Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

A Question of Belief: A Reading of Close Your Eyes (Victor Erice, 2023)

Uma Questão de Crença: Uma Leitura de Cerrar los ojos (Victor Erice, 2023)

Tiago Luís Minau Ramos

Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA, Portugal

Abstract

Close Your Eyes (Victor Erice, 2023) develops a self-reflexive parable about the transcendental potential of the cinema experience and what it means to be a moviegoer. The main character is Miguel Garay, a film director whose second feature film is interrupted by the disappearance of its star, Julio Arenas. The plot of the film is one of mirroring, duplicity and mystery, with the gaze, the cinematographic image and the past being some of its main themes. This text aims to provide a close reading of Close Your Eyes that unravels the web of meanings carefully woven by Victor Erice.

Keywords: Cinema auto-reflexivo; Imagem cinematográfica; Jogo de duplos; Memória; Representação do olhar.

Introdução

Víctor Erice é um cineasta envolto em misticismo. A escassez de projectos realizados, e a qualidade que lhes é reconhecida, explicam, em parte, a reputação enigmática de que granjeia. Sete décadas no activo, quatro longas-metragens, um número reduzido de obras assinadas em conjunto com outros realizadores, algumas curtas-metragens, e muitos relatos de contrariedades nas produções dos seus filmes.

A adversidade mais sobejamente conhecida ocorreu durante a produção da sua segunda longa-metragem, El sur (1983). O plano de rodagem consistia em filmar a primeira metade da acção no norte de Espanha, onde a protagonista, Estrella, vive a infância, ao passo que a segunda metade deveria ser filmada no sul, território para onde a personagem viajaria em busca de pistas respeitantes ao falecido pai. No entanto, as filmagens foram inesperadamente suspensas antes da deslocação para Sevilha. O plano de rodagem, idealizado para 81 dias, foi abortado depois de 48 dias de filmagens. Na época, o produtor do filme, Elías Querejeta, justificou a descontinuação da rodagem com uma súbita retirada de fundos por parte dos parceiros de financiamento. Contudo, mais tarde, o próprio admitiu, que as filmagens pararam porque achava que já existia material suficiente para montar um filme.

Querejeta chegou a alegar que a produção tinha sido meramente embargada e que, como tal, as filmagens continuariam numa data a definir. Foi com base neste acordo que Erice montou a versão definitiva de El sur. Embora inacabado aos olhos do realizador, o filme foi mostrado a Gilles Jacob, na época o Delegado-Geral do Festival de Cinema de Cannes, que se deslocou a Madrid para assistir a uma projecção privada. Jacob teceu rasgados elogios ao filme que, à revelia de Erice, estreou na Competição Oficial de Cannes, onde foi aplaudido pela crítica. Entretanto, o sucesso crítico do filme legitimou a decisão de Querejeta em suspender a produção, pelo que a rodagem nunca foi terminada.

As litigâncias com produtores não terminariam aí. Mais de dez anos depois, durante a segunda metade dos anos 90, Erice desenvolveu uma adaptação do romance El embrujo de Shanghai, de Juan Marsé. O cineasta exigia uma rodagem de vinte semanas e defendia que o filme deveria ter uma duração de sensivelmente três horas, imposições que levaram Andrés Vicente Gómez a afastá-lo do projecto, optando por Fernando Trueba, realizador com quem o produtor tinha trabalhado em Belle Époque (1992).

Faço menção destes contratempos porque Erice convoca-os em Cerrar los ojos (2023), a sua primeira longa-metragem de ficção desde o revés da produção de El sur. Embora seja indiscutível que o filme dialoga com os acontecimentos da vida de Erice, a proposta aqui apresentada não é que Cerrar los ojos deva ser interpretado como um caleidoscópio através do qual se vêem refracções da filmografia e percurso do cineasta. Desta forma, ainda que existam pontos da narrativa reminiscentes dos dados biográficos facultados, o interesse do texto incide menos sobre o aspecto autobiográfico do que sobre a dimensão auto-reflexiva do filme, que elabora uma parábola sobre a porosidade entre a realidade e a ficção, o poder da imagem cinematográfica, e o lugar do espectador. Portanto, o objectivo consiste em fazer uma leitura de Cerrar los ojos que atenda, em primeiro lugar, à urdidura de espelhamentos intra-diegéticos cerzida por Erice.

La Mirada del adiós

Château Triste le Roy, arredores de Paris, 1947. Um plano-geral revela uma bruma matinal a envolver um palacete vestido de verde-floresta pelas plantas trepadeiras. No jardim circundante está uma escultura em mármore de Jano, o deus romano cujas duas faces simbolizam a mudança, a união discordante entre o passado e o futuro. A câmara desloca-se para o interior do château onde Lin Yu, o único criado da propriedade, abre as portadas do salão, num abrir de olhos figurativo que deixa a luz cacimbada da manhã iluminar a mobília coberta pelo silêncio. Sentado numa cadeira, junto a um piano, encerrado sobre o peso da solidão, encontra-se o dono do palacete, Monsieur Levy, um judeu sefardita diagnosticado com uma doença que o sentencia a morrer dentro de meses. Apesar da enfermidade, patente na morosidade dos movimentos e na tosse irregular, o porte físico de Levy é impressionante. Alto e corpulento, vestido com um roupão de veludo bordeaux, o septuagenário tem a aparência altiva e malsã de um carvalho carcomido, o que dá à lentidão dos seus gestos a gravidade do tempo estendido.

Levy aguarda a chegada de Franch, um opositor franquista, exilado em França, a quem deseja fazer uma proposta. O anarquista derrotado, um homem de cerca de cinquenta anos de idade, que veste uma gabardine verde-algácea, reminiscente dos trajes dos detectives privados, é anunciado por Lin Yu. Três idiomas são falados durante a primeira troca de palavras entre Levy e Franch: o inglês, o francês, e o castelhano, a língua em que o resto da conversa se desenrola. A indecisão em escolher o idioma reforça a condição de desterrado dos protagonistas, que porventura sentem estranheza face à língua materna. Uma vez instalados, e acompanhados de um charuto e de um cigarro respectivamente, Levy relata que, por ser judeu, levou uma vida pautada por perseguições. Levy mudou várias vezes de identidade e morou em diversos países, desde Marrocos a Espanha, de França à China, território onde deixou uma filha hispano-chinesa, chamada Judith. A mãe de Judith, uma actriz conhecida pelos seus jogos de leques, integrou-a nos seus espectáculos e alterou o nome da adolescente para Qiao Shu.

No decorrer do relato, o enquadramento enfatiza a corpulência de Levy, que ocupa grande parte da tela. O tom de voz grave e o ritmo compassado com que articula as palavras aumentam a força de atracção do seu corpo. As suas mãos são pálidas, os dedos são esguios e compridos como as patas de uma aranha-do-mar, o seu sobrolho está permanentemente carregado, e o rosto encontra-se coberto de teias de rugas. Franch, que tem um olhar cinzento e derrotado, ouve Levy com um mutismo impassível, sem compreender a razão pela qual este o convidou e lhe está a contar esta história.

Levy explica-lhe que o seu último desejo é ver a filha, de quem perdeu o rastro. Judith é a única pessoa com quem tem laços de sangue, a única que carrega em si um pouco dele. O velho afirma que apenas poderá encontrar reconhecimento no olhar da filha – como se depois de uma vida marcada por mudanças de identidade, os olhos de Judith fossem o espelho em que pudesse ver a sua verdadeira imagem. Assim, a missão que Levy propõe a Franch é a de partir para a China, e de encontrar e resgatar Judith.

Antes de se retirar, o velho dá-lhe duas fotografias, uma a preto-e-branco e outra com uma viragem em sépia: a primeira figura a antiga mulher, que esconde a parte inferior do rosto com um leque, deixando os olhos descobertos, a segunda, um retrato da filha, que segura o mesmo leque junto ao colo (figura 1). Portanto, mãe e filha são caracterizadas como duplas, até porque Judith foi incorporada pela mãe no seu espectáculo teatral. Levy insta Franch a levar o retrato da filha, mas pede-lhe para que não o perca. Deste modo, caso não seja encontrada, terá a filha ao seu lado na morte, nem que seja em representação. A fotografia de Judith, que está vestida com trajes tradicionais chineses, orientará a viagem de Franch ao Oriente e permitir-lhe-á reconhecer a rapariga quando a encontrar.

Figura 1 – Duplas. Fotograma de Cerrar los ojos

Os homens despedem-se e a câmara retorna ao exterior do château. Franch está a dirigir-se para a saída da propriedade, através de um acesso lamacento, com a fotografia de Judith na mão, quando a imagem é suspensa. Sobre o paralítico, a voz-sobreposta informa que as imagens vistas até então correspondem à sequência inicial de La mirada del adiós, um filme de Miguel Garay, rodado em 1992, que nunca foi concluído porque Julio Arenas, o actor que interpretava Franch, desapareceu durante a filmagem.

Os motivos medulares de Cerrar los ojos são apresentados neste segmento que encena um filme dentro do filme. A perda e a transformação de identidade, a figura do duplo, o mote do desaparecimento, a importância da imagem fotográfica, e o poder transcendente do olhar são exemplos de temáticas trabalhadas no prólogo de La mirada del adiós que, mais tarde, ressurgem na vida dos envolvidos na produção do filme. De igual modo, alguns objectos do espaço fictício do Château Triste le Roy reaparecerão, com novas camadas de significado, na realidade dos protagonistas.

Muito se tem escrito acerca de como Cerrar los ojos dialoga com a vida (e o cinema) de Victor Erice. Embora se reconheça esse facto, o objectivo do presente artigo não consiste em catalogar os cruzamentos desta obra com a vida e a restante filmografia do realizador. Todavia, constata-se que, do mesmo modo que se podem encontrar ecos da carreira de Erice em Cerrar los ojos, o espectador também consegue estabelecer paralelos entre a vida de Miguel Garay e La mirada del adiós. Ou seja, Erice reflecte acerca de como o cinema e a vida se contaminam ao construir uma narrativa protagonizada por um cineasta que vê a sua realidade ser plasmada pelas ficções produziu. Ao fazê-lo, Erice reclama que Garay seja visto como uma outra faceta sua, seguindo, desta forma, o modelo de Jano. Assim, é difícil esgotar as camadas de intertextualidade extra-fílmica e pro-fílmica de Cerrar los ojos, que é uma mise-en-abyme de espelhamentos.

O Desaparecimento de Miguel Garay

Após o paralítico que põe fim à cena de La mirada del adiós, a realidade diegética muda. A localização espácio-temporal da narrativa é agora Madrid, 2012. O protagonista é Miguel Garay, o cineasta que viu o seu filme ser abortado pelo desaparecimento de Julio Arenas. A transição de uma realidade para a outra verifica-se, entre outras coisas, na materialidade da imagem. O trecho de La mirada del adiós foi filmado em 16mm, ao passo a porção que se desenrola no mundo dito real foi filmada com dispositivos digitais, sendo a qualidade plástica das imagens distinta.

É significativo que os primeiros planos que se passam no presente enquadrem a estação de comboios da Ciudad del cine e a avenida da Ciudad de la imagen, um complexo de escritórios e estúdios dedicado à produção audiovisual. Ambos os planos mostram a estação e a avenida que homenageiam o cinema e a imagem praticamente desertas.

Garay, que reside na região da Andaluzia, deslocou-se de comboio a Madrid para participar em Casos sin Resolver. A participação no programa televisivo, que especula sobre casos policiais que nunca foram solucionados, marca o retorno de Garay a um estúdio vinte anos depois da interrupção da sua segunda longa-metragem. Esta sequência de passos, desde os planos da Ciudad del cine e da Ciudad de la imagen à conversa com a apresentadora sensacionalista diante um desktop, lamentam o estado da arte da produção de cinema, agora renomeado de audiovisual. Na Ciudad de la imagen a sétima arte foi substituída pela televisão que se alimenta de escândalos. Quer isto dizer que Erice adopta um regime de imagem digital ao mesmo tempo que critica o novo fazer cinematográfico.

O regresso a Madrid dá a Garay a oportunidade de reencontrar figuras do passado, entre elas Max Roca, um velho amigo e colaborador. Roca, um homem com cerca de setenta anos de idade, nariz bulboso e sorriso pueril, é o montador do seu filme inacabado e a pessoa que conserva as bobines do material rodado. Com um copo de uísque na mão e um tom amargurado na voz, os amigos conversam sobre o passado, que é tudo o lhes resta. É nele que estão as suas paixões, incluindo o cinema. Garay aponta que reparou que Roca alterou um dos cartazes em exposição na sua sala-de-estar: Faust – Eine deutsche Volkssage (F.W. Murnau, 1926) foi substituído por They Live By Night (Nicholas Ray, 1948). A referência a Fausto, uma figura folclórica que faz um pacto com o diabo para não envelhecer, ecoa uma observação de Roca. O montador afirma que Arenas tinha dificuldade em lidar com o envelhecimento. Ao trocar o cartaz de Fausto pelo da obra de Ray, em que dois jovens em fuga seguem disparados em direcção à morte, Roca mostra que aprendeu a aceitar a finitude e a iminência da morte.

Ana Arenas, a filha do desaparecido, é outro dos fantasmas que Garay reencontra. Sentados na área da restauração do Museu do Prado, a guia confessa que não tem presente a imagem do pai. Arenas era uma presença furtiva, uma figura quase sempre ausente, mesmo antes de desaparecer. Embora atormentada pelo caso, Ana tentou seguir em frente.

O último encontro de Garay acontece no seguimento da ida a uma feira do livro. Garay procura por Caligrafía de los sueños, de Juan Marsé, mas descobre um exemplar do seu romance Las Ruínas, que na época lhe granjeou um prémio literário. Garay pega no livro, perdido entre tantos outros, como se este o tivesse convocado, e reconhece-se, na fotografia da contracapa, com um certo grau de estranheza. Depois de folhear o livro, Garay encontra, na folha de guarda, uma dedicatória escrita por si: “A Lola, por todos los soles compartidos” (figura 2).

Figura 2 – Um Miguel Garay em ruínas encontra outro Miguel Garay. Fotograma de Cerrar los ojos.

Nessa tarde, o cineasta tenta ler o romance, sem sucesso. Já não se revê nele. A descoberta fortuita de Las Ruínas leva-o a procurar Lola, uma dançarina de tango argentina por quem ele e Arenas estiveram apaixonados, nos anos 70. Nessa época, devido à influência de Lola, Julio Arenas chegou, inclusive, a dar aulas de tango sob o nome de Mario Guardione, o que figura uma nova mudança de nome.

Finalmente, os antigos amantes encontram-se na casa de Lola e discutem, diante o crepitar sereno da lareira, acerca do único tópico possível: as ruínas do passado. Garay sente-se perturbado pelas memórias reacendidas pela participação no programa. Ele recorda que, durante a rodagem, Arenas envolveu-se com uma mulher, e que isso fez com que o actor recorresse ao álcool. Num dos dias da filmagem, o actor esqueceu-se mesmo das falas, um prenúncio do porvir.

Garay e Lola reconhecem que Arenas tinha o desejo de evadir-se, de mudar de identidade, de desaparecer sem morrer. As ponderações de Garay a respeito do destino do amigo despontam imagens que ilustram os cenários hipotéticos que o cineasta cisma há vinte anos. Assim, o espectador assiste ao filme que Garay realizou na sua mente com as peças soltas do puzzle. Neste sentido, Garay continua a ser um cineasta. A conversa termina com Garay a dar novamente Las Ruínas a Lola, e com esta a cantar-lhe os versos de La canción y el poema, de Idea Vilariño, o tema que os uniu:

Hoy que el tiempo ya pasó,
Hoy que ya pasó la vida,
Hoy que me río si pienso,
Hoy que olvidé aquellos días,
No sé por qué me despierto
Algunas noches vacías
Oyendo una voz que canta
Y que, tal vez, es la mía

Os versos da canção espelham os motivos principais do drama. O sujeito poético reflecte acerca do passado, da memória e do esquecimento. Nos versos finais, o sujeito da enunciação diz ouvir um murmúrio, uma entoação que preenche as noites vazias, uma voz que, estranhamente, suspeita ser a sua. Ou seja, o sujeito reconhece-se fora de si próprio. A tensão entre ipseidade e outridade, e a autodescoberta por via de uma identificação de si no exterior são temas que se consumarão na segunda metade da trama.

Os três episódios considerados anteriormente são fundamentais para a leitura de Cerrar los ojos. Por um lado, expõem informações que permitem ao espectador interpretar o presente das personagens à luz do seu passado. Por outro, as conversas que o cineasta tem com os seus fantasmas dão conta do desaparecimento de... Miguel Garay. Conquanto o mistério em torno de Julio Arenas seja o tópico comum às conversas, a verdade é que o retorno de Garay a Madrid revela como a perda do amigo o eclipsou. O reencontro com Max, Ana, e Lola comprovam a estranha pulverização de Miguel Garay, outrora um romancista e cineasta respeitado que se tornou numa figura anónima, abatida, num velho cujo traço distintivo são as manchas pardacentas das suas olheiras pulposas.

Antes de retornar à Andaluzia, Garay visita, por duas vezes, um armazém onde estão pertences seus, bem como adereços e figurinos de La mirada del adiós. De novo, a matéria da realidade e da ficção entrelaça-se. Na primeira vez, o cineasta encontra a gabardine usada por Arenas no seu filme e veste-a. Com este gesto, o motivo do duplo desdobra-se. Garay veste a roupa do fantasma para se proteger da chuva e para se reaproximar do amigo, mas ao fazê-lo está, em certa medida, a interpretar Franch, visto que, à semelhança do agente, o cineasta também procura um desaparecido. Por momentos, o protagonista confunde-se com Arenas e com a personagem que escreveu. Ou seja, há novamente um cruzamento entre o domínio do real e da imaginação. Na segunda visita, a luz do compartimento está cortada, pelo que Garay vê-se obrigado a vasculhar, às escuras, por entre os objectos do passado mal resolvido. Dentro de uma pequena caixa, que contém pertences afectivos, estão um folioscópio que reproduz L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat (Auguste e Louis Lumière, 1897) e umas fotografias suas e do filho, Mikel, entretanto falecido num acidente de viação (figura 3). Desta vez, são esses os objectos que leva consigo na viagem de volta ao sul.

Figura 3 – O tempo, o mar, o filho e o cinema dentro de uma caixa de recordações. Fotograma de Cerrar los ojos.

O regresso de Garay ao Cabo de Gata, um promontório localizado em Almería, marca um ponto de suspensão na intriga. O espectador é confrontado com o estilo de vida a que o auto-exilado se condenou. Garay habita perto da praia, num parque de autocaravanas, juntamente com a família adoptada, que consiste num jovem casal, Toni e Teresa, um pescador que se auto-intitula de Patón, e uma cadela.

A importância dos nomes não é de somenos. Teresa está grávida e ainda não se decidiu quanto ao nome que deseja dar à filha. A incerteza de Teresa, o mesmo nome da mãe de Estrella, a protagonista de El sur, motiva uma conversa. Toni diz que gostava que a filha se chamasse Estrella ou Esmeralda, e Patón brinca com o seu nome de baptismo ser Rufino, um nome próprio feio, no seu entender, o que o levou a adoptar uma alcunha.

Anteriormente, já se tinham verificado duas mudanças de nome – Judith passara a ser Qiao Shu, e Julio Arenas a ser Mario Guardione no salão de dança. Em diante, verificar-se-ão mais alterações de nome, mudanças que acarretam, por vezes, uma transformação identitária. Tal pode ser constatado, desde logo, em Garay que, por estas bandas, é conhecido por Mike, o que aproxima o seu nome ainda mais daquele do seu falecido filho, Mikel. A alteração de nome consolida a leitura de que Miguel Garay, devido aos infortúnios que sofreu, desapareceu, tornou-se noutro.

Este episódio de comunhão com os membros da família alargada tem uma luminosidade até então ausente porque a conversa é prospectiva – afinal, as personagens estão a falar sobre o nome da futura filha do casal. Porém, a cena termina com Tony e Garay a cantarem, acompanhados de uma guitarra acústica, tocada pelo último, “My rifle, my pony and me”, uma canção que tocam de quando em quando. Ao tocarem a música celebrizada pelo filme Rio Bravo (Howard Hawks, 1959), as personagens estão a recolher-se na matéria segura e afectiva do passado através de uma música que se vale do imaginário do faroeste para reflectir sobre a finitude e a solidão. Até entre os novos companheiros a memória e o passado acabam por se sobrepor ao presente e ao futuro.

Garay refugiou-se no sul para fugir ao fardo do passado. A ida a Madrid e a exumação do caso de Julio Arenas obrigam-no a confrontar quem foi. A sua relação com a memória aparenta mudar, ainda que ligeiramente. Prova disso é que Garay coloca as fotografias do filho num quadro de cortiça que tem dentro da caravana, um gesto que sinaliza a tentativa de se reconciliar com o passado e com a dor, ao invés de a ignorar.

Não obstante, o protagonista procura anestesiar o sofrimento com uma rotina simples, mas activa: Garay levanta-se de madrugada para pescar, cuida da pequena horta contígua à sua caravana, lê e faz traduções para uma editora local.

O retorno ao torpor do quotidiano é interrompido por uma chamada de Marta Soriano, a apresentadora do programa para o qual Garay contribuiu e que, entretanto, foi transmitido. Soriano informa-o de que uma telespectadora a contactou com a notícia de que conhece o paradeiro de Julio Arenas. Para comprovar a alegação, Belén, uma trabalhadora social em Granada, enviou uma fotografia de um homem idêntico ao actor.

O (Des)aparecimento de Julio Arenas

Garay parte no dia seguinte rumo à instituição de assistência social, que fica numa outra parte da Andaluzia. Lá, o cineasta é acolhido por Belén, uma mulher de tez pálida, cabelos soltos, e olhos azuis gélidos. Já no interior do seu escritório exíguo, Belén inteira-o da situação. O homem retratado na fotografia é conhecido por Gardel. Porém, esse nome foi-lhe atribuído pelas irmãs que gerem a instituição em virtude de o desconhecido cantarolar tangos, sendo Carlos Gardel um dos nomes de referência desse género musical. As irmãs tiveram de lhe atribuir um nome porque Gardel, que foi encontrado sem consciência devido a uma insolação, não se recordava de nada. Estes eventos tiveram lugar há três anos e, desde então, Gardel trabalha e vive no lar. De seguida, Belén convida Garay a observar à distância Gardel, que se encontra a trabalhar numa pequena oficina contígua ao edifício principal do lar. O enquadramento, que parte do ponto de vista de Garay, que está no terraço com Belén, não é esclarecedor. Consegue-se distinguir a silhueta de um homem alto, com o cabelo curto e grisalho, pouco mais. O plano termina com Gardel a abandonar a oficina numa bicicleta.

Com Gardel longe das imediações, Belén e Garay entram no seu aposento, um casebre cuja construção aparenta estar inacabada devido às telhas e cimento expostos. A trabalhadora social remexe os bens de Gardel até que encontra um caderno. Entre as páginas, escondida e protegida, está uma fotografia – o retrato de Judith que Levy dá a Franch, e que este jura preservar (figura 4). Como tal, a fotografia que foi dada com o intuito de guiar Franch, e de facilitar o reconhecimento de Judith no espaço fictício de La mirada del adiós, é o objecto que confirma o reaparecimento de Julio Arenas.

Figura 4 – A ficção cruza-se com a realidade. Fotograma de Cerrar los ojos.

No entanto, ninguém compreende qual é a relação de Gardel com a imagem. Se o antigo actor não se recorda de nada a respeito de quem foi, então por que razão guardou o adereço cenográfico do último filme em que participou? Garay suspeita que Gardel desconhece, por completo, que aquela fotografia representa uma personagem e, por isso, receia que o amigo tome a adolescente retratada como alguém do seu passado.

Os amigos reencontram-se oficialmente naquela mesma tarde, à hora de almoço. Arenas e Garay trocam olhares enquanto estão à mesa, na cantina do lar. Os olhos de Garay transmitem expectativa e inquietação, enquanto o olhar de Arenas o atravessa.

Depois de partirem pão, os amigos têm a oportunidade de falar e cantar também. Garay pergunta ao amigo como se chama e este responde Gardel. O cineasta informa-o de existiu um cantor de tangos chamado Carlos Gardel e começa a cantarolar os versos nostálgicos de “Caminito”, dos quais Gardel se recorda espontaneamente:

Caminito que el tiempo ha borrado
Que juntos un día nos viste pasar
He venido por última vez
He venido a contarte mi mal
Caminito que entonces estabas
Bordeado de trébol y juncos en flor
Una sombra ya pronto serás
Una sombra lo mismo que yo
Desde que se fue
Triste vivo yo
Caminito, amigo
Yo también me voy

De novo, os versos da música espelham os temas do drama, nomeadamente o esquecimento, a perda, e o desaparecimento. O sujeito lírico do poema chora a partida da cara-metade e como a perda da amada o transfigurou numa sombra de quem era.

As conversas estendem-se ao longo de dias, uma vez que as irmãs permitem a Garay permanecer na instituição de solidariedade social durante algum tempo. As suas conversas tornam inequívoco que Arenas não está a desempenhar a performance da sua vida: o actor não se recorda, efectivamente, de nada a respeito do seu passado. Gardel tem uma afinidade pelo mar, suspeita ter viajado por muitos países, inclusivamente a China, mas nada mais. A proximidade de Arenas e Garay ao mar é relevante porque andaram juntos na marinha. Este é mais um ponto em que o destino dos protagonistas se espelha. Ambos saíram de Madrid, desapareceram, perderam-se de si próprios, deixaram de ser capazes de comunicar com os filhos e de lhes dar um legado, e acabaram naufragados junto ao mar, em vilas costeiras na Andaluzia, a cerca de 200km um do outro. Até os nomes pelos quais actualmente respondem (Gar-ay e Gar-del) são semelhantes.

O passado de Garay e Arenas na marinha é decisivo em duas sequências que representam a criação de laços entre o cineasta e Gardel. Num primeiro instante, Garay confronta Gardel com uma fotografia que Ana lhe havia dado aquando da sua passagem pelo Museu do Prado. Datada de 1967, a fotografia retrata Garay e Arenas, lado-a-lado, com sorrisos de camaradagem no rosto, vestidos com o uniforme da marinha (figura 5).

Figura 5 – O eu é um outro. Fotograma de Cerrar los ojos.

O realizador utiliza o indicador para esclarecer quem é quem. Todavia, o antigo actor diz que nem ele nem Garay são as pessoas representadas na fotografia. Gardel não se reconhece a si nem ao amigo. Em certa medida, tem razão, aqueles são outros. Num segundo momento, Garay mostra a Gardel como se dá um nó de marinheiro. Intrigado, o desaparecido imita intuitivamente os passos feitos pelo realizador. Gardel desconhece quem é, mas sabe andar de bicicleta, dar nós de marinheiro, e cantar os tangos que aprendeu na época em que dançava com Lola. Neste sentido, não é só a película cinematográfica que regista a memória, o corpo também é uma matéria que regista as experiências.

Uma das outras partes interessadas no aparecimento de Julio Arenas é a sua filha, Ana. Garay contacta-a e informa-a de que o homem avistado em Granada é o seu pai. A guia de visitas deixa a família em Madrid e viaja, com alguma relutância, até ao sul. Ana sabe que o reencontro com o pai poderá rasgar ainda mais um golpe que nunca cicatrizou. O trajecto narrativo de Ana espelha o de Estrella, a protagonista de El Sur, que viaja para Sevilha em busca de rastros do pai que nunca chegou a compreender, Agustín Arenas.

Belén e Garay recebem-na e levam-na, durante a noite, ao encontro do pai, que está no casebre onde costuma pernoitar. Ana entra na habitação precária e mal iluminada numa altura em que o pai está na cama, virado para a parede, a descansar. Gardel apercebe-se de que alguém se encontra na divisão consigo, vira-se, e repousa o olhar levemente surpreso e mudo no da filha. O contra-plano figura o rosto acometido de Ana, uma mulher com cerca de cinquenta anos de idade, testa alta, e lábios finos, traçados a lápis. A cena termina com a troca de olhares a ser interrompida por Ana, que fecha placidamente os olhos e murmura para si própria “soy Ana, soy Ana.”

A frase remete, desde logo, para El espíritu de la colmena (1973), a primeira longa-metragem de Víctor Erice, que é protagoniza por Ana Torrent, a mesma actriz que cinquenta anos mais tarde interpreta Ana Arenas, em Cerrar los ojos. Torrent, que contava com seis anos de idade, encarnava, de igual modo, uma personagem chamada Ana.

A intriga desenrola-se numa aldeia espanhola, em 1940, e segue Ana, uma menina que, impressionada com o visionamento de Frankenstein (James Whale, 1931), começa a confundir o real e a fantasia. Numa das cenas centrais do filme, Ana pergunta à irmã a razão pela qual o monstro de Frankenstein mata a menina no filme, e por que motivo o monstro é linchado pelos aldeões, de seguida. A irmã assegura-lhe que Ana não tem nada a temer porque no cinema tudo não passa de um logro. Logo, apesar do que as imagens possam indicar, nem a menina nem o monstro morreram. Além disso, esclarece Isabel, a irmã mais velha, o monstro é um espírito e, como tal, não pode ser morto. Isabel encerra a conversa revelando a Ana a fórmula que deve usar para convocar o espírito que viu na tela do cinema: “Cerra los ojos y le llamas: Soy Ana, soy Ana.”

O paralelismo entre as sequências permite que uma seja lida à luz da outra. Assim, ao fechar os olhos e dizer “soy Ana, soy Ana”, a filha de Arenas está a convocar o fantasma do actor, uma vez que o homem que está diante de si não é exactamente o pai, mas um outro. Gardel vive no corpo de Arenas. Quer isto dizer que Julio Arenas continua desaparecido embora tenha sido encontrado.

Todavia, as camadas de intertextualidade da frase em análise não se esgotaram. As palavras de Ana ecoam um outro filme: La mirada del adiós. Ana cumpre o desejo de Levy ao perscrutar, na noite, os olhos do familiar desaparecido. É possível que algum reconhecimento advenha dessa troca de olhares, afinal, a filha reafirma a sua identidade ao dizer “soy Ana, soy Ana.” Como tal, a frase dita por Ana é precisamente a única que não podia ser dita por Julio Arenas, que não sabe quem é.

Entretanto, Garay recebe, no quarto em que está acomodado, a visita de uma das irmãs que administra o centro, a Soror Consuelo, uma senhora de idade que tem sempre um registo afável. A irmã entrega-lhe uma caixa de latão, semelhante à caixa que Garay tem no armazém e que Estrella leva para Sevilha, em El sur, que contém os pertences que Gardel tinha em sua posse quando foi encontrado, sem sentidos, junto ao mar. Entre os objectos está uma peça de xadrez branca, um rei (figura 6).

Figura 6 – O xeque-mate da ficção sobre a realidade. Fotograma de Cerrar los ojos.

O rei esculpido em marfim reporta, de novo, para o prólogo de La mirada del adiós, que se desenrola no Chatêau Triste le Roy. Nessa sequência preambular, Franch pergunta a Levy a origem do nome do palacete. Levy, que se encontra sentado junto a um tabuleiro de xadrez, diz que foi o próprio que atribuiu o nome à propriedade, e que o termo deriva de um conto. Embora o título não seja indicado, o conto em causa é La muerte y la brújula, um dos contos de Ficciones, de Jorge Luis Borges. No começo dos anos 90, Erice adaptou o conto na forma de argumento cinematográfico, mas nunca chegou a realizá-lo.

Gardel não se recorda de quem foi e, no entanto, tinha consigo uma peça de xadrez que reporta para o filme que nunca completou, bem como conserva uma fotografia de Judith. No entender de Garay, estes factos significam uma de duas coisas: ou Arenas perdeu a memória depois de ter desaparecido por vontade própria, tendo, de início, conservado o rei e a fotografia como souvenir de uma vida passada, ou então o actor há muito que está desmemoriado, mas guarda aqueles objectos porque intui, ainda que inarticuladamente, que eles encerram um resquício de quem foi. A questão é que a identidade da qual Gardel pode reter vestígios pode ser Franch, não Arenas.

A ideia de que a realidade diegética de La mirada del adiós pode ser o fio de Ariadne que conduz Gardel ao passado leva Garay a arquitectar um esquema. O plano consiste em confrontar Gardel com a cena final do filme protagonizado por Julio Arenas. A cena representa o retorno de Franch, acompanhado de Judith, ao Chatêau Triste le Roy. A esperança do cineasta é que algo desperte em Arenas ao ver-se interpretar Franch, que se encontra junto à adolescente retratada na fotografia que conserva no caderno.

Além disso, a projecção do epílogo de La mirada del adiós completa a estrutura simétrica de Cerrar los ojos. A acção começa e acaba com cenas do filme inacabado, e a narrativa encontra-se dividida em duas partes, uma que se desenrola no norte e representa o eclipse de Garay, e outra decorre no sul e retrata o (des)aparecimento de Arenas.

Voto de Fé

O plano entra em acção com a chegada à Andaluzia de Max Roca, o velho amigo de Garay que salvaguardou as bobines de La mirada del adiós. Em simultâneo, Garay, Ana, Belén e as irmãs da instituição de caridade unem esforços para reabrir, por um dia, o Lecrín Cinema, uma sala de cinema que outrora projectou as provas dos westerns spaghetti filmados no sul de Espanha. Ou seja, em tempos, a sala não só foi um espaço de exibição de filmes, como era usada no contexto de produção. Depois de serem apresentados à sala e aos seus dispositivos, Roca e Garay desempoeiram o local de culto abandonado, ruína de uma época em que as pessoas criam na luz das imagens em movimento. Roca confronta Garay a este respeito, censurando-o por montar um plano mais assente na fé do que na razão. “En el cine ya no hay milagros desde que murió Dreyer”, diz o montador em tom de gracejo, completando a boutade com a afirmação de que apesar de continuar a ser praticante, mas perdeu a crença no cinema.

Garay, Gardel, Ana, Belén, as duas irmãs que administram o lar, e Roca, na sala de projecção, são os espectadores presentes na estreia no cinema de La mirada del adiós. O realizador escolhe a posição de cada um dos espectadores na sala, como se estivesse a dar orientações aos actores, indicando-lhes o ponto em que se devem dispor. Mais próximo da parte de trás ficam as mulheres do lar, umas filas adiante encontram-se Gardel e Ana, lado-a-lado, e junto às filas dianteiras senta-se Garay que, desta forma, pode virar-se para trás e assistir à reacção de todos, em particular do amigo desaparecido.

A cena projectada corresponde ao epílogo de La mirada del adiós, um filme que tem apenas princípio e fim. Conforme foi mencionado, a cena representa o regresso de Franch ao Château Triste le Roy depois da sua jornada pela China, onde encontrou Judith, a filha desaparecida que Levy desejava ver antes de morrer. Levy encontra-se novamente sentado junto ao piano, que ocupa um lugar central no salão, quando recebe Franch e a filha. Judith está vestida como na fotografia, o que cria a sensação de que a adolescente se deslocou directamente da representação para a realidade. A rapariga tem consigo, inclusivamente, o leque com que foi retratada, o mesmo leque que utilizava nos espectáculos da mãe. Judith serve-se do leque para se apresentar numa pose idêntica à da mãe na fotografia que Levy dá a Franch antes de partir para a China: o leque é colocado à frente do rosto, apenas o olhar fica a descoberto. Foi este movimento, intitulado de “Shanghai Gesture”, uma referência ao filme homónimo de Josef von Sternberg, pelo qual a sua mãe ficou conhecida enquanto actriz, na China. Ou seja, ao fazer este gesto a rapariga mostra-se ao pai com uma máscara feita à medida da mãe (figura 7).

Figura 7: Judith à imagem da mãe. Fotograma de Cerrar los ojos.

Agastado pela postura da filha, que o trata com distância, como se fosse o espectador de uma das suas performances, Levy molha um lenço na água empoçada de um vaso, levanta-se da cadeira, aproxima-se da filha, e limpa-lhe a maquilhagem dos olhos. A vida de Levy foi feita de máscaras, logo, na hora da morte, quer contemplar um rosto cândido, um olhar limpo, especular. Levy fraqueja e colapsa instantes depois de olhar nos olhos a filha, que deixou de estar em pose. Com o rosto maculado pela tintura da maquilhagem e os olhos marejados, Judith acolhe no colo o pai, estendido sobre o soalho. Levy pede-lhe que ela cante uma música sefardita, “Hija mia, mi querida”:

Hija mia mi querida
Aman, aman, aman
No te eches a la mar
Que la mar esta enfortuna
Mira que te va llevar
Que me lleve que me traiga
Aman, aman, aman
Siete puntas de hondor
Que m’engluta pexe preto
Para salvar de l’amor

Esta é a quarta e última música cantada em Cerrar los ojos. As músicas agem, em parte, enquanto dispositivos que comentam a acção do filme de forma auto-reflexiva, porquanto os versos das canções retratam o drama das personagens. Além disso, as quatro canções desempenham uma função mnemónica. Em todas as sequências o acto de cantar e escutar uma canção remonta para o passado das personagens e desperta memórias.

Enquanto a ouve cantar, Levy morre nos braços da filha, de olhos abertos, fixos no olhar de Judith, o único que o poderia reconhecer e no qual se poderia ver reflectido. La mirada del adiós termina com Judith a fechar os olhos apaziguados do pai morto.

Paralelamente, na sala do Cinema Lecrin, onde Gardel e os restantes assistem ao desfecho do filme, a câmara enquadra os rostos iluminados dos presentes. Estes planos têm uma dimensão auto-reflexiva, na medida em que os semblantes das personagens assemelham-se aos dos espectadores de Cerrar los ojos, o que significa que o público é integrado na rede de espelhamentos do filme. Os rostos aparentam brilhar na sala escura porque o projector, para além de animar a tela com luz, também ilumina o espectador. A luz das imagens não se cinge à tela porque esta reflecte e, por sua vez, ilumina o público.

Figura 8 – Crença na luz. Fotograma de Cerrar los ojos.

É nessa luz que reside a potência metafísica que Garay atribui ao cinema. A luz do cinema e as imagens em movimento são retratadas como fontes de revelação. A tese avançada é que todo o espectador pode empreender um processo de revelação idêntico ao que Garay acredita que Gardel vai experimentar. Isto é, a confrontação com as imagens pode fazer o espectador ver além da realidade projectada, fazendo-o, quem sabe, vislumbrar fragmentos remotos de si próprio que só as sombras do cinema podem iluminar. Neste sentido, a experiência do cinema é entendida como uma experiência transcendente.

Cerrar los ojos termina com um grande-plano de Gardel, que olha para a tela como se nela visse um outro horizonte. O seu último gesto é fechar os olhos, lentamente. A tela escurece e o espectador ouve o som de uma fita a soltar-se do projector.

Portanto, o filme não responde se o plano de natureza transcendental de Garay resultou, despertando o fantasma de Arenas, reintegrando-o no seu corpo. De igual modo, permanece por resolver a incógnita em torno da desaparição do actor, dado que nunca se chega a perceber se o eclipse de Arenas durante a rodagem de La mirada del adiós foi volitivo, e em que momento é que este perdeu a noção de quem era. Contudo, o verdadeiro mistério no cerne de Cerrar los ojos, o enigma que Erice procura sondar sem resolver, é a relação, quem sabe metafísica, do espectador com as imagens em movimento.

Conclusão

Cerrar los ojos assume a forma de uma galeria de espelhos – as personagens, os seus gestos, e os temas que estruturam a narrativa são como superfícies refractárias que se entrecruzam, criando uma constelação de reflexos e duplicidades que tornam a realidade e a imaginação difíceis de destrinçar. O presente texto faz uma leitura do filme que atende, em particular, a estes processos de espelhamento que culminam no desfecho auto-reflexivo que convoca explicitamente o espectador. Neste sentido, aquela que se afigura ser a despedida de Erice é uma obra que se propõe, acima de tudo, a reflectir sobre a memória, o fascínio pelas imagens em movimento e a crença na experiência do cinema.

Bibliografia

Borges, Jorge Luis. 1944. Ficciones. Buenos Aires: Emecé Editores

Marsé, Juan. 2011. Caligrafia de los sueños. Barcelona: Lumen

Marsé, Juan. 1993. El embrujo de Shanghai. Barcelona: Plaza & Janés

Filmografia

Cerrar los ojos. 2023. De Víctor Erice. Espanha: Avalon.

Belle Époque, 1992. De Fernando Trueba. Espanha: Universal Pictures.

El espíritu de la colmena. De Víctor Erice. Espanha: Elías Querejeta PC

El Sur. 1983. De Víctor Erice. Espanha: Elías Querejeta PC.

Faust – Eine deutsche Volkssage, 1926. De F.W. Murnau. Alemanha: UFA.

Frankenstein, 1931. De James Whales. Estados Unidos da América: Universal Pictures.

L’arrivée d’un train à La Ciotat, 1897. De Auguste Lumière, Louis Lumière. França.

Rio Bravo, 1959. De Howard Hawks. Estados Unidos da América: Warner Bros. Pictures.

The Shanghai Gesture, 1941. De Josef von Sternberg. Estados Unidos da América: United Artists.

They Live By Night, 1948. De Nicholas Ray. Estados Unidos da América: RKO Pictures.