Abstract
Two films released in 2023 work perfectly on the power of suggestion: Zone of Interest, by the British Jonathan Glazer; and Society of the Snow, by the Spanish J.A. Bayona. The first reveals the horror of war without us seeing it explicitly. Still cameras are used. This gives the impression of being faced with a cruel reality where we see the routine of the residence of the extermination camp commander. At the same time, we are confronted with actions that occur outside the frame portrayed by the sound design and the background images that suggest what happens next to this uncomfortable scenario, starting from the opening with the screen entirely dark for long seconds. The second film deals with the plane crash that occurred in October 1972 with the flight that crashed in the Andes and over the course of 72 days, portraying those who survived the crash and the difficult weather conditions faced situations that required extreme measures. The accident is a mere detail. The ethical issue that arises, in this case cannibalism, is debated in the right way. It is present, but we never see it. What prevails is determination, willpower, hope of overcoming, in short: the survival instinct.
The approach is respectful, poetic, realistic and emotionally charged. These two works prove that it is possible to deal with taboo, controversial and difficult themes without resorting to the explicit or the grotesque. All it takes is sensitivity and boldness, as well as trust in the viewer’s perception.
Keywords: Off-screen Space, Viewer´s Perception, Zone of Interest, Society of the Snow, Sensitivity.
Introdução
Dois filmes lançados em 2023 trabalham com perfeição o poder da sugestão: Zona de Interesse, do britânico Jonathan Glazer; e A Sociedade da Neve, do espanhol J.A. Bayona e constituem o corpus principal deste estudo.
O primeiro filme escancara o horror da guerra sem que o vejamos de forma explícita. São utilizadas câmaras paradas. Isso dá a impressão de estarmos diante de uma cruel realidade onde vemos a rotina da residência do comandante de um campo de extermínio.
Ao mesmo tempo somos confrontados com ações que ocorrem totalmente fora de quadro retratadas pelo desenho de som e imagens de fundo que sugerem o que acontece ao lado nesta incômoda obra já a partir da sequência de abertura com a tela inteiramente escura por longos segundos.
Já o segundo filme trata do acidente aéreo ocorrido em outubro de 1972 com o voo que caiu nos Andes e ao longo de 72 dias os que sobreviveram à queda e às difíceis condições climáticas enfrentaram situações que exigiram medidas extremadas. O acidente é um mero detalhe. A questão ética que surge, no caso o canibalismo, é debatido na medida certa. Ele se faz presente, mas não o vemos em momento algum. O que prevalece é a determinação, a força de vontade, a esperança de superação, em suma: o instinto de sobrevivência. A abordagem é respeitosa, poética, realística e carregada de emoção.
Essas duas obras comprovam ser possível tratar de temas tabus, polêmicos e difíceis sem apelar para o explícito ou grotesco. Basta um pouco de sensibilidade e ousadia, além de confiança na inteligência do espectador.
O Poder da Sugestão
Alguém me disse certa vez que me contaria algo que aconteceu porque se eu visse não acreditaria. Essa fala me fez rir, em um primeiro momento, mas depois me fez refletir sobre a força da sugestão, ou melhor, sobre aquilo que não vemos e sabemos estar lá. E o fato de saber é muito mais forte do que se tivéssemos efetivamente visto.
O audiovisual em geral, e o cinema em particular, possuem técnicas narrativas que permitem nos mostrar coisas sem que, necessariamente vejamos o que está sendo mostrado. Isso vale para diversas manifestações artísticas, mas no cinema há recursos inimagináveis que a literatura, o teatro, a pintura, a escultura, a dança e a música jamais sonharam possuir.
Um cineasta talentoso consegue tornar visível o que está invisível diante de nossos olhos. Consegue fazer com que enxerguemos aquilo que não vemos. E ao fazê-lo enriquece ainda mais a obra que dirigiu ao fugir da obviedade da explicitude e adentrar o difícil território da sugestibilidade.
O Efeito Kuleshov
Isso remonta ao início dos anos 1920 quando o cineasta russo Lev Kuleshov exibiu um pequeno filme onde vemos o rosto de um homem, no caso o ator Ivan Mouzzhukin, em close e sempre com a mesma expressão facial. No entanto, Kuleshov intercalou a imagem do rosto impassível do ator com outras imagens. Primeiro de um prato de sopa, depois de um velório e por fim de uma bonita mulher. Apesar de a expressão de Mouzzhukin permanecer exatamente a mesma, as pessoas que assistiram ao filme descreveram que ele expressou fome, pesar e desejo respectivamente nas referidas imagens mostradas.
Esse experimento, conhecido popularmente como “Efeito Kuleshov”, é também chamado de “Técnica do Espectador Reativo”. Em sua essência, trata-se do uso criativo da montagem na construção diegética, sugerindo com isso diferentes ideias e emoções dependendo das imagens intercaladas com a estática imagem do ator.
Apesar de não estar ali, a simples junção dessas imagens gera uma terceira na mente do espectador, que se sustenta unicamente pela força da sugestão.
O Campo Cego
O roteirista francês Pascal Bonitzer publicou, em 1982, pela editora da famosa revista Cahiers du Cinèma, uma coletânea de textos intitulada O Campo Cego: ensaios sobre o realismo no cinema.
No ensaio Qu’est q’un plan? (O Que é um Plano?), ele defende que o cinema não é composto apenas por imagens, estejam elas juntas ou não. Um filme é o resultado da composição de uma série de enquadramentos, de planos, mesmo que não necessariamente imagens, mas que dão ao todo uma unidade.
Para Bonitzer, a unidade básico de um filme é o plano. Mas a utilização desse é definida a partir de um recorte feito pelo diretor na hora da montagem. Isso foi bem definido por Serguei Eisenstein, cineasta e teórico russo, tanto em seus livros A Forma do Filme e O Sentido do Filme, publicados, respectivamente, em 1929 e 1942, mas principalmente em sua conhecida obra cinematográfica, O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin - União Soviética, 1925), onde utiliza a montagem de forma dramática para manipular e estender o tempo ao transformar a sequência da escadaria de Odessa, que tem duração em tempo contínuo de menos de dois minutos em uma sequência impactante de mais de seis minutos. Com esse trabalho, ficou comprovado o poder não apenas das imagens, mas especialmente de como é possível enfatizá-las e potencializá-las utilizando o recurso da montagem, que o cineasta Stanley Kubrick considerava ser a essência do cinema.
Bonitzer completa destacando existir um “campo cego”, que seria a parte do plano ou daquela realidade mostrada que o espectador não consegue ver, por estar no “extracampo” ou “fora do quadro”. Fora do plano.
O Extracampo
Há também o conceito do que está fora de campo. Conceito que vale para as artes visuais em geral, mas que encontra no cinema, especificamente, terreno fértil para sua utilização.
Antes de tudo é preciso ter em mente o que compõe o campo, ou seja, aquilo que nos é mostrado dentro do enquadramento de um filme, para ficarmos apenas em exemplos cinematográficos. Porém, existe também o que não aparece, o que não é mostrado, o que não vemos conscientemente, o que está “fora de campo”, “fora do plano”. Tipo um “campo cego”, se compararmos com o veículo ou pessoa que se faz presente mas não aparece no espelho retrovisor de um carro, por exemplo.
Segundo o Dicionário de Imagem (2011, p. 172), o conceito de “extracampo” ou “fora de campo” é descrito como tudo o que “não aparece na imagem e pode ser imaginariamente situado à esquerda, à direita, em baixo, em cima, à frente e atrás do campo”. Em resumo: é tudo aquilo que não vemos, que não aparece diante de nossos olhos, mas está lá, presente, forte e pulsante. Aquilo que não vemos, no entanto, acreditamos estar vendo, mesmo que somente em nossa imaginação.
A força do extracampo reside justamente em mostrar o que está invisível na tela e dois filmes lançados em 2023 trabalham com perfeição esse conceito do fora do campo utilizando de forma vigorosa e precisa o poder da sugestão: Zona de Interesse, do cineasta britânico Jonathan Glazer; e A Sociedade da Neve, do diretor espanhol Juan Antonio Bayona, mais conhecido como J.A. Bayona.
Zona de Interesse
O primeiro filme, Zona de Interesse (Zone of Interest, de Jonathan Glazer – Reino Unido, 2023) é uma adaptação do livro homônimo de Martin Amis e escancara os horrores da Segunda Guerra Mundial sem que vejamos esse horror de maneira explícita.
Tudo gira em torno de Rudolf Höss (Christian Friedel) e sua esposa Hedwig (Sandra Hüller). Ele é comandante de Auschwitz e vive feliz com a família em uma confortável casa vizinha ao campo de concentração e extermínio.
O diretor utiliza câmaras paradas na maior parte das cenas, e isso dá a impressão de estarmos diante de uma cruel realidade onde vemos a rotina tranquila e fútil daquela residência, ao mesmo tempo em que somos confrontados com ações que ocorrem fora de quadro e que são retratadas pelo primoroso desenho de som, reforçado pela perturbadora trilha sonora de Mica Levi e por imagens de fundo que sugerem o que acontece na vizinhança.
Além disso, acompanhamos o dia a dia de Rudolf em seu trabalho e presenciamos reuniões onde decisões cruéis são tomadas como se fosse a coisa mais natural do mundo. Afinal, um comandante dedicado como ele quer mostrar eficiência e comprometimento com as tarefas que executa. Já Hedwig leva uma vida de sonho e não abre mão desse justo direito conquistado.
Zona de Interesse é original na abordagem que faz da chamada “banalidade do mal”, expressão criada pela filósofa política alemã Hannah Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalém, que trata da trivialização da violência e do vazio de pensamento que propicia a instalação da maldade.
Glazer realiza uma obra incômoda já a partir da sequência de abertura com a tela inteiramente escura por longuíssimos dois minutos, o que deixa evidente estarmos diante de uma obra incomum.
Esse prólogo sonoro estabelece de pronto a angústia oculta que permeará todo o filme e o mergulho profundo que faremos naquele mundo de fachada.
Essa abertura com tela escura e composta apenas com incômodos sons e ruídos já justificariam o Oscar melhor som que a obra ganhou na cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, realizada em 12 de março de 2024.
E esses longos dois minutos iniciais de Zona de Interesse são o bastante para incomodar o espectador e fazê-lo perceber estar diante de uma obra única. E esse incômodo não se limita à duração do filme. Ele se mantém, sim, durante toda a duração do filme e continua, principalmente, após os créditos finais.
Jonathan Glazer concebeu um trabalho de forte apuro visual e sonoro. Especialmente sonoro. A força do som evoca o que não vemos, mas sabemos estar presente ao contrastar com o que está visível: a rotina tola e banal daquela família.
O cineasta não perde tempo buscando nos oferecer respostas para a origem daquela triste banalização. Acredito que ele saiba que muito já foi falado, escrito e mostrado em inúmeros outros estudos e de muitas outras formas. Seu filme vai direto ao ponto, ao que realmente importa, ou seja, destaca uma classe ou grupo de pessoas que se julga não apenas superior, ou talvez por isso mesmo, digno de ter os privilégios que tem e de levar uma vida de conforto e segurança longe das mazelas do mundo, mesmo que “protegida” por altos e grossos muros.
Qualquer obra de arte é, essencialmente, uma obra política. Mesmo que seus autores e muitos apreciadores dela não a vejam assim. Não tem como ser diferente. Zona de Interesse é político da primeira à última cena e não esconde isso. Ou melhor, “esconde” e nesse “esconder” revela todo o forte impacto em nossas mentes daquele horror insano e injustificável.
A Sociedade da Neve
Já o segundo filme, A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve, de Juan Antonio Bayona – Espanha/Chile/Uruguai e Estados Unidos 2023), tem por base o fatídico acidente aéreo ocorrido no dia 13 de outubro de 1972 com o turboélice Fairchild FH-7827 D, do voo 571 da Força Aérea Uruguaia que decolou de Montevidéu em direção a Santiago do Chile. A bordo havia 45 pessoas, sendo 40 passageiros (um time de rugby junto com amigos e familiares), além de cinco tripulantes.
O avião caiu na Cordilheira dos Andes e ao longo de 72 dias, até 22 de dezembro daquele ano, com poucas esperanças de resgate, os que sobreviveram à queda e às difíceis condições climáticas do local enfrentaram situações que exigiram medidas das mais extremadas para sobreviver.
Além de programas de TV e documentários, outros dois filmes já haviam sido produzidos tendo por base essa história real. O primeiro deles foi o dramático Sobreviventes dos Andes (Supervivientes de los Andes, de René Cardona – México, 1976). O outro foi o hollywoodiano Vivos (Alive, de Frank Marshall – Estados Unidos e Canadá, 1993).
Pouco mais de 50 anos após o que ficou conhecido tanto como “tragédia” e “milagre” dos Andes, o espanhol J.A. Bayona nos traz A Sociedade da Neve. O roteiro, escrito pelo diretor ao lado de Nicolás Casariego, Bernat Vilaplana e Jaime Marques tem por base o livro homônimo de Pablo Vierci.
Temos aqui a melhor e mais humana versão dessa impactante história. O acidente é um mero detalhe. A questão ética que surge, no caso o canibalismo, é debatido na medida certa, se fazendo presente, mas não o vemos em momento algum. O que prevalece é a determinação, a força de vontade, a esperança de superação, em suma: o instinto de sobrevivência.
J.A. Bayona faz uma abordagem respeitosa, poética, realística e carregada de emoção. E o fato de ter no elenco atores que são pouco conhecidos reforça ainda mais essa sensação de realismo.
Outros Exemplos
O Bebê de Rosemary
Outro exemplo de um filme que faz excepcional utilização do extracampo é O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, de Roman Polanski – EUA 1968). Aqui, o cineasta aos poucos vai criando o clima necessário para prender nossa atenção. Nada é explícito. Tudo é sugerido. E é justamente nessa sutil diferença entre o que não é mostrado e aquilo que imaginamos existir que residem o suspense e o medo provocados pelo filme.
Ben-Hur
O campo cego pode se manifestar nos diálogos que sugerem algo implícito, mas que não é mostrado, mas que deixa evidente as razões que motivam uma das personagens, como no caso do épico Ben-Hur (Ben-Hur, de William Wyler – EUA 1959). O filme nos conta uma história que acontece no período de Cristo e se utiliza de fatos bíblicos para enriquecer sua trama, marcada em essência pela relação entre Ben-Hur (Charlton Heston) e Messala (Stephen Boyd), amigos de infância que se tornam inimigos. Gore Vidal, um dos autores do roteiro, declarou em uma entrevista ter criado um subtexto homoafetivo no passado de Ben-Hur e Messala, o que gerou uma grande polêmica em torno do filme. A verdade é que o subtexto existe mesmo, basta prestar atenção nos diálogos travados entre os dois para perceber a paixão não correspondida de um pelo outro.
A Época da Inocência
Quem conhece a obra de Martin Scorsese sabe que ele gosta de retratar mafiosos, assassinos e perdedores. A princípio, A Época da Inocência (The Age of Innocence, de Martin Scorsese – EUA 1993), parece destoar de sua filmografia. Mero engano. Apesar de ser um filme de época, no caso, a Nova Iorque da segunda metade do século retrasado, o diretor continua fiel ao seu estilo seco e direto em mostrar a hipocrisia da sociedade dominante. A beleza e o luxo retratados servem para encobrir a podridão de pessoas que se acham melhores que as demais, que se consideram “europeias”.
Veludo Azul
O cineasta David Lynch tem um estilo tão peculiar que é quase um adjetivo. Muitos costumam chamar seus filmes de esquisitos. A verdade é que sua obra foge do padrão convencional e isso sempre incomoda a maioria das pessoas. O cinema de Lynch aborda sempre um mundo que está diante de nossos olhos e simplesmente não percebemos. Um mundo escondido sob uma aparente normalidade. No começo de Veludo Azul (Blue Velvet, de David Lynch – EUA 1986), uma de suas obras mais conhecidas, isso fica bastante evidente. Primeiro, vemos um lindo gramado. Depois, a câmara vai baixando e mostra insetos. É mais ou menos assim com a vida de Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan). Tudo perfeito e no seu devido lugar. Até que um dia ele encontra uma orelha humana em um terreno baldio.
Sobre Meninos e Lobos
Já Sobre Meninos e Lobos (Mystic River, de Clint Eastwood – EUA 2003), encontrou na direção de Eastwood a economia e a sensibilidade necessárias para se transformar em uma contundente trama cinematográfica. Amigos de infância, Jimmy, Dave e Sean cresceram juntos no mesmo bairro de Boston e tiveram suas vidas marcadas por uma tragédia. Décadas mais tarde, uma nova tragédia volta a reuni-los e termina por provocar uma reação em cadeia que tem ligação direta com o passado dos três garotos. Preste atenção já na seqüência de abertura. Ela apresenta as três personagens principais no passado. Com a sutileza que lhe característica, Eastwood define bem a personalidade de cada dos meninos com um simples ato de escrever o nome no cimento fresco de uma calçada.
Nostalgia
No primeiro filme do cineasta russo Andrei Tarkovski rodado fora de seu país natal, Nostalgia (Nostalghia, de Andrei Tarkovski – Itália/Rússia 1983), nos leva até a Itália, onde acompanhamos a jornada do poeta Andrei Gorchakov (Oleg Yankovsky), da Rússia, que viaja para lá em busca de um novo sentido para sua vida. Tudo começa com Andrei chegando a um pequeno vilarejo italiano acompanhado por Eugenia (Domiziana Giordano), sua tradutora. Seu objetivo é pesquisar sobre a vida do compositor Gorchakov. Lá, Andrei conhece o excêntrico matemático Domenico (Erland Josephson). Nostalgia lida com dor e angústia. De uma certa forma, o Andrei personagem do filme, assim como o Andrei diretor do filme, precisaram sair da Rússia para encontrar a Rússia. Essa melancolia gera o sentimento que dá título à obra. Há aqui um aprofundamento filosófico, metafísico e espiritual pontuado por imagens que se alternam entre o preto e branco e o colorido em movimentos suaves da câmera. São imagens fortes, intensas e perturbadoras que provocam reações paradoxais de estranhamento e encantamento.
Fechar os Olhos
O cineasta espanhol Victor Erice, veterano da cinematografia de seu país com mais de 60 anos de atividades no audiovisual, dirigiu Fechar os Olhos (Cerrar los Ojos, de Victor Erice – Espanha/Argentina 2023), onde conta uma história que gira em torno do cineasta Miguel Garay (Manolo Solo). Ele teve as filmagens de sua produção O Rei Triste suspensas após o misterioso desaparecimento de Julio Arenas (José Coronado), ator principal da película. Mais de 20 anos depois um programa de televisão traz aquele sumiço à tona outra vez e Garay é convidado para conceder uma entrevista sobre o amigo. Fechar os Olhos tem um filme dentro do filme e é em primeiro lugar um deleite para os amantes da sétima arte. Paralelo a isso, há também o mistério sobre o que teria acontecido a Arenas. Esse mergulho na vida presente de Garay e o mergulho no passado de todos os envolvidos oferece um belíssimo e fascinante quebra-cabeças que vamos montando aos poucos, junto com ele, com a filha de Arenas, Ana (Ana Torrent), com o montador Max (Mario Pardo), a jornalista Marta (Helena Miguel) e a assistente social Belén (Maria León).
Elefante
Já Elefante (Elephant, de Gus Van Sant – EUA 2003) acompanha um trágico dia dentro de uma escola de ensino médio no interior dos Estados Unidos. Van Sant detalha o dia a dia dos alunos divididos entre tarefas de classe, jogos de futebol americano, fofocas e outras coisas que fazem parte do cotidiano escolar. O mais interessante é a maneira com que ele conduz sua história, o distanciamento com que ele vai desenvolvendo as personagens. Trata-se de um jogo de aparente inocência, porém, cheio de surpresas e uma revelação desconcertante e perturbadora.
Na Ventania
A essência do cinema está na imagem em movimento. O cineasta estoniano Martti Helde subverte essa lógica em Na Ventania (Risttuules, de Martti Helde – Estônia 2014), seu longa de estreia. Aqui, o movimento se dá em imagens estáticas de profunda beleza plástica e intensa força dramática. O roteiro nos conduz à noite do dia 14 de junho de 1941, quando o ditador russo Stalin ordenou uma limpeza étnica dos nativos dos Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), e com essa ação covarde deportou 40 mil inocentes. Somos apresentados à Erna Tamm (Laura Peterson), seu marido Heldur (Tarmo Song) e a filha, Eliide (Mirt Preegel). Mãe e filha são levadas para um campo de trabalhos forçados. O pai é enviado para uma prisão. A narrativa se desenvolve através de cartas escritas por Erna para Heldur. Na Ventania não é um filme fácil. Mas é uma experiência visual das mais fascinantes. A começar pela belíssima, inebriante e sedutora fotografia de Erik Pöllumaa. Voltando às imagens estáticas do filme, na verdade, como pode parecer inicialmente, elas não são fotografias. Helde posicionou seus atores em cena e organizou quadros vivos que ele percorre suavemente com sua câmara. É algo que a princípio incomoda, mas depois nos envolve e comove por inteiro. Como se a vida daquelas pessoas tivesse parado realmente no tempo.
Vá e Veja
Outro bom exemplo é Vá e Veja (Idi i Smotri, de Elem Klimov – Rússia 1985), baseado nas histórias de Ales Adamovich, que escreveu o roteiro junto com o diretor. O filme narra a trajetória de Florya (Aleksey Kravchenko), um jovem soldado que é separado de seus comandantes durante a Segunda Guerra Mundial. Não seria exagero afirmar que existem filmes de guerra e existe Vá e Veja. Klimov filtra os horrores da guerra pelos olhos de Florya. Além dos relatos de Adamovich, o diretor utilizou também lembranças de sua infância, quando, junto com a mãe e o irmão caçula, tiveram que fugir de Stalingrado, por causa da invasão do exército nazista. A obra trafega em uma tênue linha que separa a poesia da selvageria e o documentário da ficção.
Lavoura Arcaica
Um dos maiores desafios para um cineasta é transformar em imagens uma obra considerada infilmável. O consagrado diretor de televisão Luiz Fernando Carvalho estreou no cinema com a adaptação do livro Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. A narrativa, inteiramente introspectiva, vai e volta no tempo, remontando o passado de André (Selton Mello) e as razões que o fizeram ir embora da casa do pai (Raul Cortez). Poético nos diálogos, impactante nas imagens e surpreendente no trabalho dos atores, Lavoura Arcaica (Brasil 2001) é uma obra singular no Cinema brasileiro.
Memória
Em quase 30 anos de carreira, o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul já realizou quase 60 trabalhos. A maioria deles curtas-metragens. Longas foram poucos. Até o momento, apenas oito. Memória (Memoria, de Apichatpong Weerasethakul – Colômbia/Tailândia 2021), é o oitavo longa do diretor tailandês e foi rodado na Colômbia, onde acompanhamos uma escocesa, Jessica, vivida por Tilda Swinton, que vai à Bogotá para visitar sua irmã e começa a ouvir um estranho som que somente ela escuta. Weerasethakul trabalhou como arquiteto antes de se dedicar à sétima arte e é visível em sua filmografia um rigor com os cenários. Além disso, há também uma espiritualidade e uma quebra da linearidade do tempo que permeia suas obras. Essas características se fazem presentes em Memória. O filme nos convida para uma rica viagem de autoconhecimento, cheia de contemplação, poesia e beleza. Sem pressa alguma as situações vão sendo colocadas e Jessica vai mergulhando cada vez mais sempre que ouve aquela “bola de concreto batendo em uma parede de metal cercada por água do mar”. E esse som, que apenas nós, além dela, escutamos, também mexe conosco e ecoa em nossa mente repetidas vezes.
O Som ao Redor
O Som ao Redor (de Kléber Mendonça Filho – Brasil 2012), primeiro longa deste cineasta pernambucano, conta uma história que se passa em uma rua de classe-média na zona sul do Recife. É visível no cotidiano das pessoas que moram ali uma preocupação cada vez maior com a segurança. Certo dia, chega Clodoaldo (Irandhir Santos), que oferece aos moradores um serviço de segurança particular. Mas esta, é apenas uma das tramas que acompanhamos. Existem algumas outras que fazem do filme um fabuloso e inspirado mosaico do dia a dia de inúmeros brasileiros que vivem nos grandes centros urbanos. Mendonça Filho é meticuloso na análise das vidas de suas personagens. Além do rigor visual, há aqui um rigor maior ainda com o som que é ouvido ao longo de todo o filme.
Para Sempre Lilya
O cineasta Lukas Moodysson é um dos nomes mais destacados do novo cinema sueco. Seu estilo direto e satírico tece críticas contundentes, algumas vezes violentas, ao comportamento humano. E, Para Sempre Lilya (Lilya 4ever – Suécia 2002) nos conta a história da adolescente Lilya (Oksana Akinshina), uma russa que é abandonada pela mãe, que foge para os Estados Unidos com o novo namorado. Sozinha, Lilya termina por se prostituir e se torna vítima de uma rede de tráfico de escravas brancas. Vai parar na Suécia. Moodysson traça aqui um paralelo entre a vida de Lilya e a nova realidade da antiga União Soviética depois do fracasso do socialismo, em particular. E da Europa, como um todo. Inquietante, trágico, cruel e realista, Para Sempre Lilya exige um certo preparo para ser visto. A câmara de Moodysson nunca é explícita. Somos sugestionados a acompanhar todo o sofrimento da personagem e o poder de “sugestão” do diretor é muito forte. Para acentuar ainda mais o clima do filme, há o uso inteligente e orgânico da música, que altera a bela trilha sonora composta por Nathan Larson com a canção pesada Mein Herz Brennt, da banda alemã Rammstein.
O Filho de Saul
O cineasta húngaro Lászlo Nemes foi assistente do cultuado cineasta Béla Tarr e estreou na direção de longas com O Filho de Saul (Saul Fia – Hungria 2015), que conta uma história inusitada e sufocante. Saul (Géza Röhrig) é judeu e está preso no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Sua rotina se resume a limpar as câmaras de gás utilizadas para matar prisioneiros. Certo dia, ele reconhece entre os mortos o seu próprio filho e, a partir daí, inicia uma difícil jornada em busca de uma despedida digna. Não há concessões e Nemes tampouco se preocupa em explicar o que está acontecendo. Além disso, a câmera se move e enquadra as cenas a partir de um ponto de vista incômodo.
A Menina Silenciosa
A Menina Silenciosa (Na Cailin Ciúin, de Colm Bairéad – Irlanda 2022), conta uma história se passa no interior da Irlanda, no ano de 1981, e gira em torno da menina Cáit (Catherine Clinch), que é deixada para passar o verão na casa de parentes da mãe. Sua família é, digamos assim, disfuncional. O período que ela convive com o casal Seán (Andrew Bennett) e Eibhlín (Carrie Crowley) transformam sua percepção do mundo ao redor e a que Cáit tem dela mesma. A Menina Silenciosa é uma produção que aposta na sutileza. Coisas acontecem e não precisam ser ditas. Pequenos gestos que modificam a rotina de uma jovem que vivia fechada e finalmente aprende a olhar as coisas de forma diferente.
Anatomia de Uma Queda
Anatomia de Uma Queda (Anatomie d’Une Chute, de Justine Trier – França 2023), nos conta uma história que se desenvolve a partir de três hipóteses possíveis. Tudo começa com a escritora alemã Sandra Voyter (Sandra Hüller) dando uma entrevista. Ela mora na França com o marido e o filho Daniel (Milo Machado-Graner), de 11 anos, que é cego. Na sequência, seu marido é encontrado morto do lado de fora da casa remota onde moram. O que teria acontecido? Acidente, suicídio ou assassinato? Trier nos conduz por essas três possibilidades e não propõe, em momento algum, uma resposta definitiva para o dilema apresentado.
A Fita Branca
E fechando a lista adicional de exemplos de filmes que trabalham o extracampo temos A Fita Branca (Das Weiße Band: Eine Deutsche Kindergeschichte, de Michael Haneke – Alemanha/Áustria 2009), que dialoga com Zona de Interesse funcionando como uma espécie de precursor do que vemos na obra de Jonathan Glazer, tendo inclusive o ator Christiani Friedel à frente do elenco em ambos os filmes. A Fita Branca fala sobre estranhos eventos que perturbam a calma de uma pequena vila no interior da Alemanha, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Aparentemente isolados, esses “incidentes” aos poucos vão se revelando parte de algo maior e assustador, o que deixa a população do lugar em pânico. O professor da escola local (Friedel) inicia uma investigação em busca do responsável e termina por descobrir uma verdade perturbadora. Segundo Haneke, A Fita Branca trata da gênese do nazismo. A rigorosa disciplina imposta pelos pais do vilarejo, que tem como símbolo maior a “fita branca” do título, estaria na raiz da postura rancorosa e punitiva de boa parte dos jovens alemães que anos mais tarde apoiariam Hitler. A bela e impactante fotografia em preto-e-branco de Christian Berger reforça ainda mais o clima tenso do filme. Haneke nos provoca e nos instiga a refletir sobre a origem do que, anos mais tarde resultaria no que vemos em Zona de Interesse.
Conclusão
Sabemos que o cinema, em sua essência, significa “imagens em movimento”. Porém, ao longo de sua história ele agregou outros elementos que enriqueceram sua maneira de contar histórias e trazer reflexões, além de possibilitar múltiplas interpretações que variam de acordo com o repertório de quem está diante da tela.
As duas obras em destaque, Zona de Interesse e A Sociedade da Neve, junto com as 18 adicionais citadas como outros exemplos, comprovam que é possível que temas tabus, polêmicos e difíceis sejam tratados sem apelar para o explícito ou grotesco.
O uso do extracampo ou fora de campo nos permite “ver” o que não é mostrado de forma direta. Isso provoca nosso olhar e amplia a percepção que temos das coisas, pois nem sempre é preciso que algo esteja à mostra para que possamos enxergá-lo. A sutileza é peça fundamental em qualquer obra de arte. E os filmes citados são provas disso.
Basta um pouco de sensibilidade, ousadia e o uso inteligente de técnicas narrativas, além, óbvio, de contar com a confiança na percepção, inteligência e sensibilidade do espectador.
Referências Bibliográficas
BONITZER, Pascal. El Campo ciego: ensayos sobre el realismo en el cine. Buenos Aires: Arcos Editor, 2007.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do Filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
GOLIOT-LÉTÉ A; JOLY, M; LANCIEN, T; outros. Dicionário de Imagem. Lisboa: Edições 70, 2011.
Referências Fílmicas
ZONA DE INTERESSE (Zone of Interest). Direção: Jonathan Glazer. Reino Unido, 2023. 105 min, cor/pb.
A SOCIEDADE DA NEVE (La Sociedad de la Nieve). Direção: J.A. Bayona. Espanha, 2023. 144 min, cor.
O BEBÊ DE ROSEMARY (Rosemary’s Baby). Direção: Roman Polanski. EUA, 1968. 137 min, cor.
BEN-HUR (Ben-Hur). Direção: William Wyler. EUA 1959. 212 min, cor.
A ÉPOCA DE INOCÊNCIA (The Age of Innocence). Direção: Martin Scorsese. EUA, 1993. 139 min, cor.
VELUDO AZUL (Blue Velvet). Direção: David Lynch. EUA, 1986. 120 min, cor.
SOBRE MENINOS E LOBOS (Mystic River). Direção: Clint Eastwood. EUA, 2003. 138 min, cor.
NOSTALGIA (Nostalghia). Direção: Andrei Tarkovski. Itália/Rússia, 1983. 125 min, cor/pb.
FECHAR OS OLHOS (Cerrar los Ojos). Direção: Víctor Erice. Espanha, 2023. 169 min, cor/pb.
ELEFANTE (Elephant). Direção: Gus Van Sant. EUA, 2003. 81 min, cor.
NA VENTANIA (Risttuules). Direção: Martti Helde. Estônia, 2014. 90 min, pb.
VÁ E VEJA (Idi i Smotri). Direção: Elem Klimov. Rússia, 1985. 142 min, cor.
LAVOURA ARCAICA (Lavoura Arcaica). Direção: Luiz Fernando Carvalho. Brasil, 2001. 163 min, cor.
MEMÓRIA (Memoria). Direção: Apichatpong Weerasethakul. Colômbia/Tailândia, 2021. 136 min, cor.
O SOM AO REDOR (O Som ao Redor). Direção: Kléber Mendonça Filho. Brasil, 2012. 131 min, cor.
PARA SEMPRE LILYA (Lilja 4ever). Direção: Lukas Moodysson. Suécia/Dinamarca, 2002. 105 min, cor.
O FILHO DE SAUL (Saul Fia). Direção: Lászlo Nemes. Hungria, 2015. 107 min, cor.
A MENINA SILENCIOSA (An Cailín Ciúin). Direção: Colm Bairéad. Irlanda, 2022. 95 min, cor.
ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d’Une Chute). Direção: Justine Trier. França 2023. 151 min, cor.
A FITA BRANCA (Das Weiße Band – Eine Deutsche Kindergeschichte). Direção: Michael Haneke. Alemanha/Áustria, 2009. 144 min, pb.