Capítulo / Chapter II | Cinema – Cinema

Three portraits of the cangaço: documentary, avant-garde and parody.

Três retratos do cangaço: Documentário, vanguarda e paródia.

Miguel García Victoria

Universidad Complutense de Madrid, Espanha

Abstract

From the very beginning of the phenomenon of cangaço in northeastern Brazil, filmmakers have been attracted to it. In 1937, Benjamin Abrahao films Lampião’s gang (the most famous bandit of its time), from a documentary approach, since then, brazilian cinema have developed their own cinematographic genre. The Novo cinema takes the Northeastern as a key to construct the national cinema. Glauber Rocha, with his Deus e o diabo na terra do Sol (1964), starts an avant-garde way to portray the past and present of his country by adding big amounts of folklore and politics. These two manners of treating the Cangaço, contrast with the irony and parody that Guel Arraes uses in O Auto da compadecida (2000) by adapting Ariano Suassuna’s homonymous play. That film becomes a big blockbuster in cinemas and an actual part of brazilian culture. Three very different ways of establishing a varied portrait of a complex reality in brazilian history.

Keywords: Cangaço, Nordeste, Brazilian Cinema, documentary, Glauber Rocha.

A singularidade do Nordeste brasileiro

Sendo o Brasil um país de dimensões continentais, apresenta internamente características bastante diferenciadas. A Região Nordeste inclui os Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Esta região apresenta uma complexidade cultural muito própria, que mescla aspectos herdados da colonização católica portuguesa com elementos das culturas indígenas e africana (Mendonça Bernardes, 2007; p.45). Com base nisto, construíram-se vários mitos contemporâneos influenciados pelo Nordeste na cultura popular, na arte e, por conseguinte, no cinema. “A simplificação do sertão a estereótipos de miséria e adversidades, onde a terra e os rostos são assinalados pelo sol, ocorre, em grande parte, pelas imagens monotemáticas — que salientam a seca, a fome e a miséria — divulgadas nos meios de comunicação e na arte” (Sá Linhares, 2011). Este reducionismo, que tem a sua base na literatura, é um elemento fundamental na formação cultural nordestina, já que “fomenta a identificação com as massas que, em geral, vêm de um contexto rural e mantêm laços afetivos e históricos com as suas raízes, o que valoriza e sustenta essas raízes culturais” (Melo, Barbosa e Braga, 2017). Tal refletir-se-á de forma direta no cinema: “o cinema brasileiro segue uma tendência da literatura brasileira ao definir o homem nordestino como sertanejo” (Freire Costa, 2014).

O sertão, conforme definido no dicionário, é uma “área pouco povoada do interior do país, especialmente do interior semiárido da parte noroeste, mais árida que a caatinga, onde a criação de gado predomina sobre a agricultura e onde persistem tradições e costumes antigos” (Ferreira, 1975: p.1293), indicando indiretamente uma diferenciação cultural em relação a outras regiões. Os factores físicos desta paisagem serão o sol e a água — ou a sua falta. A seca, uma aridez recorrente de forma cíclica, influenciará significativamente os habitantes do nordeste. Este fenómeno provocará pobreza que resultará em migrações, formando assim nos sertanejos um carácter errante e uma certa sensação de confinamento na sua terra: “no drama do errante, o sertão surge como um espaço insular. Dentro dele caminha-se pelos seus trilhos em círculos e não se consegue sair” (Ferreira e Da Silva, 2019). A seca também determinará o uso e a gestão deste vasto território onde o solo é muito fraccionado e não existem grandes explorações agrícolas. A falta de controlo administrativo e o vácuo de poder serão uma das causas do surgimento dos cangaceiros, um tipo de bandoleiros nómadas que até aos anos quarenta do século XX devastaram o sertão. O fenómeno do cangaço será um dos eventos mais notáveis ocorridos no Nordeste e, devido à proliferação de literatura e cinema com esta temática, tornou-se parte integrante do estereótipo nordestino. Esta figura de fora da lei evoluiu e ainda hoje gera interpretações conflituosas, desde aqueles que os consideram revolucionários românticos, aos que os classificam de meros ladrões e assassinos, ou aos que os colocaram no altar dos símbolos para os tempos atuais (Negreiros, 2018).

Cinematografia do Cangaço: Da Realidade á Ficcão

As abordagens cinematográficas ao sertão nordestino, ao longo da história, apresentam características bastante distintas. A grande maioria dos filmes ambientados no Nordeste, tendo o cangaço como tema principal, baseia-se em ficção com elevadas doses de interpretação, ficção e estereótipo: “a representação do cangaceiro era construída como a de um anti-herói, um cavaleiro que fazia justiça com as próprias mãos. Apresentando uma sociedade onde a justiça e a igualdade não existiam, o cangaceiro idealizado roubava dos ricos e acabava por ajudar os pobres” (Almeida, 2021). Os factos históricos encontram o seu fim de facto na morte do mais famoso dos cangaceiros, Lampião, em 1938. A imagem destes cangaceiros evoluiu ao longo dos anos, mas na sua época e de forma simultânea aos acontecimentos reais, o cinema já ousava retratar o movimento: refere-se ao filme documental de Benjamin Abrahão, Lampião, o rei do cangaço.

Quando Benjamin Abrahão se lança nesta aventura, é um cinegrafista amador que procura oferecer uma nova perspectiva ao que se havia tornado, em 1936, uma questão de estado. Conforme relatado por Frederico Pernambucano, “era um documentarista de primeira ordem, ainda que a técnica de Abrahão não fosse a mais avançada, mas sobrava-lhe intuição documental” (2011). São imagens que se tornariam um testemunho essencial para nos aproximar do grupo de Lampião. De tal forma que os retratos cinematográficos deste grupo de cangaceiros neste filme são quase os únicos testemunhos diretos destas personagens, que, pela sua vida errante e fora da lei, estavam afastadas das câmaras. Neste mundo do boca-a-boca, da tradição oral, Lampião, o rei do cangaço, surge como uma rara avis que dá imegem ao mito.

O impacto do filme poderia ser tal na sociedade brasileira da época que o governo ditatorial do presidente Getúlio Vargas proibiu a exibição do filme de Abrahão. O regime não podia permitir tal publicidade de um grupo que se opunha no Nordeste. “O filme foi vítima dos esquemas do Departamento de Imprensa e Propaganda do Brasil, que fazia do Estado Novo um regime de cartão-postal” (Pernambucano, 2011), onde não havia espaço para o banditismo nem se queria promover esse tipo de mitos populares. O filme que chegou até nós apenas recolhe parte das filmagens originais. A montagem de Abrahão ficou retida pela censura e só foi libertada parcialmente nos anos cinquenta pela Fundação Getúlio Vargas (Nogueira, 2020).

As imagens de Benjamin Abrahão têm um carácter que mistura o rural com a modernidade. “Estas imagens dos bandoleiros no auge da sua glória e poder, juntamente com as fotos da cena das suas mortes, fazem parte da espetacularização da violência que encontramos nas sociedades modernas” (Jasmin, 2005). Nestas, vemos os foragidos da lei em atitudes do seu dia a dia. Dançam, perfumam-se, caminham plenamente conscientes da presença da câmara. Atitudes que humanizavam os protagonistas e que colocavam ao nível do povo o grupo de Lampião, somado à intenção deles em utilizar esta propaganda para “impor o seu poder e mostrar que o sistema de valores, a vida que levavam, tinha um sistema próprio para eles” (Jasmin, 2005). Esta foi a principal razão pela qual as imagens se tornaram uma revolução inaceitável para o governo da época. Era a época da formação das lendas, onde estas imagens se misturavam com a versão oficial do governo, a literatura de cordel que, mais tarde, iria deformar e ampliar as histórias dos cangaceiros e de outras peculiaridades nordestinas. Ajuda-nos a ter uma ideia da quotidianidade do cangaço, embora no filme de Abrahão se omita a parte mais polémica do movimento, o tempo de banditismo em que atuavam fora da lei.

Como já foi indicado, esta é a única aproximação contemporânea à realidade do cangaço. Desde a dissolução dos grupos e até à atualidade, os documentários que abordam este facto histórico têm como objetivo a memória e a reconstrução do ocorrido naquela época. É o caso paradigmático de Os Últimos Cangaceiros (Wolney, 2011). Visita-se, através de um casal sobrevivente do grupo de Lampião, as memórias do cangaço. É interessante como as memórias dos personagens centrais do documentário se misturam com as imagens de Abrahão às quais acabámos de nos referir: os protagonistas deste filme visualizam e identificam-se nas imagens de Abrahão como um lembrete e, depois, completam com os seus comentários as áreas que ficaram mais desprovidas naquela antiga obra cinematográfica. O filme de Wolney permite uma revisão muito mais crítica dos factos históricos. Tenta-se, em certos pontos, romper o esquema mítico a que está submetido o cangaço, especialmente nas cenas em que se dá voz à protagonista feminina da fita. “Desprezadas nos seus discursos dentro do fenómeno do cangaço, as cangaceiras também tiveram o seu papel como personagens históricas, relegadas a um plano inferior” (Negreiros, 2018). Wolney tenta dar voz a quem na historiografia mais clássica sobre os cangaceiros tinha sido ignorada.

Outro dos pontos interessantes deste documentário de 2011 é que também introduz uma das ideias principais do movimento, que voltaremos a ver ao longo das diferentes interpretações ficcionais do cangaço: a importância do traje de cangaceiro na hora de criar uma identificação, um uniforme que os separava do resto. Apesar de serem foras-da-lei, vestiam-se com roupas ostentativas, cheias de ouro, com cores que não os camuflavam no sertão, quase uns trajes litúrgicos. A película Os Últimos Cangaceiros apresenta na sua primeira sequência os protagonistas que vão relembrar as suas memórias, retomando os seus hábitos.

A recepção do documentário, pela novidade e o retorno a uma mitologia já muito assumida, colheu um grande sucesso. Os factos retratados apenas confirmam algumas das observações feitas anteriormente, como a reinterpretação cultural dos factos do cangaço. Nesse retorno ao passado, com a viagem física e real aos lugares do nordeste de onde tiveram que fugir, os protagonistas do documentário são tratados como heróis. Há uma mitificação clara de um passado que não se conhece bem. Há partes em que esta produção, tal como também acontecia com Lampião, o rei do cangaço, evita entrar com profundidade nos aspectos mais controversos que o cangaço apresenta. Embora dê voz às mulheres e tente aproximar-se de um modo imparcial dos factos, passa por cima de questões mais delicadas e acaba por investigar mais tempo no terreno do sentimental do que numa investigação histórica aprofundada..

Uma Vanguarda Cinematografica: A Visão do Sertão por Glauber Rocha

Quando falamos de Deus e o Diabo na Terra do Sol, estamos a referir-nos a um dos filmes mais reconhecidos do cinema brasileiro além-fronteiras. Foi nomeado para a Palma de Ouro em Cannes em 1965, mas também é uma das obras reconhecidas como significativas do movimento de vanguarda Cinema Novo Brasileiro (Hernández, 2008). O seu realizador, Glauber Rocha, de origem baiana e, portanto, nordestino, escolhe o cenário do sertão como palco da sua primeira grande produção. Nela, investe uma grande quantidade de recursos técnicos inovadores e estratégias narrativas diferentes daquelas que estavam a ser utilizadas no cinema nacional da sua época: “era necessário mudar o estilo fotográfico do cinema no Brasil” (Barreto, 2000). Não é apenas a mudança para uma abordagem muito mais revolucionária das temáticas, mas também das formas.

O filme constitui a primeira entrega de uma duologia temática sobre o Nordeste, que conclui com o filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (António das Mortes) (Rocha, 1969). Ambas as películas podem ser enquadradas dentro do género western, tendo-se criado o termo específico “nordestern” a partir destes filmes de Rocha. Desde os seus inícios como crítico, o realizador mostra um interesse especial em analisar e depois cultivar-se na produção destes filmes temáticos: “será um filme de cangaceiros sobre a vida do bandido Corisco, aproveitando as lições do realizador que mais admiro: John Ford. Com as suas lições, posso talvez refletir sobre a vida do nordestino pobre entre cangaços, beatos e polícia” (Rocha, 1981 refp100). Sobre o mito cinematográfico americano por excelência, Rocha aplica e molda o género segundo as suas necessidades. Sobre esta base estética, aplica-se um tratamento inovador — cinematograficamente falando — das temáticas nordestinas: “O problema da câmara na mão já não é problema de ausência de capital básico, mas sim resultado de uma nova visão cinematográfica do mundo inteiro” (Rocha, 1961) — dos temas nordestinos. Tudo isso responde ao interesse político-social de Glauber Rocha na construção de um novo cinema brasileiro. A sua imersão no western é mais uma ferramenta que o cineasta baiano vai usar para estabelecer precedentes de um Cinema Novo brasileiro: “no western está o pecado mais puro porque, consequentemente, de uma instabilidade cultural, a terra forma-se e nela heróis e bandidos tornam-se bons e maus na luta por construir uma nação” (Rocha, 1957).

Esteticamente falando, o filme goza de muitos recursos que nos conseguem introduzir no submundo nordestino do início do século XX, indo além de se concentrar apenas na estética e tópicos cangaceiros. Para começar, destaca-se a estrutura narrativa que se faz do relato, construindo como eixo que articula a trama uma poesia que segue as diretrizes da literatura de cordel do Nordeste. Este tipo de lirismo popular gozou de grande sucesso entre os habitantes do sertão e é também um dos principais vetores de transmissão da época em que se insere o filme. “Glauber busca na memória e na imaginação desses agentes históricos o substrato da sua obra, o imaginário que procurava elevar” (Ventura, 2000). Este tipo de composições rítmicas impressas em poucos folhetos de papel, seguindo um ritmo poético simples, são um dos principais meios onde se foram desenvolvendo as histórias e derivando para lendas. Rocha, em 1964, toma consciência da importância popular destes poemas e estabelece-o, adaptando-o às suas necessidades, como a base sobre a qual construirá a sua história:

Procurou pelo sertão
Todo o mes de fevereiro
O Dragão da maldade
Contra o santo guerreiro
Procura Antonio das Mortes
Todo o mes de fevereiro
Se entrega Corisco
Eu não me entrego não
Eu não sou passarinho
Para viver lá na prisão
Se entrega Corisco
Eu não me entrego não
Não me entrego ao Tenente
Nem me entrego ao capitão
Me entrego só na morte
Parabellum na mão
Mataram Corisco
Balearam Dadá
Farrea, farrea, povo
Farrea até sol raiar
O sertão vai virar mar
E o mar virar sertão
Tá contada a minha história
Verdade ou imaginação?
Espero que o senhor
Tenha tirado uma lição
Que assim mal dividido
Esse mundo anda errado
Que a terra é do homem
Não é de Deus nem do Diabo.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964)

O uso do folclore de uma literatura perfeitamente popular será uma das ferramentas de Rocha no seu intento de se aproximar, o máximo possível, de uma base social humilde: “a escrita alegórico-poética busca trazer de volta os mitos e ritos populares. Uma chamada poética para uma contra-história que, fundida com a imaginação, desvenda uma cultura nativa irreverente ao processo colonial” (Ventura, 2000). Isto representa uma das obsessões políticas do cineasta baiano e uma das principais causas que o ajudarão a dar forma ao Novo Cinema Brasileiro do qual é o máximo expoente e teórico: “com uma ideia na cabeça e uma câmara na mão para captar o gesto verdadeiro do povo” (Rocha, 1962). Este poema, entendido como resumo do final do filme de Glauber Rocha, aglomera as ideias principais sobre as quais se desenvolve a história. A trama geral ao longo das duas horas do filme é bastante simples: a viagem de autodescoberta de uma mulher e um homem através do sertão onde a própria paisagem as irá colocando certas provas, certos condicionantes. A complicação principal é de carácter estético e interpretativo: é uma fita com uma carga altíssima de metáforas. Entre elas, destaca-se como um mantra repetido ao longo do filme “o sertão vai virar mar”. O próprio diretor realça desta maneira o seu simbolismo inserido na realização do filme: “quem chega ao mar não é a personagem: quem chega ao mar sou eu com a câmara, mostrando o mar como uma abertura de tudo o que isso pode significar” (Rocha, 1965). Esta máxima também tem uma origem histórica popular que interconecta tempos históricos dentro da história sertaneja. Por um lado, é uma profecia proferida pelo beato António Conselheiro em 1893 e que seria a base futura de um conflito entre o movimento sociorreligioso dos partidários de Conselheiro e o Exército do Império do Brasil na chamada Guerra de Canudos (1896-1897). Por outro lado, o já descrito movimento do cangaço e a irrupção no panorama do Nordeste da figura do Padre Cícero, um padre católico que teve um impacto muito importante na região, dando voz e esperança aos estratos sociais mais pobres (Neto, 2009).

Assim, Rocha maneja com destreza figuras que entrelaçam uma componente histórica com outra mítica na cultura e memória do nordeste. Certos personagens ganham uma importância simbólica importante no longa-metragem. É significativo que escolha Corisco e Dadá como os representantes do Cangaço, dois dos cangaceiros que conseguiram escapar da sentença capital por parte do exército em 1938 da banda de Lampião. Estes dois personagens sobreviveram ao seu chefe e perpetuaram até 1940 o cangaço, sendo os últimos integrantes em ativo do grupo mais famoso de cangaceiros. Corisco buscou no tempo em que lutou sem companhia a vingança contra o exército que tinha assassinado e decapitado ao seu chefe Virgulino Ferreira, Lampião. Esta obsessão vê-se bem refletida na personagem fictícia criada por Rocha. Corisco, sem ser o protagonista da fita, eclipsa completamente o resto dos personagens desde a sua aparição. Nele querem-se centrar esforços metafóricos e reúne, de certa forma, muitas das contradições que se querem salientar no filme. É um personagem que se contrapõe ao de António das Mortes, antagonista principal e símbolo do poder — neste caso, do governo e contrário ao povo — mas, ao ter poder e querer vingança, acaba por se colocar numa posição bastante semelhante àqueles a quem se opõe. A personagem de Corisco é “política, lutadora, quer mudar as leis da sociedade e da moral” (Ventura, 2000). Mas sempre sob as construções que supõe a sua realidade dentro do sertão: “não consegue interagir no espaço-tempo da modernidade da história porque, no limite, não consegue romper com a sua própria natureza” (Ventura, 2000).

Dadá, mulher de Corisco, também ganha especial importância no tramo final do filme. É uma figura que se certifica da importância e do destino inevitavelmente trágico que lhes espera aos personagens: “deixa a guerra e vamo-nos embora, agora é agora ou nunca” (Rocha, 1964). Rocha serve-se das personagens femininas como contrapeso das masculinas. São elas que servem de contraponto à loucura e à barbárie dos seus maridos. Desta maneira, Dadá relaciona-se com a outra figura feminina muito mais protagonista, como é Rosa, mulher de Manuel, sobre quem gira toda a trama: “a primeira intervenção de Rosa no filme é significativa dessa diferença entre transe/quase-consciência histórica dela e o pensamento obnubilado/submisso dele” (Telles e Rocha da Silva, 2012). A realidade antepõe-se à lenda através das próprias personagens do filme. Estas conexões entre a ficção e os factos históricos serão contínuas ao longo do filme.

Se falarmos em termos históricos, Dadá é das poucas sobreviventes do cangaço para além de 1940. Foi alcançada por balas em 1940, como se conta no filme de Rocha, depois passou pela prisão e teve, no tramo final da sua vida, interesse em contar as suas experiências. Dadá, nas suas entrevistas concedidas nos anos oitenta, é uma das vozes que quer desmitificar o cangaço, descobrindo os olhos sobre a lenda, o seu rapto aos treze anos e uma vida condicionada pelo seu marido, Corisco (Negreiros, 2018). Rocha, já em 1964, deixa entrever estas faltas de verdade na lenda, a realidade que subjaz a tudo com certas escolhas estéticas e de guião que condicionam a leitura do filme. A mais clara é a moral da poesia que se escuta no final do longa-metragem: “a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo”. Rocha não esconde o interesse político do seu filme, lança sem nenhum tipo de disfarce uma reflexão com visão de presente baseada nos factos míticos do passado. “Glauber aproxima ao seu filme a simultaneidade de elementos culturais e forças que não encontram uma síntese clara para o discurso civilizado face à vitalidade do diverso dos fragmentos errantes que se abrem caminho para a evocação mística” (Ventura, 2000) Tudo tem uma grande componente simbólica, mas Rocha tenta sempre que pode ir além das interpretações clássicas apresentando figuras ambíguas e que provocam no espectador uma reflexão. “Não é um resultado individual meu, não: creio que o filme é o resultado de toda essa consciência cultural propriamente dita que o Cinema Novo tem” (Rocha, 1965).

O Auto da Compadecida (Arraes, 2000) e a caricatura picaresca de Ariano Suassuna

Embora O Auto da Compadecida tenha sido originalmente publicado em 1955 e estreado no Rio de Janeiro em 1957, o grande sucesso popular da obra do dramaturgo paraibano Ariano Suassuna ocorreu no ano 2000, com o lançamento do filme homónimo. Tornou-se o filme brasileiro com maior número de espectadores naquele ano e gerou um enorme sucesso, convertendo-se no ‘padrão Globo de qualidade’ (De Paiva, 2014) e modelo a ser seguido pelos filmes da emissora brasileira. O filme tem sua origem numa minissérie emitida em 1999 pela TV Globo, embora ‘já com o projeto cinematográfico em mente, Arraes optou por abandonar as câmeras de vídeo e filmar em 35 milímetros’ (Di Rago, 2000). Sobre o projeto original com várias tramas paralelas, simplificou-se a trama e centralizou-se nos dois protagonistas principais. O processo criativo sob a direção de Guel Arraes contou com a ajuda e aprovação de Suassuna, que colaborou na elaboração do roteiro e adicionou seções de outras de suas obras teatrais com cenários e temáticas semelhantes, como ‘O Santo e a Porca’ e ‘Torturas de um Coração’. Além disso, Arraes decidiu incluir em sua versão audiovisual cenas e situações do ‘Decameron’ de Boccaccio, obtendo assim um roteiro rico em referências.

Mais uma vez, tal como ocorreu com o filme de Glauber Rocha anteriormente analisado, a cultura popular ocupa um lugar importante na construção narrativa do Nordeste. O narrador da história insere a trama numa estrutura similar à de um poema da literatura de cordel ‘Suassuna trouxe à baila as histórias populares conhecidas, os cordelistas, os versos dos cantadores, conta o conto e aumenta um ponto único e seu, consagrando a arte popular a um nível erudito’ (De Paiva, 2014). E é que, apesar do tom leve do filme de Arraes, o longa-metragem aborda questões nada simples, com referências bastante complexas, como são o ‘Decameron’, questões teológicas, psicológicas, sociais e até literárias, com a introdução de uma personagem picaresca com tantas conotações no imaginário literário. Neste aspecto intertextual, tanto o texto teatral como a obra fílmica têm muitas referências para além da tradição oral e de cordel nordestino: relaciona-se com os autos medievais portugueses como ‘Auto da Barca do Inferno’ de Gil Vicente (1517) e com a ‘Commedia dell’arte’ tanto no desenvolvimento da ação como na concepção dos personagens. Particularmente, o personagem de João Grilo lembra as características de Arlequim como servo astuto.

No que diz respeito ao intertexto fílmico, ‘Guel e a equipe inspiraram-se em numerosos elementos de linguagem cinematográfica e adotaram diversas influências: desde o cinema primitivo [...] ou recorrer ao burlesco com chamadas a gags para dar efeito cómico a cenas que numa representação resultam do que o ator faz ou diz, jogando com o elemento surpresa e fazendo com que a atuação pareça improvisada’ (De Paiva, 2014).

O filme aproxima-se da realidade anteriormente exposta do Nordeste do Brasil a partir de uma perspectiva fundamentalmente irônica, incidindo num enfoque bastante caricato e estereotipado da sociedade que pretende retratar. Por exemplo, ‘a pobreza e a aridez (estéreo) típicas do sertão nordestino são reforçadas constantemente’ (De Paiva, 2014) com o uso de certos recursos audiovisuais. Tanto no filme quanto na peça teatral, juntam-se todos os elementos míticos do Nordeste: a seca, os cangaceiros, a pobreza, o povo nômade, a influência e impacto da igreja nos sertões, e um longo ètcéterà de elementos perfeitamente estereotipados. No filme, a representação desses grupos e cenas está exageradamente visualizada. O cangaceiro, por exemplo, está vestido da maneira mais exagerada possível, se comparado com as outras fitas analisadas neste capítulo. Tanto a obra quanto o filme têm uma mesma base teórica neste aspecto, ‘assumem-se como um trabalho ficcional e não como um trabalho documental’ (Albuquerque, 2008), e através desta consciência permitem-se uma abordagem da matéria muito mais relaxada, incidindo nas partes e nas estratégias que mais lhes interessam.

Cada personagem do enredo do filme tem uma tradução na cultura popular nordestina. Neste sentido, o filme trabalha com o preconceito do espectador na hora de julgar e utiliza a antecipação do público como elemento cómico recorrente. Mas é um recurso que Arraes usa sem maldade e até com certo sentido crítico, ‘estereótipos, portanto, podem ser o ponto de partida através do qual uma obra artística inspire discussões acerca do tema, revelando as verdadeiras raízes da questão em vez de simplesmente reproduzi-los’ (De Paiva, 2014). Assim, em relação à outra obra de ficção analisada, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (Rocha, 1964), ‘O Auto da Compadecida’, com um tom muito mais leve e abertamente caricato, continua a ter uma intenção crítica e não apenas de entretenimento. Valendo-se das desigualdades e da especificidade do Nordeste na hora de construir um discurso mais profundo do que uma simples comédia leve. A comédia é a chave para que tanto o filme quanto a obra acabem funcionando, ‘o riso e a mentira são a falta e a salvação do homem’ (Barbosa, 2013), e assim se representa na parte final da trama no julgamento do além.

Outra das reviravoltas interessantes no enfoque das obras de Suassuna e Arraes é como o sertão acaba por se tornar uma espécie de purgatório terrestre dos seus habitantes. Quando o protagonista é julgado, ao contrário dos outros personagens que vão ou para o céu ou para o purgatório, é enviado de volta à terra. Esta escolha é significativa na construção do estereótipo anteriormente mencionado do sertanejo errante. Alguém sem rumo, nem na terra nem no inferno, na busca de purgar os seus pecados. A religiosidade e o ar místico e terreno do Nordeste seco voltam à cena depois do parêntese que supõe a cena do Auto.

Em termos gerais, o tratamento que Arraes desenha do Nordeste na obra fílmica dista um pouco do que propõe Suassuna, sobretudo por motivos evidentes de diferenças de meios. Suassuna ‘sugere no livro que o cenário recorde um picadeiro de circo’ (De Paiva, 2014), e com este contexto apresenta estes personagens exagerados num meio muito mais artificial, ‘a ambientação circense estimula um tom leve que dissocia a peça do realismo’ (De Paiva, 2014). Pela simples natureza cinematográfica, o enfoque de Arraes é diferente. O ar circense desaparece da sua obra, mas sim esforça-se em caracterizar ao máximo a vila onde acontece a ação para que se converta, por sua vez, numa caricatura de uma pequena cidade do Nordeste, realçando a importância da seca.

Poderíamos concluir que ‘O Auto da Compadecida’ é um enfoque sobre o sertão ficcional no qual se tenta refletir sobre toda a tradição e a visão popular desta região brasileira, assim como a repercussão deste conjunto de estereótipos no imaginário coletivo do Brasil. Sem desistir na tentativa de que o enredo fictício acabe por se conectar com a realidade presente do país através do riso.

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Lampião, o rei do Cangaço. 1936. De Benjamin Abrahão

O Auto da Compadecida. 2000 Guel Arraes