Abstract
The 20th century saw the emergence of the concept of White Cube as a privileged space for the presentation of modernist works. The bare white background made it possible to highlight the works on display while removing any interference that could affect their enjoyment and reading. In the 21st century, as a result of the increasing use of digital technologies, more and more artists are turning to moving image installations. In December 2020, Serralves Museum presented the first exhibition in Portugal by artist Nalini Malani. Featuring animations created between 1969 and 2020, the exhibition culminated in the immersive installation Can You Hear Me?. The artist’s journey is the starting point to analyze the transition from White Cube to Black Cube and the challenges it poses, highlighting the role of animation as a creative tool.
Keywords: Moving image, Contemporary art, White Cube, Black Cube.
Introdução
O papel da animação no campo expositivo, como ferramenta plástica, tem vindo a ser explorado cada vez mais por artistas visuais que incorporam as imagens em movimento nas suas obras. Neste artigo propomo-nos refletir sobre a noção de limite e extensão do real a partir da obra de arte, tendo por base o percurso da artista Nalini Malani, os desafios que a transição do white cube para o black cube provoca, quer do espaço expositivo, quer, sobretudo da animação enquanto ferramenta criativa e plástica. Pretendemos evidenciar a imagem em movimento nas artes visuais demarcando-nos do cinema experimental.
White Cube e a Imagem em Movimento
Em 1976 Brian O’Doherty escreveu uma série de ensaios para a revista Artforum, que viriam a ser compilados no livro Inside the White Cube, tornando-se uma obra emblemática da segunda metade do seculo XX sobre o espaço expositivo. Doherty afirma que o século XX se dedica a estudar os limites do tema ou campo artístico com o propósito de o estender, ampliar, por oposição ao século XIX que se debruçava sobre a obra e o seu tema, não os seus limites.
Esta questão dos limites, da moldura como parênteses que permite isolar a obra, ou a obra como extensão do real, são os conceitos fundamentais da conceção e fruição da arte na segunda metade do século XX. O espaço da galeria, branco, limpo, confere às obras um carácter eterno, sem tempo. Apresentadas contra a parede branca, na ausência de ruído exterior, a obra amplia-se, ultrapassa os seus limites físicos e projeta-se frontal e lateralmente perante o espectador. Temos a impressão de estar a descrever aquilo que hoje seria considerada uma experiência imersiva. Mas isto corresponde ainda ao que O’Doherty afirma no seu texto. O impacto desta forma expositiva não pode realmente ser menorizado. Afinal, estamos perante o enaltecer da obra, no despojar do espaço para que ela o preencha, para permitir que ela o enquadre, que o transforme pela sua presença. Nem sempre compreendendo que esta forma de apresentação enquadra mais do que parece, que impacta ainda mais o espectador e legitima uma aura quase mística da obra. Segundo Erika Balsom (2020, 39), esta forma de apresentar a obra de arte como uma presença autónoma que privilegia a essência e a eternidade da mesma, é de fato a validação de um mito a partir de um enquadramento institucional.
Contudo, o que nos interessa salientar aqui é esta noção de limite e extensão do real a partir da obra de arte, a crescente importância do aspeto imersivo das obras, e como a imagem em movimento se tem destacado no espaço expositivo.
Durante o século XX, também a imagem em movimento entrou no espaço da galeria. E é a sua adaptação e disrupção que nos interessam particularmente. Em 1955, realizou-se a exposição Movement, numa pequena galeria parisiense de Denise René, que impulsionou o trabalho de vários artistas como Victor Vasarely, Jesús Rafael Soto e Jean Tinguely. Esta exposição centrava-se em duas categorias de trabalhos: a primeira que inclui esculturas como por exemplo os mobiles de Alexander Calder; a segunda inclui trabalhos puramente óticos exemplificados pelos trabalhos de Victor Vasarely e Jesús Rafael Soto (Uroskie 2014, 86-87). Contudo, também incluiu uma apresentação de filmes na Cinémathèque Française durante uma tarde, funcionando quase como um complemento à exposição. Form Phases, a primeira animação do artista Robert Breer, pintor americano que se mudou para Paris no final dos anos 40 do século XX, fez parte deste evento.
Produzindo uma pequena pilha de cartões ao longo de vários dias, ele folheava-os à mão, animando os seus estudos pictóricos de várias maneiras como auxílio à composição. Cedo começou a considerar esse processo de chegar e partir de formas definidas mais atraente do que a tentativa de as fixar de uma vez por todas nas suas telas (Uroskie 2014, 88)1.
Estamos perante uma obra que, centrada no processo de criação, encontra na imagem em movimento a sua forma de expressão. Numa altura em que o fascínio pelo movimento e velocidade se faz sentir em todas as áreas da vida, o espaço de galeria tenta acomodar as mais recentes criações artísticas, enquadrando, no entanto, a imagem em movimento na sala de cinema e restrita a uma só apresentação.
Mas este não foi o único trabalho que Breer apresentou na exposição Movement. O artista preparou ainda uma pequena publicação de flip books a partir da sua obra Image by Images. Esta publicação não obteve grande entusiasmo por parte da crítica na altura, mas não deixa de ser curioso o facto de, pouco depois, muitos outros artistas terem apresentado flip books, como é o caso de Dieter Roth, Andy Wharol, Jack Smith, entre outros.
Salientamos ainda a exposição Visions in Motion (1959), de Robert Breer em Antuérpia, na qual apresentou vários mutuscópios. Através destes dispositivos, uma invenção de Herman Casler em 1894, o artista criou vários trabalhos, que permitiam ao visitante ver a sequência de imagens em movimento, assim como parar indeterminadamente a observar uma delas. Gerou com isso uma relação de proximidade com o espectador e uma intimidade do mesmo com a obra e o seu ritmo. Todos estes trabalhos trouxeram desafios a nível expositivo ao mesmo tempo que questionam o lugar do cinema e o espaço da galeria.
A obra de Robert Breer e a exposição Movement são dois marcos históricos no desenvolvimento do lugar da imagem em movimento no espaço expositivo e as diferentes opções que os/as artistas tomaram.
Segundo Tamara Trodd:
Muito simplesmente, os artistas formados, na sua maioria, nos departamentos de pintura e escultura das faculdades de arte e que expõem os seus trabalhos em galerias, onde esta assume ressonâncias com a história dos tipos de arte tipicamente exibidos nas galerias, pertencem a uma tradição cultural substancialmente diferente da dos cineastas experimentais, apesar de compartilharem materiais e apesar das sobreposições e intercâmbios que aumentaram e diminuíram ao longo dos anos. (2014, 7)
Ainda que Robert Breer seja considerado por alguns como realizador de cinema experimental, a verdade é que o seu background é em artes plásticas. E o que nos interessa na sua obra não é a apresentação de cinema na galeria, mas o uso da imagem em movimento por parte de artistas plásticos e como isso altera a relação com o espaço expositivo, e adensa as camadas de significado de uma obra.
Black Box: da sala de cinema para a galeria
Durante a década de 60, também Robert Whitman produziu trabalhos que questionam a experiência cinemática. As obras Window e Shower, ambas de 1963, pretendem transformar a galeria num espaço híbrido de materialidade e imaterialidade, de observação distante e imersiva ao mesmo tempo. O artista transportou para o espaço da galeria elementos do quotidiano como uma base de chuveiro com cortina, atrás da qual se ouvia a água a correr e via-se surgir a silhueta de uma mulher. A imagem da mulher era projetada na cortina, mas o restante cenário era real, assim como a água que corre e cujo som ajuda a criar o ambiente familiar. Shower faz mais do que colocar o espectador no lugar do voyeur, ela questiona a ideia de realidade e de ficção, assim como o lugar da projeção de imagens em movimento.
Este hibridismo é bem diferente da apresentação de vídeo confinado a um monitor ou ecrã, no qual a imagem volta a ficar dentro dos limites da moldura e se apresenta numa escala de alguma forma manobrável. Para além disso, implica que seja visualizada por uma pessoa ou um número muito reduzido de pessoas de cada vez. Ao contrário da imagem projetada que é direcionada a uma audiência alargada e que foi historicamente do domínio do cinema (Balsom, 2020, 43).
Para além da questão de escala, a projeção permite usar o espaço de forma totalmente diferente. É disso exemplo o trabalho Line Describing a Cone (1973) de Anthony McCall. O filme consiste no aparecimento de uma linha branca que vai desenhando um círculo. Este processo demora cerca de 30 minutos. Quando o círculo fica finalizado, completa também um cone de luz que tem como seu vértice o projetor, e como base a superfície de projeção. Este trabalho combina desenho, escultura e imagem em movimento, recorrendo a uma economia de meios, que ao mesmo tempo transforma a relação com o espectador. “Aqui, a posição e o movimento do espectador no espaço tornam-se essenciais para a lógica da obra, à medida que mãos e braços alcançam a ‘luz sólida’ da projeção para explorar este fenómeno lento, enigmático, mas absolutamente literal.” (Krcma 2021, 380)2. O resultado final da projeção das imagens não se reduz às duas dimensões da tela, o “percurso” da projeção, o espaço que atravessa e ocupa fazem parte da obra, e nesse sentido, apenas existe quando esta está a ser projetada. Estamos perante um trabalho que introduz a imagem em movimento ao mesmo tempo que cria um objeto espacial de duração limitada.
A exposição Film als Film com curadoria de Birgit Hein e Wulf Herzogenrath apresentou em Colónia, em 1977, uma seleção de trabalhos realizados desde 1910 até essa data. Esta exposição pretendia dar uma noção de continuidade histórica no desenvolvimento do cinema e estava organizada por décadas. Apresentava desenhos preliminares, stills de filmes assim como alguns trabalhos projetados. Contudo, na sua maioria, a exposição era concebida a partir de imagens paradas, como se os filmes tivessem de ser parados para se enquadrarem no espaço de museu. Maxa Zoller (2014, 62) afirma, por isso, que esta primeira exposição ao contrário de apresentar, representou a imagem em movimento. Bem diferentes foram as soluções encontradas por David Curtis e Richard Francis em 1979, quando realizaram a exposição Film as Film na Hayward Gallery, em Londres. Com uma nova abordagem ao espaço da galeria “os curadores britânicos transformaram o espaço do museu numa ‘black box’ cinematográfica e substituíram o estilo científico da exposição de Colónia por um modo de apresentação mais flexível, com referências cruzadas e lúdico.” (Zoller, 2015, 64)3. Esta nova forma de enquadrar a imagem em movimento no espaço expositivo promovia uma experiência atmosférica e imersiva do espaço e das obras, colocando de parte o sentido didático da primeira exposição. Estava aberto o caminho para o que Chrissie Isle denominou em 2001 como um espaço entre o white cube da galeria e a black box do cinema (Trodd, 2014, 11).
Nalini Malani: em direção ao black cube
Nalini Malani, nascida em 1946 em Carachi, é uma artista Indiana com um percurso artístico que conjuga pintura, vídeo, animação e fotografia. A data e local de nascimento são dados extremamente relevantes, uma vez que um ano depois dá-se a cisão da Índia e é criado o estado do Paquistão. Malani e a família deslocam-se para a Índia e este é o evento chave, ou como Arjun Appadurai refere, o trauma fundador do seu trabalho e a preocupação definidora da sua obra (2012, 6). Enquanto artista, Malani acredita que tem o dever de refletir sobre a sociedade e isso é visível pelos temas recorrentes na sua obra, seja sobre o papel da mulher, a divisão da Índia ou eventos violentos que daí se originaram, combinando mitologia e modernidade, culturas antigas e o mundo contemporâneo. As suas obras inscrevem mitos como o de Medeia ou Cassandra na modernidade e, dessa forma, altera a história do próprio mito (Huyssen 2012, 53). Para a artista é importante a experiência de uma realidade vivida através da obra, rejeitando por isso o recontar da história de forma didática (Pijnappel 2012, 60). É por isso considerada parte de um grupo de artistas que insistentemente interrogaram a estrutura da história (Sambrani 2004). Em dezembro de 2020, Serralves apresentou a primeira exposição em Portugal de Nalini Malani, centrada em animações realizadas entre 1969 e 2020. É o papel da imagem em movimento no seu percurso artístico o aspeto que pretendo realçar.
Nalini Malani interessou-se pela fotografia e cinema desde o final dos anos 60 do século XX, contrariando a ideia de que as mulheres não eram, de uma forma geral, competentes no que à tecnologia diz respeito (Karode 2015, 35). Malani refere que todos os dias realizava pelo menos 5 pequenas aguarelas que expressassem os seus sentimentos. Estas aguarelas tinham uma determinada sequência, e quando começou a trabalhar com a câmara de filmar a sua intenção era criar um trabalho semelhante a esse diário em aguarela. E é a partir desta ideia de registo pessoal que surge a sua primeira curta-metragem a preto e branco Still Life, em 1969. Neste filme a câmara surge como o olhar da própria artista, caminhando pelos espaços do seu quotidiano, sem nunca ver surgir Malani, apenas os objetos (Jhaveri 2015, 89). Por isso a artista considera que os seus primeiros filmes são memory emotions (Malani 2019, 12).
No mesmo ano, realizou Dream House a sua primeira animação. Criou uma maquete em cartão preto que fotografou com slides 6x6 que vinham em rolos de 12. Para cada um destes slides ela mudou a orientação da luz criando diferentes formas de luz e sombra. Estes slides eram posteriormente projetados na parede e filmados com película 8mm. Enquanto filmava, colocava diferente filtros de cores primárias à frente da camara. Primeiro filmava tudo com verde por exemplo, e depois rebobinava o filme e voltava a filmar com vermelho. Esta sobreposição conferia a cor amarela em certas partes da escala de cinzas do filme (Malani 2019, 13).
Estes seus primeiros filmes foram realizados na VIEW (Vision Exchange Workshop), um espaço concebido por Akbar Padamsee, que pretendia agregar artistas de diferentes áreas e que tinham à sua disposição livros, camaras, laboratório de fotografia, material para edição de vídeo e sala de projeção. Ainda que este fosse um ambiente propício à exploração e criação multidisciplinar, a verdade é que Nalini Malani era a única mulher artista e a mais jovem do grupo. Talvez por isso, ninguém tenha mostrado particular interesse nestes seus trabalhos. O que importa realçar, no entanto, é o facto de esta jovem artista, fora do circuito ocidental, estar a explorar as possibilidades da imagem animada na transição dos anos 60 para os anos 70. Criando metodologias de trabalho complexas e controlando as diferentes etapas do processo.
Entre 1970 e 1972, Nalini Malani vai para Paris com uma bolsa do Governo Francês. Durante a sua estadia assiste a palestras de Noam Chomsky, participa em iniciativas públicas de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, e frequenta a Cinemateca Francesa onde estuda história do cinema. Marcada por este período pós Maio de 68 e pelo espírito de transformação social e política, Malani regressa à Índia em 1973 com a expectativa de contribuir para a transformação do seu país. Iniciou um projeto social junto de uma comunidade muçulmana e acreditava que apenas a imagem em movimento poderia despertar a opinião pública e chegar a um alargado número de pessoas. Depois de quatro meses de filmagens, a área é demolida e Malani não consegue encontrar as pessoas com quem trabalhou. O desmoronar deste projeto, as dificuldades financeiras, e o encerramento da VIEW levaram a que durante duas décadas se dedicasse apenas à pintura como forma de subsistência.
É a partir de 1996 que Malani volta a usar a imagem em movimento, mas, desta vez, de forma completamente diferente. Para a sua exposição na galeria Chemould (a primeira dedicada a arte contemporânea em Bombaim) contou com o apoio de um operador de câmara e técnicos de luz. Durante uma noite, realizou a animação sobre papel que foi colocado sobre um dos lados de uma porta de vidro da galeria e iluminada do outro lado. Desenhando, apagando e voltando a desenhar, surge a animação Memory: Record / Erase, uma interpretação do conto The Job de Bertolt Brecht. Este trabalho sem storyboard, num ato performativo de grande concentração, tornou-se a metodologia que viria a usar para todas as suas animações até 2017. A folha de papel é como uma pele na qual se inscrevem os eventos vividos, e mesmo o apagar destes deixa um rasto, tornando visível o que já não é visível. O uso da animação direta remete para o trabalho de William Kentridge, artista com quem partilha, para além de opções técnicas, as preocupações sociais e políticas.
É particularmente interessante o uso que Malani faz das suas próprias animações. Com o intuito de inserir elementos da sua expressão pessoal, vai sobrepor sequências animadas a vídeos de imagem real. “Com desenhos e pinturas animados, o meu mundo de fantasia poderia assumir o controlo. Na Mother India por exemplo, colei parte da animação Stains na barriga de uma vaca.” (Malani 2019, 20). Esta é uma interessante estratégia de economia de meios numa produção demorada e trabalhosa, ao mesmo tempo que possibilita uma continuidade de carácter estético e conceptual.
Malani voltaria a trabalhar no mesmo ano sobre o conto The Job de Bertolt Brecht em colaboração com o diretor de teatro Anuradha Kapur (Devenport 2004). Esta foi a primeira vez que a artista usou um cilindro de acetato pintado para uma instalação performativa. Neste espetáculo, o cilindro funciona quase como um invólucro para as personagens que, no interior deste, veem a sua sombra ser complementada pela sobreposição das sombras e imagens pintadas no cilindro. Este trabalho viria a dar origem a uma série de instalações às quais a artista denomina de shadow play (teatro de sombras) e que melhor representam o seu estilo eclético e a sua capacidade de combinar novo e antigo, adensando as camadas de significado das suas obras assim como a experiência de quem as contempla. Estes seus trabalhos combinam a projeção de vídeo com a projeção de sombras. No entanto, estas sombras têm a particularidade de serem projetadas a partir de cilindros de acetato, nos quais Malani pintou diversos elementos e figuras. Estes cilindros estão em rotação contínua, produzindo sombras em movimento. O resultado é uma instalação de atmosfera fantasmagórica, que conta com 3 tipos de imagem: a pintura sobre acetato, a sua sombra, e a projeção de vídeo. A construção do ambiente conta ainda com o áudio, que de uma forma geral cria um contraste com a produção visual. “Assim, estes jogos de vídeo/sombra recriam a complexidade do pensamento e a forma como o tempo funciona num determinado momento. É a natureza simultânea do que uma mente humana pode fazer no inconsciente.” (Malani 2019, 20)4. Estas instalações evocam muitas ideias ao mesmo tempo, criando uma trama de ligações e associações em constante mutação e que dependem em grande medida do local que ocupamos no espaço. Sem ponto de partida nem fim, percorremos o mundo da artista num jogo de luz e sombra. Transformando o espaço expositivo num lugar de hibridismo transporta o espectador para um tempo no qual pintura, proto cinema e vídeo se articulam e fundem.
Em 2003, Malani criou a obra Unity in Diversity que combina vídeo e fotografia, e que fez parte da retrospetiva apresentada na exposição no Museu de Serralves em 2020. Esta obra surge em resposta ao massacre de Gujarat, em 2002, no qual se estima que milhares de muçulmanos tenham sido mortos. O vídeo apresenta a pintura Galaxy of Musicians (1889) de Raja Ravi Varma que retrata onze mulheres músicas, vestidas com os seus trajes regionais, representando a ideia de uma Índia unida e capaz de compor música harmoniosa. É sobre este ícone da união que Nalini Malani sobrepõe imagem real que parece acordar, ao som de tiros, as figuras pintadas. O que se segue é a anulação da pintura pela imagem real, que aqui parece adquirir a categoria de memória das personagens. Este vídeo é apresentado no espaço expositivo projetado dentro de uma moldura, como se de uma pintura antiga se tratasse. Toda a envolvência do espaço nos remete para o interior doméstico de uma sala de estar, onde numa outra parede, podemos ver uma série de fotografias históricas da vida de Gandhi. A forma como Unity in Diversity nos é apresentada remete para o que Brian O’Doherty considerava ser o modelo do século XIX, que nos permitia debruçar sobre a obra e o seu tema. Na realidade, a moldura em volta da projeção de vídeo ajuda a enquadrar e conter a projeção. O conceito da obra é expandido lateralmente pela inclusão de elementos como os candeeiros de parede ou a série de fotografias. Estas, mais uma vez, emolduradas, apresentadas dentro de um parêntesis que absorve a nossa atenção. O espectador estabelece as ligações entre os diferentes elementos, estando no interior de um espaço repleto de palimpsestos temporais. A encenação do espaço quotidiano retira a carga da black box – o cinema não entrou na galeria, mas sim o espaço privado. E no espaço privado está a pintura, a imagem em movimento, o registo fotográfico e as camadas de significado que Malani consegue construir e problematizar.
Nalini Malani desenvolveu durante a viragem do século um corpo de trabalho variado que combinou diferentes vertentes da imagem em movimento com a pintura, a performance, a instalação e a fotografia. Mas foi apenas em 2011 que o curador Johan Pijnappel sentiu que faltava algum elemento, que de alguma forma explicasse o seu olhar fílmico. Foi ele que redescobriu, no atelier de Malani os seus filmes experimentais realizados em 1969. As películas foram restauradas e a partir desse momento Dream House é uma obra crucial nas exposições retrospetivas da artista. No entanto, esta não se limitou a apresentar um antigo trabalho. Malani coloca lado a lado Dream House II com um vídeo a preto e branco, que tem como protagonista uma jovem mulher desiludida com o curso do seu país, dando forma à instalação Utopia. A artista re-inventa os seus próprios trabalhos, aproveitando o distanciamento para olhar em retrospetiva e construir uma visão crítica sobre o curso da história recente, combinando o seu percurso pessoal com o percurso coletivo da sociedade em que vive.
A partir de 2017, Nalini Malani realizou muitas exposições retrospetivas da sua obra o que a levou a viajar por longos períodos, não tendo tempo para se dedicar às suas animações. É neste contexto de grande mobilidade que o iPad passou a ser o seu caderno de esquiços. À semelhança do que fazia com o seu diário de aguarelas, a artista começou a desenvolver pequenas animações digitais, desenhando diretamente sobre o ecrã do iPad. Estas animações são usadas para criar o que denomina de Animation Chambers, os seus mais recentes trabalhos, que funcionam como obras imersivas. É o caso de Can You Hear Me? (2020), que fez parte da exposição no Museu de Serralves, encerrando o percurso retrospetivo da carreira de Nalini Malani. A artista transforma o espaço expositivo numa atmosfera sombria, combinando mais de 80 micro animações digitais e citações literárias de autores como Hanna Arendt, Milan Kundera, Bertolt Brecht, Noam Chomsky e Geroge Orwell através de nove canais de projeção que cobrem as paredes. Este trabalho surge em resposta ao violento incidente que em 2018 tirou a vida a uma criança de oito anos às mãos de oito homens. Os seus desenhos são carregados de uma gestualidade intensa, contendo toda a urgência da revolta. As citações, muitas vezes escritas à mão, intensificam o nosso sobressalto e desconforto. Somos transportados para o interior do frenesim de uma rede online, na qual as imagens em movimento e texto se sobrepõem rapidamente. Também o ato de apagar é registado, e mais uma vez o invisível torna-se visível pelo rasto da sua ausência. No centro da sala, o espectador depara-se com a impossibilidade de tudo abarcar. Olhar para um lado implica não saber o que passa no lado oposto. O banco convida o espetador a parar para se deixar levar pela torrente de imagens. Precisamos de tempo para digerir o que estamos a experienciar. Afinal, esta Animation Chamber funciona como uma membrana da memória (Malani 2020, 57) na qual o pensamento se processa recorrendo à imagem, texto e som. Não corresponde ao white cube, nem à black box, tão pouco é um lugar híbrido entre os dois. É o black cube, que expandiu os limites da obra de arte em todas as direções, que nos envolve e nos confronta com a limitação do nosso próprio olhar.
Conclusão: black cube
O espaço expositivo contemporâneo ainda é fortemente marcado pela tradição modernista do white cube. No entanto, esta tradição adaptou-se gradualmente à inclusão da imagem em movimento, ao crescente fascínio pela novidade tecnológica e à crescente dimensão da experiência por oposição à contemplação. O black cube é fruto desta transição que não implica a anulação do White cube. É antes um aspeto vibracional deste último.
Em 2023, dos cinco nomeados para o Ars Fennica, o mais consagrado prémio finlandês das artes visuais, as três utilizavam imagem em movimento. Tuomas A. Laitinen apresentou a instalação The Earth is the Ear of the Bear na qual combinava imagem em movimento com escultura e som. Emilija Škarnulytė, artista e cineasta lituana, transporta-nos para a black box com a projeção de um filme sobre a sua avó, à qual adiciona a instalação de plantas medicinais no teto, que nos fazem questionar a realidade espacial na qual nos encontramos, lembrando os trabalhos Window e Shower de Robert Whitman. Por sua vez a artista sueca Lap-See Lam apresenta a obra Tales of the Altersea, projetando animação digital nas paredes e chão da sala, transformando todas as superfícies em espaço expositivo. As imagens lembram a animação de sombras, com personagens míticas que percorrem as superfícies do cubo preto como se nos envolvessem num mar de memórias e realidades oníricas. No centro da sala, somos intrusos e espectadores de um mundo complexo, onde a simultaneidade de eventos nos lembra as nossas limitações preceptivas. Estamos perante três diferentes abordagens à imagem em movimento no contexto da arte contemporânea, sendo que apenas o trabalho de Lap-See Lam corresponde à inversão do white em black cube.
O percurso artístico de Nalini Malani mostra como fez uso das tecnologias, não pela pura experimentação, mas porque estas respondem a funções específicas do trabalho. Com especial foco no uso de técnicas de animação, que se mostram como acessíveis aos artistas independentes e funcionam como uma extensão do campo expressivo do desenho, pintura e instalação. Não é por isso de estranhar que a animação ganhou um novo impulso nas produções de arte contemporânea. Contudo, há desafios e tensões, num momento em que é clara uma transição para a interatividade e a imersão. Esta tendência é fruto de um tempo em que a imagem estática perde força no quotidiano, nas redes sociais, e é suplantada pelo vídeo de curta duração, e todas as plataformas se adaptam para também elas conterem essa ferramenta. E talvez a duração seja ainda um dos fatores diferenciadores das obras de arte e das produções que inundam o nosso dia a dia. Os textos são reduzidos a títulos ou legendas, o movimento reduzido a poucos segundos, a impaciência para contemplar instala-se. No centro do black cube, estaremos preparados para contemplar?
Notas finais
1 Tradução da autora a partir do original: Producing a small stack of cards over the course of several days, he would rifle through them by hand, animating his painterly studies in various ways as an aid to composition. He soon began to consider this process of arriving at and departing from set forms more compelling than the attempt to fix them once and for all on his full-sized canvases.
2 Tradução da autora a partir do original: Here the position and movement of the viewer in space become essential to the work’s logic, as hands and arms reach into the ‘solid light’ of the projection to explore this slow, enigmatic yet absolutely literal phenomenon.
3 Tradução da autora a partir do original: the British curators transformed the entire museum space into a cinematic ‘black box’ and replaced the scientific style of the Cologne exhibition with a more flexible, cross-referential and playful mode of presentation.
4 Tradução da autora a partir do original: As such these video/shadow plays recreate the complexity of thought the way time works at any given moment. It is the simultaneous nature of what a human mind can do in the unconscious.
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