Abstract
As the shaping of the new social landscape founded on audiovisual massification brought significant changes, evidencing historical development and the capacity to configure and reconfigure narratives, places, and objects, thus influencing the human imagination, the way of appreciating, learning, and teaching Art to children has also transformed. Therefore, integrating the fields of audiovisual and Art/Education, this present summary aims to qualify them by focusing on the animated production Naruto, and taking it as an experience that inscribes memories in the child’s body and becomes inherent in its construction as well as in the artistic propositions that the child creates in the classroom, articulating them among performances, videos, drawings, and photographs. The interterritorialities resulting from this process engage with socio/historical contexts and issues, both proposed by the animation itself and by the students, who frequently incorporate the universe of Naruto into the classroom. Thus, it is believed that such a character as an audiovisual narrative should be considered an opportunity to promote actions beyond mere imagination and, in its essence, encompasses themes that problematize and enhance an experience of creation in performative construction whose structure deviates from stereotypes. The phenomenon of reception and conscious consumption of animations transcends children’s imaginary escapades, constituting part of the crossing of the body when learning Art and interacting within and outside the historical-educational system, besides the rigid sculptures imposed by some control systems. The research, of bibliographic and field nature, was conducted at a public school in the south zone of São Paulo/Brazil (EMEF Paulo Setúbal).
Keywords: Naruto, Audiovisual, Art/Education, Body, Creativity.
Introdução
Um corpo que experienciou e consolidou memórias, que as guardou consigo, aqui se constrói para uma pertença, uma criação subjetiva. No entanto, não em ações irrefletidas de maneira naïf, como diriam os franceses, mas em uma tentativa consciente sobre a realidade como ela se personifica e se realiza no desenrolar de suas próprias narrativas infantojuvenis. E mais: mesmo que as desilusões e os sofrimentos soprem essas histórias de vida, o texto propõe pensar a partir das problemáticas vivenciais possibilidades que enalteçam suas identidades e singularidades e as levem a traçar caminhos de auspiciosos objetivos e ações factuais a partir da apreciação da animação Naruto e suas diversas ressonâncias.
Segundo Izquierdo, “o conjunto das memórias de cada indivíduo determina aquilo que chamamos de personalidade ou forma de ser” (IZQUIERDO, 2011, p.12), moldando-o como um todo. Assim, ao propor ações performáticas baseadas na apreciação artística, na contextualização da animação Naruto e na produção audiovisual em sala de aula, como é explorado nesse artigo, os estudantes estão moldando memórias - no plural, como ressaltado pelo autor - que irão influenciar sua individualidade conforme as experiências vivenciadas. Ao assumirem suas próprias vozes, rompendo com a ideia e as restrições da submissão e da abstração infanto-juvenil do passado, eles interagem com seus colegas e delineiam trajetórias para considerar algo fictício (animação) entrelaçado com sua própria realidade. Eles se afirmam como experiência, memória, imaginário, criação, brincante, mítico, tangível, plural, social e real, moldando suas próprias vidas dentro de um contexto temporal e espacial
Os objetivos destas propostas artísticas (desenvolvidas em 2023 pelo primeiro pesquisador) que os estudantes do quinto ano do ensino Fundamental I (5A2 e 5B3) da EMEF Paulo Setúbal da zona sul de São Paulo/Brasil4) vivenciaram são expressivamente multifacetados. Busca-se, inicialmente, promover a compreensão da influência das memórias individuais na formação da personalidade criativa e em grupo, destacando o papel das experiências artísticas nesse processo. Por meio de ações performáticas e atividades de apreciação artística, contextualização da animação Naruto e produção audiovisual, os estudantes são incentivados a moldar suas memórias, impactando tão logo seu modo de ser e de conceber arte criativamente. Ao assumirem suas próprias vozes, eles rompem com restrições passadas e interagem com colegas, desenvolvendo-se como seres em completude, capazes de explorar a intersecção entre a realidade e o mundo da arte animada. Através dessas experiências, eles se afirmam como criadores e participantes ativos, moldando suas próprias vidas dentro de um contexto temporal e espacial, explorando diferentes aspectos da experiência humana.
Uma breve consideração inicial...
O processo de integração da arte na educação enfrentou desafios significativos ao longo do tempo, incluindo a resistência à introdução de novas abordagens e a exclusão de ideias que não se alinhavam com os paradigmas dominantes da época, como grande exemplo, a entrada das mídias digitais e da imagem em sala de aula. Ao mesmo tempo, é inegável que, durante a transição do século XX para o XXI, houve um crescimento exponencial dos meios de comunicação, com críticas frequentes às produções audiovisuais contemporâneas, muitas vezes vistas apenas como ferramentas de entretenimento ou manipulação das massas por meio de sua apelação visual e sonora.
No entanto, como será perceptível no decorrer do texto em que traz algumas práticas em sala, a abordagem aqui adotada para explorar os estímulos provenientes do contato com as produções audiovisuais contemporâneas vai além dessas concepções conflitantes. Lendo algumas das ideias de Ben Singer, que descreveu um ambiente social marcado por estímulos intensos e caóticos, acreditava-se erroneamente que isso resultava em uma mídia sensacionalista e prejudicial. O autor criticava o que hoje, através de pesquisas como essa, se comprova a eficácia positivamente das mídias, principalmente o trabalho crítico nas escolas. Da mesma forma, a noção questionável de que as produções cinematográficas serviam como treinamento para lidar com os desafios do mundo moderno, como sugerido por Walter Benjamin, não pode ser aceita de forma generalizada.
É um equívoco adotar uma visão tão negativa e depreciativa da comunicação audiovisual, por exemplo, pois ela engloba uma variedade de experiências criativas, significativas e culturalmente enriquecedoras, como evidenciado por pesquisas recentes conduzidas por Pereira (2020: 2019), Pereira e Magno (2022) e Pereira e Peruzzo (2020) com crianças e pré-adolescentes. Essas interações oferecem oportunidades únicas de aprendizado e expressão cultural, que não devem ser subestimadas nem simplificadas por estereótipos discursivos negativos.
Pensando em toda essa profusão tecnológica e reconfiguração cultural, midiática, criativa e artística, é interessante também citar o documento recente da UNESCO (2024), pois ele traz algumas considerações importantes ao salientar a necessidade de todos terem contato com os bens culturais.
De acordo com os escritos desenvolvidos por estudiosos da área;
Cultura está no cerne do que nos torna humanos, e fornece a base de nossos valores, escolhas e relacionamentos uns com os outros e com a natureza, nos dotando de pensamento crítico, um senso de identidade e a habilidade de respeitar e abraçar o outro (Unesco, 2024, p.2).
Partindo desse excerto e expandindo as reflexões, a cultura em si se manifesta atualmente em diferentes meios, em inúmeros territórios: com as mídias digitais, não excluíram ou acabaram com os territórios mais antigos, mas tão logo, foram construídas novas territorialidades que perpassam e saem pelas telinhas dos celulares, TVs, cinemas e etc..
Considerar todas essas questões, ao acesso e as novas formas de mediar Arte no âmbito educacional é tão logo refazer práticas e repensar ações para que, de algum modo e de maneira qualitativa, o contexto atual esteja articulado com o que se vê e se aprende na escola.
Impossível estudar a Arte dos povos antigos, do modernismo e diferentes outras manifestações sem que se articulem e façam paralelos com as obras fílmicas, animadas, de programas, novelas, entre outras produções na atualidade.
A Arte animada chamada Naruto na sala de aula
Quando se traz à tona as narrativas de infâncias marcadas por imposições e escolhas questionáveis dos adultos, como é o caso do desenho animado Naruto, não se trata de escolher uma animação idealizada ou perfeita. Longe disso! O enredo não se encerra com uma vitória rápida sobre o vilão e um final feliz para todos. Pelo contrário, no último episódio de Naruto, sem revelar grandes spoilers, ele conclui sua jornada sem ter completamente recuperado o braço que perdeu em uma luta anterior contra Sasuke, seu atual grande amigo. Isso não representa um final feliz e perfeito, mas sim um testemunho da vida real, onde as cicatrizes e marcas deixadas pelas batalhas permanecem, influenciando o curso futuro da trajetória do protagonista.
Começando o trabalho prático em sala de aula, durante a exibição dos vídeos, os alunos da turma 5B, a princípio, demonstraram pouco interesse, mas ficaram entusiasmados com a ideia de assistir Naruto. Alguns comentaram sobre as expressões exageradas na animação.
Fonte: acervo fotográfico pessoal
Já no 5A, os estudantes receberam muito bem o episódio, inclusive comentando positivamente sobre os efeitos e a narrativa. Por conta das conversas que se abriram em sala de aula, só foi possível assistirem 10 minutos do episódio completo de Naruto.
Outros, comentaram sobre a animação, falando sobre a arte das expressões e da música triste que se passou em determinado momento da projeção. Alguns estudantes disseram já ter assistido todos os 720 episódios, mas, comentaram em querer assisti-los novamente para relembrar algumas partes. Muitos se predispuseram a trazer adornos (Mantos e instrumentos ninjas de luta) para as fotografias da próxima aula. Mais do que os comprar, eles foram incentivados a visualizar tutoriais no Youtube que ensinam a fazê-los, sendo orientando a utilizarem tal ferramenta tecnológica como um recurso para se aprender muito mais do que a diversão por diversão ou o adquirir o pronto.
Agora, eles teriam que montar fotografias como cosplays de personagens encontrados na animação Naruto, evocando poses, roupas e ornamentos como ferramentas de lutas (Kunais e Shurikens). Foi salientado a eles que o mais importante não era o corpo ser transformado na pessoa mais parecida com o personagem escolhido, no entanto, era construir uma imagem que tivesse sua essência e, principalmente que mantivesse sua singularidade pessoal, identitária, étnica e, além do mais, sem subalternizações de gênero. Como um dos grandes exemplos mostrado em sala, foi escolhido o cosplay de uma garota negra5 representando um homem do grupo Akatsuki que aparece em Naruto Shippuden.
Na Arte do cosplay, não existe certo e errado, parecido ou diferente... Existe simplesmente o corpo enquanto objeto artístico a ser complementado, construído, modelado, performado... Muito mais do que tudo isso imposto em algumas áreas e padrões sociais, a liberdade do performar um personagem é o que conta.
Conjecturando sobre essas propostas acionadas nas aulas, até então, nota-se que foi dado “ênfase na inter-relação entre o fazer, a leitura da obra de Arte (apreciação interpretativa) e a contextualização histórica, social, antropológica e/ou estética da obra” (BARBOSA, 2002, p.17). Além do mais, apoiadas em Paulo Freire e Ana Mae Barbosa (2002, p.20), as aulas se ampararam no pensamento em que os estudantes tinham que ser “(...) capazes de identificar seu ego cultural e se orgulharem dele”, mas não no sentido de defenderem “guetos culturais”, ou através das práticas que os fizessem pensar que a eles seriam negadas o “acesso à cultura erudita, porque esses são os códigos dominantes —os códigos do poder”. As construções das aulas foram sendo expandidas com o salientar da necessidade de diálogos culturais e artísticos.
Fonte: disponíveis em <#29daysofblackcosplay hashtag on Twitter>
Refletindo sobre questões no campo da comunicação audiovisual, é inevitável retornar ao conceito de cultura participativa de Jenkins. Este conceito é fundamental para entender tanto as expressões artísticas encontradas na internet quanto aquelas criadas pelos alunos em sala de aula. Através dessas expressões, podemos compreender como as produções audiovisuais desempenham um papel crucial no ensino e na aprendizagem da Arte, especialmente no contexto dos fãs.
Se essas produções estão de alguma forma alinhadas com os três eixos da abordagem mencionada, é porque elas oferecem implicitamente ou explicitamente mais do que meramente entretenimento. Não se pretende afirmar que essas produções substituem a necessidade de um Arte/Educador; pelo contrário, elas destacam cada vez mais a importância desses mediadores como pontes para uma variedade de conhecimentos que se relacionam com o que os alunos estão absorvendo enquanto assistem.
Retornando ao autor, ele diz que;
Quando o material é propagado ele é refeito: seja literalmente, ao ser submetido aos vários procedimentos de remixagem e sampleamento, seja, figurativamente, por meio de sua inserção em conversas em andamento e através de diversas plataformas. Esse contínuo processo de transformação do propósito original e de recirculação está corroendo as divisórias percebidas entre produção e consumo (JENKINS, 2022a, p.54).
Com isso, entende-se que as interterritorialidades estabelecidas entre o educando, Naruto e a produção de vídeos e performances, se configuram corroendo as linhas definidoras, se é que elas existiram algum dia, dos territórios entre o produto inicial (animação) com o produto final, entre produtor (Kishimoto) e consumidores/criadores.
Jenkins (2022a, p.224), ao problematizar a questão da cultura participativa entre o falar dos fãs e a escuta das empresas que prestam serviços para eles, diz que o “(...) escutar exige uma resposta ativa: não apenas coletar dados, mas também fazer algo com eles. Tal ação pode incluir o interagir como resposta sobre o que o público está falando”. Metaforicamente, considerando a empresa como o educador e os fãs como os estudantes, a proposta prática deste capítulo segue a linha de raciocínio do autor, buscando fornecer apoio, recursos adicionais e respostas às preocupações e equívocos relacionados ao campo audiovisual, que são do interesse de todos nessa relação pedagógica.
Ao propor aulas que envolvem uma aventura com animações como Naruto, o educador tem como objetivo problematizar e explorar diversas questões. Ele reconhece que, em um mundo onde algo não é disseminado, “(...) está morto, se não puder ser citado, pode não significar nada”. Com isso, entendendo que:
(...) as práticas sociais de mídia propagável precisam de material que seja citável, ao fornecer formas fáceis para que o público possa extrair trechos desse material e compartilhar esses trechos com os outros; e apropriável, ao fornecer as funções tecnológicas que tornam o conteúdo de fácil manuseio e compartilhável (JENKINS, 2022a, p.234).
Ao aprofundar os questionamentos e reflexões durante as aulas desenvolvidas com animações e outros filmes, é possível descobrir campos incrivelmente promissores de trabalho criativo e artístico entre as crianças.
O autor conta...
Durante la investigación que realicé para escribir este libro, hablé con numerosos fans que habían descubierto habilidades que no sabían que tenían antes de entrar en el grupo de fans. Recibieron el estímulo que no habían encontrado en su interacción con otras instituciones, y algunos de ellos encontraron oportunidades profesionales posteriores gracias al desarrollo de estas habilidades (JENKINS, 2010, p.316).
Ao performar, propagar aprendizagens, ao criar em sala de aula, o estudante, essa criança em construção consigo mesmo e com o mundo, torna seu corpo um “(...) lugar não da exclusão, mas o da inclusão, que não seja mais o que interrompe, distinguindo o indivíduo e separando-o dos outros, mas o conector que o une aos outros” (LE BRETON, 2012, p.11).
No galgar desse processo criativo performático das crianças, ainda que seus corpos sejam convidados a se apresentarem em primeira pessoa, enquanto o eu falando de si mesma e não falando segundo outra pessoa que o comanda, as propostas não pretendem transformá-los como “corpos da modernidade”, como diria Le Breton (2012, p.31), em constructos que se tornam o “(...) resultado do recuo das tradições populares”, com “o advento do individualismo ocidental”, traduzindo o aprisionamento do “homem sobre si mesmo”. O devir social não são várias pessoas presas em si mesmas, cada uma construindo a si mesma, falando de si para si, sem o pensar sobre o outro, contudo ele é fruto do que se tece entre esses vários indivíduos, juntos.
É sabido que a cada momento “decodificamos sensorialmente o mundo, transformando-o em informações visuais, auditivas, olfativas, táteis ou gustativas”. Assim, alguns sinais específicos corporais “escapam totalmente ao controle da vontade ou da consciência do ator, mas nem por isso perdem sua dimensão social e cultural” (LE BRETON, 2012, p.55). Diante disso, justifica-se a escolha docente por, além das performances trabalhadas em sala de aula, desenvolver outras habilidades dentro da linguagem das Artes Visuais, do teatro e da dança, ainda que mínimas, intercruzadas e não especializada como o é nessa primeira.
Fotografar-se encenando, compor seus próprios corpos em pinturas, trazer figurinos e brincar com essa possibilidade de transformar o corpo como objeto de Arte, bem como desenhar, criar fanfics e, fazer diferentes pinturas, são algumas das atividades desenvolvidas para convocar informações sensoriais das quais algumas aqui aparecem. O ar, foi o elemento basilar da criação das propostas docente e dos discentes com Naruto em sala de aula, contudo, isso não foi tomado como restrição para que os demais também compusessem as criações artísticas, fossem convocados simbólica ou materialmente.
Ao mergulhar na rede simbólica, independentemente da cultura, tomando o primeiro verbo (mergulhar) como ação inerente ao elemento água, e ao mesmo tempo atrelando essa trajetória às concepções e imaterialidade do aéreo, bem como o calor (fogo) de sua corporeidade ao performar sobre a firmeza do chão (terra) que estabiliza seus passos, a criança está por comungar e evocar a dimensão desses quatro constituintes da imaginação material, como diria Bachelard.
Nessa gama de dimensões aprofundáveis, le Breton (2012) diz que:
(...) Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros da comunidade. (...) A única universalidade consiste na faculdade de mergulhar na ordem simbólica da sociedade, ela é esse privilégio de manifestar-se como um ator num mundo de significações e de valores que nenhuma cultura esgota. (LE BRETON, 2012, p. 07:65).
Se uma cultura não se esgota nunca face as suas multiformas que carrega, trazer outras experiências de diversas manifestações só estará por contribuir com o aumento dessa variabilidade e, o melhor, com os diálogos possíveis e estabelecidos a partir desses contatos. Na medida em que vão se ampliando todas essas possíveis relações “(...) sociais e a teia simbólica, provedora de significações e valores, o corpo é o traço mais visível do ator (LE BRETON, 2012, p.10).
Em alguns poemas escritos por Rilke à Senhora Lou Albert-Lasard, encontram-se os seguintes versos:
Através de nossos corações, que
conservemos abertos,
passa o deus, asas nos pés.
E, prontamente, Gaston Bachelard (2001, p.34) questiona seus leitores: “Será preciso sublinhar que tais versos não podem ser realmente vividos sem a participação aérea que propomos?”
E, face a esse questionamento do autor sobre os versos de Rilke, também, agora, propõe-se um questionamento para se pensar a performance e os vídeos: será que, na prefiguração criativa e artística, em seu devir, ela viveria de fato sem a participação aérea e suas asas oníricas atreladas também aos seus elementos identitários e culturais basilares dos estudantes?
Bachelard (2001, p.13), vai dizer que “para caracterizar as imagens do ar, muitas vezes” será difícil “encontrar a justa medida: um excesso ou uma insuficiência de matéria, e eis que a imagem fica inerte ou se torna fugaz, dois modos diferentes de ser inoperante”. Diante desse posicionamento, é nítido que muito disso se vê na própria performance e encenação fílmica que, sem a gravação, ela seria mais efêmera do que já o é: mas, por que mais efêmera? Ainda que restem os vídeos e as fotografias que a gravaram, são somente imagens e alguns sons e, nada mais do que isso. Os cheiros se foram, as emoções do corpo em movimento não existem mais, as ações brincantes com aqueles com quem desejara estar na hora da atividade já não estão mais lá. Resgatando uma palavra do autor citado, é como se houvesse uma insuficiência de matéria: sons e imagens estão em sua qualidade, mas, lhe faltam matérias que prefigurem em sua totalidade o que fora a efemeridade da performance tecida.
Não que isso venha desqualificar os trabalhos, os acontecimentos da criação das crianças, no entanto eles se tornam potências faltantes, quase que uma contradição do devir material da Arte. Ressoam-se memórias, experiências e, até mesmo, disparadores para novas outras ações, no entanto, lhes faltam as matérias de outrora como a explicação mesmo do elemento ar: efêmero, invisível, inodoro, místico.
Complementando o pensamento de Barbosa e trazendo outro ponto para discussão, Iavelberg (2017, p.171: 172) diz que as culturas não podem ser julgadas e compreendidas “por critérios semelhantes e que qualquer uma delas cabe nas leis de ordenação”, pois isso funda uma ideia que há “hierarquias com base em relações de soberania de umas sobre outras”. Como ação fundante, deve haver um ensino que preze e propicie conhecimentos sobre “aspectos que consolidam as identidades culturais contemporâneas”, bem como as antigas, os orgulhos, suas vicissitudes, concordâncias e discordâncias em relação a realidade discente.
Ao discutir o impacto do colonialismo na percepção cultural, Barbosa (2022b, p. 167) enfatiza que o “colonialismo é insidioso” e aponta que “desqualificar o colonizado e desacreditá-lo como criador de sua própria cultura é um vício cultural que perpetua a colonização”. Essas ideias ressoam em experiências vivenciadas na escola, onde as crianças são muitas vezes vistas como produtos de um pensamento arraigado que valoriza construções artísticas europeias em detrimento de outras manifestações. A ênfase recai frequentemente na representação realista, nas paisagens românticas e nas esculturas de estilo “deus grego”, como exemplares de valor estético.
No entanto, é animador perceber que as composições distintas apresentadas em mundos fantásticos e diversos, seja em filmes de animação ou não, têm contribuído para uma ampliação do senso estético entre o público infantil. Isso não implica na completa destruição do modelo europeu ou na total descolonização da prática artística, mas representa um progresso em relação às lutas travadas pelos movimentos de descolonização (anteriores a 1900) e decolonização (a partir de 1990) (Barbosa).
Nas fotografias, veem-se personagens, figurinos, objetos cênicos, interação social, diversão e, muita expressão corporal, reflexão de poses e arranjos bem arquitetados pelos grupos. Ademais, algumas fotos editadas pelos estudantes, manifestam um cuidado artístico na composição do grafismo e nas possibilidades de customização de suas próprias composições. Muito desse processo de confecção dos próprios trajes e adornos atrelados a Animação Naruto está intimamente ligado ao já discutido e salientado: não se diz e não se defende um consumismo exacerbado de fãs, que se submergem no mundo de compras e vendas de produtos... Tão logo, se fala de fãs e aficionados que, para além do comprar, inventam e criam seus próprios objetos, artefatos, atrelados ao seu contexto.
Nas montagens dos grupos escolhidos por eles mesmo, bem como das fotografias, não havia segregação daquele estudante que tinha seu figurino e objetos comprados com aqueles que estavam fazendo de papéis, sacolas, celofanes e fitas: todos estavam juntos em um único propósito, não importando quais eram os elementos que tinham, caros ou baratos, comprados ou feitos. Eles se ajudavam da melhor forma que podiam. A experiência do corpo em ação era o que lhes importava...
De fato, era o elemento ar em sua leveza e possibilidade aérea na liberdade de comporem a partir do seu lugar de fala.
Fonte: acervo fotográfico pessoal
Um outro ponto de reflexão que essas práticas educativas trazem é o seguinte. Por mais que as tecnologias digitais lhes propiciem um prazer, uma aventura deveras interessante, o que eles sentem ser uma aula de arte, a sensação do que lhes faltam, é muito do fazer artesanal, dessa ação tão afeita as Artes Visuais; assistir, jogar, filmar, fotografar... Tudo isso é divertidamente importante e algo inerente às suas aventuras em diversos universos, no entanto, o pintar de fato com pincéis, sentir a cola, ver as cores se moverem com suas próprias ações, colar com fitas, riscar o papel, recortar e, até mesmo sentir dificuldades ao manipular uma massinha de biscuit, também lhes faltam, lhes chamam a atenção e, lhes propiciam experiências.
Esse fazer, por vezes muito artesanal, remete ao que Tassara (2009, p. 65) dissera sobre o trabalho do animador, esse indivíduo que “não se deixa intimidar com facilidade”, que:
(...) experimenta todas as possibilidades, trabalha com papel, com tintas de todos os tipos, com celuloide, com pequenos objetos inertes, com areias, com recortes de cartolinas coloridas, com luzes, com massas plásticas e até com pessoas de verdade -paradoxalmente-, para criar seus personagens de síntese (TASSARA, 2009, p.66).
Enquanto assim o faziam, na área externa próxima a sala que estudam, uma pedagoga passou e disse: só você mesmo, professor, para inventar tantas coisas assim!!!
Negativo ou positivo, o comentário foi muito bem vindo, pois notava-se que as crianças estavam compenetradas no que foi proposto e, de fato, era algo instigante, novo e diferente para elas, a ponto de ser comentado.
O interessante, ao apreciar e analisar as fotografias criadas pelos estudantes é que, como manifestação já de uma aprendizagem efetiva para com a poética de tal Arte trabalhada nas aulas, elas não foram construídas de maneira irrefletida, arbitrária. Não eram como mais uma pose padrão para se mostrar aquelas indumentárias e personagens que escolheram ao se vestir.
Seus corpos, ao performarem pelos espaços, pelos cosmos de seu mundo imaginativo, dentro do seu santuário de imagens, com ou sem música, foi possível perceber que não lhes necessitava um assenhoreamento por parte do educador, de maneira a castrá-los poeticamente: importava mesmo que suas ações fossem fluidas e que, longe de uma disciplina como já salientara Foucault, pudessem exercer seu ato criativo pensando enquanto sujeitos de sua obra, seja a artística, seja a de sua individualidade e coletividade social.
Fonte: acervo fotográfico pessoal
Com exceção das demais imagens, as que seguem abaixo foram manipuladas pelas próprias crianças, na parte de desenhar sobre a fotografia encontrada no aplicativo do celular. As demais foram feitas pelo pesquisador, com algumas simples manipulações, visto que alguns estudantes não trouxeram a autorização do uso de imagem assinada pelos pais.
Fonte: acervo fotográfico pessoal
Ao performar, que corpos queremos? Que indivíduos desejamos? O que a escola quer? Escola? Não! Não a escola em si, enquanto sistema, mas a escola enquanto estudantes e professores, fazedores de Arte e educadores de Arte, se destituindo aos poucos e se blindando das tecnologias políticas do corpo, massacrando, mesmo que paulatinamente, microfísicas que em momentos se manifestam de maneira mais expressiva tentando mais uma vez exercer seu poder sobre eles.
O que é a performance de um cosplay se não a pura e clara insubmissão da persona à normatividade social reinante? Uma ação contrária às microfísicas, não seria?
Renato Cohen diz que, ao clarificar personagem e persona, na performance, geralmente se trabalha com esse último e não o primeiro, pois:
A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte etc.). A personagem é mais referencial. Uma persona é uma galeria de personagens (por exemplo, velho chamado x com característica y) (COHEN, 2013, p.107).
E mais, o “trabalho do performer é de ‘levantar’ sua persona” e isso “geralmente se dá pela forma, de fora para dentro (a partir da postura, da energia, da roupagem desta persona)” (COHEN, 2013, p.107), além do mais, de maneira também endógena, visto que muito das coisas que configuram esse indivíduo que performa também o movimenta, o faz ser e estar ali, presente, de alguma forma.
Dando sequência, o pesquisador, sem tempo para fazer o controle de presença (chamada) e avaliar em forma de notas as produções das crianças, deixou os estudantes partirem para mais uma criação performática na escola, e dessa vez, com base nos parangolés de Hélio Oiticica. Anteriormente, dava-se um espaço para um banho de leitura sobre as imagens e os sons das projeções, agora, propõe-se a ação do corpo pelo espaço escolar.
Infelizmente, as crianças das duas salas esqueceram de levar os tecidos pedidos anteriormente, no entanto, isso não impediu que criassem algumas aventuras pelo ambiente com o que se tinha na escola: longos panos azuis que a prefeitura de SP mandou no ano de 2023, no kit denominado de experiências de Arte.
Primeiro, foi lhes apresentado um vídeo curto sobre as obras do artista e a composição dos Parangolés: após isso, as crianças saíram para o espaço externo com seus panos, blusas e celulares. Enquanto algumas criavam corporalmente suas composições, outros filmavam e, quando essas finalizavam, invertiam-se os papéis.
Fonte: disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RCEC8Rn8N8U
O vídeo, além de trazer informações diretas, mas ao mesmo tempo muito valiosas para se entender o trabalho de Oiticica, faz paralelos de suas criações e poéticas com a absorção sob sua influência em produções como a abertura de programas da Globo, bem como em desfiles de modas e lojas.
Agora, é interessante trazer à baila novamente dois autores até então já citado um deles ao longo dos escritos. Evocando à uma fala de Bergala que, de certa forma, complementa muito os escritos de Ana Mae Barbosa dentro do campo da Arte/Educação, nota-se que suas colocações dão margens para se pensar sobre as práticas educativas que efetivamente estão sendo feitas dentro do sistema escolar.
Ele afirma;
Estou cada vez mais convencido de que não existe, de um lado, uma pedagogia do espectador que seria forçosamente limitada, por natureza, à leitura, à decriptagem, à formação do espírito crítico e, de outro, uma pedagogia da passagem ao ato. (...) “eu defendo também a todos exercer ao menos uma vez a função como ator (...) coordenador do som, operador de câmera” (BERGALA, 2008, p.34: 17).
Ao estruturar a Abordagem Triangular, diante de seus escritos e pesquisas práticas, é nítido que sua proposta não ansiava por focar em um ato e rechaçar outros, no entanto, seria a junção dessas três ações (Ler, fazer e contextualizar) que daria a magnitude do ensino e da aprendizagem em Arte. É muito comum se ouvir e ver em produções de pesquisas um enaltecimento do fazer ou, do ler criticamente e/ou do contextualizar, principalmente em formações de professores.
Há processos educativos puramente dentro da criticidade das imagens, no entanto, lhes falta a prática artística da qual nenhum profissional lhe deve escapar e, ao trazer do campo do cinema uma fala de Bergala, tanto seus escritos como de Barbosa validam cada vez mais essa necessidade para se pensar os diferentes meandros da Arte/Educação. Quanto mais se aperfeiçoa esse pensamento e a difusão de tal necessidade, bem como sua efetiva manutenção e ação, mais educadores terão base para propor aos seus alunos dentro desses eixos; professores de Arte leem, contextualizam e fazem Arte e, seus educandos, também o farão segundo suas orientações.
Não se detém uma prática nos primeiros rudimentos (necessários, obviamente) da leitura, somente, ou, do fazer livre, como na Arte/educação modernista... Trazer Larrosa (2022), Bergala (2008) e Ana Mae (2002) para a discussão é dizer, iluminados pelos trechos supracitados que, não se deve transformar os estudantes somente em críticos para se desviarem das mentiras pregadas por aí, mas, tão logo, deve-se também colocá-los em ação, em um fazer que se configura e se localiza pelo ato da práxis coetânea, desse fazer reflexivo. São habilidades que se desenvolvem em ajuda mútua com as demais.
Voltando aos parangolés, mediante as imagens assistidas, as crianças disseram, de maneira muito unânime, que essa obra usa muito a imaginação livre e cores quentes e coloridas.
Nessa criação coletiva, de maneira mais evidente, foi perceptível que o 5A demorava muito mais tempo para colocar os corpos em ação em relação ao 5B. Primeiro, eles separavam o grupo, conversavam, escolhiam o local e, daí, passavam à ação. Já a segunda sala, só lhe bastava entrar em contato com os materiais que, rapidamente já estavam correndo pelos corredores, se vestindo, brincando de lutinhas e, encenando, muito antes de decidirem de fato o que fariam.
Perceber esse modus operandi de cada sala e trazê-los para a discussão não é querer supervalorizar um em detrimento do outro, no entanto é entender que cada grupo possui uma maneira singular de se defrontar com a matéria criativa e com o fazer proposto pelo educador. Para alguns, bastam-lhes objetos, cores, materiais e a comanda; para outros, bastam-lhes, somente, nesse momento, reunião de grupos, lápis e papel para sistematizarem o ato.
Fonte: Acervo fotográfico pessoal
Fonte: Acervo fotográfico pessoal
Entre as várias performances e videoperformances que saíram, seguem abaixo algumas fotos da obra intitulada dança asiática.
Ao apreciá-la, tanto pela expressividade das meninas, pela música de fundo escolhida, quanto pelo seu próprio título, nota-se que há uma influência positiva e clara de outra manifestação cultural, além do mais, sendo finalizada com movimentos e uma montagem fílmica encontrada na produção Naruto.
Fonte: Acervo fotográfico pessoal
Fonte: disponível em < https://aminoapps.com/c/naruto-shippuden-online/page/item/rasenshuriken/vEl6_EafWI1w11Mwg7jQrD7Ev50pn3NZEm>. Acesso em dezembro de 2023.
A próxima aula de maneira mais livre possível e, articulando as quatro linguagens artísticas o máximo, foi desenvolvida em outra parte externa da escola, próximo ao portão de entrada. Além do mais, a artista e professora pedagoga Evania Vieira de Souza, que também trabalha na mesma escola, foi convidada para performar e auxiliar as crianças com a atividade.
Após a retomada dos parangolés de Oiticica, juntamente com a ideia e conceito de performance e, as ações corporais encontradas na animação Naruto, as crianças foram para o lugar planejado, onde chegando lá, se depararam com papéis Kraft espalhados pelo chão, tintas, giz de cera, pincéis, argila e panos azuis... Sim! Os panos azuis continuaram!
Ao fundo, foi colocada uma trilha sonora com as músicas mais marcantes da animação, tornando-as, além dos materiais dispostos, disparadoras imaginárias dos cenários, ações e falas dos personagens de Naruto.
Fonte: acervo fotográfico pessoal
O combinado foi o seguinte: os estudantes formariam grupos e se dividiriam entre eles para que, enquanto alguns fizessem a performance com os tecidos, a pintura sobre o papel ou algo com a argila, os demais filmassem. Com algum tempo de interação, dava-se uma comanda para que trocassem os papéis, tornando as criações mais dinâmicas. Alguns, por estarem tão imersos no que faziam, permaneceram fazendo aquilo que lhes interessava naquele momento e, difícil era tirá-los de lá.
Fonte: acervo pessoal fotográfico
Fonte: acervo pessoal fotográfico
Enquanto performavam, ora os dedos, ora o corpo todo, ora os objetos com os quais entravam em contato, ouvia-se risos, algumas falas, idealizações, encenações, gritos... Durante isso, além de todo esse aparato cênico e criativo, a artista Evania os convidava para imergirem nas atuações corporais, tirando-os de um estado passivo para a acolhida e preenchimento do espaço.
Eita nossa!!!
Vou fazer uma performance
Professor, vc está feliz?!? (Sarah, 9 anos)
Grava aqui!
Não, vou gravar o Miguel fazendo com argila.
Nossa, professor!! Sua aula foi muito incrível
Isso! agora, corre com os braços.
Olha o passinho da Julia!
Dança, Luiz!
Pedro, olha o que a gente fez lá na aula (estudante mostrando vídeo que fez para colega que encontrou no corredor)
Sua aula foi tops!
Você fica lá pintando que agora é minha vez!
Em trabalhos puramente artísticos, dos mais diversos possíveis, “ao alcance das mãos, de certa forma”, o estudante “descobre através do corpo uma forma possível de transcendência pessoal e de contato” (LE BRETON, 2012, p.86), evocando as reminiscências de outrora e, fazendo desse instrumento primeiro (suas mãos) o contato direto com a extensão de seu objeto carne, imaginário, memória, experiências... O forjar da argila e do biscuit (aula passada) pensando no próprio corpo ou o dos personagens que comunga ideias e desejos fantásticos, a manipulação das mãos nos ares buscando um contato com o corpo do outro e consigo mesmo e, o filmar-se ou o deixar ser filmado enquanto compõe suas performances, torna esse estudante espectador e ator da Arte corpórea, transformando-o em demiurgo participante, aquele que faz parte da criação, que também interage com ela. Desce ao nível do olhar do que criara para conversar, propor, compor com ele...
Bachelard coloca em pauta a seguinte questão: “Será preciso ressaltar, com efeito, que no reino da imaginação o epíteto que mais próximo se encontra do substantivo ar é o epíteto livre? O ar natural é o ar livre. (BACHELARD, 2001, p.8). Pensar a criança que tem suas raízes culturais, étnicas e toda sorte de composições que a erguem, trazer à baila sua corporeidade como suporte e mecanismo de criação em Arte, é concebê-la enquanto ela mesma, agregando novos compostos e, ao mesmo tempo, validando o que já traz para a escola. Ao invés de dizer que o aprofundamento sobre o conhecimento do corpo atrelado a Arte e sua ação factual como trabalho prático e reflexivo nas aulas é um redesenhar dessa corporeidade, pode-se dizer muito mais que seria um compor livre e consciente desse desenho.
Fonte: acervo pessoal fotográfico
Após uma longa pesquisa entre muitos episódios, foi escolhida uma compilação encontrada no Youtube (163- 169, Naruto Shippuden) que mostra a luta de Naruto contra Pain (Seu nome verdadeiro é Nagato). Após derrotar todos os cadáveres que ele manipulava através de seus chacras, ele tem um diálogo final com Naruto, sendo convencido de que a morte e a destruição do povo não seria o melhor caminho, e que sua dor (pois perdera familiares), por mais que ainda existisse, não deveria ser a propulsora de atos horrendos.
Houve uma grande batalha até o protagonista derrotar todos esses seres manipulados por Pain, mas ao final, o episódio mostra que a força da palavra e do encontro com questões humanas é o que de fato pode fazer com que tudo se encaminhe para um mundo melhor.
Outro tópico levantado, principalmente no último episódio dessa luta, é a forma com que Naruto é recepcionado em sua aldeia: entre choros, gritos, risos e espantos, ele é aclamado, remetendo, de alguma forma, a tudo o que sofreu e o quanto foi humilhado e desacreditado pelos que o entornavam (com exceção de seu professor Iruka).
Fonte: disponível entre os episódios 163 e 169
Muitos filmes e séries, como essa, por vezes, ao interagirem corporalmente, propiciam experiências e manifestações de sentidos que “(...) estão um tempo à frente da consciência que temos de nós mesmos e de nossa relação com a vida” (BERGALA, 2008, p.61), e isso se deve ao seu poder de aprofundamento e conexões que fazem com nosso próprio eu. Há uma interessante e extrema possibilidade de traçar paralelos vivenciais que, ora nos ensina a exorcizar medos, ora nos ensina a esperar, a pensar, a vencer medos, a traçar novas rotas, e também, a se alegrar com o que se tem... Ocasionalmente, pode se falar sobre uma vida de uma mulher adulta na relação com seus pais e, paralelamente, somos um menino em dificuldade com vínculos outros em nossas amizades. As relações, somos nós que construímos ou, pela possível qualidade agregadora do filme, ele mesmo nos coloca em local de fazermos essa crítica, análise, celebração e, quando muito, criação.
Considerar essas possibilidades de conexão entre as vidas trazidas na animação bem como em outras produções fílmicas e animadas é também trazer para a discussão uma reflexão muito bem defendida no arquivo já citado da Unesco (2024).
Através dele, se considera que;
Tirando proveito da diversidade das expressões culturais, a cultura e as artes enriquecem e revitalizam a educação, oferecendo aos aprendizes diversos, incluindo aqueles em situações vulneráveis, os meios para expressar sua humanidade e acessar uma diversidade de formas de expressão, modos de pensar, conhecer, ser e fazer, bem como as histórias e línguas de povos e comunidades, que dão significado à sua leitura do mundo, impulsionam sua autoconfiança e motivação, e assim contribuem para uma aprendizagem aprimorada. Cultura e as artes permitem, expandem e sustentam espaços e comunidades de aprendizagem (Unesco, 2024, p.3).
E o que seria a Arte de diversas animações e filmes senão essa potência de enriquecimento pessoal, humano e artístico, que adentra diferentes âmbitos sociais?
O filme, uma das inúmeras manifestações artísticas vigentes, esse potencial criador, balizador, reflexivo e desestabilizador, “trabalha em surdina, sua onda de choque se propaga lentamente”, mas, potentemente (BERGALA, 2008, p.61). Ele constrói mundos e universos para além da realidade palpável; ele configura imaginários que, tão potentes como Naruto ao utilizar seus poderes, trabalha com as próprias reelaborações mentais dos indivíduos, desses fãs conscientes.
Conclusão
Durante muito tempo, a capacidade imaginativa foi atribuída apenas às crianças, mulheres e aos considerados loucos, como salientava a professora Regina Machado em um curso de especialização em Arte/Educação no qual o primeiro pesquisador participou nos idos de 2013 e 2015. Agora, ao mergulhar criticamente em estudos que ultrapassam fronteiras temporais e disciplinares, compreende-se que o imaginário (como um repositório) e a imaginação (como ação) são fundamentais na constituição da ação humana, sendo essenciais para a religião, cultura, sociedades, histórias, conhecimento e Arte.
Ao trazer essas reflexões para a sala de aula e dialogar com os estudantes de forma acessível, utilizando sua linguagem própria, o artigo estabelece conexões entre diferentes áreas dentro do ambiente educacional. Não se trata de um fim em si mesmo, mas sim de um ponto de partida para novas abordagens que podem ser exploradas por outros educadores no futuro, a partir das práticas aqui apresentadas em fotos e textos.
Algumas crianças não estavam familiarizadas com Naruto, enquanto outras o conheciam profundamente. Isso gerou uma variedade de reações na sala de aula, desde gritos e brincadeiras até discussões mais sérias. Enquanto um autor ministrava as aulas e buscava abordar criticamente o personagem, o outro observava e explorava as possibilidades desse trabalho de pesquisa, parte de um doutorado em comunicação audiovisual.
Apesar dos desafios, como a bagunça e os comentários desafiadores dos estudantes, essas situações não desmotivaram os pesquisadores. Pelo contrário, essas experiências autênticas tornaram as aulas mais dinâmicas e provocativas, desafiando as regras estabelecidas e encorajando a expressão artística. Os estudantes foram incentivados a se colocar no lugar do outro, exercendo empatia e sensibilidade sensorial, em vez de seguir padrões pré-determinados ou imposições externas, bem como se submeterem a um ideal artístico, fechado.
Notas Finais
1 Conhecido artisticamente como Isac Chateauneuf. Doutorando na Faculdade de Educação da USP e Pesquisador do grupo de pesquisa GPARTEDU: Grupo de Pesquisa Arte na educação, na formação de professores e no currículo escolar, coordenado pela professora doutora Rosa Iavelberg.
2 A sala de aula tinha como regente a professora pedagoga Patrícia Trigo Martins Bertolaccini.
3 A sala de aula tinha como regente a professora pedagoga Adriana Keidel.
4 Agradeço a toda a equipe da EMEF Paulo Setúbal, em especial aos estudantes participantes da pesquisa e aos professores que contribuíram de alguma forma, direta ou indiretamente.
5 A presente imagem não foi mais encontrada na internet, após várias tentativas para localizá-la.
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BARBOSA, Ana Mae. Lutas pela decolonização da arte e da educação. Revista VIS. V.21. N2, jul/dez, 2022b.
______________. As mutações do conceito e da prática. In. BARBOSA, Ana Mae (Org.). Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2002.
Bergala, Alain. A hipótese-cinema; pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink; CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2008.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2013.
IAVELBERG, Rosa. Arte/educação modernista e pós-modernista: fluxos na sala de aula. Porto Alegre: Penso, 2017.
IZQUIERDO, Iván. Memória. 2º. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.
JENKINS, Henry. Cultura da conexão. Traduzido por Patrícia Arnaud. 2°ed. São Paulo: Aleph, 2022a.
________________. Piratas de textos Fans, cultura participativa y televisión. De la traducción, Alicia Cape! Tatjer. Ediciones Paidós Ibérica, S.L.U, 2010.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas.6ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução de Sonia Fuhrmann. 6ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
PEREIRA, Isac dos Santos. A incursão do audiovisual na Arte/Educação contemporânea; (Um intruso na sala de aula?) Naruto e a discursividade poética da criança ao desenhar. São Paulo; Universidade Anhembi Morumbi. Dissertação de mestrado, 2020.
_______________. Cérebros criativos no mundo das produções audiovisuais de massa? Entretenimento, fãs de animações e possibilidades criativas em artes visuais. Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 40-66, jan./abr. 2019.
Magno, Maria Ignês Carlos, & Pereira, Isac dos Santos. Naruto, um artista ou um intruso na aula de arte? Interferências de memórias audiovisuais no discurso criativo da criança ao desenhar. Comunicação & Educação, 27(2), 105-124, 2022 https://doi.org/10.11606/issn.2316-9125.v27i2p105-124
PEREIRA, Isac dos Santos; PERUZZO, Cicília Maria Krohling. O corpo brincante, o brinquedo corpo que fala: desenhos animados, comunicação e imaginário no desenvolvimento infantil. Revista Comunicação & Educação, 25(1), 7-17, 2020.
TASSARA, Marcello Giovanni. A revanche do cinema de animação: o imaginário concretizado ou a desnecessidade de sonhar. In SANTOS, Roberto Elísio dos; VARGAS, Herom et al. Mutações da cultura midiática. 1.ed. São Paulo: Paulinas, 2009.
UNESCO (2024). UNESCO Framework for Culture and Arts Education 2024. Recuperado de https://www.interarts.net/wp-content/uploads/2024/02/UNESCO-Framework-for-Culture-and-Arts-Education-2024-PDF.pdf