Abstract
António Lopes Ribeiro was a major figure in Portuguese cinema for over three decades. In this paper, I intend to present and analyse the projects in which he was involved with the aim to create a national cinema with international projection, during the 1940s, and in particular during the Second World War. In order to guarantee the economic sustainability of the Portuguese film industry and continuous production, Lopes Ribeiro believed that distribution needed to be expanded beyond the traditional markets, namely, the colonies and the Portuguese emigration communities in Brazil. I will demonstrate how these internationalisation plans were only able to be materialised with the direct support of political power, examining his connection to António Ferro, the director of the organisation that oversaw cinema, the National Propaganda Secretariat/ National Secretariat of Information. Finally, I will look at the reasons why his projects for Portuguese cinema failed. Methodologically, this research draws on documents from the National Secretariat of Information and the Salazar archives, as well as other primary sources, mainly newspapers and magazines specialising in cinema, as well as a set of letters written by Lopes Ribeiro to António Ferro, from the Quadros Foundation.
Keywords: António Lopes Ribeiro, António Ferro, Portuguese cinema, International distribution, Nationalism.
Introdução
Neste artigo, procuro reconstituir a trajectória de António Lopes Ribeiro (1908-1995) e António Ferro (1895-1956) no cinema português.
O primeiro, realizador e produtor, deixou uma marca no cinema nacional: Henrique Alves Costa, na Breve História do Cinema Português, constatava isso mesmo, escrevendo que “durante cerca de três décadas, Lopes Ribeiro estará presente em cada dobrar de esquina do cinema português” (1978, 73). Já Leitão Ramos destaca que “muitos dos caminhos institucionais que a nossa cinematografia trilhou foram por ele influenciados” (2011, 355). Quanto a António Ferro, ficou célebre sobretudo como o homem da propaganda de Salazar e do Estado Novo, enquanto director do organismo para tal criado, logo em Setembro de 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), a partir de 1944 reconvertido em Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI). Verdadeiramente, este foi o órgão responsável pela política pública cinematográfica, assumindo de forma clara uma leitura política e ideológica do sector.
Desta forma, as relações entre os dois homens são examinadas, uma vez que Lopes Ribeiro foi, graças a Ferro, e durante mais vinte anos, o cineasta ‘oficial’ do regime. Sigo aos seus percursos no campo cinematográfico, desde meados da década de 1920 até finais da II Guerra Mundial, apresentando e analisando os projectos e iniciativas em que se envolveram com o intuito de criar um cinema português, e uma indústria cinematográfica nacional, que tivesse capacidade de projecção internacional, algo que Lopes Ribeiro entendia estar intimamente associado ao Brasil, a Espanha e à América Latina, mostrando as razões para o seu fracasso.
Metodologicamente, recorro a documentos do fundo do Secretariado Nacional da Informação e do Arquivo Salazar na Torre do Tombo, bem como a outras fontes primárias, sobretudo hemerográficas, nomeadamente o Diário de Lisboa e as crónicas que Lopes Ribeiro aí escreveu no início da carreira, e a revista Animatógrafo, dedicada ao cinema, que o cineasta fundou e dirigiu, além de um conjunto de cartas de Lopes Ribeiro dirigidas a António Ferro, provenientes da Fundação António Quadros. Tratando-se de um conjunto de fontes históricas profundamente comprometidas, reveladoras da perspectiva do realizador, a análise do discurso foi utlizada como metodologia preferencial.
O texto organiza-se em três secções. A primeira retrata a entrada de Lopes Ribeiro no mundo do cinema, de forma a contextualizar a posição que alcançou posteriormente no campo artístico e na estrutura do Estado Novo. Abordo a digressão de 1929 pelos centros cinematográficos europeus, evidenciando como essa viagem o mudou e ao cinema que depois se fez em Portugal. Segue-se uma perspectiva da relação do realizador com o regime, através de António Ferro, que marcou de forma indelével a sua própria trajectória. Por fim, na terceira secção, examino os projectos lançados no período da II Guerra Mundial, analisando as razões para o seu insucesso.
Da crítica à realização
Oriundo de uma família ligada à cultura e às artes, António Lopes Ribeiro cedo se envolveu na vida cinematográfica portuguesa. Muito jovem, com apenas 18 anos, começou uma carreira como crítico de cinema na imprensa escrita – primeiro no jornal humorístico Sempre Fixe, em 1926 e, depois, a partir de Outubro do ano seguinte e até 1930, no Diário de Lisboa – e o seu estilo, irónico, incisivo e provocador, cedo o fez notado. Foi ainda tradutor e legendador dos filmes da Paramount e membro do grupo do cinema São Luiz, um conjunto de homens que se envolverão fortemente com o projecto cinematográfico nacional1. Em 1928, começava a sua carreira como realizador, com Bailando ao Sol e os documentários Quedas de Água do Lindoso e Uma Batida em Malpique, este último produzido ao abrigo da Lei dos 100 Metros e estreado em Janeiro de 1929.
João Bérnard da Costa integra-o numa “geração de jovens furiosamente cinéfila” (1991, 38), da qual faziam parte José Leitão de Barros, o seu eixo impulsionador, Chianca de Garcia, Arthur Duarte, Cottinelli Telmo ou Jorge Brum do Canto. Todos desejavam uma indústria cinematográfica caracteristicamente portuguesa, mas de nível europeu, que lhes permitisse afirmarem-se artisticamente. E percebiam os desafios com que se debatiam:
A indústria cinematográfica não tem passado entre nós de algumas tentativas balbuciantes, a maior parte das quais morrem à nascença por falta de recursos que lhes garantam uma via independente e um êxito seguro. […] Falta-nos dinheiro, falta-nos preparação técnica, falta-nos educação artística (Ribeiro 1929a, 4).
Desta forma, em Março de 1929, Lopes RIbeiro partia numa viagem de estudo pelos principais centros cinematográficos europeus, contactando com a vanguarda artística do velho continente, que entendia o cinema como “um meio revolucionário, carregado de potencialidades expressivas” (Pereira 2013, 96). Parte significativa dessa jornada ficou registada nos artigos que foi publicando no Diário de Lisboa. Usando a descrição feita pelo próprio Lopes Ribeiro (1983), sabemos que o périplo começou em Paris, nos estúdios de Joinville e de Montmatre, seguindo para Berlim, a poderosa capital cinematográfica da Europa, onde conheceu os estúdios da UFA, e depois para a Checoslováquia, Jugoslávia e Polónia, visitando o Dan Karen Studio em Varsóvia. No artigo que enviou para o Diário de Lisboa, a comparação que fazia entre os dois países mostrava que as condições técnicas dos polacos não excediam as dos portugueses:
Tudo ou quase tudo é provisório, ocasional […]. Nós, que olhamos com mais simpatia estes laboratórios quase de amador […], constatamos com espanto, quase com vergonha, que os cineastas polacos não dispõem de mais material que os portugueses. Mas sabem servir-se dele e, principalmente – servem-se dele. […] Em Portugal, só com o que temos ou com bem pouco mais, podem fazer-se filmes tão bons ou até muito melhores (Ribeiro 1929b, 3).
Graças à autorização especial concedida pelo general José Vicente de Freitas, ministro do Interior no governo da Ditadura Militar, a viagem prosseguiu até Moscovo, onde Lopes Ribeiro se instalou no VOKS, o departamento criado em 1924 para acolher agentes culturais estrangeiros de visita à capital. Conheceu os estúdios da Sovkino e da Mejrabpom, e contactou com Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. No regresso, passou por Viena – onde se cruzou com o cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer – Milão e Nice, terminando em Barcelona, nos estúdios da Orfea.
A viagem permitiu-lhe contactar com distintos modelos de produção cinematográfica: de um lado, um movimento internacional de pessoas e capitais, que procurava a produção de filmes com grande apelo comercial que pudessem ter sucesso nos diferentes mercados europeus, projectos que permitissem “an economically viable transnational European film trade” (Higson 2010, 71); do outro, o surgimento de cinematografias nacionais acompanhadas por medidas comerciais proteccionistas, que se assumiam como instrumento de propaganda, cultural e política, dos estados.
A digressão europeia marcou de forma indelével o jovem cinéfilo: em Paris, tinha assistido ao primeiro talkie, The Jazz Singer, e a sua defesa do cinema como uma arte muda caiu por terra:
Em Portugal […], a boa nova foi acolhida com um cepticismo irónico – e confrangedor. […] A atitude pública manteve-se em guarda, desconfiada, incrédula, quase agressiva. Zombou-se dos que, tendo tido ocasião de ver e ouvir, lá fora, ‘os tais filmes sonoros’, depunham armas e argumentos perante uma vitória indiscutível, esmagadora, universal, gritando o seu entusiasmo – e a sua fé numa nova e redentora arte (Ribeiro 1930, 3).
Marcou também o cinema que em Portugal se fez nos anos seguintes, com Lopes Ribeiro a perseguir o sonho de criação de uma estrutura profissional de cinema: uma indústria cinematográfica de produção contínua de filmes sonoros que mudasse o panorama nacional onde, apesar do aparecimento de novas distribuidoras e produtoras portuguesas2, do aumento rápido de salas de cinema e da multiplicação de revistas especializadas3, o consumo cinematográfico se centrava na produção estrangeira, sobretudo europeia, que correspondia a cerca de 40 a 50% do que se via, em grande medida vinda da Alemanha e da França, e norte-americana. Um panorama que levou Luís de Pina a considerar que “o público, durante quase três décadas, apenas vê o produto estrangeiro: o cinema são os outros” (1986, 57-58).
O realizador tinha compreendido rapidamente que a nova realidade do cinema sonoro implicava uma subida acentuada dos custos de produção: “Comércio, indústria e arte são […] peças da mesma máquina, e todas essenciais” (Ribeiro 1933a, 5). Considerando a necessidade de qualidade técnica, mas também a rentabilidade comercial, e sabendo que o mercado de colocação natural dos filmes portugueses era reduzido – o mercado interno, as colónias e as comunidades de emigração portuguesa no Brasil – a indústria cinematográfica nacional pela qual pugnava não se deveria conformar com fronteiras, devendo produzindo filmes portugueses que fossem também obras internacionais: “Digo aqui filme internacional na acepção de filme susceptível de se exibir com agrado perante o público de nações diferentes, e portanto de diversa sensibilidade e educação” (Ribeiro 1933b, 5).
A viagem de 1929 tinha mostrado a Lopes Ribeiro o que se fazia na URSS e na Itália, em particular as potencialidades políticas do cinema, que podia ser transformado num “instrumento dócil e poderoso” (Ribeiro 1929b, 3). Desta forma, tal como outros no seio das elites artísticas europeias, apelava à intervenção do Estado, pedindo “apoio ou auxílio que fosse além das facilidades alfandegárias […] arrancadas a ferros e sempre a título de excepção” (Ribeiro 1933b, 5). E procurava implicar directamente Salazar nesta tarefa. A criação, em Setembro de 1933, do Secretariado de Propaganda Nacional, aconteceu no momento ideal para a concretização destes projectos.
Cumplicidades cinematográficas: António Lopes Ribeiro e António Ferro
Para o cargo de director do Secretariado, o Presidente do Conselho, de quem o órgão dependia directamente, tinha escolhido António Ferro, escritor modernista, jornalista com fama de polémico, um homem cosmopolita, extrovertido e audaz. Neste cargo de enorme confiança pessoal e política, Ferro interessava sobretudo pela sua rede privilegiada de relações com personalidades europeias em posições-chave nos sectores da vida cultural, literária e artística, mas sobretudo porque tinha provado ser um defensor de regimes de autoridade4.
Ferro era, como Lopes Ribeiro, um homem viajado. O Brasil, os EUA, diversos países europeus, a Turquia. Por todos passou, ao serviço dos jornais para os quais trabalhou, em particular o Diário de Notícias.
Duas notas que podem ajudar a esclarecer a sua relação com o cinema, ainda neste período pré-Secretariado: em 1917, foi dele a primeira conferência sobre cinema em Portugal, intitulada As Grandes Trágicas do Silêncio; dez anos depois, já um reputado jornalista, nos dois meses que passou nos EUA, para dar a conhecer aos leitores do Diário de Notícias a vida da comunidade portuguesa no país, esteve durante duas semanas em Los Angeles, e visitou Hollywood5. Aí contactou de perto com a máquina cinematográfica americana e compreendeu a natureza quimérica, mistificadora do cinema. O poder da imagem trouxe-lhe uma certeza: a do cinema como veículo de propaganda de um país. Reafirmando o seu programa civilizador de Portugal, movido por estas sensações e impressões ‘hollywoodescas’, defendia que o nosso país reunia as condições necessárias para se tornar numa “segunda edição de Hollywood […], a Califórnia do velho mundo” (Ferro 1931, 122).
Vemos, portanto, os dois homens, graças às suas viagens, a tomarem consciência do poder de sedução do cinema e da sua capacidade de penetração ideológica. Pertencem a Ferro estas esclarecedoras frases:
Em quase todos os outros meios de recreação a nossa inteligência, a nossa própria sensibilidade têm de aplicar-se e trabalhar mais do que perante o cinema, do que em face daquele pano que, durante duas horas, se encarrega de pensar e de sonhar para nós. […] Quase se poderia afirmar que não chega ser necessário olhar para o ‘écran’ porque são as próprias imagens dos filmes que se encarregam de entrar docemente, quase sem nos despertar, nos nossos olhos simplesmente abertos (Ferro 1950, 44).
A longa passagem de Ferro pelo Secretariado (1933-1949) ficou marcada pela “Política do Espírito”, que se assumiu como um projecto de fomento da cultura e das artes num sentido nacionalista, abarcando, na sua acção, a criação e produção cultural nas suas diferentes disciplinas, entre as quais o cinema. Porém, não foi apenas um programa de incentivos, mas, sobretudo, uma tentativa política de controlo do campo cultural e da produção artística por parte de um Estado Novo que precisava de “criar uma imagem de si próprio e, consequentemente, de impor essa imagem de um modo que fosse simultaneamente eficaz e […] discreto” (Geada 1977, 74). O cinema, portanto, como um instrumento de conhecimento e de construção da realidade, ao serviço do regime. Jorge Leitão Ramos considera mesmo que o Estado Novo, autoritário e intervencionista, marcou o panorama do cinema nacional, “pelo que fez, pelo que mandou fazer e pelo que não deixou que se fizesse” (1993, 387).
Ferro e Lopes Ribeiro conheciam-se pelo menos desde 1931, altura em que o primeiro organizou o V Congresso da Crítica Dramática e Musical, com o qual Lopes Ribeiro terá colaborado. A ligação ter-se-á mantido através do projecto da Tobis: o cineasta fez parte da Comissão de Estudo do Cinema Português, enquanto Ferro integrou o Conselho de Produção da empresa. E apesar de o director do SPN ter já um realizador preferido, o seu amigo Leitão de Barros6, e de Lopes Ribeiro ter para apresentar um currículo curto como realizador – para além da longa-metragem Gado Bravo (1934), contava apenas com o documentário Fogos Reais na Escola Prática de Infantaria (1935) e com as experiências dos anos 20 já mencionadas – a sua mente fervilhava com projectos, alguns grandiosos: no arquivo da Fundação António Quadros encontra-se uma curta missiva dirigida a Ferro, datada de 1934; nela, Lopes Ribeiro perguntava ao director do Secretariado “se sempre está disposto a aturar-me acerca dos Lusíadas – e doutra ideia engraçada que me veio depois” (1934, 1). E foi ele quem, segundo Maria do Carmo Piçarra, se impôs “como o cineasta disponível para fazer a propaganda, em todos os géneros e registos” (2020, 22)7. A oportunidade chegou com A Revolução de Maio (1937), uma encomenda do SPN pensada para comemorar o 10º aniversário da ditadura, quando o jovem de 28 anos se apresentou a Ferro como o homem certo para o trabalho, aquele que o poderia ajudar a criar um cinema novo, assente na modernidade. Como disse, este foi um filme político, pensado para ser exportado, como instrumento de propaganda do regime. O que convinha perfeitamente a Lopes Ribeiro, que vinha defendendo, como se viu, um cinema português de cariz internacional. E constituiu um ponto de viragem na sua carreira como realizador, garantindo-lhe uma certa prosperidade à sombra dos apoios do Estado. Durante as próximas duas décadas, a sua produção ascenderá às dezenas de títulos, tornando-se o cineasta do regime8.
Em suma, esta foi uma relação de mútua dependência, de interesses e projectos partilhados. É sobre estes últimos que me debruço nas linhas que se seguem.
A II Guerra Mundial e os planos para a internacionalização do cinema português
No início da década de 40, Portugal dispunha de cerca de 220 salas de cinema, concentradas sobretudo nos centros urbanos (Pina 1977). Esta escassez de salas contrastava com o número elevado de distribuidoras em actividade em 1944 – 32 distribuidoras – o que se revelava “determinante para o enorme peso dos filmes importados que dificultava a exploração comercial das obras portuguesas” (Piçarra 2020, 57). Quanto à produção nacional de longa-metragem, a média era de três filmes por ano, com épocas excepcionais a apresentarem sete ou oito películas (Pina 1977). O Estado intervinha no panorama cinematográfico através de uma estrutura corporativa – a União de Grémios dos Espectáculos, a Corporação dos Espectáculos e o Sindicato dos Profissionais de Cinema – do financiamento directo de filmes (como A Revolução de Maio, Feitiço do Império ou Ala-Arriba) ou indirecto, permitindo o recurso a fundos especiais, como o Fundo do Desemprego, e a empréstimos e subsídios, como os do SPN, do Ministério das Obras Públicas e da Educação Nacional (Pina 1977). Era um panorama pouco auspicioso para o que Lopes Ribeiro pretendia: uma indústria cinematográfica nacional de produção contínua e com capacidade para se projectar internacionalmente.
Mas o conflito mundial que tinha eclodido em 1939 trouxera sérios impedimentos na distribuição de filmes na Europa, em particular os norte-americanos. Para o cineasta, e face à neutralidade assumida por Portugal, tal revelou-se uma oportunidade para concretizar as suas ambições para o cinema português.
Virou-se, desde logo, para os mercados europeus, tentando aí colocar os filmes nacionais. Foi com esse fim que conseguiu a integração de Portugal, em Setembro de 1942, na Internationale Filmkammer (IFK), composta por representantes dos governos e das indústrias cinematográficas de 17 nações europeias, actuando como delegado português. A organização batia-se por um cinema e um mercado cinematográfico europeu único, protegido e autárcico, procurando “a aproximação entre os diferentes países produtores de filmes, sem distinção entre grandes e pequenos” (Ribeiro 1943, 7) e o intercâmbio entre as indústrias cinematográficas do continente. Tal geraria, esperava-se, um mercado grande o suficiente para impedir o aumento crescente dos valores de produção, permitindo competir com as grandes empresas de Hollywood, que cobriam os custos dos seus filmes no vasto mercado doméstico. Para Portugal, pertencer à IFK significava o fornecimento de película virgem fabricada na Europa, crucial para a produção contínua, e uma oportunidade para colocar os filmes nacionais nos mercados europeus, algo há muito desejado (pese embora os baixos níveis da produção nacional).
Era o reavivar dos projectos para um cinema europeu transnacional da década de 1920, embora a base ideológica fosse agora muito diferente: a IFK era, sobretudo, um organismo político, parte do projecto hegemónico da Alemanha Nacional-Socialista, “[a] coercive tool of the expansion of German cinema in wartime Europe” (Martin 2011, 25). E o avanço da guerra, com a perda da batalha de Estalinegrado pelos nazis, em finais de 1942, que marcou um ponto de viragem do conflito mundial a favor dos Aliados, impossibilitou, na prática, a permanência de Portugal no organismo, bem como de outros países que tinham, como nós, assumido uma posição de neutralidade, casos da Suíça e da Suécia.
O fracasso relativo à IFK não significou o fim dos planos de Lopes Ribeiro para a internacionalização do cinema português. A passagem por Lisboa do conhecido cineasta Jean Renoir, em Dezembro de 1940, tinha mostrado de forma clara que o problema com que se deparava a produção cinematográfica europeia era o mesmo da indústria nacional: na sessão de homenagem no Sindicato dos Profissionais de Cinema, então presidido por Lopes Ribeiro, Renoir alertou para a necessidade de os países europeus deverem “contar com o Estrangeiro, quando não as respectivas indústrias cinematográficas estão condenadas a viver em regime deficitário” (anónimo 1940, 4). Lopes Ribeiro via assim confirmadas as suas convicções, defendendo que o cinema português estava perante “o momento mais importante da sua curta e acidentada existência” (1941a, 5). E alertava: “Ignorar a porta que se abriu, a mão que se estendeu, o campo que se rasga – seria imperdoável e fatal!” (Ribeiro 1941c, 5).
Desta forma, em finais de 1941 dirigiu a António Ferro um memorial intitulado “Colocação de filmes portugueses em Espanha e no Brasil”. O documento é revelador de um homem empenhado no cinema nacional, tendo fundado, em Maio desse ano, as Produções ALR, empresa que se propunha produzir filmes portugueses de forma permanente, metódica, organizada e continuada. E que precisava, portanto, de um mercado de distribuição mais amplo, que garantisse a sustentabilidade do projecto:
O mercado cinematográfico português propriamente dito (Portugal continental, Ilhas e Colónias) é muito restrito e apenas suficiente, no caso dum êxito, para amortizar, em pelo menos dois anos de exploração, as despesas de produção dum filme de custo médio (cerca de 800 contos) (Ribeiro 1941b, 1).
O fechamento dos mercados europeus aos filmes portugueses levou-o a procurar alternativas. E encontrou-as naquilo que entendia serem os mercados ‘naturais’ para Portugal: o brasileiro e o espanhol (considerando aqui Espanha e os países sul-americanos de língua castelhana). Mas a entrada em condições vantajosas dos filmes nacionais nestes espaços só seria possível, no seu entender, através da realização de acordos com os respectivos governos, que oficializassem a cooperação cinematográfica. E para isso era vital o papel de Ferro e do seu Secretariado
Comecemos pelo Brasil, país em relação ao qual Portugal vinha desenvolvendo esforços de estreitamento de relações desde a I República, procurando consagrar a noção de luso-brasilidade, uma aliança entre as duas nações fruto de um entendimento mútuo, baseado num passado histórico comum e em naturais afinidades culturais. Condicionados por vicissitudes internas e pelas dificuldades no plano internacional, esses esforços resultaram em poucos ganhos institucionais efectivos. E foi só quando os dois países entraram em processos políticos, ideológicos e governativos similares, nos anos 30, que pareceu possível a criação de um bloco luso-brasileiro capaz de ter uma voz a nível mundial.
Era, pois, com base neste panorama político que se afigurava favorável que Lopes Ribeiro estimava, no seu memorial para Ferro, um mercado brasileiro para o cinema português de cerca de 55 milhões. Seria um exagero, até porque o realizador sabia que os filmes nacionais teriam saída no Brasil sobretudo entre a colónia portuguesa, “público com que os nossos filmes contam principalmente e que sempre os recebe com alvoroço” (Ribeiro 1941b, 2), que rondaria os 359.000 indivíduos em 1940. Seria uma forma de ‘vender’ a sua ideia a Ferro? Até porque o cineasta estaria consciente das dificuldades em torno da exibição comercial dos filmes nacionais:
Ou vendidos a fixo, por baixo preço, ou explorados directamente por concessionários portugueses, que têm que lutar contra a organização defensiva dos exibidores brasileiros, constituídos num autêntico trust (Ribeiro 1941b, 2).
Sabia também que o mercado brasileiro estava dominado pela produção norte-americana, consequência dos esforços diplomáticos de aproximação aos EUA, empreendidos pelo ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha.
Propunha, como solução para estes constrangimentos, a compra ou aluguer de um cinema no Rio de Janeiro, onde passaria a produção portuguesa em condições favoráveis. E, na perspectiva de um acordo oficial de colaboração cinematográfica, sugeria um conjunto de medidas de facilitação recíproca, como diminuir ou anular os direitos de exportação/importação de filmes entre os dois países, ou a equiparação dos filmes brasileiros aos portugueses, o que lhes permitiria pagar menos impostos de exibição, desde que se fizesse o mesmo com as obras portuguesas. Lopes Ribeiro terminava esta secção do relatório aludindo à viagem de António Ferro ao Brasil, para onde tinha ido no segundo semestre de 1941, a convite de Lourival Fontes, director do Departamento de Imprensa e Propaganda, o equivalente brasileiro do SPN. Parecia deixar nas entrelinhas a esperança de que, no seu regresso, o director do Secretariado trouxesse na mala um acordo oficial para o cinema.
Todavia, quando Ferro regressou a Portugal, em inícios de 1942, trazia consigo um acordo cultural assinado entre os respectivos organismos de propaganda e não entre governos, como seria expectável, o que lhe diminuía o alcance e a eficácia. E embora o director do Secretariado tenha assumido que “o Cinema Português foi um dos instrumentos mais poderosos e eficazes de que dispus para o desempenho da missão de que ia incumbido” (anónimo 1942,1), o acordo cultural, no que ao cinema dizia respeito, tinha ficado muito abaixo das expectativas nele depositadas por Lopes Ribeiro, uma vez que contemplava de forma explícita apenas a troca de actualidades cinematográficas e a sua exibição nos cinemas dos dois países. Quanto à cooperação na realização conjunta de filmes de grande metragem, “de interesse histórico ou cultural para os dois países, com a colaboração de artistas e técnicos brasileiros e portugueses” (Bettencourtt 1960, s.p.), o assunto ficava adiado, de acordo com Ferro, até “depois de regulados os problemas internos da nossa produção cinematográfica” (anónimo 1942, 2).
Não houve, portanto, como desejavam os dois homens, a entrada em força da produção cinematográfica portuguesa no mercado brasileiro9. O insucesso do plano radicou num conjunto de circunstâncias conhecidas: cinematograficamente, revelava-se impossível às fitas nacionais concorrerem no mercado brasileiro com o cinema norte-americano, tecnicamente muito avançado, a isso somando a grande distância idiomática entre o português falado nos dois países, que dificultava a compreensão dos filmes portugueses; politicamente, a existência de vínculos económico-financeiros do governo brasileiro com outros parceiros externos mais fortes, em particular os EUA, impossibilitou a “concessão de mecanismos em regime de exclusividade para este intercâmbio bilateral” (Santos e Amorim 2010, 130), e a entrada do Brasil no conflito mundial, em 1942, ao lado dos Aliados, ditou um progressivo afastamento ideológico em relação ao regime salazarista.
Com Espanha, a estratégia revelava-se a mesma que tinha sido adoptada em relação ao Brasil, a de um acordo cultural que incluísse o cinema. E parecia estar bem encaminhada quando, em Janeiro de 1941, Manuel García Viñolas, chefe do Departamento Nacional de Cinematografia do país vizinho, se encontrou oficiosamente em Lisboa com António Ferro, para discutir informalmente as bases para um intercâmbio cinematográfico luso-espanhol. Entre os interlocutores de García Viñolas esteve também Lopes Ribeiro. Ligava estes três homens uma visão comum, considerando que caberia ao Estado um papel fundamental na construção das cinematografias nacionais. García Viñolas defendia mesmo que “o Cinema é uma das muitas coisas em que o Estado deve perder dinheiro”, já que a “contribuição do Cinema ao Estado é muito mais importante que o que se pode cifrar em números” (cit. Sempere Serrano 2012, 319).
O realizador português não perdeu tempo, fazendo campanha, nas páginas da Animatógrafo, por um cinema ibérico, “um Cinema suficiente, forte e digno, capaz de se bastar em qualidade e quantidade, em técnica e em capacidade comercial” (Ribeiro 1941c, 4), um cinema que resultaria dos esforços conjuntos dos dois países. Entusiasmado com a possibilidade de entrada dos filmes portugueses no mercado espanhol e, através deste, da América Latina, “um mercado tão vasto e compensador, que desenvolver-se-ia automaticamente a nossa indústria de filmes” (Ribeiro 1941b, 4), previa um espaço de colocação para as películas nacionais de 90 milhões de espectadores. No memorial a que me venho referindo, concretizava estas ideias, sugerindo medidas para um futuro acordo: uma “taxa especial para a licença de entrada dos filmes portugueses em Espanha, compensada com diminuição de impostos aduaneiros e de exibição dos filmes espanhóis em Portugal” e a “distribuição em Portugal dos filmes espanhóis em condições vantajosas para ambas as partes, em troca da distribuição em Espanha de filmes portugueses” (Ribeiro 1941 b, 3-4).
Em Outubro de 1941, a saída de Viñolas do DNC, em consequência da mudança de tutela do organismo, interrompeu as negociações para o acordo cinematográfico. Apesar deste percalço, ao longo do ano seguinte Ferro desenvolveu esforços para um acordo cultural oficial entre os regimes que incluísse o cinema. E na proposta para esse acordo, com medidas que abrangiam praticamente todos os campos da actividade cultural, e que assumia uma dimensão política explícita, constatamos a influência do memorial de 1941 de Lopes Ribeiro na parte relativa ao cinema, sugerindo-se o
estabelecimento, entre as cinematografias espanhola e portuguesa, em regime de reciprocidade equitativa, de um intercâmbio activo e de estreita colaboração nos domínios económico, técnico e artístico, de forma a facilitar, por intermédio do cinema, um amplo conhecimento da história, da paisagem, da língua e da índole de ambos os povos (Ribeiro 1941b,2).
As condicionantes do momento não se revelavam, porém, as mais favoráveis. Do lado português, as tradicionais reservas face ao vizinho ibérico persistiam, face ao ressurgir, entre algumas facções do regime de Franco, do velho sonho iberista, pelo que as instruções de Salazar relativamente a acordos culturais com Espanha, datadas de 1938, permaneciam em vigor em 1942:
Ponho as maiores reservas ao chamado intercâmbio cultural. Este nunca serviu senão para os espanhóis […] fazerem por esse modo um trabalho de penetração pacífica que não deve ser favorecido. […] É preciso para isso manter boas e amigáveis relações públicas e particulares com a Espanha […], mas considero prejudicial que esse trabalho seja feito com a ruptura da couraça que o povo português foi a si próprio forjando pelos séculos fora e constitui elemento da sua defesa (Salazar 1938, 1).
Quanto a Espanha, o interesse por uma colaboração com Portugal era praticamente nulo nesta altura, visível na (polémica) posição de não-beligerância assumida então no conflito mundial, e na nomeação de Serrano Suñer para ministro dos Assuntos Exteriores, falangista convicto, conhecido pelas suas fortes simpatias em relação aos países do Eixo10.
Apesar de o caminho oficial se ter fechado, Lopes Ribeiro não desistiu do projecto de internacionalização do cinema nacional, procurando activamente, na qualidade de presidente do Sindicato Nacional dos Profissionais de Cinema, uma colaboração cinematográfica, comercial e artística, com o país vizinho, deslocando-se em várias ocasiões a Madrid, no segundo semestre de 1942, e estabelecendo contactos com os meios cinematográficos espanhóis, oficiais (com a Subcomissão Reguladora de Cinematografia e o Sindicato Nacional de Espectáculos) e privados (sobretudo com os Estudios Roptence e a Hercule Films). Chamava a atenção
não apenas [para] o que cada país pode proporcionar ao outro, mas também [para] as possibilidades que podem ser decorrentes deste facto para a conquista de mercados historicamente gerados pelos dois países (Nieves 1942, 4).
Considerando a sua relação com António Ferro, creio não errar ao considerar que estaria, oficiosamente, ao serviço do Secretariado. Mais uma vez, o timing terá sido o errado e a colaboração não se concretizou. A justificação para este novo insucesso reside nas relações estabelecidas por Espanha com a Itália, através de um acordo cinematográfico firmado em 1938 que deu origem, entre 1939 e 1943, a um total de 25 filmes em regime de co-produção (Monguilot Benzal 2015).
Uma última janela de oportunidade para os dois países abriu-se em inícios de 1943, fruto das mudanças sentidas no conflito mundial, depois da entrada dos EUA, que forçou a substituição, no ministério dos Assuntos Exteriores espanhol, de Suñer por Gómez Jordana, defensor da neutralidade espanhola, conduzindo a um posicionamento estratégico mais moderado de Franco, de aproximação a Portugal e à neutralidade, e à assinatura, em final de 1942, do Bloco Peninsular. Estes factores ditaram, portanto, o afastamento em relação à Alemanha e à Itália e, no que ao cinema dizia respeito, forçaram a Espanha a procurar alternativas para abastecer um espaço com “2.000 cinemas, isto é, dez vezes superior ao mercado português” (Ribeiro 1941b,3). Ferro aproveitou a conjuntura favorável e, em Fevereiro de 1944, apresentou ao governo espanhol um projecto para um acordo unicamente no campo cinematográfico. Nele propunha-se o desenvolvimento do intercâmbio de filmes entre os dois países, assim como a colaboração das respectivas entidades cinematográficas; ainda, que os produtos dessa colaboração tivessem duas versões e que beneficiassem, em cada país, da legislação proteccionista da produção nacional, a criação de uma Comissão Permanente de Cooperação, constituída em igualdade de circunstâncias por espanhóis e portugueses11, o estabelecimento de prémios anuais para as obras resultantes desta colaboração, e por fim, como forma de promoção, quer das co-produções, quer de cada uma das produções nacionais, a organização de semanas de cinema dedicadas a cada um dos países. A proposta foi rejeitada. Os espanhóis usaram como justificativa a legislação saída em Maio de 1943, que especificava que a protecção cinematográfica só se poderia conceder a entidades ou pessoas que produzissem filmes integralmente nacionais de grande metragem (González 2006)12.
Conclusão
Ao longo destas páginas, centrei a minha atenção em António Lopes Ribeiro e António Ferro, e na sua relação com o cinema português, procurando integrar as duas personagens no seu tempo. Lopes Ribeiro fazia parte de uma geração cinéfila dotada de contactos no estrangeiro. Se a relação com António Ferro, director do organismo estatal que tutelava o cinema, lhe permitiu, como salienta Bénard da Costa, “uma carreira que de outra forma talvez não tivesse tanta dimensão” (cit. Piçarra 2011, 136), o realizador revelou-se, na perspectiva de Ferro, a peça-chave na construção visual do regime. Neste sentido, pode-se entendê-los como “intelectuais orgânicos” do Estado Novo, isto é, homens que “relaciona[m] a sua visão da sociedade e da política com as suas escolhas culturais e estéticas” (Torgal 2005, 240).
Além da afinidade ideológica, partilharam ideias e projectos para o cinema português. E a cumplicidade entre o cineasta e o director do Secretariado deu asas às aspirações de Lopes Ribeiro de internacionalização do cinema feito em território luso, um desejo que, para Paulo Cunha, parece ter nascido com o próprio cinema nacional, constituindo “uma vontade, uma ambição ou uma necessidade para o cinema português, tanto para a sua expansão como para a sua sobrevivência” (2016, 35). Também Ferro desejava um cinema nacional que permitisse “elevar o nível do gosto do público”, que fosse “digno e exportável” (1950, 69-70).
Neste contexto, creio que esta história pode ser melhor compreendida a partir da tensão, sentida nos seus protagonistas, entre um olhar para fora – os contactos internacionais, a busca de parcerias e de mercados – e um olhar para dentro – na sua relação com um governo conservador, que reduzia o cinema a instrumento de propaganda política e de apoio ao regime. Que transformou Lopes Ribeiro no cineasta do regime, com uma carreira construída sobretudo ao serviço do Estado Novo e dos seus valores, levando-o a realizar e produzir filmes como A Revolução de Maio ou Camões, muito marcados politicamente, que obstavam aos seus planos de internacionalização, necessitados de obras com um apelo mais universal.
Quando pensamos nas tentativas de Lopes Ribeiro e de Ferro em promover o cinema português no exterior, devemos também atentar nas circunstâncias externas com que se depararam. A II Guerra Mundial, entendida como uma oportunidade de entrada em novos mercados, foi, em simultâneo, uma circunstância altamente limitadora: a viragem da guerra a favor dos Aliados significou a ‘perda’ do Brasil, e o fim do conflito traduziu-se no afastamento definitivo de Espanha face a uma colaboração cinematográfica oficial.
Por fim, a mudança geopolítica internacional, de vitória dos regimes democráticos, obrigou a uma inflexão de rumo do Estado Novo, mais figurada do que real, mas obrigatória. E levou ao afastamento de António Ferro do Secretariado em 1949. Sem Ferro, Lopes Ribeiro perdia o seu maior aliado e a possibilidade de prosseguir com os seus planos de internacionalização do cinema nacional.
A década seguinte, de 1950, foi de dificuldades para a cinematografia portuguesa e para Lopes Ribeiro, que se viu substituído por outros realizadores, os “serventuários intelectuais” do regime – homens como Henrique Garcia, Perdigão Queiroga, Augusto Fraga ou Constantino Esteves –, a “geração do Salazarismo vulgar, aquele que destilava uma ideologia e uma prática do quotidiano” (Ramos 1993, 400). Em missiva dirigida a Ferro, o cineasta admitia que estava “a dois milímetros do descoraçoamento mais completo” (Ribeiro 1947, 8). Terá sentido uma desilusão muito profunda: com o fracasso dos seus projectos internacionais e, daí em diante, com a falta de atenção do Secretariado, dirigido depois de Ferro por homens do regime que atenuaram a sua função estético-cultural, dando primazia à dimensão operacional-política. Nas décadas seguintes, António Lopes Ribeiro dedicar-se-ia sobretudo aos documentários, passando depois para a televisão, onde se popularizou como apresentador do Museu do Cinema (1961-1974).
Notas finais
1 Entre eles, João Ortigão Ramos, director do espaço, Chianca de Garcia, secretário técnico, Manuel Félix Ribeiro, Fernando Fragoso, Domingos Mascarenhas e o já experiente realizador Leitão de Barros. Lopes Ribeiro colaborou com o último em duas das suas obras mais emblemáticas do período do mudo: Nazaré, Praia de Pescadores (1929) e Maria do Mar (1930).
2 Como a Mello, Castello Branco Ldª. (1926), a Sociedade Geral de Filmes (1928), a Lisboa Filmes (1928) e a Ulysseia Filme (1929).
3 Como a Cinéfilo (1928-1957), a Kino (1930-1931), a Imagem (1930-1936) ou a Animatógrafo (1933; 1940-1942), apenas para mencionar as principais revistas e com maior peso na discussão do projecto cinematográfico nacional.
4 Relembre-se a sua admiração por Sidónio Pais, o “Presidente-Rei” de Fernando Pessoa, pelo nacionalista Gabriele d’Annunzio, cuja conquista de Fiume, em 1920, acompanhou ao serviço do jornal O Século, ou as entrevistas que realizou, como repórter internacional do Diário de Notícias, a um conjunto de políticos de tipo autoritário e/ou ditatorial, como Primo de Rivera, Mustapha Kemal, Georges Valois e Benito Mussolini, reunidas na obra Viagem à Volta das Ditaduras (1927).
5 As suas impressões foram registadas em dois livros: Novo Mundo, Mundo Novo (1930) e Hollywood, Capital das Imagens (1931).
6 Ferro conhecia Leitão de Barros desde inícios da década de 20, quando esteve na direcção da Ilustração Portuguesa, período em que o segundo foi o seu ‘braço direito’, a que se seguiram outros projectos em comum, como a colaboração de Ferro no Notícias Ilustrado dirigido por Leitão de Barros, ou a aventura em comum do Teatro Novo, em 1925.
7 O que terá justificado a recusa ao convite de Ferro, em 1935, para chefe da recém-criada Secção de Cinema do Secretariado, alegando não ter vocação para funcionário público, e sugerindo o nome de Manuel Félix Ribeiro, que assim passou a dirigir essa secção.
8 No balanço feito pelo SNI (1948), o papel de Lopes Ribeiro destaca-se, ao ter realizado cerca de 1/4 dos 70 documentários elencados, para além dos dois filmes de propaganda (A Revolução de Maio e O Feitiço do Império), uma obra nacionalista (Camões) e responsabilidades várias com a série Jornal Português (1938 e 1951), financiada pelo SPN.
9 O acordo resumiu-se ao envio de filmes portugueses para o Brasil, passados nas semanas dedicadas ao cinema nacional, essencialmente documentários e comédias, sucessos garantidos entre a colónia portuguesa.
10 Na realidade, em Dezembro de 1940, escassos meses após a assinatura do Protocolo Adicional ao Tratado de Amizade e Não Agressão, o Alto Estado-Maior espanhol entregou a Franco um plano altamente secreto de ataque a Portugal, que previa a ocupação de Lisboa e a tomada de toda a costa nacional. Este plano foi encontrado na Fundação Francisco Franco pelo historiador Manuel Ros Agudo, em 2005, e estudado no seu livro A Grande Tentação – Franco, o Império Colonial e o projecto de intervenção espanhola na Segunda Guerra Mundial, de 2009.
11 Que seria composta por um funcionário dos respectivos ministérios da Indústria e Comércio, bem como um produtor e um distribuidor de cada país.
12 Apesar de as tentativas de António Ferro e de Lopes Ribeiro para um acordo oficial no campo cinematográfico terem saído goradas, a cooperação cinematográfica ibérica existiu, embora de curta duração e situada na esfera da iniciativa privada, daí resultando uma dúzia de filmes, entre 1943 e 1951.
Bibliografia
1942. “As declarações de António Ferro”. Animatógrafo, 3 de Fevereiro, 1942.
Bettencourt, Gastão. 1960. António Ferro e a Política do Atlântico. Pernambuco: Edição de Autor.
Costa, Henrique Alves, 1978. Breve história do cinema português (1896-1962). Lisboa: Instituto da Cultura Portuguesa.
Costa, João Bénard da. 1991. Histórias do Cinema. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Cunha, Paulo. 2016. “Vai e vem - a internacionalização do cinema português” in Camões, Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 24: 35-46.
Ferro, António. 1931. Hollywood, Capital das Imagens. Lisboa: Portugal-Brasil.
Ferro, António. 1950. Teatro e Cinema (1936-1949). Lisboa: SNI.
Geada, Eduardo. 1977.O Imperialismo e o Fascismo no Cinema. Lisboa: Moraes Editores.
González, Fernando. 2006. “El reinicio de la cooperación cinematográfica hispano-lusa – 1939-1944” in Secuencias: Revista de Historia del Cine, nº 23: 36-66.
Higson, Andrew. 2010. “Transnational developments in European cinema in the 1920s” in Transnational Cinemas, vol. 1, nº 1: 69–82.
Martin, Benjamin George. 2011. “European Cinema for Europe! The International Film Chamber, 1935-42”. In Cinema and the Swastika. The International Expansion of Third Reich Cinema. Editado por Vande Winkel e David Welch, 25-41. London: Palgrave Macmillan.
Monguilot Benzal, Félix. 2015. Coproducción y Colaboración Cinematográfica Hispano-italiana durante los Años 1939-1943. Tese de Doutoramento, Universidad de Murcia.
Nieves, Jose Antonio. 1942. “Intercambio cinematográfico hispanolusitano”. Primer Plano, 26 de Julho, 1942.
1940. “O grande realizador francês Jean Renoir está em Lisboa”. Animatógrafo, 2 de Dezembro, 1940.
Pereira, Wagner Pinheiro. 2013. “1930-1939: O Cinema Português de Salazar”. In Cinema Português: Um Guia Essencial. Organizado por Paulo Cunha e Michelle Sales, 93-137. São Paulo: SESI-SP Editora.
Piçarra, Maria do Carmo. 2011. Salazar vai ao cinema II: a “Política do Espírito” no Jornal Português. Lisboa: Drella Design.
Piçarra, Maria do Carmo. 2020. Projectar a ordem. Cinema do Povo e propaganda salazarista. 1935-1954. Caxias: OsPássaros.
Pina, Luís de. 1977. A Aventura do Cinema Português. Lisboa: Veja.
Pina, Luís de. 1986. História do Cinema Português. Mem-Martins: Publicações Europa-América.
Ramos, Jorge Leitão, 1993 – “O cinema salazarista”. In História de Portugal (dos tempos pré-históricos aos nossos dias), vol. XII. Dirigido por João Medina, 387-406. Alfragide: Clube Internacional do Livro.
Ramos, Jorge Leitão. 2011. Dicionário do Cinema Português 1895-1961. Lisboa: Editorial Caminho.
Ribeiro, António Lopes. 1929a. “Precisam-se ‘estrelas’ de cinema para uma tentativa portuguesa”. Diário de Lisboa, 2 de Março, 1929.
Ribeiro, António Lopes, 1929b. “Os filmes de Varsóvia vistos pelo nosso redactor cinematográfico”. Diário de Lisboa, 29 de Maio, 1929.
Ribeiro, António Lopes. 1930. “O cinema sonoro em Portugal”. Diário de Lisboa, 4 de Abril, 1930.
Ribeiro, António Lopes. 1933a. “Arte e Comércio”. Animatógrafo, 1 de Maio, 1933.
Ribeiro, António Lopes. 1933b. “Nacionalismo”. Animatógrafo, 8 de Junho, 1933.
Ribeiro, António Lopes. 1934. Carta para António Ferro. 10 de Março. Fundo António Ferro/Fernanda de Castro, cx. 0029. Fundação António Quadros, Rio Maior.
Ribeiro, António Lopes. 1941a. “Artigos de primeira necessidade”. Animatógrafo, 16 de Junho, 1941.
Ribeiro, António Lopes. 1941b. Colocação de filmes portugueses em Espanha e no Brasil. 9 Novembro. Fundo Secretariado Nacional da Informação, cx. 724. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa.
Ribeiro, António Lopes. 1941c. “Possibilidades dum cinema ibérico”. Animatógrafo, 10 de Março, 1941.
Ribeiro, António Lopes. 1943. Relatório para António de Oliveira Salazar. Janeiro. Arquivo Oliveira Salazar, PC-12E, cx. 662. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa.
Ribeiro, António Lopes.1947. Carta para António Ferro. 9 Agosto. Fundo António Ferro/Fernanda de Castro, cx. 0029. Fundação António Quadros, Rio Maior.
Ribeiro, António Lopes. 1983. “Um filme em episódios. Tentativa de esboço autobiográfico”. In António Lopes Ribeiro. Organizado por José Matos-Cruz, 13-70. Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
Salazar, António de Oliveira. 1938. Instruções relativas a acordos culturais com Espanha. 25 Maio. Arquivo Oliveira Salazar, PC-12D, cx. 661. Arquivo Nacional Torre do Tombo, Lisboa.
Santos, Paula Marques dos e Amorim, Paulo. 2010. “As relações Portugal-Brasil na primeira metade do século XX (1910-1945)”. In As relações Portugal-Brasil no século XX. Coordenado por Fernando Sousa, Paula Santos e Paulo Amorim, 121-39. Porto: CEPESE/Fronteira do Caos Editores Lda,
Sempere Serrano, Isabel. 2012. “Las contradicciones de la colaboración cinematográfica hispano-lusa en los años cuarenta: el ejemplo de Inés de Castro” in Hispanic Research Journal, vol. 13, nº 4: 317-333.
SNI. 1948. Catorze Anos de Política do Espírito. Apontamentos para uma Exposição, apresentados no S.N.I. (Palácio da Foz) em Janeiro de 1948. Lisboa: SNI.
Torgal, Luís Reis. 2005. “«Intelectuais orgânicos» e «Políticos funcionais» do Estado Novo (Os casos de António Ferro, Augusto Castro, João Ameal e Costa Brochado)”. In Transformações estruturais do campo cultural português, 1900-1950. Coordenado por António Pedro Pita e Luís Trindade, 235-53. Coimbra: Ariadne Editora.