Capítulo / Chapter I | Cinema – Arte / Art

Worldbuilding as a key element in the creation of transmedia narrative universes — an applicable approach to cinematography

Construção de mundo como elemento-chave na criação de universos transmídia narrativos — uma abordagem aplicável para a cinematografia

Heloisa Cardoso da Rosa

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Mônica Stein

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Henrique Cardoso da Rosa

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Stefani Ehmke Agra

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Abstract

This paper discusses the role of worldbuilding in creating powerful narratives, strong characters and faithful fanbases. It analyzes successful franchises through standard worldbuilding theories in contrast with the method used in the genesis of The Rotfather transmedia narrative universe, developed by the brazilian research group G2E [Education and Entertainment Group] of the Federal University of Santa Catarina. This method puts the setting in the forefront of narrative development, inspired by the mechanics found in the turn-based strategy game Sid Meier’s Civilization VI. Through this interdisciplinary approach with the field of game design, it aims to propose a structured and efficient way of thinking worldbuilding for transmedia universes that can be applied to any kind of media they encompass, specially in the sphere of cinema.

Keywords: Worldbuilding, Narrative Development, Transmedia Franchises, Cinema, The Rotfather.

Introdução

Há muitos elementos a serem considerados ao se criar uma obra de ficção, mas, de um jeito ou de outro, todos se encaixam dentro de três categorias principais: mundo, personagem e trama. Muitos autores já se dedicaram a elucidar a importância de cada uma em seus livros, manuais e palestras sobre escrita — seja focando-se em filmes, TV, livros ou outras mídias. A maioria parece debruçar-se predominantemente sobre a construção e estruturação de personagens e tramas, relegando a construção de mundo ao papel de coadjuvante a ser projetado em função desses dois elementos narrativos.

Entretanto, como essa abordagem impacta a criação de narrativas transmidiáticas? Pela definição de Scolari (2009), narrativa transmidiática é:

uma estrutura narrativa particular que expande-se tanto através de diferentes linguagens (verbal, icônica, etc.), quanto de diferentes mídias (cinema, quadrinhos, televisão, videogames, etc.), [que] participam e contribuem para a construção do mundo narrativo transmidiático (Scolari 2009, 587).

Ou seja, como pensar o mundo ficcional a partir de um conjunto particular de personagens e tramas vinculados a uma mídia específica afeta a experiência de criadores e público nas narrativas apresentadas nas demais mídias constituintes do universo transmidiático?

Para discutir essa questão, é importante salientar três aspectos inerentes à projetos transmidiáticos segundo Renger (2020), que apresentam desafios à equipe criativa :

  1. a necessidade de oferecer valor narrativo adicional a cada nova mídia agregada, enquanto mantém-se a coerência narrativa e senso de completude do universo transmidiático como um todo;
  2. a natureza colaborativa desses projetos, que requerem um fluxo constante de informações entre os diversos profissionais para, novamente, garantir a coerência narrativa e senso de completude;
  3. o fato de que não há como controlar o modo como o público navegará através das diferentes mídias, fazendo com que cada uma delas precise funcionar como porta de entrada para o universo narrativo transmidiático.

Uma maneira de lidar com estes aspectos é através do conceito de mundanidade atrelado a universos narrativos, em que criadores e público compartilham uma imagem mental unificada do mundo transmidiático (ibid.). Por consequência, é razoável dizer que a construção de mundo é um elemento-chave na criação de universos transmidiáticos. Assim, esta pesquisa argumenta que pensar no mundo em segundo plano pode se mostrar prejudicial a uma boa resolução destes desafios.

Com isso em mente, a equipe responsável pela criação e manutenção do universo transmídia The Rotfather preferiu elaborar uma abordagem que coloca o mundo à frente do processo de desenvolvimento, guiando a criação de personagens e narrativas a partir de suas necessidades e possibilidades. Tal abordagem permite o desenvolvimento sólido de qualquer mídia, especialmente aquelas pertencentes à cinematografia, que apoiam-se em trama e personagens, além de terem ferramentas audiovisuais a seu dispor como auxílio na construção do mundo diegético. Assim, este artigo objetiva destrinchar este método de pensar o universo narrativo transmidiático a partir da construção de mundo, de modo a abarcar toda sua complexidade de modo estruturado, facilitando o processo como um todo.

As convenções da criação de mundos

Antes de partir para o objetivo principal deste artigo, é preciso revisar o que diz a literatura acerca da criação de mundos voltada a obras monomidiáticas. Para isso, selecionaram-se autores renomados que dissertam acerca da escrita de roteiros para cinema e séries televisivas, livros de ficção e jogos.

Começando pela área do roteiro para cinema, McKee (2013) escreve acerca do mundo ficcional em função do enredo, afirmando, por exemplo, que a melhor maneira para se combater clichês narrativos é o autor conhecer bem o mundo da sua história. Ele também propõe que “o ambiente de uma estória define e confina categoricamente suas possibilidades” (ibid., 77). Isso apoia sua noção de realidades consistentes, que dita que o mundo ficcional deve operar dentro de uma lógica interna, possuindo regras que devem ser obedecidas e que “estabelecem modos de interação entre os personagens e seu mundo” (ibid., 63). Indo além, McKee (2013) define que o ambiente ficcional é composto de quatro dimensões: o período em que a história se passa; sua duração ao longo do tempo; o lugar físico onde se passa a história e o nível de conflito entre o grupo de personagens que a habita. Contudo, o autor não oferece um método claro para abordar a construção do mundo ficcional, apenas algumas perguntas básicas (do que as personagens sobrevivem?; quais são as estruturas de poder?; quais são os rituais?; quais são os valores desse mundo?) e uma forte recomendação à pesquisa como fonte de inspiração. McKee (2013) também sugere manter o mundo limitado, para que um único autor consiga conhecê-lo profundamente, facilitando o processo de fazer os personagens ganharem vida e tornar a história original.

Howard e Mabley (1993) são mais sucintos ao falar sobre o mundo da história, alegando que os filmes se passam em universos projetados especialmente para eles. Os autores também escrevem que tal especificidade origina-se a partir da essência, tanto do protagonista quanto do próprio roteirista. Ou seja, eles defendem que o mundo se origina das características e dilemas de ambos, tornando-se parte do estilo de escrita de determinado autor.

Quando se passa para o contexto de séries televisivas, o cenário não é muito diferente. Em seu breve tópico sobre o universo das séries, Cantore e Paiva (2021) limitam o assunto ao mundo do protagonista e afirmam que este é composto por duas estruturas: o ambiente (que inclui local, data e geografia de onde a história se passa) e as regras da sociedade (as leis e tradições que governam as interações entre os personagens). Rodrigues (2014), por sua vez, estende-se um pouco mais sobre o assunto, mas a essência é a mesma do que já foi discutido por McKee (2013). Ela usa o termo mundo inconfundível para se referir ao universo da série e diz que ele deve ser coeso e único, garantindo verossimilhança quando bem construído, além de afirmar que “[s]ão as escolhas autorais de enredo que levantam o mundo dos personagens onde a trama vai se desenvolver” (Rodrigues 2014, 28). Para ela,

[é]poca, lugar, cenários e personagens com seus objetivos e motivações são elementos da narrativa inseparáveis e são eles que constituem o mundo de uma obra (ibid.).

Assim como McKee, a autora recomenda a pesquisa como fonte de inspiração e conhecimento acerca do mundo do personagem.

Em um livro cujos fundamentos se propõem a funcionar para qualquer história, independente da mídia, Truby (2008) também conecta o mundo narrativo com os personagens e a trama de maneira intrínseca. Ele defende que a construção de mundo é uma técnica para condensar significado na história, chegando a fazer uma lista de diferentes espaços e seus significados com as possíveis reações e emoções que provocam no público. O autor também propõe que cada elemento do mundo da história funciona, em algum nível, como uma expressão física dos personagens que o habitam e vai além, escrevendo que o estado do mundo no começo e fim da história deve estar interligado com o arco do protagonista — seja para reforçá-lo ou contradizê-lo. A fim de encontrar o mundo da história, Truby (2008) sugere voltar-se ao tema e storyline, para expressá-las através de uma única ideia visual, que representará esse mundo. A seguir, deve-se definir o que ele chama de arena, o local específico em que a história se passará. É interessante notar que esta arena pode guardar mundos menores dentro dela, o que pode ajudar com o próximo passo descrito por ele: dramatizar as oposições visuais dessa arena, que refletem o conflito entre os personagens.

Passando-se para a área da escrita de livros de ficção — especialmente de ficção especulativa —, têm-se diretrizes mais práticas acerca da construção de mundos. Em suas aulas de escrita criativa sobre o assunto, o autor bestseller Brandon Sanderson (2020) estabelece três “leis” que direcionam sua abordagem ao pensar mundos ficcionais, especialmente em relação a sistemas de magia, relacionando-as às necessidades da trama ou dos personagens. São elas:

  1. A capacidade de resolver problemas narrativos com magia de modo satisfatório é diretamente proporcional a quão bem o leitor entende tal magia;
  2. Falhas, custos ou limitações são mais interessantes do que poderes;
  3. Antes de adicionar elementos novos ao sistema de magia — ou ao mundo, no geral —, deve-se primeiro tentar expandir o que já se tem.

A primeira lei conecta-se com a trama na medida em que seu objetivo é dar uma resolução satisfatória para o problema enfrentado pelos personagens, de modo que pistas sejam deixadas ao longo da narrativa para que, ao final, o leitor compreenda, ou até adivinhe, como a magia poderá ser utilizada para solucionar a trama. A segunda lei trabalha o desenvolvimento emocional dos personagens e adiciona combustível aos conflitos da narrativa, a partir da conexão entre estas falhas, custos e limitações com o sistema de magia. A terceira lei visa a profundidade dos elementos que compõem o mundo ficcional, argumentando que os leitores preferirão poucos elementos bem desenvolvidos a muitos elementos mal construídos (ibid.). Apesar da conexão clara com universos em que há sistemas de magia, as três leis podem ser transpostas a qualquer tipo de narrativa, visto que seu objetivo é conectar o mundo ficcional aos conceitos de coerência, desenvolvimento de personagem e trama, e verossimilhança.

Além das três leis, Sanderson (2020) fala sobre a “teoria do iceberg oco”, que consiste em desenvolver somente o que é necessário do mundo para a história funcionar, enquanto dá-se apenas detalhes o suficiente sobre outros elementos para deixar implícito que há mais coisa nesse mundo ficcional do que o leitor irá conhecer. Ao explicar sua abordagem para a construção de mundo dos seus livros, o autor diz categorizar os elementos que compõem o mundo em dois tipos: os que dizem respeito ao ambiente físico e os que tratam do ambiente cultural. Essa separação pode ser vista nos exemplos da tabela a seguir:

AMBIENTE FÍSICO AMBIENTE CULTURAL
  • Clima
  • Atividade tectônica
  • Mapa
  • Flora
  • Fauna
  • Raças
  • Magia
  • Visuais
  • Cosmologia
  • Terreno
  • Religião
  • Governo
  • Economia
  • Papeis de gênero
  • Fronteiras
  • Moda
  • Tradição alimentar
  • História
  • Tradição militar
  • Ritos de passagem
  • Hierarquia social
  • Idiomas
  • Tabus
  • Saudações
  • Palavrões
Tabela 01 — Ambiente físico e cultural (Sanderson, 2020).

A ideia é desenvolver apenas um ou dois destes pontos — possivelmente um de cada categoria —, sempre pensando em como os elementos escolhidos ajudam a melhorar a história que se quer contar. Assim, os demais pontos devem ser pensados conforme necessário e em função dos dois principais, para que não se sobrecarregue a história nem o leitor (ibid.).

Tanto Falcão (2023) quanto VanderMeer (2018) parecem concordar com a linha de raciocínio de Sanderson, pois defendem que não é possível construir um mundo completo, apenas um ecossistema — ou modelo de mundo — funcional para a história a ser contada. De acordo com Falcão:

podemos construir um ecossistema para o nosso mundo, um cenário no qual personagens atuam, interagem e vivem suas existências. Nesse sentido, pode-se delinear ou esboçar muitos elementos desse ecossistema, abrangendo cultura, política, religião, economia, geografia, arte, ciência, biologia, arquitetura, entre outros. É importante perceber que o mundo que estamos criando trata-se de um modelo. Não será possível incluir tudo o que imaginamos, deve-se colocar em jogo o que movimenta a história, para que o leitor não se perca em detalhes sem importância durante a leitura (2023, 154).

Ao dissertar sobre esta ideia de modelo de mundo, VanderMeer (2018, 213) compara construção de mundo com a criação de personagens, escrevendo que

[n]a ficção, tomamos os mesmos tipos de decisões sobre cenário e sobre personagem; nunca incluímos tudo, não mais do que seria exaustivo sobre a história pregressa de uma pessoa.

O autor também lista uma série de características que acredita estarem presentes em mundos bem construídos, contudo pontua que nem todas precisam estar presentes ao mesmo tempo e em todos os cenários. São elas, segundo VanderMeer (2018):

Característica Descrição
Coerência e lógica consistente Todas as partes do mundo parecem se encaixar juntas, formando um todo coeso.
Conexão entre causa e efeito em larga escala O contexto histórico e social têm impacto nas instituições apresentadas na trama, de modo que é possível entender suas motivações.
Detalhes específicos São usados para convencer o leitor acerca do mundo, sem parecerem dissonantes do todo.
Impacto na vida dos personagens O mundo cria obstáculos para os personagens, de maneiras surpreendentes e interessantes.
Senso de profundidade e amplitude Gera a expectativa de que as ações dos personagens terão consequências influenciadas pelas particularidades do mundo.
Reflete o mundo real e diferencia-se dele O mundo ficcional inspira-se no mundo real, mas as similaridades contextuais devem ser assimiladas a ponto de não serem facilmente identificáveis.
Pessoal O mundo reflete algo pessoal do autor, sendo significativo para ele.
Mistérios suficientes e vistas inexploradas Impede o mundo de ficar entediante ou decepcionante, dando um senso de aventura ao leitor.
Consistência inconsistente Reproduz a complexidade do mundo real e não reduz o mundo ficcional a um monolito que ignora a passagem do tempo e as mudanças advindas disso.
Multiculturalidade Reflete a diversidade do mundo real.
Metáforas literalizadas e expandidas Alguns objetos podem prover estas metáforas, sendo representações físicas do contexto histórico de um lugar.
Realidades operacionais diferentes Advindas de ideologias ou narrativas históricas defendidas por facções diferentes, produzem conflitos entre personagens e podem ser expressadas através de mudanças físicas no ambiente.
Memória coletiva e individual Todo tipo de tradição pode ser mantida viva através da memória, que possui um papel ativo no mundo, especialmente por conta das diferentes realidades operacionais.
Falhas de comunicação ou interpretação Adicionam conflito e advém de personagens cujas realidades operacionais são diferentes entre si.
Tabela 02 — Características de mundos bem construídos (VanderMeer 2018).

Ademais, o autor enfatiza que o mundo ficcional não precisa ser reduzido ao palco onde a história se desenrola, mas, dependendo da abordagem, pode ser parte da trama em si (ibid.).

Apesar de seguir a mesma linha de outros autores vistos aqui, Falcão (2018) também reconhece que esses mundos, quando bem construídos, são favoráveis à exploração tanto de cenários quanto de personagens e conflitos, de modo que “[a]s narrativas podem ir além de uma única história e estão repletas de situações interconectadas e cruzamentos” (ibid., 153). Consequentemente, ele pontua que

criar mundos gigantescos com inúmeras histórias pode ser uma tarefa não somente para um autor, mas para diversos autores, roteiristas, ilustradores, designers e cineastas (ibid., 162).

É interessante olhar para o campo dos jogos na questão da construção de mundo, pois os designers de jogos preocupam-se primariamente com a experiência dos jogadores e, por isso, costumam projetar o mundo em função de uma das particularidades dessa área: as mecânicas. As mecânicas do jogo dizem respeito aos procedimentos e regras que delimitam e guiam o que o jogador pode fazer — inclusive, o próprio mundo ficcional pode fazer parte da mecânica (Anthropy e Clark 2014; Schell 2008). Sobre o tópico, Schell diz que o mundo

oferece ao jogador uma combinação de simplicidade (o mundo do jogo é mais simples do que o mundo real) e transcendência (o jogador é mais poderoso no mundo do jogo do que no mundo real). (2008, 271-272)

Assim como outros autores vistos aqui, Schell (2008) reforça a importância do mundo ser consistente, seguindo uma lógica interna clara e inquebrável, adicionando a recomendação de deixar o mundo acessível aos jogadores, de modo que entendam facilmente o ambiente, objetos e mecânicas. O autor também sugere que desenhar o lugar onde o jogo se desenrolará pode ajudar a formular histórias e personagens, visto que

ao fazer rascunhos e desenhos deste lugar, muitas vezes uma história irá se formar naturalmente, conforme você é compelido a considerar quem mora lá, o que fazem, e porquê. (ibid., 280).

Certamente as teorias vistas até então têm seu mérito e parecem funcionar bem para as mídias a que se destinam, como nos exemplos que podem ser conferidos nos livros e aulas dos autores mencionados. Contudo, a questão sobre como tais métodos podem ser transpostos na criação de universos transmidiáticos permanece. Será que estes criadores devem escolher as convenções de uma dessas mídias para construir seus mundos e adaptar as demais mídias integrantes deste universo ao que é ditado por essa? Entretanto, considerando-se que a maioria dessas teorias é centrada na trama e personagens de uma mídia específica (ou nas mecânicas e experiência do jogador, no caso dos jogos), não é razoável pensar que uma das mídias teria uma qualidade superior, com seu enredo, personagens e mundo trabalhando em uníssono, enquanto as outras mídias teriam que se adequar forçadamente ao que foi estabelecido na primeira, o que poderia levar à dissonâncias cognitivas no universo transmidiático como um todo? Para analisar melhor esta questão, o próximo tópico procurará investigar a construção de mundo em franquias de sucesso.

Expandindo universos: os casos de Pokémon e Avatar

Mundos transmidiáticos bem-sucedidos exercem um efeito poderoso sobre os fãs. É mais forte do que apenas um amor de fã sobre uma história interessante. É quase como se o mundo se transformasse em um tipo de utopia pessoal que eles fantasiam em visitar. (Schell 2009, 303).

As razões para a fascinação que um mundo imaginário pode ter sobre as pessoas são infinitamente especuladas, até mesmo com pesquisadores propondo que é uma parte inata da humanidade, que desenvolveu estruturas cerebrais e cognitivas específicas para o ato de imaginar (Wolf 2012). Independente de explicações científicas, essa conexão e entusiasmo muitas vezes é o fenômeno por trás de franquias de sucesso, que decidem expandir seus universos apenas depois que sua primeira mídia demonstra êxito comercial. Um exemplo desta estratégia é a franquia Pokémon, um dos universos transmidiáticos de maior sucesso do mundo, cuja febre entre os jovens ganhou a alcunha de “pokémania” no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Lançado em 1996 pela Nintendo, Pokémon foi criado por Satoshi Tajiri, co-fundador da desenvolvedora de jogos Game Freak, como um jogo eletrônico para o console Game Boy. Motivado pelo desejo de promover comunidades e interação entre os jovens japoneses, ele tirou inspiração de duas fontes: sua infância colecionando insetos e sua paixão por jogos eletrônicos. Assim, Tajiri surgiu com a ideia dos pocket monsters, ou pokémons, e o conceito de um jogo em que os jogadores deveriam colecioná-los, treiná-los e batalhar com outros pokémons, sendo incentivados a interagir com outros jogadores para que pudessem trocá-los uns com os outros — aproveitando, assim, a tecnologia da Nintendo que permitia a transferência de dados entre dois Game Boys através de um cabo. Para a realização, ele contou com a parceria do ilustrador Ken Sugimori, o outro co-fundador da Game Freak e responsável pela arte do jogo. Com o sucesso dos jogos eletrônicos, o designer de jogos de cartas Tsunekazu Ishihara viu uma oportunidade de expandir a marca Pokémon para o mercado de jogos analógicos, propondo a estratégia de criar um ecossistema onde diferentes mídias se complementariam e incentivassem os fãs a mergulhar mais fundo neste universo. A Nintendo aprovou a ideia e, ainda em 1996, o projeto de Ishihara de cartas colecionáveis foi lançado. Pouco depois, veio o primeiro mangá, escrito por Kosaku Anakubo e, em 1997, o anime estreou no canal TV Tokyo, sob a direção de Kunihiko Yuyama. Em 1998, iniciou-se a distribuição internacional da marca e a criação do que viria a ser a The Pokémon Company para gerir a franquia (cujos direitos autorais são compartilhados pelas empresas Nintendo, Game Freak e Creatures). A partir daí, seguiu-se a expansão do universo Pokémon em mais jogos eletrônicos e analógicos, filmes, mangás, aplicativos para celular, além de uma miríade de outros produtos, que continuam a ser lançados atualmente (Allison 2006; Polinsky, 2018; Satoshi Tajiri em PokeChaos, 2022; Tsunekazu Ishihara em PokemonOficialES, 2016; WatchMojo, 2023).

Quanto à construção do mundo de Pokémon, Allison (2006) argumenta que muitas das decisões iniciais estão vinculadas a particularidades da História e cultura japonesas. Além disso, a partir do livro-guia Poketto Monstā Zukan (Livro Ilustrado dos Pocket Monsters) lançado pela Nintendo em 1997, a autora descreve que o contexto ficcional do universo Pokémon define que estes seres existem há milhões de anos e o Japão tornou-se um dos países de vanguarda no estudo de pokémons no final do século XVIII. Um de seus pesquisadores, o Professor Carvalho, descobriu 151 espécies de pokémons e os categorizou de acordo com seu habitat. Contudo, ainda há muitos mistérios acerca dos pokémons e o Professor pede a ajuda dos jogadores para que computem tudo o que aprenderem sobre os pokémons em suas próprias bases de dados. É a partir desse histórico e mitologia construída que o contexto para os jogos de Game Boy é dado — e isso se traduz em muitas das mídias subsequentes, que contam com o personagem do Professor para dar o pontapé inicial nas jornadas dos protagonistas.

De acordo com Schell (2009), a transposição do universo Pokémon para o anime foi diferente de outras séries baseadas em jogos, pois refletia de perto as regras e mecânicas do jogo, além de basear as aventuras do protagonista na jornada que o jogador fazia no jogo de Game Boy. Assim, obteve-se uma grande sinergia entre as duas mídias, pois ao assistirem o anime, os jogadores conseguiam entender as melhores estratégias para usar no jogo. O mesmo pode ser dito do mangá e do jogo de cartas colecionáveis, que também replicavam as mecânicas do jogo eletrônico.

Parece claro que, originado de um jogo eletrônico, a construção de mundo de Pokémon deu-se em função das mecânicas do jogo: a própria existência dos pokémons serve o propósito dos jogadores de capturar, treinar, batalhar e trocar; a disposição geográfica do mundo e a mitologia são feitas para incentivar a jornada em busca de pokémons que possam ser capturados, treinados, enfrentados e trocados; os diferentes espaços ecológicos servem para diversificar os tipos de pokémons e, consequentemente, as estratégias de batalha para consegui-los. Aliás, são estas características que dão ao universo de Pokémon seu senso de mundanidade através das mídias e histórias — que podem ser incongruentes entre si. De fato, um olhar mais aprofundado irá revelar pouca coerência entre as narrativas: há personagens que aparecem em diferentes mídias, mas têm suas personalidades ou históricos mudados; personagens com personalidades, arcos narrativos e design extremamente similares, mas com nomes diferentes indicando se tratar de personagens diferentes; regras de mundo que não se mantém de uma mídia a outra. Por exemplo, no primeiro mangá, Pokémon Pocket Monsters, produzido por Anakubo, todos os pokémons são capazes de falar — algo que não acontece em outras histórias da franquia, que estabelecem um motivo extraordinário quando aparece um pokémon falante. Outro exemplo mais sutil é que, em alguns mangás, a pokébola (um dispositivo que serve para capturar e guardar um pokémon) é transparente, enquanto no anime ela é feita de cores sólidas. Tudo isso aponta para uma estratégia de construção de mundo em que cada história ou mídia é um universo paralelo dentro do universo transmidiático de Pokémon. A vantagem é que autores e produtores têm mais liberdade ao desenvolver as diferentes mídias da franquia, além de existirem mais portas de entrada para o público escolher. A desvantagem, porém, é que qualquer um que consuma mais de um produto corre o risco de ficar confuso com o funcionamento do mundo (exceto pelas regras que regem as batalhas pokémon e são consistentes através de todo este universo), além de impedir a plena exploração de narrativas mais complexas, que contem com a memória e a competência enciclopédica — que “fornece conhecimento prévio, ou mesmo presciência, fundamental tanto para reconhecer a ‘mundanidade’ quanto para aprofundar a imersão” (Maj 2015, 90) — do público para serem compreendidas.

Outro universo transmidiático popular que se mostra promissor para pesquisa é o que se originou da série animada Avatar: A Lenda de Aang, cujo sucesso do mundo ficcional com o público se prova através da arrecadação de mais de nove milhões de dólares para o desenvolvimento do RPG (role-playing game) de mesa oficial da franquia, tornando-se a maior campanha do tipo na plataforma Kickstarter (Carter 2021). Em 2002, Bryan Konietzko e Michael DiMartino foram convidados pelo chefe de desenvolvimento da Nickelodeon, Eric Coleman, para apresentar uma ideia de série animada. Coleman deu os direcionamentos: algo com aventura, ação, magia e um personagem criança ou não-humano como porta de entrada para a série. Konietzko e DiMartino começaram a vasculhar ideias e desenhos antigos, encontrando um promissor do que viria a ser, depois de muitos ajustes, os personagens Aang e um de seus companheiros animais, Momo, um híbrido de lêmure e morcego. A partir deste desenho que Avatar: A Lenda de Aang teve início, misturando-se à referências ficcionais e históricas dos criadores até que o tom e âmago da série fossem estabelecidos (DiMartino e Konietzko 2010). Avatar: A Lenda de Aang estreou no canal Nickelodeon em 2005 e, desde então, seu universo expandiu-se através de histórias em quadrinhos (HQs), outra série animada, jogos eletrônicos e analógicos, além de vários produtos e outras mídias previstas para serem lançadas nos próximos anos. Apenas em 2021, a Nickelodeon decidiu abrir uma divisão específica para gerenciar a franquia, a Avatar Studios, contando com Konietzko e DiMartino como co-diretores criativos.

O mundo de Avatar possui quatro países: Nação do Fogo, Nômades do Ar, Tribos da Água e Reino da Terra, cada qual com sua própria organização sociopolítica e todos inspirados em culturas asiáticas ou nativo-americanas. Neste universo, existem “dobradores” — pessoas capazes de controlar um dos quatro elementos clássicos (fogo, ar, água e terra) através de técnicas de artes marciais. Há apenas uma pessoa capaz de dominar todos os elementos, recebendo o título de “Avatar”, e que age também como ponte entre o mundo físico e o espiritual. O Avatar é responsável por manter o mundo em equilíbrio e seu espírito reencarna infinitamente, seguindo um ciclo natural entre as quatro nações. As mídias que compõem este universo estendem-se através de séculos de sua História. De acordo com DiMartino e Konietzko (2010), a construção do mundo de Avatar foi resultado de muitas influências e necessidades do projeto. Inicialmente, foram ideias narrativas que inspiraram a utilização dos elementos naturais e subsequente divisão geopolítica. Outros componentes do mundo surgiram a partir dos personagens, como o antagonista Zuko, cujo desenho inicial levou a uma ideia de arco que, por sua vez, resultou na criação de um aspecto cultural da Nação do Fogo: o Agni Kai, um duelo entre dobradores de fogo. Além disso, fatores técnicos influenciaram no processo inicial de desenvolvimento, ditando, por exemplo, detalhes na aparência de certos personagens e adereços — e consequentemente a construção de mundo atrelada a eles — para que se adequassem às limitações do processo de animação. Consultores especializados também contribuíram na construção de mundo: um professor de Kung Fu sugeriu atribuir diferentes estilos de luta marciais para cada tipo de dobra, e foi um professor de história chinesa especialista em caligrafia que fez todos os escritos que aparecem na série, cuidando para que tivessem estilos diferentes e historicamente acurados. Os criadores deixam claro, ainda, que os artistas envolvidos levaram em consideração aspectos como recursos naturais disponíveis no mundo ficcional e histórico dos ambientes da série para o desenvolvimento dos conceitos artísticos.

Não há indícios de que os criadores planejavam desde o início que este material fosse usado para além do escopo da série animada — pelo contrário, tudo indica que a construção de mundo foi aprofundada conforme as temporadas eram desenvolvidas, contando com percepções dos roteiristas, artistas e consultores através da visão de Bryan e Michael. Ainda assim, Konietzko e DiMartino construíram fundações sólidas para a expansão do universo Avatar em outras mídias, definindo bem um dos temas no coração da série: “pessoas não são boas ou más, mas estão em equilíbrio ou fora de equilíbrio” (DiMartino e Konietzko 2010, 147). Há outros pré-requisitos para qualquer expansão: a existência de um Avatar, um grupo central de amigos e professores para ajudá-lo em sua missão de manter o mundo em equilíbrio, conflitos políticos e batalhas de dobra épicas (Yee e DiMartino 2019). Os criadores também trabalharam de perto com os escritores das HQs e dos livros, direcionando-os e participando da elaboração dos arcos narrativos, porém ainda permitindo que tivessem liberdade criativa para sugerir suas próprias ideias dentro do mundo pré-estabelecido. Ainda assim, como Gene Yang e F. C. Yee — autores das HQs e dos livros, respectivamente — estavam desenvolvendo histórias ambientadas no período imediatamente posterior à série original ou no passado, a maior parte do mundo já estava construída e as adições diziam mais respeito ao preenchimento de lacunas narrativas, questões políticas da época retratada e detalhes culturais menores. É interessante notar que ambos declararam ser fãs da série mesmo antes de serem contratados (F.C. Yee em Braving the Elements Podcast 2024; Bryan Konietzko e Michael DiMartino em Comic Con Meta*Pod 2022; Yang 2012; Yang 2015).

No caso da série animada A Lenda de Korra, continuação de Avatar: A Lenda de Aang, o desafio foi outro. Konietzko e DiMartino voltaram como showrunners e convidaram Joaquim dos Santos e Ki-Hyun Ryu como co-produtores para ajudar a reimaginar o mundo de Avatar considerando o salto temporal de 70 anos entre os eventos das duas séries. Para isso, a História do mundo de Avatar precisou ser considerada desde o início e questões sobre o impacto do progresso e desenvolvimento industrial na sociedade foram levantadas. Com isso, outras influências misturaram-se a de culturas asiáticas e nativo-americanas usadas no universo, como o aspecto das cidades de Nova Iorque e Xangai nos anos 1920, a Era Industrial e a estética steampunk. Desta vez a construção de mundo originou alguns personagens: os irmãos Mako e Bolin serviram para ilustrar a mistura de famílias e culturas ocorrida nas últimas décadas; a ideia para Asami, uma não-dobradora, veio das tensões sociais entre dobradores e não-dobradores (DiMartino, Konietzko e Santos 2013). Em relação ao RPG de mesa Avatar Legends, desenvolvido pela Magpie Games, os mesmos pré-requisitos já mencionados se aplicam, sendo traduzidos nas mecânicas e contexto do jogo e, novamente, Konietzko e DiMartino participaram do desenvolvimento narrativo (Clark 2022). Sobre a presença constante dos criadores no andamento das diversas mídias, vale ressaltar que os jogos eletrônicos parecem ser os únicos que não passaram por este crivo (exceto por três deles) e, coincidência ou não, são mídias com pouca aprovação dos fãs — sem contar que vários estão fora do ar (Toso 2021). Contudo, desde a criação do Avatar Studios, Konietzko e DiMartino acompanham ainda mais de perto o desenvolvimento das mídias e já planejaram múltiplas possibilidades de exploração do universo de Avatar, mesmo que isso possa significar mudar alguns detalhes estabelecidos em mídias antigas — um processo conhecido como retcon, do inglês retroactive continuity (ou continuidade retroativa) em que autores mudam detalhes de trabalhos anteriores para que se tornem mais alinhados com os mais recentes (Comic Con Meta*Pod 2022).

Ao contrário de Pokémon, a franquia de Avatar utiliza uma estratégia que prioriza a coerência interna do mundo e da narrativa, contando com a visão dos criadores originais para manter a integridade do universo como um todo. A vantagem é um forte senso de mundanidade e imersão, além da possibilidade de tirar proveito pleno da narrativa serializada e da competência enciclopédica dos fãs. A desvantagem é que os autores agregados têm menos liberdade criativa (ainda que a pesquisa mostre a abertura de diálogo) e a franquia sofre uma dependência grande da supervisão de Konietzko e DiMartino.

Deste modo, conclui-se que a resposta de ambas as franquias para a pergunta do tópico anterior é a mesma: seus criadores construíram o mundo com a mídia original em mente e adequaram as demais ao que já estava estabelecido, ainda que tenham seguido estratégias diferentes para fazê-lo. Ambas enfrentaram os desafios de como manter a coerência interna e lidar com múltiplos escritores e artistas. Pokémon decidiu apoiar seu mundo nas mecânicas do jogo original e dar liberdade criativa em relação à narrativas, personagens e outros detalhes. Avatar, por outro lado, mantém rédeas curtas sobre o seu universo, recorrendo aos criadores originais para supervisioná-lo. Além disso, esta pesquisa aponta a hipótese de que o processo de construção de mundo original seguiu um fluxo livre de ideias ao invés de um passo-a-passo estruturado, e não há indícios de como exatamente as informações acerca dos mundos ficcionais, espalhadas em diferentes mídias, é gerenciada. Os dados foram organizados sistematicamente desde uma fase inicial ou apenas depois que os universos se expandiram? A equipe criativa tem acesso a esse material ou ele é intermediado pelos criadores originais? Ou ainda, será que a equipe precisa consumir todas as mídias a fim de obter as informações necessárias?

A construção do universo transmidiático The Rotfather

Diante de toda as pesquisas realizadas desde 2011 pelo grupo brasileiro G2E [Grupo de Educação e Entretenimento], da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acerca de projetos transmídia e a importância da criação de mundos para sua concepção e ramificação, houve uma hipótese que sempre preponderou: a importância de um desenvolvimento pautado em estratégias que considerassem uma dinâmica mercadológica sustentável tanto para seu criador e executor, quanto para o público-alvo interessado em consumi-la e mantê-la viável por um período de tempo, empregando pessoas e empresas, e gerando negócios através de sua propriedade intelectual.

Essas premissas levaram ao levantamento dos modelos de negócios mais empregados em franquias de sucesso e das formas de lançamentos de suas mídias constituintes para a criação de um modelo próprio.

A estratégia mais utilizada por grandes conglomerados de entretenimento, como Disney, foi a de elencar um carro-chefe, como um longa-metragem em animação, e a partir de seu sucesso ramificá-lo em diversos campos — da criação de diversas mídias ao licenciamento de produtos (Wasko, 2022; Carvalho, 1997).

Já outros caminhos estratégicos costumam vir de investidores que, observando determinado produto midiático em evidência e sucesso, como quadrinhos, jogos digitais ou livros, por exemplo, propõem estruturas narrativas transmidiáticas adicionais para se apropriar do sucesso deste centro e amplificá-lo aos demais públicos (Stein, 2016).

Estas estratégias são interessantes e muitas se tornaram icônicas, como as franquias da Marvel e DC Comics, Frozen e até mesmo Harry Potter, que iniciou como uma adaptação dos livros de J. K. Rowling para o cinema em uma ação crossmídia, para ramificar-se transmidiaticamente em outras vertentes posteriores. A questão é que, dependendo do produto carro-chefe que se torna o centro midiático e narrativo a ser estendido mercadologicamente, grande parte do mundo ficcional pode ou não estar construído. No caso de Harry Potter, os livros estruturaram um riquíssimo mundo a ser aproveitado e adaptado, assim como as HQs da Marvel. Mas em outras franquias, como Frozen, muito precisou ser criado posteriormente para dar suporte às ramificações midiáticas surgidas.

Pode-se citar outras franquias em modelos similares a de Harry Potter, como Game of Thrones e seu spin-off House of Dragon, que se apoiam nos diversos livros de George Martin, estruturados mercadologicamente sob a ótica de universos ramificados a partir de um carro-chefe (os livros), crossmidiaticamente adaptados em séries para o canal de streaming HBO MAX (com algumas adaptações por conta dos produtores), e transmidiaticamente em séries spin-offs adjacentes (que estão em pré-produção), e demais mídias, como jogos analógicos e digitais. Assim como pode-se citar a franquia transmídia surgida a partir do jogo digital casual Angry Birds, da empresa Rovio, que precisou estruturar um mundo adicional para explorar seu sucesso em ramificações adjacentes, como um filme de longa-metragem em animação sequencial, que incidiu em sucesso para um determinado público, mas decepcionou outro, levando a seguinte questão: por que isso ocorreu?

As pesquisas do G2E levam a crer que de nada adianta criar um universo às pressas para aproveitar o sucesso de determinado produto midiático, se as ramificações transmidiáticas criadas em outras vertentes não agradam seu público-alvo. Superficialidades são muito criticadas pelos públicos dos nichos de mercado em que as ramificações se inserem, através das diversas mídias sociais, que acabam por impedir que estas se sustentem, tanto em manutenção quanto em continuidade, como ocorreu com o terceiro filme da série Animais Fantásticos, de J..K. Rowling, que recebeu críticas pela superficialidade e oportunismo no que tange a temática LGBTT+ (Dos Santos, 2020)

Portanto, estas constatações levam à hipótese de que, se há interesse mercadológico em ramificar determinado produto midiático central de sucesso, a construção de seu mundo deve ser objeto também de sua pré-produção. Porém, isto implica em tempo adicional de projeto e estruturação de equipe para a construção do mundo, evitando que as ideias fiquem à mercê de um autor, discutido ao longo deste artigo quanto às fragilidades deste modelo “monocriativo” (conceito criado pelo grupo).

Schell (2009) aponta que mundos transmidiáticos têm em comum: uma mídia como carro-chefe; são intuitivos; um único indivíduo (ou no máximo, um pequeno time) em seu centro para levar adiante a visão criativa; permitem múltiplas histórias; fazem sentido a partir de qualquer porta de entrada; e são sobre a realização de desejos. Renger (2020) e diversos autores citados em sua pesquisa concordam com muitos desses pontos, especialmente sobre a existência de um indivíduo que mantém a “visão do autor”.

No que tange a investimentos, sabe-se que esta hipótese não é interessante para determinadas investidas mercadológicas que se baseiam em metas de lançamento rápido de ramificações a partir de um sucesso emergente central. Estas se preocupam apenas com a venda de um número determinado de cópias das ramificações, sem expectativas de continuidade, focando apenas em metas de um lucro estimado pontual — cunhada de “estratégia gafanhoto” pelo grupo G2E —, que beneficia por algum tempo um mercado até que outra franquia nos mesmos moldes substitua a que estava em evidência.

Já projetos que visam a fidelização de fãs por vários anos pedem que haja investimento na criação de mundos robustos e bem estruturados, por priorizarem empregabilidade e lucro constante nas esferas criativas do projeto e dos demais negócios articulados pelas ramificações e licenciamentos — entenda-se aqui uma cadeia de indústrias e serviços na área da economia criativa e adjacências.

Logo, compreende-se que, na criação inicial de uma franquia transmídia, o primeiro passo estratégico a ser pensado deve ser a delimitação do objetivo desta enquanto negócio. Ou seja, o que se pretende fazer enquanto ramificação transmidiática a partir de um produto que fez sucesso e está em evidência. Já quando se parte do início da criação de um produto midiático, deve-se fazer a pergunta sobre a sua finalidade: ser pontual ou ramificar-se futuramente?

Este direcionamento inicial responde uma pergunta que sempre surge quando discute-se a importância e finalidade de projetos transmídia: todo produto deve virar um projeto transmidiático posteriormente? A resposta é: tudo depende do que se pretende mercadologicamente com este produto midiático. Torná-lo pontual ou ramificá-lo para obter mais fontes de lucro? Se a resposta for ramificá-lo, com qual objetivo e investimento? Qual o nível desejado de atendimento dos interesses do público-alvo?

Esta premissa leva a outra questão sequencial, e que também é objeto de estudo do G2E, mas que neste artigo não será aprofundada: qual a melhor estratégia para começar uma franquia transmídia? A criação de uma mídia carro-chefe estratégica para fazer sucesso inicial, e só após isto criar as demais ramificações midiáticas? Ou a criação e estruturação de diversas mídias ramificadas de um mesmo centro narrativo, concomitantemente, para que possam ser lançadas sem aguardar o sucesso de um carro-chefe? A questão aqui, no que tange a construção de mundos, é a de que para a primeira pergunta, as questões de decisão da criação ou não do mundo e sua robustez dependem das questões elencadas nos parágrafos anteriores sobre o que se pretende mercadologicamente com a franquia criada. Já no caso da segunda pergunta, há a necessidade da construção de um mundo robusto, sem o qual as diversas mídias não podem ser criadas adequadamente, uma vez que neste caso os fãs são alçados a um grau maior de importância no que se refere a fidelização.

As hipóteses e reflexões aprofundadas acima derivam de uma pesquisa teórico-prática que desenvolve, desde 2011, a franquia transmídia The Rotfather (todos os direitos reservados), dentro dos aspectos de estruturação mercadológica, que prevê a criação de diversas mídias e sistema de licenciamento concomitantes, que se apoiam em um mundo robusto ramificado para diversos públicos-alvo, descentralizado de um um produto carro-chefe midiático de sucesso, com o intuito de articular e viabilizar um modelo de negócios que não precisa de um grande conglomerado de entretenimento ou investidor para criá-lo.

Ou seja, simula-se a participação de diversas empresas cooperadas que criam produtos ramificados de um mesmo centro narrativo. Este é estruturado a partir das necessidades e interesses do público-alvo que a mídia de cada empresa precisa alcançar, sem obrigar a migração para outra mídia e tendo em si mesma uma estrutura de metas viáveis a serem alcançadas dentro do seu nicho de mercado.

Figura 01 — Produtos dos nichos de mercado da franquia The Rotfather.

Portanto, não há carro-chefe no centro do projeto, mas sim um centro narrativo/mundo, ou seja, seu storyworld, conforme a imagem abaixo:

Figura 02 — Sistema The Rotfather. Todos os direitos reservados.(Instagram, 2024)

O método The Rotfather de construção de mundos

Partindo das convenções de construção de mundo e do estudo de universos transmidiáticos como Pokémon e Avatar, os pesquisadores-produtores do projeto The Rotfather perceberam que as informações, apesar de úteis, não forneciam bases o suficiente para subsidiar o universo transmidiático do projeto. Trabalhos acadêmicos acerca da transmídia costumam deixar claro a importância do mundo (apesar de às vezes tratarem a construção do mundo como as mídias que compõem o universo transmidiático ao invés das estruturas que compõem o mundo em si), mas suas diretrizes sobre como realizá-lo são breves e, por vezes, de difícil assimilação e prática — especialmente para as particularidades de expansão mercadológica de um projeto como o The Rotfather.

Por este motivo, e a partir dos estudos de Schell (2009) e Renger (2020), optou-se também pela organização de um time colaborativo para a criação do mundo, evitando uma estrutura “monocriativa”, e ganhando em amplitude de discussão e estruturação de ideias .

Um aprofundamento sobre construção de mundo que levava em conta a existência de universos transmidiáticos trouxe os estudos de Wolf (2012), que escreve que mundos imaginários funcionam através de sistemas, considerados: espaço (organizado através de mapas); duração ou períodos (organizados através de linhas do tempo); personagens (organizados através de genealogias); natureza; cultura; linguagem; mitologia; e filosofia. Os três primeiros são considerados elementares enquanto os outros cinco servem de pano de fundo e nem sempre aparecem, mas todos devem ser interligados. São conceitos interessantes, mas parecem contra-intuitivos para organizar um mundo colaborativo como o The Rotfather. Outras autoras resumem esses itens em três: mythos (conflitos, personagens, histórias e rumores, que provém o pano de fundo de tudo), topos (ambientação histórica e geográfica) e ethos (as premissas éticas e códigos morais) (Tosca e Klastrup 2020 apud. Renger 2020). No entanto, estes se mostram simples e vagos demais.

Wolf (2012) defende que a primeira mídia de um universo transmidiático a ser lançada — e, em teoria, experienciada pelo público — precisa ser sólida, pois será julgada por seu próprio mérito e irá apresentar o mundo imaginário pela primeira vez. O autor ainda diz que uma experiência inicial negativa pode ameaçar o lançamento das mídias subsequentes. Entretanto, como discutido anteriormente, não há como prever a ordem em que o público irá consumir as mídias, ainda mais quando estão todas sendo produzidas ao mesmo tempo. Para o The Rotfather, isso significa que todas as mídias devem atingir um nível de qualidade em que possam servir como porta de entrada e estimular a produção e consumo das demais. Considerando que

histórias envolvem tempo, espaço, e causalidade, toda história implica um mundo na qual ela ocorre [e portanto, mundos podem existir sem histórias, mas histórias não podem existir sem um mundo” (Wolf 2012, 29)

ficou claro que o caminho para o objetivo do projeto era construir um mundo consistente, que pudesse originar e abrigar múltiplos personagens e histórias que pudessem se sustentar sozinhas. O desafio era fazer isso em um projeto colaborativo, em que todos da equipe deveriam ser capazes de compreender o mundo ficcional e trabalhar com ele com certo grau de conforto. A resposta encontrada foi tratar a equipe como os primeiros fãs do projeto, despertando nela o impulso da competência enciclopédica e facilitando o acesso ao mundo. Para isso, fez-se necessário uma abordagem estruturada de construção de mundo, decidindo-se criar um “perfil de mundo” de rápida compreensão.

Passo 1: Definindo o conceito

O passo inicial para a construção de mundo do universo transmidiático The Rotfather foi estabelecer os temas que a equipe achava condizentes com a premissa do projeto: uma sociedade formada por animais de esgoto, na qual operam máfias que traficam açúcar e que é ambientada em Nova Iorque, no início do século XX. Todos os membros do grupo participaram de uma sessão de brainstorm coletivo, na qual foram definidos dois valores principais do universo (sobrevivência e ganância), a partir dos quais ramificaram-se subtemas para direcionar a criação do mundo, das tramas e dos personagens.

Figura 03 — Mapa mental com o resultado do brainstorm coletivo.

Passo 2: Encontrando um modelo

Com o conceito encaminhado, a equipe da célula de Storyworld ficou responsável por encontrar um modelo para estruturar a construção de mundo. Sem encontrar um modelo pronto, o Storyworld propôs-se a criar um próprio e, considerando o objetivo de criar um mundo tão rico e complexo quanto o real e, ao mesmo tempo, simples de se entender e trabalhar, a equipe procurou inspiração nos chamados “jogos de simulação”, particularmente aqueles que simulam a construção de impérios. Assim, encontrou-se nas mecânicas de Sid Meier’s Civilization VI um modelo em potencial.

Sid Meier’s Civilization VI é um jogo de estratégia baseado em turnos, onde os jogadores assumem o papel de líderes de civilizações e guiam seu povo através das eras. O objetivo é formar um império poderoso, expandindo territórios, desenvolvendo tecnologias e políticas cívicas e interagindo com outras civilizações até alcançar um dos seis tipos de vitória.

Tipo de Vitória Como ganhar
Militar Capturando as capitais dos oponentes, o que requer bom gerenciamento de recursos naturais e financeiros, além de foco em desenvolvimento tecnológico e militar.
Cultural Tornando-se o centro cultural do mundo, o que é medido em termos de turismo e influência cultural sobre as outras civilizações. Requer promover a própria cultura através de obras de arte, construção de maravilhas, expansão religiosa, rotas de comércio e políticas cívicas.
Científica Dominando o espaço sideral, o que envolve completar várias etapas de pesquisa científica e projeto espacial. Requer foco em acúmulo de ciência para desbloquear tecnologias, além de recursos financeiros para custear os projetos espaciais.
Religiosa Tornando a própria religião dominante em todas as civilizações, através do uso de missionários e apóstolos, que são adquiridos com fé, para converter cidades. É necessário gerenciar o acúmulo de fé, combater a expansão de outras religiões e entender o melhor momento para expandir sua influência religiosa.
Diplomática Ganhando apoio de outras civilizações na Organização das Nações Unidas (ou corpo diplomático similar) através da diplomacia, o que envolve formar alianças, prover ajuda humanitária e, no geral, manter uma boa reputação entre todas as civilizações.
Pontuação Se nenhuma das vitórias acima for conquistada por uma civilização até o limite de turnos do jogo, a vitória é decidida pela maior pontuação, que é uma medida do sucesso geral de cada civilização em diversas áreas, incluindo tamanho do território, progresso tecnológico e cultural, construção de maravilhas e riqueza acumulada.
Tabela 03 — Tipos de vitória no jogo Sid Meier’s Civilization VI.

Cada civilização disponível possui habilidades específicas que a tornam mais forte em determinadas áreas, facilitando o caminho para certos tipos de vitória. Ainda assim, a partir da tabela é possível ver que nenhuma vitória é conquistada desenvolvendo-se em apenas uma área do jogo — todas as mecânicas estão interconectadas, influenciando-se mutuamente, de modo similar ao que pode-se observar no mundo real. Além disso, a geografia é um elemento-chave, pois afeta as estratégias de jogo ao prover recursos naturais importantes ou obstáculos naturais a serem ultrapassados.

Assim, concluiu-se que as mecânicas que regem o jogo Civilization VI ofereciam um sistema estruturado para pensar em construção de mundo, sendo transpostas para um modelo facilitado. Este modelo não apenas leva em conta o que foi apreendido com o jogo, como também assimila o que foi estudado até então. Foram identificadas sete áreas para compor o “perfil de mundo”: Regras do Universo, História e Geografia, Política, Ciência e Tecnologia, Cultura, Religião, e Economia. Utilizando-se uma analogia com a estrutura de uma casa para explicar o modelo, tem-se que as regras formam a fundação, na qual se apoiam os pilares estruturais (as seis outras áreas) que sustentam o mundo ficcional.

Figura 04 — Esquematização do método The Rotfather para construção de mundo.

Os pilares estão conectados, então, ao erguer um deles, deve-se refletir como cada escolha afeta os outros pilares.

Passo 3.1: Preenchendo o perfil de mundo

Como a ideia para o perfil é servir como uma planta baixa para que qualquer membro do projeto consiga assimilar o senso de mundanidade do The Rotfather e, assim, tenha certo grau de independência para “decorar” os cômodos — que representam as diferentes histórias e mídias —, o Storyworld preocupou-se, também, em erguer os pilares levando em consideração necessidades que poderiam surgir a partir das histórias. Para isso, incorporou-se elementos contrastantes na construção de mundo, que pudessem apoiar conflitos, narrativa e visualmente — afinal enredos dependem de conflito.

Assim, estabeleceram-se as Regras do Universo, que foram subdivididas em três tipos. As regras narrativas ditam questões extra-diegéticas de como a equipe deve abordar os aspectos ficcionais do projeto. Considerando que os personagens de The Rotfather são animais antropomorfizados, estabeleceram-se regras biológicas para definir quais características animais seriam mantidas ou adaptadas. Por fim, as regras sociais determinam quais comportamentos são aceitáveis ou proibidos nessa sociedade.

Depois das regras, passou-se ao pilar de História e Geografia, iniciando-se por definir o local onde as histórias se passariam: uma galeria de esgoto em Nova Iorque, com quatro níveis de elevação, parcialmente iluminada e com um “rio” proveniente de água da chuva que cortaria a cidade, denominada Faux City. A adição dos níveis foi feita com o contraste visual entre alto/baixo e claro/escuro em mente, ilustrando o contraste narrativo entre rico/pobre e seguro/perigoso, provenientes dos conceitos iniciais. Como a premissa do universo transmidiático é que diferentes histórias possam acontecer tanto simultaneamente quanto em épocas diferentes, definiu-se o tempo presente do universo como 1933, para servir de referência. Também definiu-se que o povoamento de Faux City começou em 1848. A partir destas duas datas, criou-se uma linha do tempo inicial, traçando o desenvolvimento e povoamento da cidade, além de eventos que afetaram sua sociedade nesse intervalo de tempo. Com isso, tinha-se um mapeamento dos bairros, pensados também com contraste em mente. A cada um atribuiu-se características que o punham em oposição com outros bairros e que o transformava em uma potencial “arena” para tipos específicos de histórias (adaptando a teoria de Truby). Por exemplo, os bairros Toilecartier e Sugar Hill formam os pontos mais elevados da cidade e ficam diametralmente opostos; um é banhado por claridade, o outro fica nas sombras; um abriga os mais ricos, o outro os mais pobres; um é limpo e planejado, o outro é sujo e desorganizado.

Por se tratar de um mundo em miniatura (ou minimundo), o pilar de Política precisou preocupar-se em definir um sistema político que fosse administrável nessa realidade, chegando-se à conclusão que Faux City seria uma cidade-estado. Como a premissa de The Rotfather presumia a existência de máfias, elaborou-se quais e quantas atuariam na cidade e suas relações de poder, sempre pensando em termos de contraste. A existência de máfias exige a presença de uma força policial, que também foi definida. Estas organizações, por sua vez, precisavam de um histórico entrelaçado com a História da cidade, então voltou-se ao pilar de História e Geografia para fazê-lo.

As regras biológicas já definiam as espécies principais do universo: ratos, baratas, aranhas e sapos. O pilar de Ciência e Tecnologia serviu para fornecer um olhar mais aprofundado acerca delas, determinando, entre outras coisas, como seus organismos funcionam. Neste pilar também definiu-se o nível tecnológico dessa sociedade em comparação com os humanos da mesma época e como a tecnologia é adaptada para o minimundo. Com isso, pode-se voltar ao pilar de História e Geografia para definir como os cidadãos de Faux City se locomovem pela cidade.

O pilar da Cultura definiu aspectos importantes da visão filosófica dessa sociedade em termos de relações de gênero, interespécies e homoafetivas, além de sua percepção do macromundo. Aqui, também definiu-se quais eram as fontes de entretenimento na cidade, as lendas urbanas, os hábitos alimentares específicos, as datas comemorativas, como a moda se adaptava ao corpo das espécies e quem eram as personalidades famosas da cidade. Como o universo é localizado em Nova Iorque, procurou-se replicar sua multiculturalidade, o que levantou questões acerca de imigração e diferenças culturais, bem como a relação entre as entidades políticas do minimundo e sua nacionalidade. Assim, novamente, voltou-se aos pilares anteriores para verificar como essas adições os afetavam ou indicavam a necessidade de novas informações.

Para o pilar da Religião, decidiu-se adaptar algumas das religiões humanas mais influentes para o contexto do minimundo: Cristianismo, Judaísmo, Islamismo e Budismo. As religiões foram renomeadas e seus sistemas de crença adaptados para comportar a percepção dos seres do minimundo e sua História. As religiões foram pensadas, também, como ferramentas para aprofundar a visão de mundo de personagens que fossem adeptos a elas, de modo que pudessem se alinhar ou ir contra a visão filosófica mais ampla da sociedade.

Por conta das particularidades do minimundo, precisou-se pensar em como tudo era construído e quais materiais estariam disponíveis. Isso entrou no pilar da Economia. Ficou definido que os habitantes de Faux City tirariam a maioria de sua matéria-prima do lixo humano e isso ditou os meios de produção utilizados, além da estética no pilar da Cultura. Também foi necessário pensar em profissões específicas, necessárias para o minimundo existir, como os coletores de matéria-prima e os cientistas que adaptam a tecnologia humana. Como a premissa do projeto lançava a ideia de tráfico de açúcar, foi preciso estabelecer como o mercado clandestino da cidade funcionava, expandindo o número de drogas disponíveis e adicionando outras áreas de contrabando. Com isso, fez-se necessário estabelecer os efeitos das diferentes drogas e organizar o esquema de crimes entre as máfias, estabelecendo áreas de atuação e zonas de controle na cidade. Além disso, criou-se uma moeda específica, baseada no modelo estadunidense do dólar.

Com todos os pilares razoavelmente preenchidos, pode-se voltar ao pilar de História e Geografia e adicionar pontos de referência no mapa, como igrejas, empresas, pontos turísticos, etc.

Vale ressaltar que pesquisas extensas foram elaboradas para a construção do mundo, nas diferentes áreas contempladas no perfil.

Passo 3.2: Organizando o perfil de mundo

Concomitantemente ao preenchimento do perfil, a equipe do Storyworld pensou em maneiras de organizar este conteúdo na medida em que era criado, optando-se pela utilização da plataforma Notion. Esta plataforma permitiu a criação de uma wiki interconectada através de hiperlinks, além de possuir uma ferramenta de pesquisa para facilitar a busca por palavras-chave. A wiki foi dividida em setores e pensada de modo a permitir a inclusão de informações de maneira rápida ao longo da vida do projeto, sendo, então, compartilhada com todos os membros do projeto.

Passo 4: Histórias e personagens

O processo de construção do mundo The Rotfather levantou ideias de personagens e histórias. Por exemplo, a existência das máfias pressupõe a criação de chefes e subordinados, e suas relações dão origem a histórias de rixas entre as facções. Posteriormente, todo personagem criado partiu do questionamento de como ele ou ela se encaixava nesse mundo, e o senso de mundanidade criado direcionava as escolhas do perfil de personagem.

Ter as regras e pilares bem estruturados permitiu que escritores e artistas pudessem abordar suas mídias com segurança. Como Sanderson (2020) explicou, eles podiam escolher alguns pontos de um ou mais pilares e focar neles, o que levou a uma variedade de temas abordados nas histórias, além de usarem as oposições visuais e narrativas estabelecidas para aprofundá-los. Por exemplo, um dos arcos da websérie utiliza as oposições entre Toilecartier e Sugar Hill como pano de fundo para ilustrar a vida interior da protagonista. A série foca nos pilares de Política e Economia para estruturar o arco narrativo. Uma das HQs foca em Política e Cultura, outra em Economia e Cultura.

Esse método estabelece as bases de cada pilar, mas deixa os pequenos detalhes a serem investigados pelos autores das mídias. Esses detalhes, então, são adicionados facilmente a wiki. Isto dá liberdade para os membros do projeto participarem da construção do mundo, sugerindo ideias. Por exemplo, os meios de produção estabelecidos pelo Storyworld e Artworld fizeram com que um dos membros tivesse a ideia de produzir peões específicos do minimundo, o que, por sua vez, adicionou uma camada cultural ao universo quando fez-se necessário introduzir um contexto para a batalha de peões em Faux City.

Passo 5: Replicando o modelo

A construção de Faux City abriu o mundo do The Rotfather para além das paredes da galeria de esgoto. Com a lógica interna do universo estabelecida, o Storyworld percebeu que o modelo poderia ser replicado para a criação de outras cidades no universo, com apenas algumas alterações nos pilares para diferenciá-las entre si. Assim, criaram-se as cidades de Heritown, na Austrália, Paradis, Petit Paris e Port de la Lune, na França, Roccaforte Palermo e Sotto Pellegrino, na Itália, Hebiyama e Shōkibo Osaka, no Japão, entre outras. A ideia é que o universo possa ser expandido indefinidamente entre os diferentes continentes do mundo, o que permite, também, a participação de equipes de vários países em futuras expansões da franquia.

Conclusão

Pensar em uma franquia transmídia, é pensar em ramificações diversas provenientes de uma ampla narrativa em muitas alternativas midiáticas e, também, de licenciamento, se quisermos entrar na amplitude de alternativas que o contexto mercadológico pode oferecer.

E justamente por falar em amplitude é que se pensa na qualidade que esta deve ter. Logo, entende-se que um mundo crível e bem estruturado para a existência de personagens e tramas fundamente não apenas as bases do que se cria, mas possa servir também como instrumento estratégico para novas ramificações, como um bairro que ainda não foi explorado, uma determinada religião ainda sem um spin-off para apresentá-la, etc, permitindo encontrar novos nichos e públicos-alvo a serem explorados e atingidos, em infinitas possibilidades mercadológicas.

De forma positiva, esta direção permite estruturar um projeto transmídia que subsidia onde tudo acontece e ainda apoia o “como e o porquê tudo pode acontecer” de forma mais interessante, independente da estratégia da opção, ou não, pelo pontapé inicial da franquia através de um produto midiático carro-chefe.

Negativamente, sempre se falará que há um investimento de tempo e dinheiro que, embora subsidie qualidade e apoio robusto às mídias, pode não interessar a investimentos ávidos por retornos rápidos e mensurados em uma escala de metas pautadas, geralmente, em um perfil de público que se permite experienciar quantidade e variedade de produtos medianos que podem correr o risco de não agradar. Ou seja, esta cultura do descarte rápido vai contra a demora que pode ocorrer na construção de mundos amplos e bem estruturados que se preocupam com a fidelização de fãs.

Neste sentido, não cabe aqui julgar as estratégias de empreendimentos, empresas e investidores, mas subsidiá-los a partir da pesquisa teórico-prática do projeto The Rotfather, que está sendo colocada no mercado, para apresentar os benefícios do emprego da construção de mundos aprofundados no contexto das criações.

O projeto The Rotfather, em seu desenvolvimento metodológico de pesquisa, estrutura-se dentro de um sistema de planejamento de curto, médio e longo prazo, explorando múltiplas ideias de ramificação que ora se apoiam no que já está criado no mundo, ora pedem mais ampliações deste para novas ramificações pautadas em públicos-alvo e nichos que possam ser explorados mercadologicamente.

Este é um método que propicia a co-criação colaborativa, permitindo a proliferação de ideias e expansão do mundo ficcional para além do que seria possível com um único autor. Deste modo, ele desafia essa convenção que acredita que a coerência e integridade de um universo transmidiático só poderia ser alcançada a partir da supervisão dos autores originais. Ainda assim, o método não ignora as convenções de construção de mundo de obras monomidiáticas, mas prevê suas necessidades enquanto propele o mundo ficcional para a dianteira do processo criativo e permite que ele guie o desenvolvimento narrativo e origine os personagens — afinal, não são pessoas reais frutos do seu meio, ao menos em grande parte?

Por fim, observando todas as premissas aqui descritas, pode-se dizer que o projeto The Rotfather estará sempre se ampliando, crendo que suas extensões por esta vertente metodológica projetual apenas se finde quando seus criadores assim determinarem, explorando, com isso, a hipótese de que ramificações transmidiáticas podem ser infinitas quando pautadas em criações de mundos.

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