Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

Essay and Narrative in “O Menino e o Mundo”, by Alê Abreu: notes for a pedagogy of cinema

Ensaio e Narrativa em “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu: notas para uma pedagogia do cinema

Helga Caroline Peres

Universidade Estadual Paulista/UNESP-Araraquara

Abstract

The essayistic aspect and the non-univocal narrative are some of the features that stand out when we analyze the Brazilian animation “O Menino e o Mundo” [The Boy and the World]. Produced by Alê Abreu and released in 2013, this movie is part of an authorial tradition that, within the specific niche of animations conceived in Brazil, has been consolidating since the 1970s, and is characterized by a type of almost artisanal production. Our goal in this paper is to discuss the way in which such aspects permeate the structure of the movie and transit through the experience of the audience, promoting the critical formation associated with a kind of aesthetic experience that privileges the imaginative exercise and fantasy. Such formation grows in power when associated with the school environment – the classroom, specifically –, since the movement of collective, cooperative and pedagogically mediated elaboration can expand the experience in question. Taking as a reference the exhibition of “O Menino e o Mundo” for children from a school in the interior of the State of São Paulo – Brazil, we defend the argument that the narrative and formal structure of this movie of Alê Abreu may lead to the reconstruction of the movie in the classroom, bringing a kind of involvement that allows the sharing of emotions and feelings through an active positioning, different from that offered by movies aimed exclusively at thoughtless entertainment.

Keywords: O Menino e o Mundo; cinema at school; essay; pedagogy of cinema.

INTRODUÇÃO

O caráter ensaístico e a narrativa não unívoca são alguns dos aspectos que se sobressaem quando lançamos mão da animação brasileira “O Menino e o Mundo”, lançada no ano de 2013 e produzida pelo cineasta Alê Abreu. Objetivamos, neste trabalho, apresentar uma das discussões que se desdobram de nossa pesquisa de doutoramento1. Dentro deste recorte, discutiremos a forma com que o caráter ensaístico da narrativa construída por Alê Abreu permeia a estrutura do filme e transita pela experiência de seu espectador, promovendo um tipo de formação associada à experiência estética que privilegia o exercício imaginativo e a fantasia.

Tal experiência ganha potência quando associada ao âmbito escolar, da sala de aula, uma vez que o movimento de elaboração coletiva, cooperativa e mediada pedagogicamente pode vir a torná-la profícua quando se leva em consideração o tipo de formação estética promovida pela linguagem cinematográfica. Embora esta formação seja atravessada pela dimensão da contradição – considerando que o cinema é demarcado pela tensão entre o campo da arte e o campo dos bens padronizados e vendáveis produzidos em acordo com a lógica, com a estética e com a ética da indústria cultural (Horkheimer e Adorno, 1985) –, tal formação é significativa quando se leva em conta a urgência de uma aproximação entre os sujeitos e a linguagem cinematográfica que se afaste do modelo da diversão.

Tomando como referência a exibição de “O Menino e o Mundo” para crianças de uma escola do interior do Estado de São Paulo – Brasil, defenderemos o argumento de que a estrutura narrativa e formal da obra de Alê Abreu pode vir a suscitar a reconstrução do filme em sala de aula, ocasionando um tipo de envolvimento que permite a exposição de emoções e sensações por meio de um posicionamento ativo, distinto daquele que é ofertado por produtos fílmicos direcionados exclusivamente ao entretenimento irrefletido.

Desta forma, tornar-se-á possível lançar reflexões sobre os limites e as potencialidades da experiência com este filme no âmbito escolar. Tais reflexões associam-se, no limite, à um tipo de recepção fílmica que é construída a partir das lacunas deixadas entreabertas pela obra de Alê Abreu.

DESENVOLVIMENTO

O(S) MUNDO(S) DO MENINO

“Ele chegava, esteticamente, carregando questões [...]”, afirma Alê Abreu2 sobre o menino que, de uma mera imagem rabiscada em um caderno, tornou-se o protagonista de O menino e o mundo [2013]. Certamente tais interrogações se estendem ao espectador – não apenas em decorrência dos questionamentos trazidos pela criança, mas como parte da própria dinâmica interna que demarca a construção fílmica aqui operada. Com O menino e o mundo [2013] adentramos o universo das animações e, ao mesmo tempo, permanecemos no domínio de uma cinematografia que não se perde do compromisso com a crítica social – que desponta, no filme, de forma enigmática – e com o fazer cinematográfico que coloca em cheque certos protocolos do cinema mainstream.

O menino e o mundo [2013] se enquadra em uma tradição autoral que, dentro do nicho específico das animações no Brasil, vêm se consolidando desde a década de 1970, e se caracteriza por um tipo de produção quase artesanal. Este caráter rudimentar se assemelha, em grande medida, à proposta das produções animadas que demarcaram o Primeiro Cinema – que se desprendiam do compromisso com uma narrativa modulada pela estética naturalista e que, ao contrário de buscar emular a realidade por meio do hiper-realismo, brincavam de forma descompromissada com a ilusão e com a fantasia.

Isso se evidencia, logo de cara, na estética de O menino e o mundo [2013]: diferentemente das produções animadas mainstream, moduladas pela construção de personagens e cenários que pretendem convencer o espectador de sua suposta proximidade daquilo que é real, utilizando, para tanto, os recursos mais modernos disponíveis no mercado – como as tecnologias 3D e 4D –, vemos que Alê Abreu dá forma a uma composição imagética que é construída predominantemente de forma bidimensional, com traços simples, construídas com materiais como giz de cera, lápis de cor, aquarela. O diretor se apropria também das colagens: na medida em que o filme cresce em cenários associados à cidade, tem-se a utilização de materiais como jornais e propagandas televisivas que se misturam aos desenhos animados:

Figura 1: composição e construção imagética em O menino e o mundo [2013].

A combinação e o uso de materiais distintos que rompem com as associações ligadas exclusivamente ao universo onírico das animações dão o tom de uma construção imagética que joga com a tensão entre ficção e realidade. Essa tensão, no filme, não se esgarça: pelo contrário, ela se apresenta ao espectador como um elemento que aponta para questões que o colocam de frente para as camadas de significado presentes na obra em questão. Essa estratégia, apesar de não ser tão incomum no segmento animado, é apropriada, neste caso, como um elemento não normativo. Ao contrário de uma tentativa de se fazer uma suposta novidade modulada pela pseudo-realidade – tal qual ocorre no circuito mainstream –, e que, em realidade, não se distancia dos arquétipos já construídos pelos protocolos fílmicos, entendemos que na animação de Alê Abreu esse recurso torna-se um elemento que aponta para os conteúdos abordados no filme, sendo parte de sua dinâmica intrínseca e não um detalhe acrescentado a posteriori.

A tensão entre ficção e realidade se expressa também na narrativa fílmica. Sua composição foi idealizada e concretizada por Alê Abreu, e não por um grupo de especialistas preocupados em atender os interesses do mercado ou cumprir com o sistema de base. O diretor afirma não ter se pautado em um roteiro protocolar como base para o filme, mas sim na “força das imagens”, na “voz da pintura” e na música – especialmente nas músicas de protesto contra as ditaduras na América Latina nas décadas de 1960 e 1970. Em suas palavras:

A história de O menino e o mundo começa quando eu estava fazendo um anima-doc que se chamava Canto Latino, em 2008. Era um documentário que pretendia, usando do recurso da animação, fazer uma revisão, embarcar numa viagem sobre a formação da América Latina, países que tiveram todas as histórias de infância muito parecidas. A partir dessa pesquisa, fui descobrindo as músicas [...]. Fui me apaixonando pelo Victor Jara, Violeta Parra, Silvio Rodriguez e tudo o que foi esse movimento nascido com esse olhar para a História. Esse personagem do filme era um viajante e ele tinha um diário de viagem. Ele fugia de uma ditadura em um país fictício da América Latina e ia pro Eldorado, esse outro país. Estava no meio desse furacão de pesquisas, viajei toda a América do Sul [...]. Nessas andanças, eu também carregava meus diários de viagem. Num desses diários, terminei encontrando a figura de um menino, desenhada de um jeito muito simples e rabiscado3.

A música como ponto de partida para a construção do enredo, e não o processo inverso através do qual o leitmotiv busca direcionar as emoções do público. Esse processo criativo se evidencia em um roteiro que, diferentemente do usual, se equilibra sobre uma cadência que força o rompimento com o fluxo linear das narrativas sempre idênticas. Quando associadas à “força da imagem”, como colocado pelo diretor – especialmente à figura do menino –, tem-se um tipo de construção que traz as marcas da experiência subjetiva daquele que idealiza a obra. Embora tenhamos ciência de que tal experiência não é parte de um processo que reverbera de modo imediato ao público, entendemos que há aí uma aproximação do caráter antifílmico no que diz respeito à forma de construção da narrativa, que chega ao espectador carregada de uma experiência sui generis.

As ditaduras na América Latina, embora sejam tomadas como ponto de partida, não são referenciadas de modo direto e imediato ao longo do filme – o que não significa que não se possa lê-las nas entrelinhas do enredo. Todavia, não se pode afirmar que se trata de um filme sobre as ditaduras, pois esse indicativo traria uma leitura unívoca de uma narrativa que, ao contrário de fechar-se unicamente nessa questão, se expande em direção a abordagem da exploração do trabalho nos campos e nas fábricas, da fome, do lugar cultural da televisão e das propagandas, da globalização, da vida nos morros e favelas, da destruição ambiental, da tecnologia.

Ao mesmo tempo em que há aí a abordagem de um conteúdo que toca de forma bastante profunda a realidade sob a perspectiva da crítica, tem-se o domínio da ficção e o universo onírico, que se fazem presentes no filme por meio da figura do menino. Acompanhamos o desenvolvimento da trama a partir de suas impressões – impressões que, nem sempre, são organizadas de maneira linear ou precisa. O espectador não é situado em um tempo ou em um espaço. O ponto de vista são as imagens que permeiam a imaginação de uma criança. Assim, a densa crítica social abordada pelo filme se mistura a um universo onírico, às memórias, aos sentimentos – especialmente a saudade do pai, do qual é separado –, às criações que decorrem do olhar que o menino lança sobre o (s) mundo (s) pelo (s) qual (is) transita.

Constrói-se, desse modo, uma narrativa que não é linear, e que se alterna constantemente entre o universo das percepções internas e uma objetividade reificada, e que remete à estética do filme: ao mesmo tempo em que a construção imagética aponta para a realidade, há elementos que se afastam completamente desta e que, em muito, se aproximam da irrealidade e do puro absurdo. O menino anda sobre as nuvens, brinca com as formas, vê os sons sob o formato de bolas coloridas, transita livremente entre diferentes universos; os espaços se transformam constantemente em objetos; os sons se transformam em animais. Essa tensão chega ao seu limite, causando um rompimento com o universo ficcional e animado do menino – rompimento que se expressa de forma literal:

Figura 2: rompimento com o universo animado em O menino e o mundo [2013].

O rompimento com o universo animado acontece por meio de uma transição na qual os desenhos animados são queimados. Por baixo dessa primeira camada, vemos uma série de filmagens que retratam a indústria madeireira, as fábricas e seus dejetos, carros, geleiras, rios, dinheiro. O diretor, aqui, abusa das sobreposições e dos cortes, operando um tipo de montagem descontínua e acelerada. Assume-se, desse modo, que as camadas de significação entrelaçadas no filme vão a fundo à intenção de desmobilizar o espectador: o universo ficcional não seria suficiente em sua crítica? Seria este um enigma sobre a própria construção fílmica?

Também a linguagem, no filme, pode ser entendida como um elemento que se entrelaça à proposta narrativa de Alê Abreu. Diferentemente da fala como um elemento meramente explicativo – tão comumente utilizado como fio condutor da narrativa no cinema mainstream –, tem-se em O menino e o mundo [2013] uma subversão desse mecanismo, na medida em que a comunicação entre os personagens acontece pela língua do “português invertido”. Não é possível compreendê-lo enquanto significante das ações dos personagens, mas sim como um enigma que aponta para o enredo do filme: se tal constructo é fundamentado pela percepção da criança sobre o mundo, não se pode esperar que a linguagem sistematizada do mundo adulto seja compreensível ao menino. Seu olhar centra-se nas ações que ocorrem a sua volta. Esse elemento pode ser entendido como uma abertura para que o público complete a obra a partir da participação, da elaboração da dimensão político-filosófica que se faz presente no filme, mas que não lhes é dada de forma imediata.

O desenvolvimento da narrativa – que tem como ponto de partida a busca do menino por seu pai e seu encontro com o “mundo” – encaminha-se para uma finalização que não traz um sentido de completude, mas que se deixa em aberto. Alê Abreu afirma ter se apoiado em um processo dialético na composição do enredo: “[...] meu processo é muito encima de criar teses e antíteses, que trazem sínteses que vão entrar na roda de novo”. Embora o diretor se refira à dinâmica interna do filme, entendemos que tal dinâmica caminha em direção ao público de maneira bastante peculiar, visto que há a possibilidade de que o espectador se aproprie desse movimento não de forma sintética, mas sim como um processo que, para além da busca por sínteses, é um estímulo ao rompimento com a recepção estático-harmônica.

Em síntese, O menino e o mundo [2013], em nossa leitura, apresenta elementos antifílmicos na medida em que a construção da narrativa não obedece uma linearidade, desmobilizando a experiência de recepção modelar tal qual aquela operada no âmbito da estética naturalista; na medida em que abre-se espaço para os prolongamentos reflexivos do espectador, que é convidado a ser coparticipe do filme; na medida em que apresenta uma plástica e uma estética que, intencionalmente, fogem do modelo operado pelas animações do circuito mainstream; e na medida em que a crítica social se faz decisiva e presente de forma enigmática e não totalitária, afastando o espectador do controle total.

O MENINO E A ESCOLA

Quando associada ao universo da formação escolar sistematizada, a experiência com a linguagem cinematográfica, em geral, e com a obra cinematográfica produzida por Alê Abreu, de modo específico, ganha contornos próprios. Isso se deve, primeiramente, ao fato de que a cultura escolar brasileira, comumente, não abraça cinematografias que se distanciam da cinematografia mainstream, hollywoodiana (Peres, 2016). Sem desconsiderar a ação de projetos que buscam apresentar cinematografias distintas aos estudantes em idade escolar, quando se leva em consideração o cotidiano escolar e os atores envolvidos na cena pedagógica, percebe-se que o espaço destinado à experiência estética e à reflexão em torno daquilo que se assiste é ínfimo.

Como uma contrapartida à este modelo de apropriação dos filmes na escola, a exibição e posterior discussão sobre o filme O Menino e o Mundo com um grupo de estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental – crianças entre 10 e 11 anos de idade – nos apresenta como a dimensão ensaística desta narrativa fílmica pode vir a corroborar para um tipo de experiência com a linguagem cinematográfica que se distancia daquela operada pelos filmes do circuito mainstream, que pouco deixam espaço para que o espectador possa utilizar a fantasia e a imaginação para completar o que lhe é apresentado na tela.

Em linhas gerais, a experiência estética, a fantasia e a imaginação caminham juntas. Para Adorno (1970), a fantasia não implica um desligamento do real existente. Há, sim, um distanciamento; porém, não uma completa cisão. O artista, ao negar de forma determinada a realidade, se utiliza da fantasia na construção de algo novo – um objeto estético que, por seu turno, não se desvincula do real. O apreciador, por sua vez, precisa também recorrer à fantasia para experenciar o objeto artístico que lhe é, até então, desconhecido. Ela é necessária para que se possa olhar além do que está aparente no objeto, o que implica um afastamento, um olhar que vai além do cotidiano e que permite que o objeto lhe apresente mais do que aquilo que sua aparência indica – em outras palavras, é através da fantasia que o apreciador entra em contato com os enigmas que o objeto lhe apresenta.

Uma forma de consciência diferencial, que se articula à memória e escapa ao princípio de realidade demarcado pela reificação e pela racionalidade instrumental: seria a fantasia, neste sentido, uma via de resistência ao que nos é imputado – resistência que, por seu próprio caráter, implica um processo de reflexão e autorreflexão crítica, apto a causar fissuras na educação da sensibilidade promovida no seio da indústria cultural.

Para o cineasta Alexander Kluge (1988), o cinema, em seu caráter contraditório e tensionado, pode vir a promover esse processo educativo e formativo ao atuar justamente na esfera da fantasia e da imaginação. Kluge, ao dar corpo para suas teorizações e produções cinematográficas, demonstra conhecer e negar de forma determinada a lógica da indústria cultural. Com isso, o cineasta aposta na possibilidade de vitalizar e estimular um tipo de recepção do cinema que trabalhe com “[...] todo o potencial imaginativo de uma arte que é também uma indústria” (Corrigan, 1994, p. 92).

O cineasta aponta que a fantasia e a imaginação são atributos pertencentes a todos os indivíduos, sem exceção, e que há formas de fantasia que escapam ao imperialismo da consciência operado pelos filmes produzidos pelo circuito mainstream. Embora reconheça a existência de uma predominância da limitação da imaginação e da repressão da sensibilidade, e que parte da fantasia seja absorvida pela economia do equilíbrio interno necessário à sobrevivência no trabalho ou nas relações pessoais, Kluge aposta em um trabalho de encorajamento e reorientação do potencial imaginativo. A sugestão, aqui, é que a fantasia e a imaginação possam brotar nas lacunas deixadas entreabertas pelos filmes, a partir de um trabalho de colaboração (Kluge, 1988).

Kluge (1988) infere que o cinema, enquanto relação de produção, não depende exclusivamente dos produtores, de maneira particular, e estes não conseguem reinventar de maneira individual, independentemente do público, aquilo que é inerente à lógica do cinema – visto que este, em sua historicidade e em sua organização, é uma resposta tecnológica para algo que ocorre há milhares de anos: qual seja, a associação entre imagens enquanto forma de funcionamento espontâneo da faculdade imaginativa. Neste sentido, o cinema depende da imaginação e da fantasia de seu público – um tipo de fantasia que se encontra soterrada sob a intensa produção associada à indústria cultural.

Um filme, sozinho, não cumpre sua função, visto que produtores e espectadores, juntos, constituem a mídia e produzem sua recepção por meio da imaginação e da fantasia que animam a tela – e não se trata, aqui, da imaginação e da memória de um único indivíduo, mas de um processo que ocorre de maneira coletiva, cooperativa. Por isso a multiplicidade de “filmes” que se constroem na mente do espectador pode vir a ser extremamente rica: ao assistir, ele se apropria da coletividade. Com isso, Kluge (1988) conclui que “[...] ser autor de cinema não é um fenômeno minoritário: todas as pessoas se relacionam com a sua experiência com o cinema como autores” (Kluge, 1988, p. 209, tradução nossa, grifo nosso).

Tal perspectiva desmobiliza a cultura escolar que transforma a linguagem cinematográfica – e, aqui, nos referimos à cinematografia predominantemente hollywoodiana e mainstream, produzida em acordo com os moldes da indústria cultural – em mero recurso instrumental e ilustrativo. Em que medida O Menino e o Mundo pode vir à contribuir com a desmobilização deste tipo de apropriação? Pode este filme contribuir para a formação estética de crianças em idade escolar? De que maneira o caráter ensaístico da narrativa criada por Alê Abreu pode vir a contribuir para que os estudantes paticipem do filme como “autores”, através de sua imaginação e de sua fantasia? Para discutir estas questões, apresentaremos a seguir a discussão sobre a exibição deste filme, ocorrida no ano de 2018, como parte da etapa empírica de nossa pesquisa de doutoramento.

Desde o início da exibição de O Menino e o Mundo, observamos um tipo de interação verbal entre os estudantes e o filme. Há uma espécie de urgência na proposição de questões: ao mesmo tempo em que as cenas dão corpo à construção do filme na tela, elas suscitam a reconstrução do (s) filme (s) pelo estudantes. Trata-se de um processo concomitante. Tal reconstrução, aqui, não ocorre apenas por meio do fluxo imaginativo, mas também na exteriorização de tal fluxo que se concretiza na cadência ocasionada pelos questionamentos que aparecem já na cena inicial de O Menino e o Mundo: uma tela em branco, um ponto e uma nota musicada por uma flauta, que crescem em direção à formação de uma série de imagens geométricas e que culminam na apresentação do Menino, personagem central da trama. Tem-se, na cena em questão, uma construção imagético-abstrata. Não há indícios de uma tentativa de emular a realidade, mas sim o processo contrário: as abstrações iniciais se fazem um convite para que o espectador rompa com o fluxo habitual de apreensão fílmica. Ao que parece, tal configuração estética, logo de cara, deixou uma lacuna em aberto, e esta foi imediatamente preenchida com diversos formatos de questões.

Tais questões demarcam o envolvimento com o filme, que ocorre já nos primeiros minutos – um envolvimento que permitiu que as crianças expusessem suas emoções e sensações por meio de um posicionamento ativo, diferente daquele que normalmente ocorre quando da apreensão de um produto fílmico mainstream. As formas habituais de recepção, já de início, parecem ter sido estremecidas. Seria este envolvimento parte da experiência estética enquanto experiência subjetiva?

A cadência das questões parece ser o alicerce de uma espécie de narrativa da recepção. Tal narrativa, todavia, não se configura de maneira linear, ou mesmo explicativa: ela se reconfigura constantemente, na medida em que o filme que é exibido na tela se desenrola e, neste movimento, sugere novas questões e novos argumentos ao espectador. Ela se reconfigura, também, devido ao próprio processo intersubjetivo que decorre da exibição no espaço da sala de aula, que acontece por meio da cooperação. Ao mesmo tempo em que tal narrativa carrega certa dose de fugacidade, ela é parte de uma experiência, até certo ponto, ensaística: como coloca Schaefer (2012, p. 308), “[...] toda obra de arte se apresenta à experiência como um ensaio, e não como um sistema, a obra ensaia um dizer e contemplador ensaia um escutar”. Neste movimento, a liberdade do pensamento e da interpretação visual e verbal subsidia o exercício de experimentação que se corporifica na narrativa.

Isso se evidencia na forma das questões expostas pelos alunos ao longo de toda a exibição do filme: a questão inicial de um dos estudantes – “O negócio tá se mexendo?” –, que parece se apresentar sob a forma de uma dúvida sobre o que acontecerá na sequência fílmica, se esvai na medida em que o filme lhe dá algumas respostas (e, possivelmente, novas dúvidas). O mesmo é válido para outras questões e apontamentos colocados. O comentário de outro estudante – “Parece que tá caindo galinha do céu...” – parece expressar uma associação claramente imaginativa e fantasiosa acerca da forma com que os objetos que compõe a narrativa fílmica se apresentam.

Na medida em que o filme se desenvolve na tela, os questionamentos e as associações dos alunos crescem também em densidade e complexidade. A narrativa da recepção se torna mais complexa justamente no ponto em que as situações apresentadas pelo filme passam a se apresentar de maneira crescentemente provocativa:

Durante a primeira aparição da fênix:
AL11: Ai meu Deus!
AL5: Que isso?
AL3: É uma fênix?
AL3: Eita pega! Como assim?
AL6: Não tô entendendo nada...

Durante a cena em que um homem é demitido de seu trabalho em uma fazenda de algodão por estar doente:
AL3: Ai, eu ficaria feliz de não ter que trabalhar desse jeito.
AL5: E ele vai ganhar dinheiro como, AL3?
AL3: Que triste...

Depois de algum tempo em silêncio, voltam a fazer comentários:
AL3: Ahn?
AL4: Algodão?
AL7: Xi...
AL8: É fábrica de pano, acho.
AL5: Psora, quando eles tavam colhendo algodão tinha mulher trabalhando, né, e agora na fábrica já não tem mais... é só homem.

PESQUISADORA: É verdade.

Na cena em que o Menino chega à cidade:
AL7: Parece que a cidade é só isso... polícia e briga.
AL5: Nossa, quando eles toca a bolinha de som sai preta!
AL5: Chegou na favela.
AL3: É comunidade. Comunidade! (Peres, 2021, p. 342)

Como podemos observar neste trecho, as questões iniciais passam a ser intermediadas por comentários de teores diversos. Nos chama a atenção, primeiramente, o comentário de AL6: “Não tô entendendo nada...”. Ao que parece, O Menino e o Mundo gerou uma crise em sua forma de recepção – uma vez que, aqui, diferentemente do que ocorre no circuito mainstream, não se pressupõe um tipo de entendimento baseado na linearidade. Isso a incomoda, uma vez que, possivelmente, ela esperava respostas que lhe ajudassem a se apropriar do filme de maneira unívoca.

Também nos chama a atenção o diálogo entre AL3, AL5 e AL3, a partir de uma cena em que um dos personagens do filme – um homem, trabalhador, empregado de uma fazenda de plantio de algodão – é demitido de sua função por apresentar problemas de saúde. Diante dessa cena, as crianças desvelam uma das contradições que permeiam as relações de trabalho no capitalismo: ao mesmo tempo em que estas condições se fazem precárias, a possibilidade de se escapar a essa dinâmica é mínima. E isso, como aponta AL3, é “triste”.

É interessante notar que as colocações dos alunos mesclam questões puramente interrogativas, associadas ao desejo de compreensão do filme, e argumentos vinculados à realidade: trabalho e gênero, como colocado, e, ainda, a própria questão da cidade enquanto campo de disputa, como se observa no argumento de AL7: “Parece que a cidade é só isso... polícia e briga”. O aluno parece indicar que o que lhe salta aos olhos na configuração urbana é justamente o movimento de repressão, operado pela polícia, e as constantes disputas de poder, em detrimento de outros aspectos que, na cena a qual AL7 se refere, compõem a figuração do ambiente da cidade: as propagandas, a pobreza, a demanda do fluxo populacional, a vida precária dos trabalhadores. Ao ressaltar tal ponto, em específico, entendemos que há um entendimento de que a dinâmica político-social contemporânea, inevitavelmente, passa pelo filtro do conflito.

Outro movimento que nos chama a atenção é a forma com que a dinâmica do tempo presente atravessa a narrativa construída pelos alunos, evidenciando o caráter processual que perpassou a experiência com O Menino e o Mundo:

AL2: As bolinhas viraram uma fênix!
AL5: A fênix é a que renasce...
AL3: Que passarinho grande...

Durante uma cena que apresenta imagens de tropas de choque caminhando pela cidade:
AL8: Que isso, batalhão de choque?
AL5: O batalhão do Bolsonaro.
(Alguns alunos riem da resposta) (Peres, 2021, p. 422).

A exibição do filme foi realizada no período de agosto/2018 e, neste mesmo espaço de tempo, ocorriam a campanha e as eleições que tornariam o candidato do Partido Social Liberal (PSL), Jair Messias Bolsonaro – capitão reformado e, até então, deputado federal – presidente do Brasil. Tal período, marcado pela radicalização da polarização política no país, se fez arena de uma disputa – nos termos de AL7 – na qual se sobressaíram as tendências autoritárias e os discursos de apologia à tortura e à ditadura, misoginia, homofobia e violência proferidos por Bolsonaro.

É curioso que, ao citar o ex-presidente, AL5 faça uma associação entre este e a imagem do “batalhão de choque”, em resposta à questão de AL8. Sem desconsiderar a possível relação com o fato de Jair Bolsonaro ser um capitão reformado, entendemos que os sentidos da associação vão além deste aspecto factual. Ao mesmo tempo em que o bolsonarismo crescia em força, movimentos de resistência apontavam de maneira incisiva os riscos que a figura de Bolsonaro imprimia à democracia. A disputa política e o conflito, aqui, davam corpo ao Zeitgeist de um país cindido, e AL5, em sua associação, parece identificar o lado ao qual o então presidente pertence: aquele vinculado à repressão. E sua associação, por sua vez, suscita o riso de alguns alunos: seria este um indício de que a figura de Jair Bolsonaro não é digna de credibilidade? Ou tal riso estaria associado a uma espécie de descrença na esfera política, per si?

Com a colocação de AL5, ainda, tem-se um indício de que o sentido da experiência estética é historicamente datado, sendo vinculado a um determinado contexto. Como colocado por Adorno (1970), “A definição do que é arte é sempre dada previamente pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se” (p. 17). Isso significa que a obra de arte é detentora de liberdade: ao mesmo tempo em que pertence ao artista, a partir do momento em que ela é exposta ao público ela deixa de ser unicamente sua e passa a ser suscetível às experiências e às interpretações diversas. Por esse motivo, a processualidade da experiência reside na temporalidade: a autêntica experiência estética é viva, ensaística, e tem vez e voz. Como reafirmado por Almeida (2009):

A História-duração, expressa em estética e ideologia nas cenas, ganha sua continuidade na História-cronológica do espectador. A fusão destas duas histórias envolve e recria o significado da narração, durante o corte, o intervalo entre um e outro quadro. Uma discronia real como acontece nos sonhos. E aí os significados, a interpretação, os sentimentos com que a inteligência é envolvida, acontecem. Este intervalo que vai dar sentido ao que está sendo narrado não é um intervalo vazio. Ao contrário, é o mais pleno: nele acontece e age a história do espectador, a história como memória e sentimentos próximos, sua vida única e irredutível e a história como memória e sentimentos coletivos, a vida social e redutível à de todos (Almeida, 2009, p. 35).

Com O Menino e o Mundo, de maneira específica, pudemos notar que a narrativa da recepção que se desenrolou ao longo da exibição do filme, embora revele a construção de uma leitura complexa acerca da obra, foi permeada pela alegação de que a “compreensão” e o “entendimento”, aqui, eram algo de difícil acesso. Em diversos momentos, os estudantes alegam não compreender o filme.

Nota-se uma grande quantidade de comentários esparsos, sendo que grande parte destes se constituem críticas à forma com que a compreensão é modulada a partir do filme: alguns estudantes afirmaram que a narrativa em questão é “estranha”; ou que “não dá pra entender esse filme”. Em nossa leitura, tais comentários decorrem da própria estrutura enigmática do filme: ao contrário de dar respostas, tem-se aqui um constante movimento no qual situações diversas são apresentadas de maneira não conclusiva, não resolutiva e não linear. Há, aqui, um descompasso entre a expectativa de uma experiência tal qual aquela pressuposta no modelo do entretenimento e da distração e a realidade da aproximação com uma obra fílmica que exige um posicionamento ativo, na qual o papel da atribuição de sentido é relegado ao espectador. Tem-se, aqui, o indício de que as alegações da não compreensão estão associadas a uma crise centrada na forma de recepção fílmica.

É interessante que, mesmo diante de tais reclamações acerca do entendimento, tem-se uma contradição: como pudemos observar ao longo da atividade, seria arbitrário e errôneo considerar que os estudantes não compreenderam absolutamente nada sobre o filme, uma vez que a narrativa construída por meio dos questionamentos e dos constantes comentários durante a exibição do filme se provou bastante densa e complexa. As crianças parecem não terem se apercebido de suas próprias elaborações.

Por outro lado, não podemos deixar de considerar que o argumento do “não entendimento” pode ser compreendido como algo que se interpõe entre os indivíduos e a experiência com o objeto fílmico em questão. Como postulado por Adorno (1970), a formação implicada na experiência com a linguagem cinematográfica não deve ser desvinculada da educação da capacidade crítico-reflexiva. Para aquele que dificilmente percebe o caráter enigmático da obra de arte, de maneira geral, e dos filmes que detém uma configuração antifílmica, particularmente, o movimento de recepção torna-se irrefletido, uma vez que o apreciador não se apropria daquilo que vê e, por isso, é incapaz de se abrir à reflexão filosófica e ensaística pertinente à experiência.

A resistência e a incompreensão alegada pelos estudantes reflete o poder de atuação da indústria cultural, que promete aos seus consumidores a satisfação imediata do prazer – que, na realidade, se restringe a um pré-prazer que se cristaliza em si mesmo. Como colocam Horkheimer e Adorno (1985, p. 131), “A indústria cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto do desejo, o busto no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não sublimado que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo”. Com isso, o espectador se mantém na esfera do reconhecimento, uma vez que romper com este fluxo exige grande esforço.

A estrutura narrativa e ensaística construída em O Menino e o Mundo não gera o prazer imediato, tal qual no âmbito do entretenimento produzido pela indústria cultural. Pensar implica fazer relações, recorrer à memória e à imaginação, e o esforço de tal processo lhe incomoda. O Menino e o Mundo exige presença de seu espectador, e, por isso, percebe-se que a experiência de assisti-lo se distancia da experiência característica do modelo da distração.

CONCLUSÃO

As reflexões que se desdobram da exibição e discussão de O Menino e o Mundo no âmbito escolar apontam que, tal como a estrutura narrativa construída por Alê Abreu, a experiência suscitada nos espectadores também foi caracterizada por uma narrativa: o caráter enigmático do filme exigiu que seus espectadores se apropriassem da palavra, da imaginação e da fantasia para completar as lacunas deixadas entreabertas.

Uma pedagogia do cinema orientada à experiência com cinematografias que se distanciem do modelo mainstream, deste modo, deve partir do exercício de “prolongamentos reflexivos” que envolvam a imaginação e a fantasia – algo que ocorre não de maneira estrita e direcionada, mas sim gerida pela liberdade de ir além daquilo que é dado pelo filme. Enquanto metáfora, tal exercício parece estar vinculado à desmistificação da ideia de que as imagens, quando apresentadas ao público, obrigatoriamente devem estar submetidas a uma leitura unívoca: é possível que o espectador crie a partir das imagens cinematográficas; que ele, ao portar-se livre e ativamente, as tome como ponto de partida para novas significações e construções sensíveis e intelectivas. Embora esse processo criativo já tenha ocorrido durante a exibição de O Menino e o Mundo, quando das leituras que os estudantes fizeram acerca da narrativa fílmica, é importante que ele se prolongue para além do filme mesmo.

Os elementos enigmáticos presentes nesta obra fílmica, neste sentido, se deixam em aberto. Em termos pedagógicos, essa abertura pode ser entendida como um desafio à incompreensão alegada pelos estudantes: a partir daqui, eles deverão elaborar individualmente os diversos enigmas que permanecem irresolutos. Tem-se, em tais enigmas, aquilo que permanece na tensão entre o que esta pedagogia pode lhes ensinar, e a autonomia da experiência estética com O Menino e o Mundo.

NOTAS FINAIS

1 “Se podes ver, repara”: a (re)educação do olhar em cena. (Processo Fapesp: 2017/09707-0)

2 Em entrevista concedida a Carol Almeida, para o blog “fora de quadro”. Disponível em: https://foradequadro.com/2014/02/07/entrevista-ale-abreu-o-menino-e-o-mundo/, acesso em: 24/05/2019.

3 Disponível em: https://foradequadro.com/2014/02/07/entrevista-ale-abreu-o-menino-e-o-mundo/, acesso em 24/05/ 2019.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T.W.. Teoria Estética (Trad. Artur Mourão). São Paulo: Martins Fontes, 1982.

ALMEIDA, M.J. Cinema: Arte da Memória. Campinas, SP: Autores Associados, 2009.

CORRIGAN, Timothy. New German Film: the displaced image. Bloomington/ Indianapolis: Indiana University Press, 1994.

HORKHEIMER, M e ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985.

KLUGE, A. On film and PublicSphere. New German Critique. Nova York: Telos Press, n. 24/25, Special Double Issue on New German Cinema, p. 206-220, 1988.

PERES, H. C. Entre choques, cortes e fissuras – a (semi)formação estética: uma análise crítica da apropriação de filmes na educação escolar. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar), Araraquara, 2016.

PERES, H. C. “Se podes ver, repara”: a (re)educação do olhar em cena. Tese (Doutorado em Educação), São Carlos, 2021.

SCHAEFER, S. A teoria estética em Adorno. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012 (tese de doutorado).

FILMOGRAFIA

O MENINO e o Mundo. Direção: Alê Abreu. Brasil, 2013 (80 min.)