Capítulo / Chapter III | Cinema – Comunicação / Communication

From Modern Times to current pedagogical practices: limits and possibilities through visual culture

De Modern Times às práticas pedagógicas atuais: limites e possibilidades através da cultura visual

Sílvia R. B. Pinto

Laboratório de Investigação em Design e Artes (LIDA), Politécnico de Leiria, ESECS, Portugal

Abstract

In the 21st century, institutions are facing a series of challenges in face of rapid changes in society. Technological advances, social movements and tensions, climate change, wars, migration, and the housing crisis, among other issues, are leading to reflection on teaching and learning practices. In this context, the film Modern Times, by Charles Chaplin (1936), is used as an element of analysis to deconstruct and understand the transformations and changes taking place in different spheres. Thus, using knowledge of visual culture, design and project, an action plan was put in place to interpret, debate, and reflect on the configuration of visual projects, and from the elements focused on in the film to work on the elements and facts that make up current reality.

Keywords: Visual culture, communication, pedagogical practices, project, design.

Modern Times como plataforma de reflexão

Num mundo compreendido, hoje, à escala global, exige pensar e debater temáticas que de novo apenas se conhecem algumas camadas. Vivemos tempos marcados pela incerteza, que deriva de fenómenos de natureza diversa. Dos desastres naturais, cada vez mais frequentes, às crises climáticas, associam-se as preocupações sociais relacionadas ao rápido desenvolvimento da inteligência artificial, às crises na habitação, ao crescimento abismal de movimentos extremistas e ainda coexistência de vários cenários de guerras, distribuídos em vários pontos do globo e com geografias muito próximas. Esta sociedade que se encontra em alerta máximo, que tem presente a história recente do século passado (Lipovetsky, 1989; Lipovetsky & Serroy, 2010). As questões como o consumo desmesurado, o baixo poder de compra de grande parte população, as dinâmicas impostas por uma sociedade que vive a epidemia das imagens em dispositivos que convivem diariamente e se traduzem num complexo sistema de relações de dependência do humano em relação à máquina. Uma relação que promove a alienação, o distanciamento do visível. Uma sociedade que se espelha no cansaço, que de forma direta ou indireta ainda é herança da recente pandemia COVID-19. O implante do medo no domínio do inconsciente coletivo conduz a medidas de reflexão para prevenção de cenários que se avizinham. E, é neste cenário de observação e inquietação face aos acontecimentos recentes, vividos entre os anos 2020 a 2023, que tem enquadramento a análise do filme “Modern Times” (1936) de Charlin Chaplin. Este exercício decorreu em ambiente escolar, ao nível do ensino superior, e, visou constituir-se como parte de uma prática pedagógica diferenciada face à globalidade dos temas apresentados no filme. Assim, procurou-se num mundo acelerado e pautado por uma cronologia titânica o exercício de visualização deste filme, com o fundamento da realização de uma análise exaustiva sobre o tempo, o espaço, a mensagem, as personagens, as ações, os processos, a imagem em movimento e a fotografia. Além da visualização do filme os estudantes foram convidados a fixarem as imagens que instigaram a sua curiosidade, para que essas se constituíssem como foco de investigação de temáticas específicas, por si escolhidas. À lógica da visualização e contextualização fílmica seguiu-se um processo de pesquisa geral em torno dos elementos relativos ao filme, ao autor e aos aspetos particulares do contexto de produção, nos anos 30 (Chaplin, Goddard, Bergman, Sandford & Conklin, 1936). Pensar um projeto associado à cultura visual a partir de “Modern Times” deu rumo a um conjunto diversificado de análises informadas através da construção subjetiva do olhar de cada estudante (Wang, 2024). Convidou, ainda, ao exercício de análise sobre os cenários apresentados e as experiências vividas nos anos trinta, dando-se espaço para a procurar de extensões das temáticas examinadas na atualidade, ou seja, no ano de 2023 (Wood & Smith, 2004). O salto temporal transportou para práticas pedagógicas baseadas na procura e construção de significados (Dewey,1904). Das bases de projeto de design foram aplicados o princípio da análise, do registo, das ligações entre elementos seguindo uma lógica interdisciplinar (Freedman, 2003). Na continuidade deste exercício os estudantes passaram dos primeiros registos de ideias soltas, ao diálogo com os seus pares para darem corpo à construção de mapas mentais. Esta ação dialogante, mediada pelo docente, foi ganhando corpo e estrutura dando posteriormente origem à configuração final, um conteúdo documental de análise (Sandlin Schultz & Burdick, 2009; Lupton & Phillips, 2015).

O desafio do tempo mecânico

O filme “Modern Times” instigou a reparar numa prática de tempo desafiante. Num contexto social pautado por consumo de conteúdos à velocidade de um movimento ocular, o objetivo de ver um filme dinâmico, mas “longo” deu vida às cadeiras da sala. Estas, tornam-se objeto de inquietação e são vários os movimentos que nos fazem perceber a desafiante missão de ver um filme com atenção. No entanto, a natureza desta seleção fílmica favoreceu o cenário exploratório pretendido e, assim, a mediada prática docente viveu da dinâmica instituída pela obra, que cativa pelos momentos de movimento, crítica social e momentos pautados por humor. Com a vertente do filme servir como lente para a leitura do cenário contemporâneo os estudantes vibraram com o desafio e, encararam o processo de investigação como uma missão. Começaram por observar a escassez, o desafio de conseguir trabalho, os valores de uma ação policial que não passou despercebida, assim como, o cunho marcante de uma sociedade de controlo (Tolich, 1992). Para além destes aspetos, captou a atenção dos estudantes a lógica do controlo antecipada por Chaplin, que em termos tecnológicos antecipou sistemas, que hoje são comuns. Nesse sentido, ficaram fascinados pelos dispositivos constituídos por ecrãs gigantes e pelas chefias incumbidas de pressionar os trabalhadores (Figura 1). Este fascínio é revestido pela logica de Chaplin ter nos anos 30 dado uma imagem de sistemas de vigilância implementados menos de cem anos depois. Nesta lógica de uma leitura do espaço e do tempo, a questão da maquinaria de controlo é alvo de observação e consternação. Aqui foi notoriamente percebido o cenário em que os dispositivos tecnológicos serviram às promessas de um trabalho facilitado pela máquina e a posterior degradação da condição do trabalhador, que passou a ser forçado a responder ao ritmo das máquinas (Brüseke, 2006). Dos 30 estudantes envolvidos no estudo, ninguém ficou indiferente a estas imagens, que foram sublinhadas por elementos cénicos configurados em gigantescas engrenagens compostas por roldanas. Também o tapete rolante da linha de produção foi alvo de destaque nas observações, dada a sua relação direta com o estado de esgotamento do personagem principal. O desenrolar do filme ganha no contexto fabril um expoente máximo ao nível do humor, que decorre, aquando da tentativa de implementação da máquina direcionada à alimentação robotizada. A gestualidade e a fisionomia de Chaplin, enquanto ator principal, dão um toque de requinte à sátira apresentada.

Figura 1 – Projeto exploratório realizado por Rita Pinto (2023)

Alienação, saturação e desumanização foram motivo de análise e de discussão. Sendo o controlo social alvo de um olhar singular sobre as lógicas de funcionamento das instituições representativas do mesmo, quer através da prisão, da própria fábrica (Figura 2), quer da ação policial exercida sobre os manifestantes.

Figura 2 – Projeto exploratório realizado por Diogo Dias (2023)

A comunicação na sua vertente multimodal

No filme “Modern Times” encontrámos um arquivo que nos dá conta da multimodalidade (Ryan, Scott & Walsh, 2010) enquanto dimensão que permite um olhar aprofundado sobre a realidade exposta. Assim, no que concerne à linguagem visual é possível observar entre vários “frames” (Figura 3), as questões de cenografia e adereços de cena, onde gigantescos cenários maquinados comprometem a sanidade e o sentido de pertença à humanidade. Uma realidade que é sublinhada pelas expressões faciais e pela gestualidade do personagem principal (Figura 2), que num engenho aguçado pela repetição fica refém da falta de saúde mental, dado acumular de situações repetitivas, num registo maquinado de velocidade atroz, associado à falta de uma boa alimentação, descanso e condições básicas de vida. A dimensão visual vive lado a lado com a pressão prestada pela vertente dos efeitos sonoros, que reforçam o desenho da desumanização da classe trabalhadora.

Figura 3 – Projeto exploratório de Jorge Sousa (2023)

É precisamente neste eixo multimodal que Chaplin (1936) dá a conhecer o registo de uma sociedade doente, onde impera o caos, a desorganização, o potencial das influências vividas pelas classes sociais dominantes. Em contraste e num jogo de humor o ator vive a experiência inquietante, num jogo de nervos provocado pela prática de patinagem, lado a lado, com o perigo. Aqui temos as dimensões multimodais tanto gestual como espacial, que num ciclo de tensão desvia a atenção do público para a aventura, a adrenalina, o medo e para a tensão nervosa, que se constitui a cada entrada na “boca” do abismo configurado na existência se um piso superior, onde se desenrola a ação, e, a completa ausência de barreiras de proteção. Este artifício ilusório é capaz de provocar os sentidos para um acompanhamento da personagem que desliza de forma provocatória, num jogo dinâmico, de ironia e gozo. Aqui é sublinhada a agilidade de Chaplin de transformar uma situação perigosa num momento cómico, constituindo-se como um artifício que sublinha a ironia de uma sociedade que trata seus trabalhadores como peças substituíveis de numa máquina gigante, que explora as fragilidades humanas ao seu expoente máximo. Neste cenário particular é observada a relação do par romântico patente no filme, que em face à fragilidade da garantia de sobrevivência, configurada quer num espaço seguro para passar as noites, quer no acesso à alimentação. A abordagem multimodal configura um reforço dos elementos da narrativa fílmica e assegura um foco determinante na passagem clara de uma mensagem que se quer sentida pela audiência.

As faces do projeto

A constituição da vertente de projeto conduziu à investigação centrada no conteúdo do filme “Modern Times”. Um conteúdo onde a imagem dá vida a uma crítica social a partir da experiência de sujeitos (Deleuze & Foucault, 1995) que vivem as dificuldades do seu tempo. A primeira fase dedicada à análise de conteúdo permitiu perceber aspetos ao nível da forma, do conteúdo e da mensagem, permitindo criar categorias, fundidas quer nos ambientes, quer nas temáticas expostas. Dos vários temas os apresentados no filme, os estudantes selecionaram aqueles que no seu entender compreendiam um conjunto de elementos que teriam o potencial de criar uma narrativa visual com paralelo nos fenómenos sociais presentes na atualidade. Aqui, foram identificados como temas centrais, o impacto da industrialização, a escassez de oferta de trabalho, as condições precárias nos trabalhos existentes, a luta pelos direitos ao trabalho e por melhores condições de trabalho, a ausência de um tratamento humanizado dentro do quadro laboral. A fome, a cegueira do sistema capaz de simplificar cenários sociais complexos, tais como, a institucionalização de crianças de forma administrativa, vazia de sensibilidade dialogante. Foram também explorados os elementos visuais e sonoros. Alvo de análise, foram ainda, as dimensões humanas, tais como, o sonho, o humor, a astúcia, a resiliência, a solidariedade, a amizade e a compaixão (Giddins, 2006). Com base no trabalho de análise exaustivo foram percebidos os ambientes de trabalho industrial, as tecnologias de controlo. A pressão psicológica exercida por agentes associados às chefias e por tecnologias especificas, como, as máquinas de registo de presenças e monotorização da atividade do trabalhador através de dispositivos de controlo constituído por sistemas de visão.

Figura 4 – Projeto exploratório realizado por Mauro Jesus (2023)

O lado social e psicológico nos cenários associados ao ambiente de trabalho, às condições sociais e de segurança nas ruas, à extrema exaustão ora provocada pela dinâmica da repetição em ambiente laboral, mas também na procura de soluções para a escassez de alimentos e de condições de habitação. A questão da resistência ao sistema opressivo tratado com humor. E, a emancipação da mulher, que através da sua agilidade e inteligência consegue encontrar trabalho (Debenedetti, Huault & Perret, 2015). Após este processo teve início da seleção dos temas contemporâneos. O exercício foi facilitado em termos de perceção dos fenómenos, que já que neste primeiro quartel do século XXI a sociedade vive uma série de fenómenos idênticos. Neste enquadramento foram alvo de reflexão a questão da automatização e consequências diretas ao nível na diminuição dos postos de trabalho, que na atualidade se faz transpor para a presença cada vez mais assídua da inteligência artificial (IA), ao nível dos sistemas e dos serviços, assim como, o esgotamento e as situações de “burnout “(Figura 4, 5 e 6).

Figura 5 – Projeto exploratório realizado por Vivian Pinto (2023)

No entanto, a narrativa fílmica deu enfase a temáticas relativas à consciência social, através de um alerta à sociedade de consumo, dada a perceber a partir da aparição dos primeiros “centros comerciais”. Este cenário em particular espelha ainda as diferenças a nível social, de um “ideal” de família, com acesso ao consumo, numa lógica que combina necessidade com luxo, fixada, por exemplo pela experiência de dormir numa cama, conduzida pela atriz principal, que na sua ação clandestina tem acesso a condições que num cenário real, não teria. Este lado clandestino, é também associado ao ator principal, que no exercício das suas funções como guarda noturno faz malabarismos e convive com um grupo de pessoas que roubam o estabelecimento comercial.

Figura 6 – Projeto exploratório realizado por Sílvia Marques (2023)

Desenvolvimento das Narrativas Visuais

Uma vez com os temas selecionados os estudantes desenvolveram as suas narrativas. Para esse exercício exploratório convocaram diversas aprendizagens. O recurso às narrativas visuais tem antecedentes na área da educação, pois é possível ver a sua aplicação a áreas que vão desde a Saúde, Biologia, Ciências Sociais, Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (Mota, Sá & Guerra, 2020). Contudo a sua aplicação pode também estar associada a outras formas, tal como, obras de arte e jogos (Pinto, 2017). Assim, no processo de investigação, para além de realizarem mapas mentais para organizarem ideias e correlacionar temas do filme com temas da atualidade os estudantes fizeram estudos de composição através de desenhos rápidos, recorreram ao diário gráfico como dispositivo de aprendizagem (Pinto, 2012) e testes de prototipagem rápida. Nas suas práticas utilizaram softwares de edição de imagem, tais como, o Abobe Photoshop e Illustrator, para trabalharam em formatos de “zines” (Lerm, 2018; Milani, 2023) e “booklets” (Meggs, 1992; Barnard, 2013; Dabner, Stewart & Vickress, 2017). A abordagem pedagógica aqui considerada viveu num espaço que combinou dinâmica com interdisciplinaridade, como forma de fomentar uma ação dialogante entre a prática do design gráfico e a investigação de conceitos a partir de uma exploração multimodal (Kress, 2013; Lim, 2020). O desenvolvimento dos trabalhos contemplou reuniões de discussão em torno do rumo e dos aspetos a considerar. Foram feitas escolhas e tomadas decisões com base na mensagem que se pretendeu passar. Aos projetos realizados foi dedicado o tempo da sua análise, fundamentação e partilha com os pares.

Considerações finais

Com este trabalho de reflexão, pretendemos partilhar exercícios desenvolvidos no âmbito da unidade curricular de Introdução ao Pensamento de Projeto. O percurso aqui descrito demonstra o campo de possibilidades criado a partir da cultura visual e da multimodalidade. Foi a partir do filme “Modern Times” no âmbito de um quadro de possibilidades pedagógicas, que no século XXI foram provocados os sentidos, quer em termos de tempo, de questões, de reflexões e de tecnologias. Esta abordagem permitiu o desenvolvimento de uma compreensão mais profunda do filme “Tempos Modernos”. A partir das práticas descritas foram percebidas dimensões relativas seu contexto histórico, aplicando na prática o desenvolvimento de abordagens relativas à análise de conteúdo e de pesquisa, que serviram o intuito relevantes tanto para a compreensão do passado quanto para a aplicação no presente. A utilização de metodologias interdisciplinares e colaborativas evidenciou a importância de uma educação que valoriza a construção ativa de conhecimento e a reflexão crítica sobre a cultura visual e histórica. No quadro de um sistema educativo e numa sociedade digital importou relacionar os meios e recuperar mecanismos que fazem simultaneamente, pensar e equacionar, o ritmo do tempo, a produção académica e a aplicação dos conhecimentos em diferentes domínios. Com base na cultura visual foram equacionados os cenários do passado e na análise desenvolvida foi possível estabelecer cruzamentos com a experiência quotidiana da sociedade ocidental atual. Importando aqui perceber as formas, as configurações e as interações sociais do início do século XX como objeto de estudo e da sua análise numa perspetiva multimodal. A integração da abordagem multimodal e interdisciplinar permitiu enriquecer a experiência de aprendizagem e possibilitou aos estudantes o contacto com práticas de ensino e aprendizagem fundamentadas na estreita ligação entre teoria e prática, como circuitos de reflexão critica e informada.

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