou a construir, não só as personagens, mas uma visão final do filme:

“A forma como escrevíamos, e o facto de termos de revisitar todos os textos e refletir sobre eles, porque estávamos a criar algo novo. Houve um mergulho no que eu era e sentia, e no que tu ou eu poderíamos sentir, permanecendo fechados numa gruta com aquele grupo. Isso levou-nos a questionar muito sobre processos comportamentais, além do trabalho de pesquisa para o guião e até das músicas (...) Por exemplo, apesar de todos partilharmos a mesma visão no final, as nossas reações são distintas, com ‘nuances’ muito diferenciadas. Por exemplo, para mim, a Margarida simboliza leveza. E conseguimos, embora não me recorde se fizemos o mesmo ou começámos de maneiras diferentes, identificar este tipo de elementos uns nos outros, o que foi muito benéfico para essa dinâmica colaborativa e reativa.”

Depois de estabelecidos os pontos de vista das personagens em relação à questão central, continuámos em busca de pontos de conflito durante reuniões de grupo. O final do mês de maio trouxe um desconfinamento repleto de máscaras. Foi também nesta altura que pedi aos intérpretes um monólogo, pequeno, que representasse o trabalho que tínhamos feito em conjunto para criar estas personagens. Também escrevi uma prosa, no qual tentei capturar a essência das personagens e narrativa que tínhamos co-criado. Foi neste texto que se materializou a ideia de duas figuras antagónicas, que prendiam os jovens na gruta, tentando educá-los segundo uma filosofia doentia. Fazendo referência a discursos políticos, obras teatrais e música contemporânea, o texto de nome “Estamos aqui” tinha uma estrutura edificada através das estrofes de “Auld Lang Syne”, melodia com uma relação secular com a 7ª arte.

3.2. Teatro em Cinema

Beatriz Batarda: “O objectivo está estabelecido. O impulso para a história poder-se desenvolver está estabelecido. O trabalho que nós estamos a fazer é trabalhar o antes desse impulso e o antes desse objectivo. Todo o trabalho de enriquecimento ou de camadas do percurso para chegar a esse objectivo é só uma forma de texturar as coisas, mas têm sempre a mesma direcção.” (Canijo, 2011)

Quando obtivemos autorização para gravar nas Minas, a logística da produção ditou que teríamos apenas um dia disponível para o fazer. Era necessário sair do online e trabalhar fisicamente na preparação das filmagens, de forma a produzir o menor número de erros possível em set. Tornou-se óbvio que seria necessário ensaiar o filme antes de o “filmar”. Em 2020 colaborava regularmente com a companhia LAMA Teatro, enquanto realizador e fotógrafo de cena. A companhia, com mais de 10 anos de trabalho, estava prestes a estabelecer a sua primeira sala na cidade de Faro: a LAMA Blackbox. Antes desta abrir “oficialmente” tivemos o privilégio de a poder utilizar como espaço de ensaios durante duas semanas. Foi nesta fase, certamente impelidos pela mudança de espaço e pela necessidade de trabalho físico, que as fronteiras entre o trabalho teatral e cinematográfico se diluíram. É importante, por isso, encontrar uma distinção coerente entre ambos:

In a theater, space is static, that is, the space represented on the stage, as well as the spatial relation of the beholder to the spectacle, is unalterably fixed. The spectator cannot leave his seat, and the setting of the stage cannot change, during one act. (...) But, in return for this restriction, the theater has the advantage that time, the medium of emotion and thought conveyable by speech, is free and independent of anything that may happen in visible space. (...) With the movies the situation is reversed. Here, too, the spectator occupies a fixed seat, but only physically, not as the subject of an aesthetic experience. Aesthetically, he is in permanent motion as his eye identifies itself with the lens of the camera, which permanently shifts in distance and direction. And as movable as the spectator is, as movable is, for the same reason, the space presented to him. Not only bodies move in space, but space itself does, approaching, receding, turning, dissolving and recrystallizing as it appears through the controlled locomotion and focusing of the camera and through the cutting and editing of the various shots - not to mention such special effects as visions, transformations, disappearances, slow-motion and fast-motion shots, reversals and trick films. This opens up a world of possibilities of which the stage can never dream.” (Panofsky, 1936, p18-19)

Durante as duas semanas de ensaios, os exercícios que propus foram inequivocamente inspirados pelos processos criativos, workshops e cursos de teatro em que tinha participado. Desde exercícios de criação de confiança, imaginação do espaço, improviso com objetos que estariam em set e improviso com músicas a determinar o andamento da ação para cada ator. A grande diferença destes ensaios para qualquer outro ensaio de uma peça teatral, foi o trabalho realizado ao nível da gravação audiovisual. Ana Monteiro teve uma presença ativa durante estes ensaios, improvisando os planos que capturava com a sua Sony A7SII, empregando apenas uma lente de 50mm: a mesma combinação que utilizaríamos para gravar a curta-metragem. Havia um trabalho de colaboração constante entre nós, pois para além de dirigir os atores, eu também estava atento ao trabalho de câmara para tentar encontrar momentos nas gravações que pudessem suscitar novas possibilidades. Pelo meio deste trabalho de improviso, fomos ensaiando e gravando a sequência de eventos que estava determinada no argumento, com alterações sugeridas durante os exercícios.

Passámos muito tempo a trabalhar para criar um sentido de família entre todes e um sentimento contrário foi sendo gerado em relação às figuras que (decidimos) tinham “aprisionado” os jovens nas minas. O desejo do grupo era o de trabalhar com Miguel Martins Pessoa e Diana Bernedo, diretores artísticos da companhia JAT, especialistas na arte do mimo, clown, método Suzuki e teatro físico. Já todes tínhamos colaborado com eles em diferentes projectos e sempre se revelaram capazes de despertar nuances absolutamente originais dos artistas com quem trabalham. Os atores aceitaram o convite endereçado por todo o grupo, revelando-se uma peça fulcral durante o processo de ensaios e durante as próprias rodagens. Trazendo propostas da sua própria maquilhagem, guarda-roupa e exercícios espontâneos de improvisação, as suas personagens foram sendo moldadas através de uma oposição orgânica ao que o “grupo original” tinha criado. O ator Tiago Leal elaborou a importância da entrada dos dois experientes intérpretes quando as personagens dos jovens já estavam definidas:

A entrada do Miguel e da Diana no processo criativo é um bom exemplo. Onde nós tínhamos construído algo muito mais emotivo, e de relação uns com os outros, eles colmataram esse passo com técnica. A entrada deles deu um novo olhar, porque todes os conhecíamos, mas eram pessoas estranhas ao processo e ao grupo que se tinha formado. Nós já tínhamos feito a parte da “colagem” e eles perceberam muito bem qual era a função em relação ao que já tínhamos construído. O grupo já tinha construído aquele momento e a entrada deles ainda elevou mais do que tínhamos imaginado. Foi fácil, foi muito watch and learn porque eles são mestres.”

Nunca deixei de desafiar os atores a incorporar as suas próprias ideias no seu trabalho, mesmo sem as discutir comigo previamente. O que surge nesses momentos individuais dentro do trabalho de grupo é, muitas vezes, o âmago de cada personagem. João Canijo, em entrevista sobre o seu mais recente díptico “Mal Viver” e “Viver Mal” fala sobre o processo de ensaios:

“Paulo Portugal: Os ensaios continuam a ser o espaço de trabalho e revelação…

João Canijo: Sim, de onde saem muitas coisas. Depois, ao haver um argumento, em que as falas foram todas escritas, são todas improvisadas e transformam-se em outra coisa. Mas saiu tudo delas. O que interessa não é que elas cheguem a uma verdade; o que interessa é que criem a verdade delas. Depois eu posso manipular essa verdade e fazer diferentes representações dessa verdade, como me apetecer. Das actrizes não das personagens. Das actrizes, não das personagens. É a verdade delas enquanto interpretação daquelas personagens.” (Portugal, 2023)

No final do making-of, dou indicações aos atores para imaginarem uma linha no chão que apenas a sua voz podia atravessar. Do outro lado desta linha estaria “alguém” que colocou a sua paz em causa. Deixei a música “Would?” da banda Alice in Chains a tocar e eles criaram. Decidi terminar esta sequência a preto e branco, sem som, para colocar um ênfase ainda maior nas diferenças entre as suas interpretações e estabelecer uma transição para a cena final do documentário. Nesta, aproximo-me da Carolina, que se distanciou do grupo original e aproximo-a. Os jovens estão espalhados pelo espaço, com o guarda-roupa que utilizariam no filme. O som e a cor regressam, com a música que deu título ao filme a soar na sala. Baseada num poema9 de San Juan de la Cruz do século XVI, esta versão cantada pela artista contemporânea Rosalía10, suscitou uma materialização absoluta das personagens que criámos. Se cada um deles for observado individualmente, percebemos claramente a diferença entre as personalidades que desenvolvemos durante os meses de pandemia e as duas semanas de ensaios. Se observarmos o grupo, há uma beleza intangível na comunhão dos seus movimentos. A maneira como Ana Monteiro capturou este momento, deixando os corpos dos atores e atrizes preencherem o frame, tornou a BlackBox numa versão onírica da Mina que ainda não tínhamos pisado. Vilém Flusser é, novamente, capaz de verbalizar um sentimento que não tive capacidade de articular:

It is banal to regard the cinema as the archetypal womb, that window-less cave that means both birth and death, even though the similarities between cinema and Plato’s cave, with the moving shadows on the wall, are so striking that it’s impossible to read Plato’s myth without thinking of films.” (Flusser, 2014, p86)

Conclusão

Os eixos de análise dos processos criativos cinematográficos neste estudo revelam a complexidade e profundidade das interações sociais, culturais e artísticas que moldam a produção audiovisual na região algarvia. Através da aplicação da crítica genética e da metodologia autoetnográfica, foi possível descrever como os contextos socioculturais influenciam a formação e a evolução da obra em análise. Estas metodologias permitiram um olhar detalhado sobre as dinâmicas de criação, destacando a importância da interação entre criadores e a sua comunidade, e como estas relações contribuem para o desenvolvimento de novas narrativas visuais.

Adicionalmente, este trabalho sublinha a importância de uma abordagem crítica que vai além da análise das obras finais, focando-se também nos processos que as originam. A observação das práticas colaborativas e a reflexão sobre os métodos utilizados para a criação cinematográfica, oferecem uma perspetiva rica e multifacetada, essencial para compreender a singularidade presente no cinema algarvio, como a inevitável ligação umbilical ao teatro. A interseção entre o pessoal e o coletivo na criação de filmes demonstra como a arte pode ser um reflexo poderoso das experiências e contextos vividos pelos seus criadores. Quatro anos depois de gravar esta curta-metragem, nenhum dos jovens que colaborou na sua criação vive no Algarve, mas todos continuam ligados à criação artística: como atores, mas não só. Ao explorar as interações entre os diversos co-criadores envolvidos na dramaturgia, este trabalho não só documenta um segmento vital da cultura audiovisual, mas também inspira futuras investigações sobre a relação entre arte, comunidade e identidade cultural.

Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDP/04019/2020.

Notas finais

1 www.dgeste.mec.pt/?destaque_1=xx-aniversario-do-progr ama-juventude-cinema-escola

2 www.ica-ip.pt/fotos/downloads/ica_2024_catalogoatualiz adoeleve_red__3044265d7853101ad1.pdf

3 www.ymotion.org

4 www.sydfield.com/resources/film-analysis/

5 https://www.dn.pt/vida-e-futuro/cronologia-de-uma-pandemia-em-portugues-os-tres-meses-que-mudaram-o-pais -12259916.html

6 Título original: “L’enfant sauvage”.

7 Título original: “Jeder für sich und Gott gegen alle”, tradução literal: “Cada um por si e Deus contra todos”.

8 www.open.spotify.com/playlist/0cHGI2fgrqhA8uH9CX35O2?si=1ee471192e594b82

9 www.cervantesvirtual.com/obra-visor/la-experiencia-del-deseo-abisal-en-san-juan-de-la-cruz-qu-bien-s-yo-la-fonte-que-mana-y-corre-0/html/021b8cd6-82b2-11df-acc7-002185ce6064_8.html

10 www.youtu.be/6s-MQzPZ6IE

Bibliografia

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