Capítulo / Chapter V | Convidados / Guests

Van Gogh and Cinema: words, obsessions and textures

Van Gogh e o Cinema: palavras, obsessões e texturas

Anabela Dinis Branco de Oliveira

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro / LabCom – Comunicação e Artes

Abstract

How does the filmmaker, in building a perspective on painting, maintain the identity of cinema itself? How does cinema film the creator’s relationship with his work? How are aesthetic memory and the process of creative freedom filmable? Can you, through your film options, transcribe and interpret the painter’s creative adventures?

And what are the concepts analyzed by the critical reception of these projects? Do they take into account the specificity of cinematographic codes? Do they compare what is not comparable or do they establish creative paths centered on the unavoidable differences between them? Do they define hierarchies and value judgments or do they lead a dialogic path?

This communication intends to answer these questions, having as an analytical corpus the representation of Van Gogh’s work in cinema and the critical reception of that same filmic production. The filmic approaches of Alain Resnais, Vincent Minelli, Akira Kurosawa, Maurice Pialat, Andrew Hutton, Paul Cox, Alexander Barnett, François Bertrand, Dorota Kobiela/Hugh Welchman and Julian Schnabel will join the studies of João Mário Grilo, Jacques Aumont, Pascal Bonitzer, Alain Cohen, François Albera, François Jost and Luc Vanchéri.

Cinema and painting seek, in this analysis, the possibility of an identity path and the attainment of what João Mário Grilo considers the “essence of the unquotable” in the struggle for a goal – “rescuing the aura of art and filming it”.

Keywords: Van Gogh; Cinema; Picture; Interart Studies; Creative Process.

Introdução

Como é que o cinema filma a relação do criador com a sua obra? Como são filmáveis a memória estética e o processo da liberdade criativa? Neste âmbito, que relação entre cinema e pintura? Uma relação de invejas, de cópias?

Todas estas questões procuram uma resposta no âmbito da produção fílmica sobre Van Gogh. Serão objeto de análise os filmes Van Gogh, Alain Resnais (1948), Lust for life, Vincent Minnelli (1956), Vincent: The Life and the dead of Vincent Van Gogh, Paul Cox (1987), Dreams, Akira Kurosawa (1990), Van Gogh, Maurice Pialat (1991), The Eyes of Van Gogh, Alexander Barnett (2005), Moi, Van Gogh, François Bertrand ( 2009), Van Gogh: Painted with Words, Andrew Hutton (2010), Loving Vincent, Dorota Kobiela e Hugh Welchman (2017) e At Eternity’s Gate, Julian Schnabel (2018). De sublinhar que Loving Vincent é a primeira longa-metragem de animação feita completamente de pinturas e a partir de pinturas. Cada frame foi pintado com a técnica de olho em tela, assim como o pintor holandês Vincent Van Gogh fazia. Primeiro, foram gravadas cenas com atores de pele e osso e, de seguida, cada uma dessas imagens foi transformada em pinturas de óleo, por uma equipa de mais de 100 pintores, seguindo o estilo de Van Gogh. Estima-se que para os 80 minutos de duração do filme, tenham sido necessárias mais de 62 mil pinturas.

Será que estas abordagens fílmicas têm em conta a especificidade dos códigos cinematográficos? Projetam os seus percursos analíticos tendo em conta a essência da montagem e do fora de campo na identidade do cinema? Têm em conta a autonomia das diferentes artes? Comparam o que não é comparável ou estabelecem percursos criativos centrados nas incontornáveis diferenças entre elas? Definem hierarquias e juízos de valor ou protagonizam um percurso dialógico?

Desenvolvimento

1. Uma câmara que pincela texturas

Como é que todas estas questões atravessam os discursos fílmicos sobre Van Gogh? João Mário Grilo aborda a relação pintura/cinema através da análise do documentário Van Gogh, de Alain Resnais, focando a relação entre a força vertiginosa da montagem e a força vertiginosa da vida do pintor, a força do fora do campo indefinido no espaço e no tempo e o facto como filma as telas do pintor sem mostrar os seus limites. Ele refere:

Esse pequeno filme de Resnais, uma curta-metragem feita propositadamente a preto e branco, é de uma coragem espantosa porque reforça precisamente a ideia de descontinuidade, para mostrar bem que o que se estava a filmar não era uma cópia, mas uma tentativa de reconstituição cinematográfica da sensação que o espetador tem perante um quadro do pintor. Apesar do preto e branco – que tanto chocou as pessoas na altura – este filme de Resnais é seguramente bastante mais “van goghiano” do que o episódio Van Gogh dos Sonhos, do Kurosawa. Quando vemos o filme do Resnais sobre Van Gogh, a primeira coisa que vemos é o cinema, porque o indicador do cinema é precisamente o preto e branco. Sabemos imediatamente que estamos a ver um Van Gogh filmado e essa é exatamente a questão. Na relação entre o cinema e a pintura, este é o desafio mais interessante e destrutivo. (Grilo 2004)

Van Gogh, de Alain Resnais, não é apenas a contemplação inteligente: atinge uma ação viva, projeta o nosso olhar sobre a obra do pintor. A montagem une as telas, confere uma profundidade e uma vivência do trágico, uma continuidade e a projeção de uma sensibilidade criativa muito própria. Assistimos a um travelling de uma tela a outra. O preto e branco (considerado um escândalo, na altura) e o ritmo orientam o nosso olhar através dos detalhes na construção da essência criativa da obra do pintor e da sua própria visão do mundo construída no texto biográfico da voz off e da música. E aqui, o cinema mantém a sua identidade estética. Alain Resnais filma as telas do pintor sem mostrar os seus limites (nem de moldura, nem de fora de campo) – cada uma das telas é aceite e considerada como um fragmento de um universo virtual que ultrapassa o ecrã estendido indefinidamente.

Em At Eternity’s Gate, a câmara de Schnabel é uma câmara intensa, que salta e faz planos panorâmicos oblíquos através dos espaços, tal como a câmara de Resnais o faz ao longo das telas, evidenciando pinceladas e texturas. Em Schnabel, as pinceladas, o excesso de tinta e a perceção da textura projetam a mesma estética de Resnais. O mesmo percurso da câmara conduz o olhar de Vincent no Louvre através dos detalhes dos quadros de Frans Ols, Goya, Velasquez, Veronese e Delacroix, o mesmo olhar de Resnais em Van Gogh ou de Manoel de Oliveira em As Pinturas do Meu Irmão Júlio.

O projeto mais próximo do de Resnais e de Schnabel é o Dreams de Akira Kurosawa que representa, através da exploração plástica, da textura e da cor, o percurso nítido do autor que “caminha sobra a obra”

2. A inevitabilidade da pintura

A relação do cinema com a pintura é múltipla e as discussões e reflexões sobre a inevitabilidade da pintura são constantes.

Em Lust for life de Vincent Minnelli, ela existe na relação entre a sequência das imagens dos agricultores curvados e as palavras de Vincent: “um homem ou uma mulher a trabalhar, um campo recém-lavrado, a areia dura debaixo de um sol amarelo (…) traduzir a poesia que eles escondem.”. Van Gogh refere o urgente desejo de pintar as pessoas, quer que a pintura toque essas pessoas. Há uma definição constante da obsessão da pintura – “representar a dureza do trabalho”. Acerca dos comedores de batatas, ele sublinha as “mãos que trabalham”. Refere continuamente a necessidade da compreensão do desejo do Outro: ele diz o que quer que as pessoas vejam. Discute continuamente detalhes acerca de questões ligadas à qualidade da luz. Troca impressões com Gauguin sobre a cor, numa longa conversa dos dois sobre pintura. Acerca das suas reproduções de Millet, ele refere que quer que as pessoas “sintam o calor, o sofrimento dos trabalhadores”. Assistimos a uma conversa agitada entre ele e Gauguin sobre a pintura de Van Gogh. Gauguin acha que ele pinta as árvores retorcidas como serpentes”, e um “sol que explode” o que leva a uma intensa discussão: Gauguin afirma “pintas depressa demais” e Van Gogh responde “e tu olhas depressa demais”.

No filme de Schnabel, Gauguin e Van Gogh só falam sobre pintura e a velocidade do ato de pintar é a mesma velocidade da câmara. Gauguin afirma “tu pintas depressa demais e usas demasiada tinta. A tua superfície parece feita de barro. É mais escultura do que pintura.” Van Gogh responde que “os quadros têm de ser pintados num gesto deliberado (…) têm de ser pintados depressa”. É este movimento rápido que a montagem transmite: a câmara representa, no movimento, as palavras de Gauguin sobre o seu amigo: “pintas depressa e excessivamente”.

No documentário Van Gogh: Painted with Words, de Andrew Hutton, assistimos a uma intensa reflexão de Van Gogh sobre a sua própria pintura (uma reflexão sobre o desenho de Sorrow). O narrador apresenta um profundo debate: reflete sobre a influência de Rembrandt como homem velho (o processo de previsão do futuro) – na construção dos auto-retratos. Théo confessa-se à câmara sobre questões ligadas à pintura. Há uma reflexão intensa sobre as cores e a luz da Provence. Há também a intensificação da relação conturbada com o amigo: Van Gogh critica constantemente a pintura de Gauguin. No processo de ficção, Van Gogh, num expressivo regard à la caméra, analisa o retrato do Doutor Gachet e relaciona-o com o seu auto-retrato mais recente. Em Van Gogh, de Maurice Pialat, as conversas com o Dr Gachet sublinham essa relação na profusão de detalhes dos olhares e das críticas relacionadas com o trabalho dos outros pintores. Dreams, de Akira Kurosawa, projeta a reflexão sobre a pintura na conversa entre Akira e Van Gogh no campo de trigo. As palavras de Van Gogh são disso exemplo:

Porque não está a pintar? Para mim, esta cena é inacreditável. Uma cena que parece pintura não faz uma pintura. Olhando com atenção… verá que toda a natureza tem a sua beleza. E quando há essa beleza natural, eu simplesmente perco-me nela. Então, como num sonho, a cena pinta-se sozinha por mim. Devoro-a completamente.

Numa intenção muito subversiva, acerca do ferimento, num processo marcadamente anacrónico, Van Gogh refere “ontem estava a tentar completar um auto-retrato. Não consegui acertar a orelha, então cortei-a e deitei-a fora.” E projeta uma total simbiose entre pintura e corpo.

Em At Eternity’s Gate, a relação entre a pintura e o corpo projeta-se numa sequência em que Vincent esfrega terra nos seus olhos numa comunhão visceral entre a criatividade, a exuberância da natureza e a obsessão corporal. As caminhadas pelos campos e a intensidade da escalada definem a absoluta necessidade do ato físico de pintar. No leito de morte, o pé de Vincent, inerte, cadavérico, de tons esverdeados está, inequivocamente, sem vida, como num quadro de Goya. Durante o velório, a relação entre a pintura e o corpo constrói-se na inequívoca metamorfose entre o corpo e a arte: o caixão está rodeado dos seus quadros, num plano picado que explora a comunhão intensa entre os olhares de todos aqueles que lhes pegam ou que sobre eles gesticulam.

3. A supremacia da palavra

A estruturação narrativa dos detalhes ligados ao processo criativo e ao processo biográfico do pintor passa por uma quase obrigatória supremacia da palavra. Em Lust for Life de Vincent Minnelli é lido, em voz off, o conteúdo das cartas a Théo: a presença nítida das cartas onde fala da luz e da sua relação com as cores. A palavra define a reflexão sobre a pintura, sempre num processo de texto escrito. O documentário Van Gogh: Painted with Words, de Andrew Hutton anuncia que o filme é feito apenas através das palavras verdadeiras dele, presentes nas 902 cartas. Há uma contextualização da elaboração do texto fílmico numa contínua reflexão sobre ilustrações e sobre o significado dos desenhos. As questões sobre a pintura são introduzidas através de uma voz over (supremacia da palavra na análise da pintura). A sequência da mão no fogo (representada em Minelli) é aqui dita por ele, escrito nas cartas. A personagem, num regard à la caméra, diz-nos o que se passou depois. Assistimos a um constante percurso pelas cartas; é nelas que se anuncia o distúrbio bipolar. Através das palavras da voz over, temos a análise de telas, de Gauguin e de Van Gogh. As palavras do diretor do asilo de Saint Rémy falando sobre a doença são também definidas através das cartas. Van Gogh, de Alain Resnais apresenta um texto marcadamente biográfico, num processo de análise de algumas pinturas, mas marcante ao nível da montagem, porque define o ritmo e análise da questão psicológica e da obsessão intrínseca ao ato de pintar. Há um nítido percurso narrativo, como se as telas contassem uma história (refere, a esse nível, o “livro de imagens” do seu país natal. Vincent: The Life and the dead of Vincent Van Gogh, de Paul Cox transmite o conteúdo das cartas, na voz do ator John Hurt.

Em Schnabel, as palavras sobre pintura e ato criativo são proferidas nos momentos da relação conturbada entre Van Gogh e Gauguin, nomeadamente durante a criação dos retratos de Mme Ginoux e na conversa entre Vincent e o padre, no hospício, num intenso jogo acerca da relação entre a perturbação da beleza, a necessidade criativa e o reconhecimento posterior do público.

4. O universo do citável

Na estruturação da relação entre imagem cinematográfica e pintura, o percurso intertextual transforma estes discursos em espaços de um comparativismo muito ligado a referências óbvias naquilo que João Mário Grilo considera o “universo do citável”.

Em Lust for Life de Minelli, os rostos dos mineiros são muito marcados, como nas telas. Há uma profusão de desenhos pendurados ou encostados; o enquadramento das personagens é fortemente inspirado nos quadros. Na sequência dos tecelões, não há o tradicional percurso do “quadro vivo “: há precisamente um processo contrário: o fondu enchaîné define essa passagem. Há uma relação quase ilustrativa com a realidade mas muito parecida à estética de Resnais. As cores nem sempre são muito intensas, definem-se de uma maneira mais ténue, mas há uma sobrevalorização do contraste: as cores da roupa estão muito vivas em relação à cor das portas, das paredes e das janelas, como que num processo de estilização. A imagem física das personagens, os atores escolhidos, seja ao nível dos rostos ou ao nível das roupas ou até dos gestos, é a imagem que nós temos da pintura, dos quadros (porque não temos outra fonte de inspiração). Eric Rohmer, em A Inglesa e o Duque, utiliza as gravuras de Paris do século dezoito porque, segundo ele, a imagem que temos do passado não é fotográfica, é sempre oriunda da pintura. Eric Rohmer olha as épocas históricas através dos olhos dos seus contemporâneos. Fez o mesmo com Perceval – dá-nos a realidade como era vista pelos miniaturistas, iluminuras ou os escultores do românico onde os castelos não eram maiores que as pessoas e as árvores pareciam couves-flor, criando um processo de não ilusão. A imagem do Dr. Gachet é absolutamente tirada do quadro, com parecenças incríveis. Em Van Gogh: Painted with Words, acontece a mesma coisa: a imagem de Vincent é a imagem dos quadros. Há uma constante profusão de fondu enchainé no processo de transição entre imagens reais e quadros e entre imagens de arquivo e imagens do discurso ficcional. As casas são pintadas na mesma linha dos referentes pictóricos de Rohmer. Em Pialat, a pintura (cena do piano) está num processo de fora de campo, sempre escondida, sempre olhada pelo outro mas longe do espetador. Em Kurosawa, o processo definido por Rohmer identifica a apresentação da ponte e das paisagens: a saturação da cor e os gestos das lavadeiras definem um processo de quadro vivo. No entanto, essa realidade esbate-se quando a personagem Van Goh começa caminhar pelos quadros: eles tornam-se um cenário marcado pela vivência do pintor num intensificar da aproximação do plano. Moi, Van Gogh é o projeto explícito da elaboração do quadro, como que uma filmagem do gesto do criador. Loving Vincent é a animação a partir da realidade, o mesmo processo de pintura dos quadros animados.

A câmara de Schnabel escolhe a inevitabilidade cromática que, nas opções estéticas ao nível da fotografia, estabelece um contraste entre os cinzentos do nevoeiro e do temporal na chegada a Arles e o amarelo, ao mesmo tempo, intenso e difuso que percorre todo o filme. A câmara mostra o amarelo do quarto repleto de quadros e o tom amarelado do hospício durante o, também difuso, desfile dos homens em colete de forças. Na imensidão dos campos de trigo, num imenso travelling para a frente, o amarelo é o tom mais intenso da paisagem, como se fosse uma pintura.

No âmbito do citável, do óbvio, da situação que quase não respeita a identidade cinematográfica e que não projeta uma relação verdadeiramente dialógica temos o processo marcadamente intertextual em Lust for Life com a presença dos outros pintores identificados pelas telas e a relação dos olhos de Van Gogh com os quadros feitos no asilo num processo de apresentação da perturbação psicológica. Em Painted with Words, a intertextualidade define-se na descida à mina e na relação com as palavras e as imagens de arquivo. Pialat projeta esse óbvio na relação do rapaz deficiente com o quadro que ele pintou, num processo de contextualização muito citável. O mesmo acontece com a conversa de Gachet sobre as cópias que este faz. Kurosawa projeta essa situação com a figura do pintor, a orelha, as barbas e os gestos.

5. A essência do não-citável

Cinema e pintura conseguem a possibilidade de um percurso identitário e a obtenção daquilo que João Mário Grilo considera a “essência do não citável” na luta por um objetivo – “resgatar a aura da arte e filmá-la”.

Em Lust for Life, a essência do “não citável” define-se através dos vários ângulos e os vários estudos do tecelão, os zooms en arrière, os detalhes dos comedores de batatas. Também através da ausência do rosto mas da forte presença da mão. A câmara projeta constantes zooms por cima das telas. Há uma concentração na duração do plano. Assistimos a uma procura do fotograma específico: a câmara percorre o pomar e os planos das flores. Há a inserção da beleza trabalhada através da panorâmica de um só quadro, num processo nítido de fragmentação. O plano panorâmico das pinturas e o olhar dele a pintar define-se na câmara subjetiva dele: temos essa presença do olhar do pintor. Há um jogo múltiplo de pontos de vista entre a câmara independente e a câmara subjetiva. O quadro ocupa frequentemente todo o campo, não é acessório, é intrínseco ao processo criativo. A lâmpada da sala de bilhar do café du soir, em Arles (uma imagem real que se transforma na lâmpada do quadro, as imagens gémeas das lâmpadas da casa, numa profusão de três planos seguidos da lâmpada) protagoniza um processo de convulsão imagética; a lâmpada, o gesto e a saga da orelha constroem-se num processo de convulsão criado na montagem de planos curtos, longos e muito detalhados; o quadro do ceifeiro processa o fora de campo, como em Pialat, mas depois define-se na câmara subjetiva da freira; a saída do hospício define-se numa panorâmica sobre as telas, com a intensidade de Resnais, com diferentes idas e vindas da câmara, numa aceleração de planos e de percursos musicais. Em Painted with Words, projeta-se a ocupação de todo o plano pelos desenhos, num processo do espelho e a análise do rosto quando se fala na inspiração de Rembrandt. Pialat define a aura da obra de arte com a cena inicial, do genérico:

Avec le cadrage, le ralenti ou la désynchronisation, et parmi d’autres signes qui disent qu’il y a un cinéaste à l’œuvre, la main de Pialat en train de peindre à la place de celle de Jacques Dutronc, l’interprète du peintre dans le film, filmé par le cinéaste lui-même, n’est pas le moindre des indices de cet écart entre le geste et le geste sujet dans l’instauration du film. (Frangne 2009, 28)

En filmant l’artiste au travail, en le filmant de cette manière-là sans identité, sans contexte, puisque nous n’avons ni visage, ni tableau présenté comme tel, ni oeuvre, ni auteur, le cinéaste superpose son propre geste à celui du peintre et expose à la fois le sujet même de son film, le décalage créatif entre le réel et l’art qui le prend en charge, et le sujet de notre réflexion ici, qui est aussi, implicitement, le sien le décalage créatif entre le geste filmé et celui qui en produit l’image. (Frangne 2009, 31)

Kurosawa transmite essa aura com a metáfora da locomotiva, a força intrínseca do gesto da pintura delineada com o ritmo da locomotiva, uma escolha intrinsecamente cinematográfica, o perfil de uma alma atormentada e com a imersão cada vez mais intensa de Akira:

Kurosawa n’est pas le premier à mettre en scène le peintre, mais sa manière est plus proche d’Alain Resnais s’essayant à la peinture de Van Gogh en laissant sa caméra franchir la fenêtre de sa chambre d’Arles que de Minelli ou de Pialat cherchant à saisir l’homme derrière le peintre. Non que le geste du cinéaste japonais soit documentaire, mais il fait de l’exploration plastique de quelques œuvres de Van Gogh la logique visuelle de sa fiction en forme d’hommage. (Vanchéri 2007, 158)

La valeur de cet essai plastique tiens cependant moins, sans doute, aux prodiges des studios de Georges Lucas qui ont rendu possible l’immersion figurative de cet intrépide visiteur qu’à la traduction formelle d’une double raison esthétique. L’une et l’autre épousent les deux mouvements de l’art par lesquelles une œuvre trouve sa sortie vers le visible et rencontre le regard de celui qui s’y rend. (Vanchéri 2007, 158-159)

L’un et l’autre, le peintre Van Gogh et son spectateur privilégié Akira, ont donc poussé l’intensité du regard au point qu’il leur soit devenu possible de passer pour l’un dans le paysage et pour l’autre dans le tableau. Ou, pour le dire autrement, Van Gogh est à ce point dans le paysage que le tableau semble se former tout seul tandis qu’Akira est lui tellement dans le tableau qui lui devient possible de repasser dans le paysage qui l’a inspiré. (Vanchéri 2007,159)

L’homme qui marchait dans les paysages de Van Gogh, allant même jusqu’à le retrouver en train de peindre, marche désormais dans l’image. (Vanchéri 2007,161)

Alain Resnais define o percurso do não citável através dos planos panorâmicos, da fragmentação, do processo não cronológico nem contextualizado pela biografia; através da profusão de planos longos e de planos curtos - no processo marcadamente acelerado. Através do detalhe dos rostos, gestos e mãos; através do detalhe da textura: a procura de uma essência na textura, os zooms in e out, o processo de aceleração na parte do hospício como que num surto de alma atormentada; a turbulência da câmara e a turbulência da pincelada nos processos criativos. Paul Cox transmite o não citável com a sucessão de telas e detalhes e com a noção do nascimento da palavra através da imagem. Projeta, através da velocidade da imagem, dos gritos em fora de campo e do quadro da cabeça amarrada após o corte, um percurso atormentado não representado em termos ficcionais. Em testemunhos vários, Alain Resnais exprime a identidade cinematográfica na essência da sua relação com a pintura:

Il s’agissait de savoir si des arbres peints, des maisons peintes, des personnages peints pouvaient grâce au montage remplir dans un récit le rôle d’objets réels et si, dans ce cas, il était possible de substituer pour le spectateur le monde intérieur d’un artiste au monde tel que le révèle la photographie. (Resnais 1948, 29)

Pour moi, Van Gogh est moins un film sur Van Gogh qu’une tentative de raconter la vie imaginaire d’un peintre à travers sa peinture. Ce n’est jamais pour sa valeur picturale ou didactique que nous choisissons tel ou tel détail d’une toile. (Resnais 1952)

The Eyes of Van Gogh projeta a noção do duplo, do espelho, da bipolarização atormentada. A criação do duplo define um processo criativo centrado nas alucinações, nas obsessões, na questão do tormento e do desespero. Uma conturbação de imagens e de percursos narrativos.

O processo conturbado entre imagens e percursos narrativos espelha-se na câmara cinematográfica de Schnabel. O desconforto da doença mental estabelece um jogo intensamente duplo entre a câmara subjetiva de Vincent e o fascínio do olhar fora de campo protagonizado pelo pintor. Schnabel constrói um ato criativo traduzido em obsessões, medos de vozes e de visões. Sempre num contínuo jogo de movimentos circulares, a câmara persegue Vincent de olhos postos no céu e no sol, num processo contemplativo, de olhar para fora de campo. A câmara inquieta e balouçante corre atrás dele, num tom difuso de cinzento e sépia, marcando a exclusividade do azul forte do casaco de Vincent. A câmara, de movimentos rápidos e sempre inquietos, absorve o surto psicótico decorrente da declaração de Gauguin acerca das suas intenções de deixar Arles.

A câmara subjetiva traduz a imponência dos grandes planos – alguns em contre-plongée – quando, perante Mme Ginoux, defende a genialidade de Shakespeare, quando enfrenta o rosto de Gauguin envolto em névoa, o rosto do médico no confronto entre o ecrã negro e a voz de Vincent na sua incapacidade de se lembrar dos acontecimentos. Na sequência que abre o filme e se repete posteriormente, a câmara subjetiva projeta o rosto e os gestos da rapariga, numa forma de violência obsessiva que exige a construção de uma posição, de um corpo de mulher protagonista de um quadro, amarelo, de sol e seara. É a câmara tradutora de uma obsessão na pintura, confrontada com a aproximação de um rosto e de um corpo numa câmara inquieta.

Na sequência do percurso rápido e conturbado pela seara, a câmara que nos mostra os pés do pintor percorrendo o chão cinzento que se vai completando com cor em ondas de flores, arbustos e texturas nitidamente van goghianas, define a intensidade e a velocidade das pinceladas que a mão do pintor, tal como em Pialat, projeta noutras sequências.

Em At Eternity’s Gate, Van Gogh caminha nos campos, entre ventos e canaviais, cortando e esculpindo uma cana para dela fazer um instrumento de pintura. Nesta caminhada pelo espaço da seara, espelha-se toda a capacidade pictórica da câmara de Schnabel. Na correria, os pés iluminados pelo sol projetam texturas agitadas como se os arbustos fossem feitos de pedaços espessos de tinta, como a “escultura” designada por Paul Gauguin no seu modo de classificar um pintor escultor. Renato Furtado o define como um Van Gogh cineasta:

Em outras palavras, os quadros — amarelos, desfocados, tortos, desconcertantes, frenéticos, quase sempre subjetivos, nunca fixos e banhados pela luz natural — que são registrados pelo filme poderiam muito bem existir em uma realidade paralela onde van Gogh é um cineasta.(Furtado 2021)

É a forma mais nítida de filmar o não-citável, de captar a toda a aura da obra van goghiana.

Conclusão

Entre Van Gogh e o cinema, entrecruzam-se abordagens sempre misteriosas, sempre sedentas de encontrar uma explicação mais ou menos concreta, mais ou menos psíquica, para a genialidade de um processo criativo. Intertextualidades, análise de testemunhos e percursos históricos projetam-se o lado de abordagens fílmicas que transformam a especificidade dos códigos cinematográficos em espaços criativos de cores e texturas. Abordagens que projetam os seus percursos analíticos tendo em conta a essência da montagem e do fora de campo na identidade do cinema. Nos exemplos analisados, de uma forma ou de outra, os realizadores, sempre inebriados pela obra do pintor, respeitam a autonomia das diferentes artes e estabelecem um intenso e inequívoco percurso dialógico entre cinema e pintura. A obra de Van Gogh espelha-se no cinema através de palavras, obsessões e texturas.

Bibliografia

Aumont, Jacques 1996. El ojo interminable, cine y pintura. Barcelona: Paidós.

Bonitzer, Pascal 1985, Décadrages, Paris: . Éditions de l’Etoile.

Frangne, Pierre-Henri, Mouëllic, Gilles, Viart, Christophe, org. 2009. Filmer l’acte de création, Rennes: Presses Universitaires de Rennes.

Grilo, João Mário. 2004. “Dossier Rapariga de Brinco de Pérola, de Peter Weber” in JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, 18/2/2004.

Resnais, Alain 1948. “Ciné-Club nº3» In Bounoure, Gaston 1974. Alain Resnais, Paris: Ed. Seghers.

Resnais, Alain 1952. “Entretien avec François Truffaut – 22 février» In Bounoure, Gaston 1974. Alain Resnais, Paris: Ed. Seghers.

Sipière, Dominique, Cohen, Alain 2007. Les autres arts dans l’art du cinéma, Rennes: Presses Universitaires de Rennes.

Vancheri, Luc 2007. Cinéma et Peinture – passages, partages, présences. Paris: Armand Colin.

Filmografia

Van Gogh. 1948. De Alain Resnais. França.

Lust for life. 1956. De Vincent Minnelli. EUA.

As Pinturas do Meu Irmão Júlio. 1965. De Manoel de Oliveira. Portugal.

Perceval le Gaullois. 1978. De Éric Rohmer. França, Suiça, Alemanha e Itália.

Vincent: The Life and the dead of Vincent Van Gogh. 1987. De Paul Cox. Australia: documentary.

Dreams. 1990. De Akira Kurosawa. Japão e EUA.

Van Gogh.. 1991. De Maurice Pialat. França.

L’Anglaise et le Duc. 2001. De Éric Rohmer. França e Alemanha.

The Eyes of Van Gogh. 2005. De Alexander Barnett. EUA.

Moi, Van Gogh. 2009. De François Bertrand. França.

Van Gogh: Painted with Words. 2010. De Andrew Hutton. EUA.

Loving Vincent. 2017. De Dorota Kobiela e Hugh Welchman. Polónia

At Eternity’s Gate.2018. De Julian Schnabel. EUA

Webgrafia

Furtado, Renato. 2018. No Portal da Eternidade – o outro lado da escuridão é amarelo https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256407/criticas-adorocinema/ Acedido em 15 de julho de 2023.