Abstract
As a proposal for work on this theme, we present a detailed description of the project ‘SPECULUM: Filming and looking at oneself in the mirror – The use of self-writing by Portuguese-speaking documentary filmmakers.’ This research project was conducted at the University of Beira Interior between November 2021 and October 2023. It received funding as an exploratory project from the Foundation for Science and Technology (EXPL/ART-CRT/0231/2021). In it we propose to develop an expository approach to the study’s objectives, the corpus investigated, and the actions developed and to be developed. For this purpose, we focus on foundational conceptual issues and provide a partial presentation of the corpus, including brief analyses of the Portuguese and Brazilian films that constitute it. The topic of those films directly or indirectly explores the biographies of their female directors themselves, but with particular emphasis on the film ‘Olmo e a Gaivota’ (Petra Costa 2015). The presentation concludes with a proposal for a brief exploration through the concept of research in art, considering the characteristics of the described project, simultaneously analytical and creative, aiming to emphasize the potential for understanding pre-existing artistic objects as well as the conception of new objects of study, thereby outlining plans for post-project endeavours.
Keywords: autobiography, documentary, women, Petra Costa, subjectivity.
Introdução
Num tempo cronológico curto, que pouco ultrapassa a centena de anos, fomos assistindo à evolução de uma técnica progressivamente transformada em arte cinematográfica – ainda que a designação seja contestável, em tantos casos. Destaca-se, ao longo de um século, a figura do realizador, no caso do cinema de autor, e a da companhia produtora, no caso do cinema comercial. Resultando do trabalho colectivo de uma equipa com maiores ou menores dimensões, o sistema por detrás da arte foi ditando um cânone eminentemente masculino, económica e socialmente privilegiado, branco, europeu ou norte-americano.
O final do século XX e o início do século XXI foram, no entanto, tempos de contestação dos paradigmas vigentes e de redescoberta das mulheres esquecidas: na realização, na produção, na edição, na escrita de guiões, em todas as funções que compõem um filme. O maior interesse pelo seu legado é visto como um movimento político que força a entrada na Academia, constrange os guardiões do saber instituído e inspira aquelas/es que não se identificam com a História contada, recebida ou oficializada pelas fontes bibliográficas eternamente citadas. Nunca como hoje foi assim tão premente a necessidade de formulação de um pensamento subjetivo, que parte de um eu para contestar a objectividade e universalidade científicas, e que chega a um tu com a subtileza de um sussurro. Fica no ouvido de quem quer escutar, reverbera no espírito de quem pretende criar: “se ela fez, eu também posso fazer”.
Neste compasso, percebemos que olhar ao espelho é um exercício constante, envolvido na rotina do dia-a-dia. Pela manhã ao acordar, antes de sair de casa, ao passar numa montra que devolve uma imagem indefinida, antes de dormir. Confrontar-se com o espelho, questioná-lo e, por essa via, questionar-se a si própria, é um empreendimento mais profundo, com o necessário tempo para a indagação. O voltar-se para dentro a partir do que os outros veem de fora. Estabelecer limites a si própria, renunciar convenções e traços pré-definidos, indagar o que teve que ser: o impedir de uma continuidade gratuita na rejeição de um roteiro transmitido de geração em geração. Antes de mim, minha mãe, minhas tias, minha avó, minha bisavó. Uma árvore genealógica constituída no feminino que nunca como agora esteve tão ao vento: com as mesmas raízes mas num período de tempestade que provoca o esvoaçar da folhagem.
Filmar-se e ver-se ao espelho é assim ter uma antepassada em todas as restantes estações do ano, que foi aceitando o legado da anterior. É chegar ao Outono para deixar partir o que tiver de ir. Aprender, com as primaveras de Cecília Meireles, a deixar-se cortar e a voltar sempre inteira.
De onde vimos
Nas outras artes, a escrita de si tem formado casos de estudo inéditos. Há muito que a mulher se autorretrata por meio da fotografia, da música, da pintura ou da literatura, a partir do momento em que os seus corpos deixam de ser objecto de deleite para se tornarem sujeitos de um discurso que é tão variável quanto as possibilidades, origens e formas de quem o profere. A abertura histórica a este autorretrato feminino surge naturalmente num período de libertação de constrangimentos, conquistas de liberdades e direitos que, aos poucos, se vão instituindo. Num contexto recente, em língua portuguesa, sobressai o trabalho das cantautoras Adriana Calcanhoto, Ana Moura, Marisa Liz ou Márcia, que publicamente assumem a necessidade de escrever e compor a partir da própria existência. São versões musicadas, tornadas poemas ou imagens de uma autobiografia até aqui ignorada, como uma autoafirmação: “Eu tenho algo a dizer sobre o que se passa em mim e à minha volta.”
As vozes do desconforto face à mudança criticam, no entanto, uma geração excessivamente focada em si própria, que se oferece à exposição gratuita das redes sociais, das selfies instagramáveis, da felicidade vazia e ignorante. Acautelada pelas mesmas, em ambiente pedagógico, vou questionando as minhas alunas com projectos semelhantes: para além da urgência que sente em contar a sua história, por que acha que outras pessoas que não conhece a devem escutar? Os projectos avançam, concretizam-se, transpõem a sala de aula. Da singularidade desses microcosmos brotam imagens-poema que assumem o eu como figura principal.
No passado, o fascínio pelo realizador misógino que reproduz alter egos no grande ecrã, que expõe a subserviência e o corpo femininos, ditou a genialidade de Antonioni, Bertolucci, Charles Vidor, Hitchcock, Kubrick ou Tarantino, entre tantos outros. Por essa razão, se até aqui se criaram personagens-espelho dos seus autores, que se comportavam (e comportam) frente à câmara como quem os dirige por detrás, é possível que a evolução seja marcada por uma maior transparência, ainda que persista uma certa dificuldade de acesso e visualização das obras. No mesmo sentido, ao reflectir sobre questões da invisibilidade do autorretrato feminino, Thiane Nunes, pesquisadora em Artes Visuais, encontra justificações para o fenómeno na construção social da personalidade artística masculina que lhe permitem constatar:
O mito da criança prodígio figura em grande parte nas biografias de artistas masculinos, como no caso de Cimabue tropeçando no jovem Giotto, esboçando um desenho de uma ovelha com uma pedra. O talento de um menino também poderia demonstrar poderes quase miraculosos – quando como Filippo Lippi tinha dezessete anos, ao ganhar sua liberdade dos mouros desenhando o retrato de seu captor. Ou um menino talentoso é aprendiz de um mestre famoso, garantindo assim a continuação da patrilinhagem. (Nunes 2019, 931)
Num sentido inverso, a autora reclama que a sobredotação de carácter mítico não encontra paralelo na infância de mulheres artistas que, com mais frequência, são apresentadas como excêntricas, detentoras de personalidades e comportamentos desviantes, menos em termos artísticos do que moralmente condenáveis:
Não há relatos de descobertas de jovens talentos femininos por pintoras consagradas, o que não surpreende, uma vez que críticos e historiadores tendem a ver mulheres artistas como aberrações isoladas da natureza, em vez de um elo de uma cadeia de artistas mulheres. (idem)
Por sua vez, o estabelecimento de uma possível relação entre professora e aluna, ou mestre e discípula, não chega a ser nomeada, mencionando a pesquisadora que, em finais do século XVIII, algumas das principais artistas mulheres necessitavam da figura de um mentor masculino que lhes revelasse o mundo da criação artística. A versão feminina do mito do talento infantil dilui-se assim na formação de biografias concisas e desinteressantes que, de modo constante, reiteram o acesso da criança a uma educação artística, em ambiente familiar privilegiado, desde os primeiros anos.
Em termos autobiográficos, uma certa aura de invisibilidade é mantida, ainda que assinalemos expressões artísticas mais relevantes. Não se buscando a exaustão de referências históricas, olhamos para os exemplos das pintoras Sofonisba Anguissola (Itália, 1530-1625), Artemísia Gentileschi (Itália, 1593-1653), Élisabeth Vigée-Lebrun (França, 1755-1842), Mary Cassatt (Estados Unidos da América, 1844-1926) ou Frida Kahlo (México, 1907-1954). Em Portugal, Aurélia de Souza (1866-1922), Sarah Affonso (1899-1983) e Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) produziram igualmente notórios autorretratos. De entre as suas obras, o quadro L’Auteur à ses occupations, datado de 1789, mostra Marie-Nicole Vestier Dumont com uma paleta na mão e uma criança no berço, refletindo o seu duplo papel de mãe e pintora.
Homenageando esta linhagem de criadoras que, não se sentindo representadas, promoveram a autorrepresentação – com quadros impactantes que vão, de algum modo, modificando o curso da História –, o projeto Speculum: Filmar-se e ver-se ao espelho: o uso da escrita de si por documentaristas de língua portuguesa buscou precisamente conhecer o carácter intimista e provocador de exercícios semelhantes, elaborados agora pela via cinematográfica. Encarando-os como uma forte tendência do final do século XX e início deste século, e procurando identificar casos de estudo de ambos os países, centrámo-nos no exemplo de realizadoras como Margarida Leitão, Catarina Vasconcelos, Leonor Teles, Maria Clara Escobar, Melanie Pereira, Tila Chitunda, entre tantas outras contadoras de histórias que, na revisitação dos seus filmes de família, reescreveram as narrativas e imagens neles exibidas.
Procuramos, desta forma, insistir na alteridade antropológica e fílmica, promovendo uma ressignificação do tradicional estatuto da mulher e das suas figuras textuais – tanto nos filmes, como na atenção que lhes dedicamos. Não obstante, buscar o distanciamento e a objectividade no exercício analítico nem sempre é possível, ou sequer desejável. Se da Academia se esperam raciocínios isentos, também a capacidade de observar uma obra pela sensação e pela empatia, sem a exasperação da produtividade curricular, deveria ser retomada.
Por essas e por tantas outras razões, regresso devagar a certos filmes, como Manuel António Pina regressa a um sorriso: como quem volta a casa. Revejo e analiso assim Olmo e a Gaivota, um filme de Petra Costa e de Lea Glob estreado em 2015, depois da minha própria gravidez resguardada, na síntese possível da minha própria pulsão autobiográfica. Começo por escutar esta mulher que fala de si, do seu processo de clausura e de redescoberta num ser que lhe cresce no ventre, enquanto relembro Beauvoir, para quem a mulher grávida é, ao mesmo tempo, ela própria e outro para além dela: “um pólipo nascido de sua carne e estranho a sua carne vai desenvolver-se nela” (Beauvoir 2015, 297). Pergunto-me se Olivia estranha este ser ao dar-se conta de que a sua vida não mais será a mesma, ou a partir do momento em que Petra Costa decide olhar, filmar e exibir a sua gestação. A câmara à mão que não é discreta, a voz da realizadora e as diretivas que aponta (“mais subtileza”, “mais vítima”) levantam os eternos questionamentos de onde começa a ficção e onde termina o documentário, que, num filme como este, se tornam verdadeiramente estéreis.
Maternidades reais
Olivia cresceu no teatro. Viveu inúmeras vidas no corpo de muitas mulheres de muitos países, vinda de Itália, sem sair de Paris. Olivia amou no teatro. Apaixonou-se e engravidou quando encenava A Gaivota, de Tchekhov. Tornou-se Olivia que olha a câmara e experiencia a viragem, no deixar de ser tantas outras para passar a ser uma outro. Olivia, a mulher-atriz-realizadora, com o diagnóstico de “gravidez de risco”, deambula entre polos, encerrada em casa: ensaia, revive personagens, divaga, chora, aumenta de volume, perde-se no quotidiano e reconstrói-se nele, tem saudades do passado e do futuro, sobrevive num presente que é, a uma só vez, tão escasso quanto longo. Uma gravidez, como este filme, é a suspensão do tempo.
Quantas vezes empatizei assim? Que gestantes foram olhadas desta forma ao longo da História do Cinema? No sofá da sala, relembro duas grávidas de Agnès Varda – em L’Ópera Mouffe (1958) e em Resposta de Mulheres / Réponse de Femmes: Notre Corps, Notre Sexe (1975). A ficção científica, como a comédia romântica, olhou-nos também: em Aparelho Voador a Baixa Altitude (Solveig Nordlund 2002) e em Os Filhos do Homem / Children of Men (Alfonso Cuarón 2006) revejo as mulheres que garantem as gerações seguintes, impedindo que o mundo se acabe. Nos Mutantes (1998), Teresa Villaverde filma a cena mais difícil de contemplar de todo o cinema português. Quem não se contorce ao ver Andreia parir, sozinha, na casa de banho de uma estação de serviço? Mas não me ocorrem muitos mais exemplos. A figura materna é relativamente comum na História do Cinema, ainda que em personagens secundárias ou num constante limbo entre o cuidado dos filhos e a vida profissional ou pessoal. O corpo da mulher grávida, pelo contrário, é uma presença rara no grande ecrã, depois de décadas de um cinema clássico que foi imensamente púdico na sua contemplação.
O filme de Petra Costa é diferente. Tratando-se Olmo e a Gaivota de uma corealização com a cineasta dinamarquesa Lea Glob, verificamos que a ficha técnica reserva a Olivia Corsini e ao progenitor da criança, Serge Nicolaï, o estatuto de “colaboradores” no processo. Invoca-se, deste modo, a obra cinematográfica como criação coletiva, gerada a partir da própria gestação, enquanto a protagonista se eleva no término de outras. O mote para as filmagens teria sido outro, revelado por Jorge Mourinha na notícia que publica no jornal Público, a 30 de Junho de 2016.1 Nela, vai citando à vez as duas realizadoras e o casal de actores, sem atribuir destaque a nenhum elemento do quarteto de criadores. O filme seria, inicialmente, “Um dia na vida de uma mulher, no qual não acontece nada, mas tudo acontece dentro da sua mente e do seu corpo”, revela Petra Costa ao jornalista e crítico de cinema. O projeto iria começar a concretizar-se quando Olivia descobre que está grávida e, em pouco tempo, tem uma hemorragia que a obriga ao descanso e à clausura. De um dia, o filme passa a nove meses.
Ainda sobre a questão estéril que atrás mencionávamos, o texto de Mourinha cita-nos idêntico comentário de Serge Nicolaï:
É muito aborrecido quando as pessoas fazem essa pergunta sobre a parte de realidade e a parte de ficção. Porque não queremos responder. Queremos proteger um pouco a parte de dúvida, que é também importante para o próprio espectador. Não temos vontade de oferecer uma solução sobre o que é ficcional ou não.
Petra Costa, por sua vez, considera que o filme deambula entre os dois registos, enquanto Lea Glob o denomina de “não-ficção”. A cineasta brasileira oscila, enquanto a colega dinamarquesa se define pela negativa: sabe o que o filme não é, e esse conhecimento basta-lhe.
O filme a que assistimos centra-se então em Olivia, a incubadora de um novo ser que irá chamar-se Olmo. A sua clausura é semelhante à que vivi, em meses de pandemia, com o mesmo diagnóstico e um risco que aceitaria correr de todas as formas, em todas as idades, com todas as ameaças exteriores. Uma felicidade tão esperada que, nem Olivia, nem eu, sabemos como se encerra entre quatro paredes. O filme nasce desse horizonte limitado que alargamos como um ventre que detém o mundo. As paredes expandem-se, na obra, mas também aqui em casa. Olmo funciona, deste modo, como reprodução do que existe em cenários distintos: provoca identificação e gera reflexão, memorização, não-indiferença. Uma identificação reflexiva, se pensarmos que a identificação contém sempre, em si mesma e como motivo, uma reflexão, facilitada pela figura da narradora que não é intérprete, desprovida da arrogância totalitária que habitualmente caracteriza a última. Na recusa do exercício hermenêutico, contempla-se e vive-se a obra por si.
Ao minuto 59 de Olmo e a Gaivota, numa cena de dois breves minutos, grandes planos alternam com planos médios. Olivia olha-se ao espelho e vê rugas, expressões, inseguranças e narrativas passadas, como duas das personagens femininas de A Gaivota: Arkádina, a atriz que envelhece, e Nina, a que sucumbe à loucura. No derradeiro desses planos, Petra Costa, fora de campo, indaga se existirá naquele rosto uma linha da infidelidade, ao que Olivia responde que prefere não falar sobre um assunto que colocaria em causa a sua relação.
O rosto que se observa e que observamos no espelho é o da mulher que necessitou produzir-se, tanto para relembrar a sua condição feminina como para ser bem vista por quem está prestes a receber em casa. Olivia, de batom e unhas vermelhas, em forte contraste com a pele e o cabelo claros, transparece reflexos de si mesma, de uma ou de tantas grávidas que escutam as vozes ao redor: “Tu tens que…” Uma grávida tem que tanta coisa. Para além de dar vida, parte à descoberta de que o seu processo, íntimo e pessoal, pertence a tantas pessoas que lhe apontam o dedo. A pressão e o cansaço. O despropósito que não foi solicitado.
No plano, como em outros momentos do filme, os diálogos entre Petra e Olivia desvendam comentários, autocríticas, ou caminhos a seguir na própria obra que assim se vai construindo. Contêm, também eles, os principais elementos da filmografia da documentarista brasileira: a colagem dos filmes de família, o palimpsesto, a recusa do olhar do outro, o filme como questionamento, a inscrição na obra, o colocar-se em cena. Olmo e a Gaivota (2015) sucede Elena (2012) e antecede Democracia em Vertigem (2019), intermediando o tríptico da escrita de si, do registo diarístico de uma cineasta que filma como quem olha para si mesma. A “alternância entre o eu e o outro, o estar aqui e simultaneamente alhures, o falar de si para falar do mundo, ou falar do mundo para dizer de si” (Siqueira 2006, 18), que Marília Rocha Siqueira compendia. A “escrita cinematográfica de inflexão ensaística” (Veiga 2019, 341) que Roberta Veiga atenta no princípio de tudo: em Varda, em Akerman, em Kawase.
Analisando o conjunto, diria que Petra Costa vem revelando um fascínio quase obsessivo pela vida e o seu contrário. Em termos biográficos, sabemos como a morte modelou a sua descoberta do mundo, que brutalmente necessitou de empreender, na infância e na adolescência. Não se desvendam, no entanto, manifestações de raiva, mas antes um questionamento e uma profunda tristeza sintetizados em Elena. O começo, como já o dissemos noutra ocasião (Pereira e Abreu-Nogueira 2018, 112), dita o destino da obra:
Elena, sonhei com você essa noite. Você era suave. Andava pelas ruas de Nova Iorque com uma blusa de seda. Procuro chegar perto. Encostar. Sentir seu cheiro. Mas, quando vejo, você está em cima de um muro, enroscada num emaranhado de fios eléctricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro. Eu mexo nos fios buscando tomar um choque. E caio, do muro bem alto. E morro.
A voz em off complementa o travelling inicial, por uma cidade nocturna, iluminada artificialmente. O tom de declaração poética imiscui-nos na vida de alguém que se embaraça em fios, que busca um ser no qual possa existir, que confunde vida e final, superfície e queda. Daí em diante surgem questões e processos de envolvência na narração que deixa de poder ser atribuída linearmente. Elena é quem fala ou quem busca? Quem parte ou quem se encontra? Elena será a miragem, a melancolia e a inquietação de Petra? As viagens prosseguem. Os travellings sucedem-se, numa montagem cuidada, que respira ao ritmo certo. O filme é uma busca e o movimento elegido justifica-se dessa forma. Passa-se no meio da chuva, dos transportes que circulam, das gentes que andam e que não podem parar, depois da pergunta ser colocada e a justificação, pressente-se, se encontrar iminente. Petra Costa filmou como quem busca, com a inquietação de quem necessita de respostas.
Esta inquietação, que molda tantos filmes autobiográficos, faz do cinema um meio, não apenas de revisitação, mas sobretudo de questionamento da memória. As realizadoras observam a árvore genealógica herdada, fazendo do seu filme um lugar de mudança e de afirmação: “O essencial não é o que se fez do homem, mas o que ele faz com o que dele foi feito” (Sartre 1966, 95). Como se dissessem ao mundo que, a partir dali, são elas que filmam. E, na exposição imensa que realizam, contemplam-se a si próprias e aos outros, que assim se contemplam pela relação criada. A memória, diz-nos Ana Hatherly, é essa
claridade fictícia das sobre posições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das interpretações que se cruzam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido do sentido ao significado: o que resta é impacto que substitui impacto – eis a invenção. (Hatherly 2024, 64)
Seria importante perceber o que acontece às cicatrizes e aos sentimentos depois de exibidos desta forma. Uns transformam-se em manifesto, como nos filmes vincadamente políticos, tanto de Petra Costa (Democracia em vertigem), como de Melanie Pereira (As melusinas à margem do rio) ou Leonor Teles (Balada de um batráquio). Outros viram saudade, também presente em Petra Costa, em Margarida Leitão, em Catarina Vasconcelos. Alguns são viagem e reencontro, como na eterna busca identitária de Tila Chitunda ou de Sheila Correia Ramos. Como se fizéssemos filmes para viajar politicamente na saudade.
Olmo e a Gaivota, sendo uma obra colectiva, cede também a esse colectivo. O propósito é o contrário: não descobrir o porquê do término, mas o deslumbramento da génese. Os travellings são menos comuns, concentrando-se especialmente nas poucas cenas de exterior. Os planos são naturalmente mais fixos, na contemplação de uma casa onde cresce uma vida e outra se altera definitivamente. À hierática angústia da primeira longa sucede-se deleitoso ascetismo. A contiguidade permanente da vida com a morte é assim dominante na obra de Petra Costa, ditando o posicionamento (e o movimento) da câmara que filma inquietações centrais: os laços de família, a determinação da infância, a transitoriedade das fases, a incoerência e a frustração perante o inevitável, a importância da saúde mental, a essência feminina, invisível mas tão criadora.
No corpus fílmico que vai compondo o Speculum inscrevem-se já mais de sete dezenas de filmes que olham para a árvore genealógica das próprias realizadoras, embora quase sempre sobre a sua ascendência: mães, pais, avós, tios, irmãos da mesma geração, no esforço singular destas criadoras compreenderem o que lhes foi legado e transmitido até àquele momento. Não obstante, existem poucos filmes sobre as gerações seguintes. Olmo e a Gaivota vai, de certa forma, colmatando a falta, com as imagens do nascimento e dos primeiros dias de vida deste ser, fora da imensa barriga da sua progenitora, que encerram o documentário.
Já completámos um século de uma História do Cinema tão patriarcal quanto branca, onde elas apenas começam a contar histórias: as suas próprias histórias. Desenganem-se as/os mais crentes: do desaforo iniciado prevalece o estatuto periférico. Não obstante, essas histórias existem e são já diversas. Não homogéneas, categorizantes ou identitárias, mas difusas, questionadoras e interpeladoras. A metodologia é a busca, a demanda. Observar os outros é também observar-se a si.
Notas
1 Consultar Mourinha, Jorge. 2016. “Retrato de mulher grávida em caos feliz” in Público. Disponível em https://www.publico.pt/2016/06/30/culturaipsilon/noticia/-retrato-de-mulher-gravida-em-caos-feliz-1736440
Bibliografia
Beauvoir, Simone. 2015. O segundo sexo – A experiência vivida, volume 2, Lisboa: Quetzal Editores.
Hatherly, Ana. 2024. Tisanas, Porto: Assírio & Alvim.
Nunes, Thiane. 2019. “Mulheres artistas e Autorretrato: a representação de si como sujeito” in Encontro de História da Arte, n.º 14: 929-938. DOI 10.20396/eha.vi14.3388
Pereira, Ana Catarina e Juslaine Abreu-Nogueira. 2018. “A Reivenção de Si e a Construção da Alteridade Perante o Irreversível: O cinema de Petra Costa” in Revista Científica / FAP. UNESPAR, n.º 18 (1): 106-126. Disponível em http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/revistacientifica/article/view/2309
Sartre, Jean-Paul. 1966. “Jean-Paul Sartre répond” in L’Arc nº 30
Siqueira, Marília Rocha. 2006. O ensaio e as travessias do cinema documentário, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.
Veiga, Roberta. 2019. “Imagens que sei delas: ensaio e feminismo no cinema de Varda, Akerman e Kawase.” In Karla Holanda, org. 2019. Mulheres de Cinema, Rio de Janeiro: Numa Editora.
Filmografia
Aparelho Voador a Baixa Altitude. 2002. De Solveig Nordlund. Portugal e Suécia: Filmes do Tejo, ICAM, RTP, SFI, Torromfilm.
As Melusinas à Margem do Rio. 2023. De Melanie Pereira. Portugal: Red Desert.
Balada de um Batráquio. 2016. De Leonor Teles. Portugal: Uma Pedra no Sapato.
Democracia em Vertigem. 2019. De Petra Costa. Brasil: Violet Films, Busca Vida Filmes, Simmering Films.
Elena. 2012. De Petra Costa. Brasil e USA: Busca Vida Filmes.
L’Ópera Mouffe. 1958. De Agnès Varda. França: Ciné-tamaris.
Mutantes. 1998. De Teresa Villaverde. Portugal: ARTE, FBM Films, IPACA - Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual, JBA Production, La Sept Cinéma, Mutante Filmes, Pandora Filmproduktion, RTP, ZDF.
Olmo e a Gaivota. 2015. De Petra Costa e Lea Glob. Brasil e Portugal: Zentropa Productions, Busca Vida Filmes, O Som e a Fúria, Film i Väst, Épicentre Films.
Os Filhos do Homem / Children of Men. 2006. De Alfonso Cuarón. EUA, Reino Unido e Japão: Universal Pictures, Strike Entertainment, Hit&Run Productions, Ingenious Film Partners 2, Toho-Towa.
Resposta de Mulheres / Réponse de Femmes: Notre Corps, Notre Sexe. 1975. De Agnès Varda. França: Antenne 2 (A2), Ciné-tamaris.