Abstract
The article aims to explore the relationship between literature and cinema based on the film One day in the Life of Ivan Denisovitch, based on Alexander Solzhenitsyn’s work of the same name and Caspar Wrede’s 1970 film.
Having as its theme the testimony about the spiritual resistance of a man, Ivan, in a Gulag, Solzhenitsyn’s novel points to the concentrationary universe captured by the Finnish director’s lenses in a dense drama and with a narrative marked by small details and the ethics of character’s day-to-day life.
Solzhenitsyn’s literary work acutely expresses what Hermann Broch called “ethical literature”, as a “vehicle for leading humanity closer to a total understanding of the world”. If on the one hand this is the dimension of the written work, on the other hand Wrede’s film presents itself as ethical cinema in the sense intended by Andrei Tarkovsky, that is, of images that lead to infinity
Therefore, the article intends to explore the relationship between ethics, cinematographic art and literature in a dialogue capable of weaving links with the theme of testimony, fundamental in Solzhenitsyn’s work.
Keywords: Solzhenitsyn, Cinema, Literature, Gulag.
Solzhenitsyn e a precedência do espiritual
Alexander Solzhenitsyn é considerado como um baluarte da resistência espiritual e moral contra o totalitarismo soviético no século XX. Inúmeros são seus defensores e detratores. Para além disso, inegavelmente temos em Solzhenitsyn a força da literatura de testemunho. Diante do aprofundamento mundial da crise política, financeira e de meio ambiente, assim como com a emergência das tentações totalitárias no Ocidente, é tempo para o revisitar. Sua descrição do universo concentracionário do Gulag merece ser retomada e, neste sentido, discordamos que suas contradições posteriores a Um dia na vida de Ivan Denisovitch (uma aversão ao Ocidente, como pontuado por Czeslaw Milosz ou uma visão conservadora) retirem o caráter testemunhal dessa obra (vide, debate, entre outros, Rastier, 2019 e Pearce, 2011) cuja primeira filmagem, que aqui vamos abordar, se fez em 1970 sob a direção do finlandês Casper Wrede.
Esse testemunho tem uma dimensão ético-espiritual de viés cristão abertamente abordada, por exemplo, em obras como The Smatteres, (Mendonça, 2020; Solzhenitsyn, 1974), onde Solzhenitsyn enfrenta a questão do papel moral da intelligentsia no regime totalitário, estabelecendo diálogo com os dissidentes da primeira fase da revolução russa, entre 1905 e 1917 (autores Nikolai Berdiaev, Sergei Bulgakov, Semen Frank, Mikhail Gershenzon, Aleksandr Izgoev, Bogdan Kistiakovskii, e Peter Struve) que criticam o materialismo da intelligentsia russa. (Mendonça, 2020)
Há, contudo, um aspecto central nessa crítica, que também será o da obra de Solzhenitsyn: a plataforma comum que uniu aqueles dissidentes seria, como destacado por Gershenzon,
“o reconhecimento da primazia teórica e prática da vida espiritual sobre as formas externas de comunidade. Com isto querem dizer que a vida interior do indivíduo é a única força criativa na existência humana, e que esta vida interior, e não os princípios autossuficientes do domínio político, constitui a única base sólida sobre a qual uma sociedade pode ser construída”(Gershenzon apud Solzhenitsyn 1994, vi).
Solzhenitsyn deles incorpora essa perspectiva de que “somente a crença na existência de uma ordem supra-humana no universo poderia fornecer a sanção necessária para valores absolutos” (Shatz, Zimmerman, 2015, 27) .
Enfim, as “faltas” da intelligentsia revolucionária seriam, na leitura de Solzhenitsyn, a separação da vida da nação, a intensa oposição ao estado como princípio, a covardia e a mediocridade, a tentação do Grande Inquisidor de Dostoievski expressa no deixar que a verdade pereça a fim de atingir a igualdade social e felicidade do povo, o ódio aos impulsos éticos, o fanatismo, o inadequado senso de realidade, a visão do homem como medida de todas as coisas e, finalmente, um ateísmo que aceita acriticamente a regulação da religião pela ciência (Solzhenitsyn, 1974, 231). Tal compreensão dos processos sociais e políticos se dá a partir da crença na absoluta precedência do espiritual em relação à política, ou como diz Stryceck,
o ser humano, a alma humana, o bem e o mal, tudo isso pertence aos termos morais fundamentais prevalecentes em seu discurso. A sua crítica ao comunismo nunca trata da teoria económica ou de aspectos políticos. Ele não ignora esses aspectos, mas também não os prioriza. Ele prefere começar usando termos morais (STRýČEK,2014, 180).
Segundo Solzhenitsyn “ a vida do indivíduo nem sempre se identifica com a sociedade, a coletividade nem sempre ajuda a pessoa.(...) o homem é uma individualidade fisiológica e espiritual antes que um membro da sociedade” (Solzhenitsyn, 1970, 21). A partir desta perspectiva Solzhenitsyn elaborou uma dupla crítica: ao regime soviético e, ao mesmo tempo, ao materialismo ocidental (Fedyashin & Kondoyanidi, 2009, 41), se guiando por um humanismo cristão e adotando uma compreensão dos processos sociais e políticos a partir da integração das diferentes dimensões da vida humana, examinando os fenômenos sociais como vinculados à ética e à vida espiritual individuais e afirmando a primazia destas (Nivat, 1974, Boobbyer, 2016).
Na visão de Solzhenitsyn, antes de atingir classes, partidos, países ou nações, o mal e o bem se radicam no coração de cada homem, não de modo definitivo, ensejando a divisão rígida entre bons e maus, mas, como uma linha divisória: “ela divide o coração de cada homem e não é um fosso cavado de uma vez por todas, mas flutua com o passar do tempo e de acordo com o comportamento do homem”. (Solzhenitsyn, 1974, 108). Deste modo, inúteis são os esforços dos revolucionários em substituir Cristo por Marx, porque a mudança não se encontra no campo das ideologias mas no espírito humano. A fonte do mal se radicará no esquecimento dessa condição existencial-espiritual do homem como sendo imagem e semelhança de Deus, o que será também a questão central em Dostoievski. Em seu discurso em Templeton, por exemplo, Solzhenitsyn reafirma a questão da fé como essencial para a manutenção dos laços sociais:
Desde então, passei quase 50 anos trabalhando na história da nossa revolução; nesse processo, li centenas de livros, coletei centenas de testemunhos pessoais e já contribuí com oito volumes de minha autoria para o esforço de remoção dos escombros deixados por aquela convulsão. Mas se hoje me pedissem para formular tão concisamente quanto possível a causa principal da revolução ruinosa que engoliu cerca de 60 milhões do nosso povo, não poderia ser mais preciso do que repetir: Os homens esqueceram-se de Deus; é por isso que tudo isso aconteceu” [Solzhenitsyn,1983].
Solzhenitsyn, como antes Dostoievski, tenta mostrar os efeitos espantosos e destruidores de uma “consciência não iluminada pela luz de Cristo” para usar a expressão de Semyon Frank (Frank, 1989, 152) e, neste sentido, suas críticas se dirigem também ao Ocidente capitalista: “perante o canibalismo, a nossa era sem Deus descobriu o anestésico perfeito – o comércio! Tal é o píncaro patético da sabedoria contemporânea” (Solzhenitsyn,1983), ao qual hoje, poderíamos agregar a tecnologia como poderosa força anestésica das consciências.
Na esteira da tradição deixada por Dostoievski que, ao longo de sua obra, enfatiza as consequências existenciais e sociais da ausência de fé no cristianismo, Solzhenitsyn ressalta o fato de que as estruturas sociais e as políticas são permeadas pela questão espiritual, que vai muito além da religião pois diz respeito à condição existencial mesma do homem como um ser espiritual, como imagem de Deus, algo que não pode ser eliminado por nenhum materialismo, seja de cor liberal, seja comunista. Essa é uma perspectiva que concede primazia à vida interior, ao espiritual sobre o político e é, certamente, a advertência mais importante de Solzhenitsyn para o mundo.
Se o testemunho de Dostoievski é profético, feito por visionário que assistiu e participou da emergência do processo de secularização e de destruição da fé no século XIX, detectando o que ocorreria nos séculos vindouros, o testemunho de Solzhenitsyn é de quem experienciou a face extrema desse processo. Sua denúncia se dirige contra os que escravizados pela razão não conseguem perceber essa precedência. E é sob essa perspectiva Um dia na Vida de Ivan Denisovitch será escrito como ponto de partida de uma obra testemunhal.
Um dia na Vida de Ivan Denisovitch
Em 1962, Alexander Solzhenitsyn (1918-2008), ainda desconhecido enviou o manuscrito de Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (Soljenitsin, 1972) para a revista Novy Mir, sob o governo de Nikita Khrushchev, considerado “liberal”. O manuscrito, submetido a cortes pelo governo, foi usado para mostrar os horrores da era stalinista, sendo somente mais tarde, em 1973, publicado na íntegra no Ocidente. Ocorre que em um verdadeiro paradoxo das consequências - onde o previsto resulta em um resultado não intencionado – o livro ganha fama por ser um testemunho que vem ao Ocidente e à própria população russa sobre a existência e a vida nos campos do Gulag.
Solzhenitsyn sobreviveu a oito anos de Gulag retratados em sua vasta obra e nesta semiautobiográfica novela ,descreve em poucas páginas os detalhes da vida de um prisioneiro Ivan Denisovitch Chukov Denisovitch, o personagem central que, fora capturado pelos alemães em 1942 e, após evadir-se e juntar-se novamente às tropas russas, passa a ser considerado como espião, sendo preso pelo governo soviético e enviado para um campo na Sibéria. O cotidiano do campo de concentração revela a verdadeira face escondida pelo regime:
A amostra da população dos campos de concentração arruína a mentira da propaganda oficial. Há apenas ex-prisioneiros de guerra, crentes, camponeses, bálticos, ucranianos. Sua culpa é sociológica ou etnológica. O único infrator comprovado da common law se encontra, como que por acaso, no chefe do quartel. Quando os Chukovs somam milhões, o poder é contra o povo, sugere Soljenítsin. (Guérin, s/d))
É inegável a influência sobre Solzhenitsyn de Recordações da Casa dos Mortos de Dostoievski. Se nesta se privilegia uma narrativa buscando, a partir de um olhar cristão, a subjetividade dos prisioneiro, em Solzhenitsyn temos uma narrativa mais seca, mostrando o cotidiano, marcado pela burocracia que esmaga os zeks (prisioneiros) que lutam por pequenos privilégios e ajudam na administração do próprio campo. Essa característica do seu estilo oculta, porém, uma preocupação espiritual e moral que dominaria toda sua obra posterior tanto de caráter ficcional quanto ensaístico.
O grande tema de Um dia na Vida de Ivan Denisovitch é o testemunho sobre a resistência espiritual no Gulag. A novela, em poucas páginas, segundo o autor, escrita em pouquíssimo tempo (Pearce, 2011, 172), tem a força e a profundidade de revelar o universo concentracionário. A obra literária de Solzhenitsyn exprime com agudeza o que Hermann Broch chamou de literatura ética, como um “veiculo para conduzir a humanidade mais próxima de uma compreensão total do mundo”. Se por um lado esta é a dimensão da obra escrita, por outro lado o filme de Wrede se apresenta como um cinema ético no sentido pretendido por Andrei Tarkovski, ou seja, de imagens que conduzem ao infinito e ao humano.
O cotidiano de Ivan Chukov vai do acordar às 5h até o apagar das luzes do campo às 22h. Sua rotina, que envolve marchar de ida e volta para o trabalho e tomar suas três refeições diárias, é quebrada por suas tentativas de ser internado para se isentar do trabalho ou pela tarefa de construir uma parede de tijolos para um centro cultural socialista dentro do campo de concentração. Suas esperanças residem em obter mais de uma tigela de minguau de aveia na hora do almoço, em conseguir um lugar melhor para se aquecer na temperatura de 50 negativos da Sibéria e em um dia ser libertado.
Ele que faz parte da equipe de prisioneiros de número 104. Nesse dia Ivan acorda mal e fica mais tempo na cama, sendo punido com a tarefa de lavar o chão e, não sendo dispensado do trabalho como pretendia, vai ajudar a erguer uma parede ao ar livre e no o frio intenso. No jantar consegue uma tigela extra de ração. Depois do jantar, Chukov compra tabaco e volta para sua cabana. Após ajudar um preso a esconder seu pacote durante a chamada noturna, recebe, como agradecimento uns biscoitos, que divide com Aliocha, que era “simpático para toda a gente, mas não sabe arranjar seja o que for para si” (Soljenitsine, 1972, 197) e também um pedaço de linguiça:
Ivan Denisovitch foi dormir contente. Tivera sorte em diversos aspectos hoje. Ele não foi colcoado na cela. A equipe não foi enviada para o Centro Socialista de Atividades Culturais. Ele terminou uma tigela de mingau no jantar. O chefe fixou corretamente porções. Ele ficou alegre ao construir a parede. Não foi apanhado com a lâmina de aço. Ganhou algo de Tzezar. Comprou algum tabaco e não adoeceu. Ele superou isso.
Sua pena era de três mil seiscentos e cinquenta e tres dias assim, da alvorada até o apagar das luzes.”
Os três dias a mais eram por causa dos anos bissextos.(One Day in the Life of lvan Denisovich, 1970).
Esse cotidiano será o da narrativa visual de Wrede, que se destaca pela obediência ao detalhes da obra de Solzhenitsyn, com uma narrativa marcada pelos pequenos detalhes e pela ética do dia-a-dia do personagem. Embora alguns momentos tenham sido imprimidos pelo diretor, em sua maior parte o filme obedece a narrativa da novela. Interessante notar que, se na obra literária temos duas vozes marcantes: a de Ivan e a do narrador, no filme, como aponta Ian D. Thatcher não há uma narrativa dominante. Casper Wrede dá voz a todos (Hellman, Rogachevskii, 2014, viii).
Embora as cruéis condições do campo, o livro e o filme são sobre a vida e não sobre a morte. São sobre a luta pela sobrevivência e pela manutenção da dignidade dos prisioneiros. O objetivo é sobreviver e sair dos campos, e o arquissobrevivente é Ivan Denisovitch (Hellman, Rogachevskii, 2014, viii). Há a busca permanente do sentido da vida em meio à existência da prisão. Seja nas tarefas mínimas realizadas, seja na espiritualidade de um personagem como Aliocha, o batista, a quem o diretor deu um destaque maior do que o presente na novela. Personagem que, em sua visão cristã, vê a existência no campo como uma oportunidade para o homem libertar sua própria alma em meio ao sofrimento e à falta de liberdade física. Será esse fundo humanista cristão de Solzehnitsyn que se revelará nos momentos de solidariedade e de caridade entre os prisioneiros.
Wrede traslada para as imagens o realismo literário de Solzhenitsyn. O cenário e as vestimentas do filme foram desenhados pelo escritor Mikhail Demin (1926-84; nome verdadeiro Georgii Evgenevich Trifonov), o qual passou oito anos como prisioneiro no Gulag, conseguindo sair e fugir para Paris. Profundamente observador e sendo também um ilustrador, a ele se deve o trabalho de detalhar o ambiente do Gulag (Hellman, Rogachevskii, 2014, 188).
O filme foi rodado próximo da cidade de Røros (3.200 habitantes), cerca de 300 quilómetros a norte de Oslo, na Noruega, “e cerca de 160 quilômetros ao sul do Inferno”, com clima e topografia semelhantes ao da Sibéria. (vide Hellman, Rogachevskii, 2014, 85). O clima espiritual e físico no filme será captado tanto pelas lentes da fotografia de Sven Nykvis, que mantem as cores frias, tons cinzas e azuis, para mostrar a dramaticidade, quanto pela música eletrônica de Arne Nordheim. A combinação de ambas mantém a dramaticidade nos pequenos detalhes do doloroso cotidiano dos personagens.
Gostaríamos de destacar aqui a perspectiva espiritual do diretor que, como Solzhenitsyn, aponta a presença da fé em Deus em meio à mais profunda adversidade. O sentimento religioso que atravessa várias cenas novela, como os diálogos com Aliocha, o persignar-se diante dos alimentos, etc. é retomado por Wrede: “todas essas cenas foram mantidas tanto na versão datilografada quanto na versão impressa do roteiro” (Hellman, Rogachevskii, 2014, 77). No entanto, há uma tendência clara de dar ao personagem Aliosha mais proeminência e significado na adaptação do que ele é concedido no próprio livro” (Hellman, Rogachevskii, 2014, 77). Tanto ele como Ivan professam sua fé em Deus, porém, de modo diferente. Ivan é um homem prático que professa sua fé em Deus, mas se recusa a acreditar na existência do céu e do inferno. Aliocha, muito mais fervente em termos de fé, se contrapõem ao capitão que é um ateu. (vide Hellman, Rogachevskii, 2014, 79). A essência cristão da obra literária e do filme permanecem, embora algumas alterações impostas pelo diretor. Contudo, os signos cristãos assim como o discurso direto estão presentes. Esses temas se juntam ao principal tema que é o ascetismo cristão como centro da narrativa suportando os mais altos ideais éticos e espirituais (vide Kobets, 1998). Nesse sentido “a fortaleza de Chukov diante do mal ativo e desenfreado é verdadeiramente ascética. Tal como um homem santo medieval, ele resiste e vence os terrores e as lisonjas do mal e atinge um nível mais elevado de espiritualidade”(Kobets, 1998, p. 662).
A crítica percebeu que também Wrede parece ter tentado transmitir uma mensagem semelhante, que o filme possuía “uma simplicidade quase religiosa e mística” com as vidas de guardas e prisioneiros “quase monásticas” ou que o diretor esteve atento aos pequenos toques de bondade entre os prisioneiros” (Hellman, Rogachevskii, 2014, 81).
O filme como bem disse Hellman é “infilmável” devido ao desafio de mostrar as 18 horas na vida de um prisioneiro, em um campo do Gulag, em uma paisagem hostil e monótona. Mas a expressão dramática do filme está justamente em uma ética dos pequenos detalhes nas quais se sobressai a fé, os momentos de troca e de compaixão que mostram o humano e a vontade viver – que, como disse Ian D. Thatcher é a tônica do filme. As duas vozes, a do narrador e a de Ivan, são mantidas no filme, ao mesmo tempo em que se dá voz aos outros prisioneiros.
A película tem inicio com uma vista aérea e a aproximação em zoom do campo de concentração. Isso se repete ao final, em sentido contrário, com a câmera se distanciando do campo, evocando o reiniciar da batalha pela sobrevivência e pela dignidade e mostrando as obras de Solzhenitsyn e de Wrede apontam como artes testemunhais (lembrando que o filme sofreu perseguições no próprio país de Wrede, a Finlândia, onde foi impedido de estrear), confirmando a visão de Solzhenitsyn para quem “as obras de arte impregnadas de Verdade, dão forma à verdade viva e tangível, nos encantam e nos possuem com uma potencia soberana” (Martin, 1973, 96).
Um dia na vida de Ivan Denisovitch é um testemunho e um aviso de como inocentes podem ser vitimas de estruturas de poder cruéis pois a realidade ultrapassa, e muito, o universo do Gulag e diz respeito à violência totalitária, qualquer que seja a sua feição, de direita ou de esquerda. Ivan é um resistente que, como Solzhenitsyn, manteve a dignidade em meio à penúria e à humilhação do universo concentracionário e como bem apontou Oliver “somente testemunhando, testemunhando a objetificação, é que [os sobreviventes] podem reinscrever a sua subjetividade em situações que a mutilaram até ao ponto da aniquilação.” (Oliver, 2001, 99).
Assim, seu caráter é universal, diz respeito à luta do ser humano para preservar a vida e como essa luta pode ser orientada pela integridade moral ou, como o próprio Wrede afirmou: ‘Para mim, o filme é uma história de prisão – e um homem pode ser preso em qualquer lugar. O filme quer mostrar que o homem possui uma força invencível. Mas ele deve preservar sua integridade. Perdê-la significa, de certo modo, morrer” (Hellman, Rogachevskii, 2014, 88). Essa busca por preservar a integridade moral e espiritual, ela mesma se transforma em combustível para a esperança e para a força.
Conclusão
Uma das questões mais importantes em Solzhenitsyn é que ele, a partir de uma visão orientada pela primazia do espiritual, aborda os cativeiros políticos como surgindo de cativeiros espirituais. Diferentemente da tradição iluminista ocidental, onde De La Boetie aponta que as origens da servidão política, que residem na ausência da iluminação do homem pela razão, em Solzhenitsyn, contudo, esse cativeiro é fruto de uma escravidão espiritual. Assim é que Ivan Denisovitch é prisioneiro física e politicamente, mas não é cativo espiritualmente falando, como nunca o foi Solzhenitsyn o qual mantém sua vitalidade contemporaneamente diante de sociedades que buscam apenas o conforto material se esquecendo do seu desenvolvimento espiritual, o qual, inexistindo leva à ruína social, ao caos, à violência e à anomia e, finalmente, à própria destruição da esfera pública. Esta é encarada desde sempre de maneira instrumental, assentada na mentira e na violência, na demagogia dos líderes políticos e dos intelectuais que os apoiam, logo inevitavelmente fadada à destruição, que hoje se assoma mais próxima da humanidade em razão das teias tecnológicas que a envolvem em um universo global.
Essa questão se reapresentará no século XXI, em um quadro no qual as raízes culturais de vários povos se perdem e as mudanças sociais se fazem tão aceleradas - assentadas na volatilidade dos mercados financeiros e na velocidade da expansão tecnológica – dirigindo-se para uma era de onde as tentações totalitárias mostram-se potencialmente perigosas. Ou seja, a humanidade reaviva a chagas das experiências totalitárias de século XX, desta feita sob nova roupagem: a ilusão da liberdade mediada pela tecnologia
Solzhenitsyn percebe as teias do perigo presente no Ocidente. Suas advertências sobre os limites da democracia e sobre a sua fragilidade nao podem ser obscurecidas. Nela também “é possível ser escravizado à morte materialista e aos falsos ideais” (Thomas, 1998, 486). Solzhenitsyn endossa essa posição ao afirmar que “a política não deve engolir tudo das energias espirituais e criativas de um povo. Além de defender os seus direitos, a humanidade deve defender a sua alma, libertando-a para a reflexão e o sentimento”( Solzhenitsyn, 1991, 49).
Nota
Trabalho apoiado com Bolsa de Produtividade do CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil.
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Filmografia
One Day in the Life of Ivan Denisovich. 1970. De Casper Wrede. (Group W, Norsk Film A/S, Leontes Productions Ltd; 105 min.).