Abstract
International migration is one of the most important contemporary social phenomena, which has been mobilizing societies, international and national organizations, States and political decision-makers of different countries, worrying Human Rights associations and representatives and stimulating research in the area. In fact, the current context is characterized by the increase, diversification and feminization of migratory flows, with female migration increasing all over the world. More and more women of different generations, education levels, backgrounds and countries are emigrating on their own with autonomous and individualized projects or with migratory projects linked to family reunification and are the focus of social and gender studies or star in fictional or documentary movies. The Brazilian documentary Women Who Migrate (2023) by director Sabrina Demozzi presents the story of three migrant women of different generations and nationalities in 52 minutes using participating methods. The discursive narrative is in three languages (French, Spanish and Portuguese) and records fragments of the migratory process of Romina (22-year-old Argentinian), Ruth (24-year-old from Congo) and Eliana (42-year-old Venezuelan). Throughout the migratory process, the documentary shows changes in perceptions, future projects and the life of these women, as well as the protagonism and empowerment of these women who migrate.
Keywords: Documentary, Migrant women, Migrations, Narrative and gender, Cinema and migration.
Introdução
A mobilidade humana é uma experiência global, sobretudo em épocas de crises, designadamente social, económica, ambiental, de tensões e conflitos interculturais, políticos e armados. Esta mobilidade atinge diferentes países e sociedades, géneros, gerações e classes sociais, tem-se diversificado e intensificado, sobretudo a feminina a qual tem sofrido grandes mudanças. As migrações nacionais e internacionais, voluntárias e forçadas têm vindo a aumentar e a ganhar espaço nas diversas narrativas cinematográficas, de caráter ficcional ou documental, o cinema contribuindo para a divulgação, reflexão e debate de uma questão societal de grande pertinência e atualidade a nível regional, nacional e global.
Também as pesquisas sobre migração e refúgio, têm-se intensificado nos últimos anos. Os nossos grupos de pesquisa em Portugal e no Brasil vêm trabalhando com questões migratórias e com documentários que tratam da questão da migração, muitos destes filmes sendo realizados por mulheres e tendo as mulheres migrantes como tema central.
Neste texto iremos apresentar algumas reflexões sobre migração de mulheres no sul do Brasil onde o documentário foi realizado. O documentário Mulheres que Migram foi premiado no Canal Futura brasileiro em 2023 e é uma experiência pioneira de comunicação no Brasil e uma proposta de transformação social que vem ocorrendo desde 1997. A Fundação Roberto Marinho-Brasil, patrocinou esta iniciativa que é o resultado de uma parceria estratégica entre organizações e da iniciativa privada, cujo compromisso com o país é o de investir socialmente. Mulheres que migram foi um filme vencedor do 13 Doc Futura, lançado em 2023 em Curitiba, e na cidade do Rio de Janeiro, está disponível no canal do Youtube, e é produzido pelo Tropico Audiovisual, de Curitiba, Paraná, Brasil. A Diretora do documentário é a cineasta Sabrina Demozzi, o documentário tem 52 minutos e foi realizado a partir de métodos participativos que estão sendo aplicados com mulheres migrantes, de entrevistas dinâmicas e não apenas da narrativa das personagens.
Movimentos feministas
Não vai longe, pelo final do século XIX, iniciaram-se as lutas feministas no mundo. Os movimentos feministas tiveram várias configurações e até representaram uma sequência caracterizada por atos e maneiras de pensar especial. De maneira geral eles se caracterizavam pela defesa dos interesses de género, a de autonomia das mulheres e a crítica de construções sociais que impediam o livre acesso das mulheres ao espaço público e às decisões de poder. A chamada primeira onda foi conduzida por mulheres do Reino Unido e dos Estados Unidos. As reinvindicações tiveram início no final do século XIX e foram representadas pelos direitos políticos, sociais e económicos das mulheres e giraram em torno do direito do voto.
Logo adiante o fenómeno da interseccionalidade surgiu como um caminho a desejar. Vimos neste movimento o feminismo indígena, radical, e muitos outros. Resumidamente, pode-se definir a interseccionalidade como a interação de dois ou mais fatores sociais que identificam uma pessoa, por exemplo, identidade de género, etnia, geração e classe social, resultando desse fenómeno o aumento do interesse em compreender as desigualdades, as discriminações e as diversidades das mulheres ou de outras populações.
Em 1975 aconteceu a Primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, na Cidade do México, estruturada pela Organização das Nações Unidas (ONU), e foi declarado o Ano Internacional das Mulheres, fortalecendo as lutas e reivindicações das mulheres feministas. Após, aconteceram outros eventos importantes em todo o mundo, inclusive no Brasil como o Movimento Feminino pela Amnistia, que tinha como articuladora a ex-prisioneira política Therezinha de Godoy Zerbini, e teve como ideia principal conscientizar as organizações civis e entidades de classe sobre a concessão da amnistia aos presos exilados e políticos. Outros movimentos realizados na década de setenta, por grupos privados e feministas apoiadas pela ONU foram associados às lutas sindicais, melhores condições de trabalho, salário digno, medidas de saúde e segurança, associações profissionais e partidos políticos (Nogueira, 2017).
A segunda onda se caracterizou por lutas de libertação das mulheres e apresenta objetivos bem específicos. Simone de Beauvoir, (1908-1986) escritora francesa, ativista, feminista que escreveu a obra o Segundo Sexo, publicada em finais de 1949, sendo divulgada e conhecida no final dos anos 50 e início dos anos 60 e também a partir de seu envolvimento com Jean Paul Sartre, filosofo existencialista. Neste livro Beauvoir argumenta que a liberdade é o direito mais importantes das mulheres. Como ativista e pioneira criou novas discussões sobre os direitos e opressões das mulheres e argumentou que “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”
Já na segunda metade da década de 60 com o advento da pílula em 1968 e a manifestação de ativistas americanas do Women’s Liberation Movement durante o Concurso de Miss América, houve uma grande revolta das mulheres em um movimento conhecido pela “Queima de sutiãs”. Conclui-se que as mulheres ficaram mais ativas do que passivas como eram consideradas até então.
A terceira onda tem início a partir dos anos noventa e segue até hoje, combatendo os preconceitos relativos à sexualidade, etnia, género, idade, impulsionando o movimento de negritude, de homossexualidade e das minorias e a luta pelos Direitos Humanos. Nesta contemporaneidade as mulheres apresentam um perfil completamente diferente do século passado. Praticam o direito de mobilidade, de ir e vir, a independência financeira, a criação de projetos ambiciosos e trajetórias independentes alguns dos quais pouco usuais como o caso das deslocações, migrações e refúgio
Os pesquisadores insistem em dizer que a quarta onda apresenta uma proposta revolucionária para o movimento LGBTQI+ e para o advento dos processos dos novos meios de comunicação como Internet, e outras redes sociais eletrônicas. Neste século XXI não podemos desconsiderar o movimento das migrações e dos deslocamentos no qual as mulheres têm vindo a conquistar um papel fundamental e crescente de participação em todo o mundo. Contudo, a análise das questões migratórias considerando a perspectiva de género remonta apenas aos anos de 1980, sendo portanto relativamente recente.
O que foi registado no documentário Mulheres que migram (2023) foi justamente esta forma de autonomia das mulheres representadas por diferentes gerações, nacionalidade diversas e depoimentos sensíveis e emancipatórios: Romina (Argentina de 22 anos); Ruth (oriunda do Congo 24 anos); e Elianna (Venezuelana de 42 anos). Observa-se através dos seus depoimentos a intenção de se fazerem personagens de suas próprias vidas. Além disso não advogam o simples papel de mulher, mas sim de intervenção e cidadania na sociedade.
Mulheres que Migram (2023). Olhares sobre histórias de vida de mulheres migrantes
O cinema desde praticamente a sua invenção vai abordar de alguma forma, documental ou ficcional, a temática da migração ou do deslocamento de pessoas. Observamos nesse sentido em um dos primeiros documentos fílmicos realizados em 1895, simultaneamente com a invenção dos Irmãos Lumiére, o médico e pesquisador francês Felix-Louis Regnault registar em película a presença de uma mulher wolof fazendo objetos de cerâmica, aquando da realização da Exposição Etnográfica da África Ocidental que aconteceu em Paris (Freire; Penafria, 2007). Filmes ficcionais sobre a migração serão realizados já no início do século XX, a exemplo da ficção realizada por Charles Chaplin em 1917, que tem por título, O imigrante. É importante observer igualmente a obra fílmica, sobretudo ficcional, realizada por aquela que é considerada a primeira mulher cineasta da história do cinema, a francesa Alice Guy-Blaché. Apesar de praticamente não ter abordado nos seus filmes a migração, ela apresenta uma obra realizada não somente em França, mas sobretudo no longo período em que viveu nos Estados Unidos, a partir de 1907, à frente, juntamente com seu marido, da produtora de filmes “Companhia Solax”. É interessante observar o título de um de seus filmes The Making of an American Citizen realizado em 1911, no qual ela apresenta, de forma ficcional, a questão da imigração nos Estados Unidos.
A partir desse momento muitos filmes serão realizados tendo por tema as migrações e podemos observar que muitos desses filmes, e sobretudo os documentários, abordam questões especificas sobre a questão migrante. O pesquisador Hamid Nacify na sua obra An accented cinema: exilic and diasporic filmmaking (2001), vai denominar muitos desses filmes que abordam a experiência do exilio e da diáspora como “accented cinema” (cinema com sotaque). Importante salientar que muitos desses filmes foram premiados em importantes festivais de cinema, a exemplo de Fogo no Mar, realizado por Gianfranco Rosi, que recebeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2016.
Nas produções documentais mais recentes que têm focado temáticas especificas vinculadas à questão migratória, podemos citar os filmes realizados por mulheres como o documentário Overseas (2019), realizado pela diretora, Sung-A Yoon, que apresenta os centros de formação dedicados a formar mulheres Filipinas para trabalhar em outros países. O documentário Chez Jolie Coiffure (2019), realizado por Rosine Mbakam, apresenta o quotidiano de uma imigrante da República dos Camarões que trabalha num Salão de Beleza em Bruxelas, na Bélgica. O filme documental In Search… (2018) realizado por Beryl Magoko, apresenta a própria história da realizadora que recorda uma situação traumática vinculada à sua circuncisão genital feminina, realizada no Quénia e na busca de uma compensação sobre a violência que sofreu quando criança.
O documentário realizado por Marcela Ulhoa e Daniel Tancredi, Aqui na Fronteira (2022), apresenta a dramática situação dos migrantes obrigados a deixar a Venezuela e cruzam a fronteira com o Brasil. O documentário apresenta a história de vida de três desses migrantes. Inicialmente acompanhamos a primeira história que apresenta uma jovem mulher que está em Boa Vista, capital do Estado de Roraima, mas que precisa retornar à Venezuela para buscar a sua filha, logo após sendo-nos apresentada a história de Francis, mulher trans e líder de um abrigo de refugiados. O terceiro personagem é Argenis, homem que está na organização de uma ocupação em Boa Vista. São histórias muitas vezes traumáticas de mulheres e homens que vivenciam situações de violência na busca de melhores condições de vida, ou de sobrevivência, no país de acolhimento.
Observamos situações semelhantes e recorrentes que mostram as dificuldades de inserção, de adaptação e de insegurança no país de acolhimento através das três histórias de vida apresentas no filme Mulheres que Migram.
O documentário de Sabrina Demozzi apresenta um olhar instigante sobre a mulher migrante, ao dar voz a três experiências no feminino da imigração, relatos que abordam a condição migrante e de estar em descolamento e adaptação num país estrangeiro. Bill Nichols no seu texto “A voz do Documentário” enfatiza que, “Por voz refiro-me a algo mais restrito que estilo: aquilo que, no texto, nos transmite o ponto de vista social, a maneira como ele nos fala ou como organiza o material que nos apresenta” (Nichols, 20025, p. 50).
O documentário de 52 minutos de duração foi premiado em 2023 no 13º Festival Doc Futura. O filme acompanha a história de vida de três mulheres migrantes que vivenciam de formas diferenciadas o processo migratório, tanto do ponto de vista de origem geográfica, quanto no que diz respeito à idade das protagonistas. Acompanharemos o percurso da jovem Romina de origem Argentina, de Ruth jovem congolesa e de Elianna, a mais velha das três, com 49 anos e de origem venezuelana. Todas as três vivenciam a experiência migratória em uma localidade especifica, a cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná. Este Estado do Brasil como muitos outros da região sul e sudeste, tem a particularidade de ser um local com forte tradição de migração, sobretudo no final dos anos XIX e inícios do século XX quando muitos italianos e alemães, vieram instalar-se no sul do Brasil.
As trajetórias destas três mulheres vão se entrecruzando, sem que haja um real diálogo entre elas, sendo sobretudo ao nível da montagem que percebemos momentos das três histórias de vida e os relatos das três migrantes. Somente no último plano do documentário observamos as três mulheres juntas em um local que parece ser um terminal de transporte, local de partida e de chegada. É, no entanto, interessante observar que apenas a imagem expressa essa relação de proximidade, sendo importante observar que não há diálogo entre elas, a imagem parecendo acentuar que cada uma carrega a sua própria história e projetos de vida, a sua trajetória e experiência de origem e de chegada e acolhimento.
Ao nível geral podemos observar algumas diferenças entre cada uma das histórias relatadas, a primeira sendo de Romina Baldi, jovem de 22 anos que deixa a Argentina tendo como objetivo buscar uma maior independência. Através de um aplicativo de trabalho voluntário ela consegue emprego em um hostel de Curitiba a fim de garantir o seu sustento. Observamos nesse caso a forte relação que existe entre Romina e a sua família, através do relato que esta nos faz da importância da família na sua vida, mas que decidiu ter uma vivência e experiência em outro país. Interessante observar que a relação mais próxima da jovem será com jovens mulheres argentinas com quem há trocas e conversas sobre as suas próprias histórias e origem comum e vemos também em alguns momentos encontros e diálogos com pessoas que trabalham no hostel, nesse caso jovens brasileiros(as).
No segundo caso somos apresentados a Ruth Maluta Kumbi, estudante congolesa de 25 anos, que cursa faculdade com bolsa de estudo e consegue ao finalizar o curso de administração ingressar no mestrado numa universidade de Curitiba.
Ruth, além de estudante, tem o sonho de ser cantora, e vamos acompanha-la na composição de uma música com letra em francês. Ela será auxiliada por um amigo migrante africano. Esta sequência é finalizada com a apresentação de Ruth cantando em uma festa na qual a maioria dos participantes é de origem africana.
Elianna Cedeño, a terceira migrante a ser apresentada, é a mais velha do grupo e vivencia diversas dificuldades, que não estão presentes no caso das duas outras migrantes. No caso desta migrante venezuelana, esta é mãe de um jovem e deixou a Venezuela decidindo instalar-se no Brasil, evocando também ter vivenciado um relacionamento abusivo. Ela refere encontrar inúmeras dificuldades ao nível da busca por um trabalho, embora tendo qualificação. Foi funcionária da alfandega do governo venezuelano, mas percebe que as dificuldades relativas à sua idade, ou ao sotaque quando fala português são obstáculos na busca de um trabalho. Eliana é a única das três mulheres migrantes apresentadas no documentário que percebemos estar bem inserida ao nível do relacionamento com pessoas do Brasil, tem uma rede de sociabilidade que inclui mulheres que lhe dão sustentação e apoio seja ao nível de administrar um negócio próprio (doceira) como também em suas atividades de lazer. Ela se comunica praticamente todo o tempo em português, e parece estar muito bem inserida nessa rede social de apoio de pessoas brasileiras. Uma sequência bastante emblemática mostra Elianna, a apresentar uma palestra com o uso de um powerpoint em um curso universitário, e na sala só vemos mulheres acompanhando a fala desta mulher venezuelana. O seu discurso é bastante articulado e pertinente além de mostrar o grau de comprometimento com a causa da mulher migrante, ao trazer questões como preconceito, racismo e assédio e referindo num certo momento do documentário “A violência estrutural está dentro do sistema”.
O filme é sobretudo estruturado com base em depoimentos das três migrantes, sendo esses apresentados de formas diferentes, por exemplo, quando vemos uma depoente, e isso ocorre no caso das três migrantes, teremos a voz dela ouvida em off, sendo que na imagem observamo-la a realizar algumas atividades. Nos momentos em que há interação entre as mulheres migrantes e outras pessoas, temos uma situação em que estas conversam entre si, sem que a câmera interaja ou pontue a situação pró-fílmica. São momentos que são apresentados como “espontâneos”, mas nos quais observamos uma forte dose de ficcionalização. Algumas situações utilizarão de forma explicita o recurso da ficcionalização, mesmo se o documentário não as apresenta como situações ficcionalizadas, essa questão podendo ser observada pelo estilo de filmagem ou de temática abordada. Observa-se que o objetivo aqui é trazer elementos visuais e auditivos sobre situações que dificilmente têm condições de ser apresentadas de forma documental stricto sensu. Nesse sentido, duas sequências são bastante interessantes. A primeira aborda o assédio sofrido por Romina durante o seu trabalho noturno em um bar, vemos um homem, começar a fazer insinuações de cunho sexual que a jovem busca rejeitar, e no final o cliente insiste em acompanhá-la com seu carro, o que ela não aceita. A vemos no final dessa sequência, caminhar sozinha pelas ruas da cidade. Ouvimos em voz off o depoimento de Romina, “No caminho das mulheres que migram, a violência e o assédio no local de trabalho são obstáculos quase intransponíveis.” Em outro momento vemos a situação de busca pelo trabalho empreendida por Elianna, acompanharemos os preparativos antes da sua ida até à empresa, e no momento da entrevista de emprego, a câmera será apresentada de forma subjetiva, ocupando o lugar do homem que a entrevista.
Observamos que em concordância com Guilherme Rezende Landim na apresentação do livro de Piero Sbragia, Novas fronteiras do documentário: entre a factualidade e a ficcionalidade (2020), a relação da subjetividade em obras documentais, sobretudo em anos mais recentes, está presente em muitos documentários contemporâneos,
No século XXI os documentários não buscam essencialmente o factual, nem mesmo o compromisso com a história e sua versão oficial, trata-se da incompletude, da incerteza, uma obra que não se completa por si só, trata-se de uma “impressão do diretor sobre o mundo real e sua construção subjetiva com imagens e palavras” (Sbragia, 2020, p. 21). O aspecto de ficcionalidade encontra-se em grande parte dos filmes deste início de século citados pelo autor (Landim, 2021, p. 134)
Um outro elemento importante a ser observado é o uso da música, durante quase todo o documentário, ela pontuando a narrativa de forma instrumental, sendo que somente no final do filme, no momento dos créditos, ouviremos igualmente a letra da música, Gigantesca, de autoria de Mariana Voler.
Outra questão relevante trazida pelo filme é a presença de outras atrizes sociais, igualmente migrantes, que participam de grupos de apoio às migrantes, como é o caso da presidente da Associação Mulher Migrante, como também uma participante da Associação de Africanos em Curitiba. Observamos que esta rede de solidariedade tem por objetivo dar apoio sobretudo às mulheres migrantes. No início do documentário algumas cartelas apresentam alguns dados importantes sobre a questão da migração, nesse sentido observamos na segunda cartela do filme, o texto - “Uma população de mulheres que insiste. 6 entre 10 migrantes internacionais são mulheres e crianças.” O documentário ao apresentar e dar rosto e voz às mulheres que migram visa trazer um olhar sobre algumas dessas histórias que estão permeadas em grande parte por situações de vulnerabilidade e de sofrimento. Contudo, ao escolher três mulheres migrantes de origens distintas o filme mostra igualmente situações de superação, de resiliência, de concretização de sonhos e expectativas e de busca de liberdade empreendidas pelas três mulheres apresentadas no documentário.
Numa sequência do documentário, podemos ver Romina com duas amigas, uma do Haiti e outra da Guiné-Bissau, conversando sobre as suas histórias, sobretudo vinculadas ao processo migratório. Em certo momento a jovem migrante da Guiné-Bissau, Aramata dá um forte testemunho sobre a violência sofrida por ela que pode ser observada através de um casamento arranjado e no qual foi muito infeliz, como ela mesma diz, “não era amor, era uma relação que se parecia muito mais a um estupro”. Estas palavras mostram a grande dor e vivência de abuso e violência que carregam muitas dessas mulheres que almejam serem livres de amarras, buscar trilhar os seus próprios caminhos e concretizar os seus sonhos. As palavras finais do depoimento de Aramata, que serão lidas por ela, são, nesse sentido, muito fortes e carregam no seu conteúdo igualmente alguma dose de poesia e sensibilidade, apesar das dificuldades enfrentadas por muitas mulheres migrantes. O texto de Aramata será muito mais sobre a condição da mulher migrante no sentido mais amplo e no qual muitas dessas mulheres podem ver refletidas as suas próprias histórias de luta, de sobrevivência e de superação,
Eu não serei silenciada, meu nome vai ecoar hoje. Trago comigo as histórias daquelas que vieram antes de mim. Mulheres migrantes, em busca de novos destinos. Ainda que não queiram ouvir, eu insisto, pois, minha voz transcende fronteiras. Pois eu carrego comigo a força dos antepassados. Das que foram corajosas antes de mim. E minha existência será vista e reconhecida, ela vai se espalhar pelas cidades, pelas ruas, pelos muros que se erguem diante dos desafios. Vou pintar com cores vibrantes a minha jornada, a história da mulher migrante que atravessa as fronteiras, visíveis e invisíveis. Migrante não é nome. O nome carrega histórias de alegria e luta, mas é com orgulho e beleza que levarei adiante a força das mulheres que migram, pois somos muitas e sonhamos.
A crescente feminização das migrações internacionais
As migrações fazem emergir a discussão sobre as questões da globalização e da desigualdade relativamente à mobilidade internacional e à defesa da migração como direito humano fundamental (Ramos, M. 2020; Ramos & Dias, 2020), nomeadamente para populações vulneráveis, sobretudo de países menos desenvolvidos, procurando fugir dos conflitos ou procurar oportunidades económicas através da migração, em particular para as mulheres.
Em 2020, 3,6% da população mundial (281 milhões de indivíduos) residia num país diferente daquele em que nasceu, e cerca de metade destes migrantes internacionais são mulheres, migrando por motivos de trabalho, estudo, reagrupamento familiar, etc. (UN, 2020). Entre 2000 e 2020, o número de pessoas que fugiram de conflitos, crises, perseguições, violência ou violações dos direitos humanos duplicou de 17 para 34 milhões. Nos últimos anos, a maioria dos requerentes de asilo nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) provem do Afeganistão, Síria, Iraque e Venezuela (Ramos M., 2021).
Apesar da feminização das migrações internacionais, a inserção laboral e o contributo socioeconómico das mulheres têm sido negligenciados na literatura sobre as migrações, e “só a partir dos anos 80, as análises das migrações contemplam a variável género, incluindo a participação feminina no processo migratório e na teoria geral das migrações” (Ramos, 2010, p. 1
No entanto é crescente o papel das mulheres “como agentes económicos e de desenvolvimento tanto nos países de origem como nos de acolhimento, no envio das remessas para países de emigração em desenvolvimento, provocando mudanças progressistas que afetam mentalidades, hábitos de vida, educação, participação cívica e igualdade de género” (Ramos, 2020, p. 410).
E apesar dos estudos sobre o contributo das mulheres migrantes mais qualificadas serem ainda mais escassos (Ramos, 2013, 2014, 2023), assinale-se que as necessidades dos mercados de trabalho aumentaram a procura do trabalho feminino na economia global, saúde, educação, serviços pessoais e sociais, sendo crescente o aumento das migrações seletivas e qualificadas de homens e mulheres a nível global e europeu, obrigando as políticas a ter em conta as questões de género, igualdade e papel das mulheres migrantes (O’NeilL, Fleury, Foresti, 2016).
Mantém-se a necessidade de migrações laborais temporárias e de trabalhadores estrangeiros sazonais e contratuais, aceitando certos empregos inseguros, perigosos, horários e condições de trabalho menos favoráveis para sobreviver, mesmo não sendo declarados, e não reclamando, receando perder o emprego ou serem expulsos do país (Ramos e Patrício, 2015). Entre os grupos populacionais socialmente mais vulneráveis, encontram-se os migrantes recém-chegados, indocumentados e sazonais, em maior desvantagem socioeconómica e condições precárias de vida, desigualdades que foram acentuadas durante a pandemia (Ramos M, 2021; Ramos N., 2021).
O emprego das mulheres foi mais atingido pela crise económica e social, induzida pela pandemia, do que o dos homens (ILO, 2020), até porque muitas mulheres, nomeadamente migrantes, desempenham funções em setores informais e/ou não regulamentados, e menos qualificados, com pouca proteção laboral e difícil fiscalização, como no caso do trabalho doméstico (Ramos N., 2014). As mulheres migrantes têm forte representação em postos de trabalho e setores específicos: enfermagem, serviços domésticos, serviços de restauração e hotelaria e atividades consideradas “mais femininas”, tais como cuidados às crianças e aos idosos (Ramos, N., 2014, 2023).
Em situações de emergência e de vulnerabilidade, os fatores de assédio, violência e discriminação tomam especial importância em certos grupos de trabalhadores, como os migrantes, havendo necessidade de prevenção e reforço das medidas de segurança e de saúde ocupacional (IOM, WFP, 2020; Ramos M., 2021; Ramos N., 2021, 2023). Mulheres e homens migrantes podem sofrer discriminação e xenofobia, desqualificação profissional e desigualdade de oportunidades em termos salariais e perspectivas de carreira, o que se agrava em situação irregular e de crise económica, pois estão mais concentrados em setores mais sensíveis às flutuações económicas e têm contratos menos seguros e com menor estabilidade de emprego (Ramos, 2010; Ramos e Patrício, 2015).
A imigração implica uma adaptação social e psicológica, além da incorporação de uma nova cultura. A migração poderá originar traumas silenciosos e múltiplos, problemas de adaptação e situações de risco, além de sofrimento psicológico e stress, devido à solidão e afastamento da família e amigos, às ruturas e mudanças psicológicas, culturais, linguísticas, laborais, sociais, ambientais e políticas, bem como à discriminação e ao racismo. A aculturação dos imigrantes pode levar a stress social e psicológico, manifestando-se problemas como depressão, angústia, ansiedade, perda da auto-estima e insegurança, além de problemas identitários (Ramos, N., 2006, 2009).
Consideraçôes finais
É necessário promover uma perspetiva multidimensional e multi/interdisciplinar das migrações que consagre género e geração, além da classe e etnia, de modo a superar a invisibilidade, preconceitos e discriminação relativamente a certos fluxos e ter uma visão mais integral deste fenómeno e da sua complexidade.
O cinema, particularmente o cinema documental fornece contributos valiosos para a comunicação, informação, divulgação e conhecimento, bem como para a pesquisa, intervenção e formação, nomeadamente ao nível das questões migratórias e interculturais, muito em particular das migrações no feminino.
O cinema, particularmente o cinema documental, vem abrir novas perspectivas conceptuais, metodológicas, comunicacionais e interculturais, alargar os procedimentos de análise e campos de pesquisa, promover o diálogo interdisciplinar e intercultural, constituindo-se como um instrumento de comunicação inter/transcultural por excelência e um meio de expressão privilegiado de espaços, culturas, subjetividades e alteridades. Vem ainda colocar em relevo a relação do Eu e do Outro, do indivíduo com a sociedade e tornar visíveis questões societais, por vezes à margem ou desconhecidas, permitindo, deste modo, enriquecer o conhecimento da sociedade e do ser humano na sua unidade e diversidade, no espaço e no tempo.
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Filmografia
Aqui na fronteira (2022). Marcela Ulhoa, Daniel Tancredi, 86 min.
Casa en Tierra Ajena (2017). Ivannia Villalobos Vindas, 81min.
Chez Jolie Coiffure (2019). Rosine Mbakam, 71 min.
Fogo no Mar (2016). Gianfranco Rosi, 114 min.
In Search (2018). Beryl Magoko, 90 min.
Mulheres que Migram (2023). Sabrina Demozzi, 52 min.
O imigrante (1917). Charles Chaplin, 30 min.
Overseas (2019). Sung-a Yoon, 90 min.
The Making of an American Citizen (1911). Alice Guy-Blaché, 16 min.