Representações da Cultura Oriental e Ocidental em Amor e Dedinhos de Pé

Maria do Céu Martins Monteiro Marques

Universidade Aberta – CEMRI, Portugal

Abstract

This paper will focus on the conflicts between Orientals and Westerners living in Macao at the beginning of the 20th century. The film Amor e Dedinhos de Pé by the director Luís Filipe Rocha, based on the homonymous novel by Henrique de Senna Fernandes will be analyzed from a perspective of a memory film as it presents a historical reconstruction that portrays the society of Macao at a time when the region was under Portuguese rule.
Through the adventures and misadventures of a young man from a declining bourgeois family, both the novel and the film denounce the contrast between Eastern and Western cultures that coexisted at the time. The relationship between the inhabitants will also be seen as a mirror of the social relations that show particularly intense moments of people’s life of the “Christian City” characterized by magnificent ballrooms, well dressed people and homes with servants, which contrasts with the poverty environment lived in the “Chinese Quarter” of dirty and tight alleys where people of humble appearance wander. The city described by Luís Filip Rocha is a place of encounters and disagreements, and also of (i)moral confrontations between East and West which help to characterize the main characters who, at various times, transgress the rules established by a closed and discriminatory society.

Keywords: Macao, Eastern Culture, Western Culture, City, Portuguese

Introdução

O objetivo deste trabalho consiste na análise da relação entre a cultura ocidental e oriental presentes no filme Amor e Dedinhos de Pé, uma adaptação livre da obra homónima de Henrique de Senna Fernandes realizada por Luís Filipe Rocha. A obra cinematográfica será comentada na perspetiva de um filme de memória por ser apresentada uma reconstituição histórica que retrata a sociedade macaense numa época em que o território ainda estava sob domínio português. O filme transporta-nos para um tempo e uma realidade que tiveram de ser recriados uma vez que na altura das filmagens já tinham ocorrido muitas transformações em Macau principalmente a nível dos espaços públicos. A cidade tinha crescido e estava mais desenvolvida sendo, por isso, necessário proceder a alguns ajustes nos cenários para dar maior verosimilhança ao período representado.

A questão das relações humanas será também comentada enquanto espelho das relações sociais que apresentam momentos particularmente intensos da vida dos habitantes da cidade cristã. Em ambas as obras, literária e cinematográfica, é possível encontrar algum antagonismo entre os usos e costumes dos habitantes da cidade cristã de origem portuguesa e os valores orientais associados à cidade chinesa.

Narrativa literária e narrativa fílmica

Uma análise do romance publicado na década de 1980 e do filme rodado em 1990 permite-nos reconhecer algumas diferenças na forma como a história é contada e que consistem essencialmente na ordem em que os episódios são apresentados e no final escolhido pelos autores que é diferente. Numa entrevista dada por Miguel Senna Fernandes, filho do escritor, ao Jornal Tribuna de Macau em 15 de maio de 2012, ele afirma que o pai ficou contente com a adaptação do romance por Luís Filipe Rocha, mas revelou existir alguma mágoa em relação ao final escolhido pelo realizador. Em sua opinião, “aquele desfecho cinematográfico era impensável por ser uma interpretação machista da história.” O comentário do escritor macaense faz algum sentido tendo em conta que a relação entre literatura e cinema tem sido umas vezes romântica, outras vezes conflituosa, e são poucos os casos em que o escritor e o realizador estão de acordo quando se fala de adaptação e fidelidade do filme em relação à obra literária. Apesar de serem dois campos de produção sígnica diferentes, existem algumas características do cinema como a imagem, o movimento e o som que são veiculadas pela literatura através da linguagem. Como Robert Stam refere “Film (…) is a form of writing that borrows from other forms of writing” (Stam, 2005: 1). O que o cinema altera não é propriamente a história, mas o relato da história tendo em conta que dois sistemas sígnicos diferentes produzem duas obras distintas. Juan Hernández Les refere que

O cinema e a literatura compartem um tronco comum, o do relato, por isso partilham este destino: contar histórias. Mas a maneira do cinema as contar afasta-o do relato literário, e este objectivo do cinema não degrada de forma nenhuma a sua essência visual, a sua constructio. (Les, 2003: 67)

O que é importante é olhar para o cinema não como uma parte de um labirinto, mas de uma paisagem audiovisual. Numa relação cinema/literatura, devemos estar abertos aos estímulos que os filmes exercem sobre o nosso olhar. O cinema é uma metáfora da literatura que também conta histórias e a História. Bazin defendia a influência da literatura e não a considerava uma ameaça.

O filme enquanto narrativa histórica

Amor e Dedinhos de Pé não pretende ser um filme histórico, mas proporciona uma viagem por um período importante da História de Portugal quando Macau fazia parte do território português. Ainda hoje não existe consenso sobre as razões que levaram os portugueses a fixarem-se naquela região nem as condições em que o fizeram. Na opinião do historiador Jorge Cavalheiro, quando os primeiros portugueses chegaram a Macau a região era inóspita e as casas que iam construindo eram frágeis por exigência das autoridades chinesas, mas com o passar do tempo, o espaço em que os portugueses viviam apresentava características próprias que o distinguiam da zona onde habitavam os orientais, dando origem a dois espaços distintos: a cidade cristã e a cidade chinesa:

Uma vez estabelecidos em Macau, os portugueses ergueram uma capela (…) à volta da qual vão construindo as suas primeiras habitações (…) a população chinesa, que se fixou na península atraída pela actividade comercial desenvolvida pela presença portuguesa vai estabelecer-se na pequena encosta da Colina de Patane virada para o Porto Interior(…) deste modo vão constituir-se em Macau dois bairros distintos: a Cidade Cristã (portuguesa) e o Bazar (Cidade Chinesa) mantendo-se separadas até aos finais do século XIX. Não separava, estes dois mundos, nenhuma muralha: a grande barreira eram a língua e a cultura de cada uma das comunidades. (Cavalheiro 1997, 34)

A separação entre os espaços não era física como se depreende das palavras de Cavalheiro, mas ficava a dever-se a outros fatores. Um dos aspetos importantes da obra de Sena Fernandes está relacionado com a Lusofonia e a forma como o escritor conseguiu captar o contraste existente entre as culturas portuguesa, macaense e chinesa. Apesar de as duas obras terem sido produzidas nas últimas décadas do século XX, a ação decorre no início desse século, quando Macau era ainda uma colónia portuguesa, situação que foi revertida em 1999, voltando à administração chinesa.

Na opinião de alguns historiadores, a colonização de Macau pelos portugueses ocorreu de uma forma diferente do que se passou em África e no Brasil. O que esteve subjacente à fixação dos portugueses naquele território não foi uma conquista pelas armas, mas um interesse económico. Os portugueses não foram recebidos com hostilidade pelo governo chinês por servirem de intermediários nas relações comerciais entre a China e o Japão e ajudarem na luta contra a pirataria. A família Frontaria a que um dos protagonistas pertencia, granjeou prestígio na sociedade local devido aos negócios e à sua participação no combate aos piratas.

Francisco da Mota Frontaria provinha diretamente dos Frontarias lorcheiros que tanto tinham se distinguido no tráfico de mercadorias pelos diversos portos da China e na luta contra os piratas no último quartel do século XVIII e na primeira metade do século XIX. (Sena Fernandes, 2008, 3)

Os lorcheiros eram os tripulantes das lorchas, embarcações de madeira cuja construção apresentava uma mistura de técnicas portuguesa e oriental. O casco era semelhante ao de outros barcos europeus nomeadamente os que se construíam nos estaleiros portugueses enquanto as velas eram idênticas às usadas nas embarcações orientais.

Figura 1 – Lorcha utilizada no filme Amor e Dedinhos de Pé

Nos finais do século XIX e início do século XX, Macau continuava a ser um importante porto e uma zona de comércio que acolheu uma grande variedade étnica. Na opinião de Rogério Beltrão Coelho expressa na obra Macau. Retalhos: Passado, Presente, Futuro: “Macau como ponto de encontro constante entre duas culturas – a portuguesa e chinesa – que nunca se conheceram suficientemente bem, coexistiram mais do que conviveram” (Coelho, 1990, 58). Esta afirmação confirma que as relações entre as duas culturas nunca se estreitaram o suficiente de modo a permitir um conhecimento mais profundo do outro.

A cidade cristã e a cidade chinesa: antagonismo entre duas culturas

Na impossibilidade de transpor para a tela a totalidade do romance, o realizador escolheu as cenas que faziam mais sentido sob o ponto de vista imagético tendo como protagonistas Victorina Vidal e Francisco Frontaria. Para além de registar a passagem dos portugueses pelo Oriente, Luís Filipe Rocha procurou contar a história de amor entre dois excluídos pela sociedade. Francisco Frontaria, oriundo de famílias portuguesas ligadas ao comércio em Macau, tinha fama de grande conquistador e fanfarrão com apetência para o jogo de cartas e apostas. Nunca mostrou apetência para estudar, nem trabalhar. Gostava de dar nas vistas e assumia um comportamento excêntrico quando era desafiado pelos amigos. Com as boas maneiras e algumas mentiras ia convencendo a tia a dar-lhe o dinheiro de que precisava para sustentar os vícios e a vida desregrada que levava apesar da oposição do tio Timóteo. Após a morte da sua benemérita, e sem poder contar com a ajuda do tio a vida deste boémio sofreu alterações profundas. Vê-se obrigado a abandonar a cidade cristã indo viver para a cidade chinesa que também terá de deixar devido a uma doença nos pés que lhe valeu a alcunha de Chico Pé-Fêde. Victorina Vidal por ser vesga, pouco atraente e introvertida não tinha pretendentes nem amigos e era alvo de chacota até dos mais novos, o que a levava a passar muito tempo em casa na companhia da mãe e das tias solteironas. A vida de ambos está cheia de aventuras e desventuras marcadas por encontros e desencontros, que terminam numa paixão.

As imagens iniciais são de uma praia deserta com rochas em que o reflexo da luz do dia projetado no mar é acompanhado pelo som do rebentamento das ondas. Em segundo plano, surge uma casa isolada no cimo de um rochedo. O interior da casa denota um ambiente com características orientais através das cores quentes, do mobiliário e das personagens. Numa sala, encontra-se uma jovem chinesa a massajar de forma carinhosa os ombros de um homem europeu de meia-idade, Gonçalo Botelho, quando são interrompidos por um criado chinês que fala patuá, uma língua crioula de base portuguesa com alguma influência do inglês, tailandês, japonês e chinês.

A participação desta personagem é curta, mas marcante. Por um lado, ajuda o afilhado Hipólito Vidal, pai de Victorina, a deixar Macau e partir para Xangai em busca da sua felicidade, saindo de um casamento infeliz em que é humilhado pela família da mulher e controlado por um sogro autoritário. Por outro, vai ter um papel fundamental na emancipação de Victorina, através da ajuda psicológica que lhe dá e da herança que lhe deixa, proporcionando-lhe uma ascensão social. Ela transforma-se numa mulher independente, rica e respeitável capaz de enfrentar os preconceitos da sociedade. Nesta casa, situada em Areia Preta, um local longe da confusão da cidade onde o tempo parece ter parado, vai desempenhar um papel importante quase mágico na vida dos protagonistas. O ambiente calmo proporciona às personagens uma autodescoberta e um encontro consigo próprias. É ali que, mais tarde, Francisco Frontaria vai convalescer e Victorina conhecerá o amor ao seu lado.

Depois de uma cena da vida privada, o realizador passa para um momento de socialização em que é apresentado um salão de festas com muitas pessoas elegantemente vestidas com roupas da época e onde alguns pares dançam. Lá fora, na escuridão da rua surge um dragão a correr seguido por alguns homens que ostentam máscaras chinesas e se dirigem para o local da festa que é interrompida pela chegada deste grupo. O primeiro encontro entre Francisco da Mota Frontaria e Victorina Vidal ocorre neste local, e acaba de uma forma desagradável. Ao recusar o convite para dançar com Francisco Frontaria, que não estava habituado a ser contrariado, provocou nele uma reação inesperada apelidando-a de “Vesga”, “Mastronça” e “Varapau de Osso”.

Na obra literária e na cinematográfica, o conflito entre as duas comunidades portuguesa e chinesa é denunciado pela divisão do território em partes distintas: a cidade cristã e a cidade chinesa sendo o percurso de Francisco Frontaria revelador do aparecimento de um novo grupo social em Macau: o macaense. O protagonista não se integra em nenhuma das comunidades existentes e representa um terceiro espaço que se situa entre os dois. Fala duas línguas o português e o cantonês consoante as situações e as pessoas com quem dialoga. O mesmo acontece com Victorina que fala português, mas utiliza o cantonês quando se dirige aos empregos da casa e à sua empregada confidente Celeste.

O olhar de Luís Filipe Rocha sobre Macau é abrangente e não se fixa apenas na harmonia e nas imagens agradáveis da vida. Ao recriar uma visão da sociedade macaense da época, apresenta também um lado mais escondido, o dark side, onde surgem as vielas imundas da cidade chinesa com habitações pouco dignas e gente pobre. No romance e no filme, os dois mundos o português e o chinês convivem e influenciam-se, mas não se aproximam. O espaço desempenha um papel importante no romance e no filme por permitir acompanhar a evolução das personagens. Inicialmente, existe um antagonismo entre os dois protagonistas que vivem na cidade cristã, mas pertencem a classes sociais diferentes. Francisco Frontaria descende de uma família tradicional e conceituada na cidade, enquanto Victorina Vidal era fruto de um casamento desigual. O pai era oriundo de boas famílias e a mãe era filha de um espanhol endinheirado, mas de condição social obscura, um curandeiro a quem alguns homens recorriam quando contraiam doenças venéreas.

No filme, a cidade é apresentada como um espaço de encontros e desencontros, e também de confrontos (i)morais entre Oriente e Ocidente que ajudam a caraterização das personagens principais que, em vários momentos, transgridem as regras estabelecidas por uma sociedade fechada e preconceituosa.

A elite europeia mais culta e endinheirada que habitava na cidade cristã olhava com algum preconceito para os membros da comunidade chinesa em áreas tão diversas como as crenças religiosas, a medicina, a forma de vestir e a habitação. As representações desempenham um papel importante na construção das identidades como afirma Hall: “Precisely because identities are constructed within, not outside, discourse, we need to understand them as produced in specific historical and institutional sites within specific discursive formations and practices by specific enunciative strategies.” (Hall; 1996:4)

As condições de vida na cidade cristã e na cidade chinesa eram distintas existindo um profundo contraste entre ambas devido às diferenças culturais. Uma das questões abordadas no filme prende-se com o contraste entre a higiene e a habitação. As habitações da cidade cristã contrastavam com as casas da cidade chinesa habitadas por famílias numerosas que albergavam também, em muitos casos, porcos e outros animais. As casas eram mal ventiladas raramente existindo janelas e onde quase não entrava a luz do sol. De acordo com o jornal semanário Eco Macaense, a pobreza dos chineses estava associada à falta de higiene o que constituía um estigma social. O problema da salubridade levou o Leal Senado a tomar algumas medidas. O Eco Macaense afirmava que os efeitos das medidas tomadas pelo Leal Senado eram positivos se toda população colaborasse, sobretudo a comunidade chinesa.

Ora, os chinas, se é verdade que cuidam do asseio do corpo, desconhecem na quasi totalidade os principios hygienicos relativos á habitação e ao vestuario. A’ maioria d’elles pouco importa que a roupa que vestem hoje seja a mesma que trazem ha um mez para cá; as casas, não as lavam senão uma vez ao anno, isto é, quando se aproximam as festas do anno novo (EM 24.04.1895: 1)

No final da década de oitocentos, havia apenas três hospitais na cidade a que os macaenses de origem europeia recorriam quando estavam doentes, embora muitos optassem, em primeira instância, por consultar os curandeiros tentando livrar-se das doenças através de chás e mezinhas, mas quando esses tratamentos não resultavam e o doente piorava, recorriam ao hospital.

Embora existisse um hospital chinês em Macau fundado em 1873, os europeus e os seus descendentes não o podiam utilizar devido a um regulamento do serviço de saúde. Como refere o jornal semanário Eco Macaense, aquela instituição era um desperdício porque

os seus médicos não apresentam nenhuma garantia dos seus conhecimentos, tendo alguns d’elles sahido da classe de vendilhões de hortaliça e de carregadores de água. (...) Os médicos mudam-se de tres em tres mezes, e quando são engajados não se trata de saber se elles são ou não habeis na arte medica, mas olha-se só para a recommendação e empenho dos directores” (EC 19/12/1893)

De acordo com a notícia, existia uma discriminação em relação aos europeus. Os receios entre médicos e praticantes de medicina oriental eram mútuos. Mais tarde, existiram medidas ainda mais discriminatórias. Devido a doenças como a peste bubónica, a varíola e a cólera, segundo o mesmo jornal, os chineses doentes foram obrigados a ir para uma zona perto do mar, a Lapa, a fim de limpar a península de Macau e acabar com estas doenças. Passaram também a ser feitas visitas domiciliárias às zonas mais pobres habitadas por chineses.

No romance e no filme, a questão da saúde e dos tratamentos médicos é abordada através de algumas personagens. Um dos casos que tenta recriar o que se passava na época é o da doença da Títi Bita, que criou Francisco Frontaria desde pequeno. Como muitos europeus que viviam em Macau recorreu primeiro à ajuda da medicina chinesa, mas

De repente, a saúde da Títi Bita começou a falhar. Como toda a gente antiga de Macau, valeu-se primeiro das mezinhas e tisanas caseiras. Não melhorou. Mandou chamar o “mestre-china”, o curandeiro e o ervanário da casa, de preferência ao médico português, vindo laureado pela Universidade de Coimbra. (…) O “mestre-china” não atinou com a doença da boa senhora. Ela definhava a olhos vistos, esverdinhada, queixando-se de dores no peito e no ventre, cheia de terror e de lamentos, cada vez mais entrega à devoção. (Senna Fernandes, 31 e 32)

A apologia da medicina chinesa é feita por Victorina que tinha adquirido através do avô materno alguns conhecimentos sobre essa matéria. “Irrita-me quando ouço troçar dela, como fruto de ignorância, superstição e charlatanismo. Esquecem-se que é praticada há milénios. E se fosse tão má, já não existia o povo chinês. Morria tudo (idem, 235).

Para além da Títi Bita, Francisco também recorreu aos curandeiros em vez de ir ao hospital quando contraiu uma doença venérea, provavelmente, depois de ter frequentado uma das casas de prostituição chinesas. Para evitar falatório na cidade, preferiu sofrer a humilhação de ser tratado pelo avô de Victorina. Mais tarde, voltou a socorrer-se dos conhecimentos de um curandeiro para se tratar de uma doença desconhecida que lhe atacou os pés. Embora o tratamento do curandeiro não tivesse resultado, a sua vida foi salva por Victorina ao pôr em prática os conhecimentos da medicina chinesa que o avô lhe tinha passado. Depois da reabilitação física seguiu-se a reabilitação moral que lhe proporcionou o retorno à família e à sociedade.

Um aspeto importante abordado no filme tem a ver com a representação dos vários estratos sociais existentes na sociedade macaense da época em que a ocupação da cidade cristã surge estratificada sendo o prestígio das famílias mais importantes associado à classe do poder. A condição da mulher na cultura oriental e ocidental está também representada. Na sociedade chinesa patriarcal, a mulher ocupava um lugar secundário. As filhas eram consideradas um estorvo para a família o que, por vezes, também acontecia com as mulheres europeias. Um bom exemplo era Victorina Vidal que foi preterida pelo avô Padilha por ser mulher e fruto de um casamento mal sucedido arranjado pelo avô materno que almejava atingir um certo estatuto social através do casamento da filha.

A vida social em Macau

Em vez de começar por contar a história de um dos protagonistas descrevendo os seus antepassados, como acontece no romance, o realizador optou por apresentar imagens de um momento de socialização na cidade cristã. Uma festa onde se reuniam as famílias europeias de Macau. Em termos de divertimentos, de acordo com documentos da época, para além das festas que ocorriam ao longo do ano, a vida social incluía os banhos de mar, a pesca e os passeios a bordo do barco PicNic como se pode constatar no anúncio de um jornal da época.

Figura 2 – Anúncio de divertimentos em Macau nos finais do século XIX

A temática do Carnaval está presente nas obras de Senna Fernandes e é retratada também no filme. Trata-se de uma festa pagã celebrada pelos portugueses que aproveitam para se divertir e romper com a rotina diária. As máscaras desempenham um papel importante por esconderem a identidade de quem as usa e permitirem, através do anonimato, assumir comportamentos excêntricos. As máscaras surgem como um apontamento sobre a identidade híbrida dos macaenses. Ao usar uma máscara chinesa, Francisco Frontaria esconde a sua identidade o que lhe permite parodiar a comunidade portuguesa e a chinesa e só quando a retira da cara é identificado. A sua transgressão ultrapassa em muitos casos o limite da razoabilidade e, parte das afrontas desta personagem, deve-se ao grupo de amigos que o acompanhavam e provocavam através de apostas que o colocavam em situações cómicas e, por vezes, complicadas.

Uma diversão de mau gosto de Francisco Frontaria envolveu o Sr. Saturnino, pai de três filhas casadoiras, que tinha a alcunha de Gente do Acento Grave. Depois de conquistar uma das filhas, a menos feia, no dia da festa do noivado para além do atraso com que chegou, a forma como se fez anunciar mais parecia uma cena carnavalesca o que chocou a família e os convidados tendo o irmão dela jurado vingança. Esse dia marcou de forma trágica a vida do protagonista tendo início a sua queda que começou com o espancamento e expulsão da cidade cristã.

Apesar de os últimos membros da família Frontaria Títi Bita e o tio Timóteo terem tentado transmitir ao sobrinho os valores por que sempre se regeram, Francisco não aceitava as regras sociais e familiares que lhe eram impostas e o seu comportamento revela uma contestação face aos valores da sociedade a que pertencia.

Francisco Frontaria não resistia a uma aposta ou um desafio dos amigos demonstrando apetência para se envolver com pessoas que não respeitavam as normas da sociedade. O espírito de aventura estava sempre presente. A falta de princípios morais revelaram um lado mais obscuro deste fanfarrão ao seduzir Ermelinda, a mulher de Chibo Manso. No encontro amoroso não demonstra qualquer sentimento, mas apenas a conquista pela conquista. Através da relação fugaz que existiu, provou aos amigos ter sido o primeiro da terra a possuí-la pois constava que ela só traía o marido com estrangeiros.

Os festejos do Ano Novo Chinês também surgem no filme, em que participam bastantes ocidentais. Trata-se de uma festa onde muitas pessoas iam mais por curiosidade e diversão do que por convicção, havendo, no entanto, um respeito pelas práticas culturais e rituais chineses. Os macaenses (euro-asiáticos) eram a prova da boa vizinhança entre portugueses e chineses. A tolerância e o respeito de ambas as partes era uma realidade que facilitava os interesses comerciais em que os chineses eram os principais fornecedores da mão-de-obra.

Conclusão

Neste trabalho, procurámos analisar o tipo de relações que se estabelecem no espaço cinemático. Para compreender essas relações é necessário pensar que qualquer tipo de imagem produzida é um tipo de conhecimento. A época recriada nas obras literária e cinematográfica corresponde ao início do século XX, onde subjazem memórias baseadas na cultura e língua portuguesas dos séculos anteriores num local longínquo de Portugal, com características únicas, mas que permitem o seu reconhecimento.

Macau possibilitou o encontro entre portugueses e chineses – o mundo ocidental e oriental – pondo em contacto duas sociedades que apesar das suas diferenças procuraram respeitar-se, e ter uma convivência pacífica onde imperava a tolerância. O contacto entre duas culturas, a lusa e a chinesa, com características tão diferentes deu origem não ao aniquilamento de uma delas, mas à criação de uma tessitura nova – a macaense.

As imagens dos diferentes espaços em Macau utilizadas no filme trazem-nos à memória os trabalhos produzidos pelos primeiros operadores de câmara que permitiram aos espectadores viajar por outros lugares e tomar conhecimento de diferentes culturas através das imagens projetadas no ecrã.

Francisco Frontaria, herdeiro de uma família aristocrática antiga que pertencia à alta burguesia oriunda dos primeiros mercadores que se fixaram em Macau é um símbolo da decadência e empobrecimento a que muitos descendentes de importantes famílias chegaram no início do século XX. A excessiva proteção da Títi Bita não o preparou para a vida fazendo dele um inútil sem cultura nem profissão.

Para além de uma história de amor entre dois rejeitados pela sociedade o filme denuncia alguma hipocrisia moral que existia na sociedade macaense através da comédia e também do drama. Contrariamente ao romance, o filme não valoriza a mulher o que chocou Senna Fernandes, para quem o eixo da obra é a mulher. O homem surge como um conquistador que quando cai em desgraça acaba por ser salvo pela mulher.

Podemos concluir que o filme Amor e Dedinhos de Pé para além de possibilitar uma viagem por um território que já não existe tal como foi retratado, ajuda a compreender melhor o fenómeno da interculturalidade que se observa em Macau resultante do cruzamento entre as culturas portuguesa, chinesa e macaense. A análise da personagem Francisco Frontaria permitiu compreender as relações entre as culturas portuguesa e chinesa e a forma como ambas se influenciaram.

Apesar do final ser diferente no romance e no filme, ambos deixam uma mensagem de amor. No romance Victorina Vidal e Francisco Frontaria casaram, tiveram filhos e foram felizes para sempre, enquanto no filme o realizador optou por um final em aberto. Na cena final, ouvem-se as palavras de Victorina que sugerem uma promessa de amor e felicidade eterna “o cheiro do mar e das acácias em flor invadiam devagar a casa toda e penetrou em mim para sempre”.

Referências bibliográficas

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Fernandes, Henrique de Senna, 1994. Amor e Dedinhos de Pé, Macau: Instituto Cultural de Macau.

HALL, Stuart; Paul du Gay, Ed. 1996. Questions of Cultural Identity, London: Sage Publications.

Les, Juan A. Hernández, 2003. Cinema e Literatura a metáfora visual. Porto: Campo das Letras.

Stam, Robert, 2005. Literature and Film: A Guide to the Theory and Practice of Film Adaptation, Oxford: Blackwell Publishing.

Filmografia

Amor e Dedinhos de Pé. 1990. De Luís Filipe Rocha. Portugal: Público Série Y. DVD

Textos em linha

Eco Macaense. http://macauantigo.blogspot.com/ Acedido em 9 de fevereiro de 2019.

Tribuna de Macau https://24.sapo.pt/jornais/lusofonia/5145/2012-05-15 Acedido em 5 de janeiro de 2019.

Macau Antigo Blog até 1999 https://macauantigo.wordpress.com/page/19/ Acedido em 23 de fevereiro de 2019.

Macau Antigo http://macauantigo.blogspot.com/2011/06/homenagem-jorge-cavalheiro.html Acedido em 12 de março de 2019.